palavra ao leitor em e a vida continua

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  • 7/31/2019 Palavra Ao Leitor em E A VIDA CONTINUA

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    E A VIDA

    CONTINUAAutor: Elio Eugenio Mller

    Coleo Memrias da Figueira Volume VII

    __________________________________

    PALAVRA AO LEITOR

    Outra vez, estou diante da figueira, no Stio da Figueira em Itati RS, agorapara o momento to esperado da redao final do livro E A VIDA CONTINUA,o 7 e ltimo volume da Coleo Memrias da Figueira.

    O assunto central deste 7 volume parecem ser o poder e o fascnio ou atmesmo o pavor, que a morte exerce sobre a mente humana .

    No bastassem as mortes produzidas pela violncia e por epidemiasnaquele final do sculo XIX, to forte como a morte so o luto, o desespero e ador daqueles que perderam um ente querido.

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    Entendo que diante de tal constatao esta obra literria que encerra acoleo de sete volumes no deve e no pode ficar restrita s marcas etraumas produzidos pela morte e dos sentimentos to fortes que envolvem aperda de um ente querido. O livro se faria muito pesado e at macabro.

    Assumi o propsito de mostrar que tambm existe uma luz no final do tnel.Existe algo mais poderoso do que a dor, o luto ou a morte... No estamosabandonados e nem ss, mesmo quando somos flagelados pelos malesterrenos.

    Mesmo que verdade que, mais cedo ou mais tarde, tudo o que nasce, tudoo que existe na face da Terra, ter que passar pela morte, ela vem apenascomo inimigo derradeiro em nossa vida terrena, a ser vencido.

    Enquanto ainda pudermos ver que flores nascem, que a terra se renova,constatamos que a vida continua, apesar de todos os males que a ameaam.

    O ttulo desta obra, E A VIDA CONTINUA, sinaliza para a nossa difcilrealidade existencial e prope a importncia da f e da esperana, como forteexpectativa confiando que, quem tem a palavra final, a vida,.

    Portanto, o ttulo foi escolhido de maneira proposital, para levar os leitores reflexo.

    Para comeo dessa reflexo convido-os para que me acompanhem numrpido passeio at o Stio da Figueira.

    Procuro um lugar acolhedor sombra da centenria rvore. Ouo o suavesussurrar das folhas, agitadas pelo vento brando, que sopra do oceano e quevem trazendo um ar puro e gostoso.

    A figueira, como sempre, estava bem afinada com o meu pensamento e comas incertezas e dvidas que anuviavam minha mente, diante do desfechodoloroso da Revoluo Federalista, que ocorrera entre os anos de 1893 a1895, conforme descrito no volume anterior de OS PELEADORES. Nesta obrateremos que ir at o ano de 1897, quase trs anos aps o final daquelarevoluo e aps a anistia que havia sido concedida aos derrotados.

    A figueira segredou: - Vejo-te inconformado com os fatos de 1898 e com odesfecho da histria que ento marcou o vale do rio Trs Forquilhas e regioserrana adjacente. O teu ntimo se revolta com os relatos sobre a crueldade eat da desumanidade, revelados pelos vitoriosos castilhistas?

    Tomado pela curiosidade e um tanto ansioso, questionei: - Querida figueira,o que voc conhece a respeito de morte, luto e dor? Voc passa umaexistncia to tranqila e pacfica, banhando-se sob a luz benfazeja do sol ouse renovando com as chuvas dadivosas, de uma natureza to prdiga comoesta do nosso vale?

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    A figueira se manteve silenciosa por um longo tempo... Um tempo que meparecia infindvel. Eu at j ia concluindo que, quem cala consente ouconcorda, quando, de repente, uma vigorosa lufada de vento, agitou os galhosdela, intensamente.

    A figueira falou: - Insinuas que eu no sei o que a morte? Imaginas que euno sei o que so luto e dor, ou a fora exercida pelo vazio e da solido que seabatem sobre o ser, quando uma irm ou irmo, ou uma me ou pai, soarrancados do nosso convvio?

    A figueira no me deixou tempo para dizer alguma coisa e simplesmentecontinuou a sua fala: - Um dia ramos trs figueiras que viviam neste gramado,diante desta casa onde hoje tu e a Doris, e teus familiares, moram e renovamsuas foras. ramos trs figueiras brincalhonas, inocentes e ingnuas, que sedivertiam com o tempo. A nossa maior alegria era de acolher criaturashumanas, aves e animais, que se deliciavam com a sombra que sabamos

    produzir, particularmente, em dias quentes e de muito sol. Tivemos umainfncia muito feliz... Com os nossos galhos nos tocvamos, fazendotravessuras ou at carcias, experimentando o amor que une uma famlia ecujos integrantes se amam de fato. Juntos enfrentamos horas boas e horasdifceis de sol e chuva, de bonana e temporais e at de sofridas estiagens ede grandes enchentes do rio Trs Forquilhas. Vivamos a nossa vida como se onosso convvio e a nossa existncia jamais acabariam...

    A figueira silenciou por um breve momento, pois a brisa gostosa, vinda dooceano, cessara. Mas nem tive tempo para reagir com alguma pergunta ouconsiderao, a respeito da conversa dela. A figueira voltou a falar, dizendo: -Lembro como se fosse hoje quando em 1952 os moradores do Stio daFigueira, os antepassados de Doris, decidiram que a minha irm atrapalhava eque no se desenvolveria adequadamente por estar plantada entre mim e aminha outra irm A figueira do meio de fato vivia abafada e sem perspectivasde conseguir receber os raios solares. Ouvi quando os moradores do stiodisseram: < O desenvolvimento dessa figueira do meio est comprometido eela ir definhar, e,alm do mais, queremos nesse local colocar um palanquepara amarrar cavalos >. Naquele dia a minha irm menor foi eliminada... Otempo foi passando e no ano de 1966 uma tragdia se abateu sobre ns duassobreviventes... Foi alardeado um acontecimento, que haveria de oferecer,

    para Itati, um grande passo para o progresso e para o desenvolvimento poisque o lugarejo seria suprido com energia eltrica. Vieram homens de macaco,munidos de faces, serras e machados. Os moradores do Stio no estavamaqui para nos defender pois haviam se mudado temporariamente a SoLeopoldo. A primeira a ser atacada pelos desalmados funcionrios da empresade energia eltrica foi a minha irm. Ela sofreu muito... Cortaram todos os seusfortes e lindos galhos, bem rentes ao tronco. Depois vieram para o meu lado,me examinaram por um tempo e ento passaram a cortar alguns de meusgalhos, S cortaram os galhos de um lado do meu tronco. Felizmente o outrolado ficou intacto e notei que eu ainda conseguia respirar normalmente...Porm a minha irm no tinha mais galhos com folhas, para ter uma respirao

    adequada. Ela no tinha mais folhagem para ser agitada ao sabor do vento eno tinha mais como me tocar ou para brincar comigo...

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    FIGURA 01Nos fundos, vista uma das trs figueiras.Diante da figueira vemos Justino Alberto Tietbhl, Diumer Schneider,

    Adolfo Voges dono do Stio da Figueira, Ldio Passos, Iarandu Chaves,Zaire Nunes, Perci Schmitt e Emlio Bobsin.

    Foto do Arquivo da Famlia Voges, 1942.

    A figueira silenciou outra vez, tomada por reflexes talvez produzidas pelastristes lembranas do passado. Mas ela continuou falando: - Quando osmoradores deste meu stio retornaram de So Leopoldo, porque l no seadaptaram, encontraram aqui essa novidade dos postes de luz, dos fiosfornecendo eletricidade e se alegraram muito. As residncias passaram a estarbem iluminadas s vezes at altas horas da noite. A vida em nossa localidade

    realmente mudou, ao poder contar com os benefcios oferecidos pela energiaeltrica. No primeiro momento os moradores do Stio da Figueira nemprestaram ateno para a minha irm que estava ali agonizante, sem poderrespirar direito. A podrido comeou a avanar pelo seu tronco e se viamapenas alguns galhos magrinhos com poucas e fracas folhas.

    Escutei esse relato cheio de suspense e finalmente reagi e comentei: - Amigafigueira, eu conheci a tua irm... Tenho at uma foto, cavalo, segurando amo de Doris, posando diante do tronco tosco e ressequido, de tua irmfigueira.

    A rvore confirmou minhas palavras: - Sim, conheceste a minha irmfigueira, poucos meses antes de ela morrer e, ser arrancada de vez do solo..

    Sim, eu pudera ver a agonia da irm dela, como ela se transformava empodrido e morte. Mas, naquela poca, eu no tivera olhos para uma figueira.O meu pensamento e toda a minha ateno estavam focalizados na Doris,minha namorada, depois noiva e mais adiante esposa e companheira najornada existencial.

    Olhei para a minha amiga figueira, essa extraordinria e incrivelsobrevivente. Observei agora com bem maior ateno as marcas e cicatrizesque ela carregava em seu corpo. Ela sentiu o meu olhar, e logo explicou: - Asminhas feridas foram bem dolorosas e profundas e cheguei a temer que o meu

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    fim tambm se aproximava. O que me concedeu essa sobrevida e algumtempo mais de existncia foi o fato de eu me encontrar alguns metros a mais,afastada da linha pela qual os fios de energia eltrica tiveram que passar. J sepassaram mais de 50 anos desde aquele dia trgico, mas no preciso contarsobre isso pois s testemunha da minha existncia, desde ento at hoje...

    A figueira silenciou e colocou-se naquele mutismo vegetal, de quem j dissetudo o que precisava ser falado.

    O meu pensamento vagou agora de volta minha infncia. Eu me vi emminha terra natal, em Panambi RS, na j distante poca de meu tempo demenino. Estava com 11 anos de idade e trabalhava na Farmcia Hisserichcomo balconista, como agente de servios gerais e, muitas vezes, at para sairde bicicleta em tarefas de muita responsabilidade fazendo a cobrana mensalde dbitos nas residncias de fregueses, trazendo, no final de cada jornada,altas somas em dinheiro que depois de contabilizadas eu tambm levava ao

    banco, para depsito.

    Na condio de menino, com apenas 11 anos, vivenciei uma situao, bempeculiar para aquela idade e, que haveria de me marcar profundamente. Fuidespertado para conhecer a histria de um soldado que foi para a guerra,dentre muitos que no voltaram e de tantos que sobreviveram e voltaram comsuas experincias, vivncias, traumas e cicatrizes.

    Desde os meus primeiros dias na situao de empregadinho de trabalhoinfantil, me foi dado experimentar um contato muito prximo com a filha dovelho farmacutico Carlos Hisserich e irm de Jorge, tambm farmacutico efilho do patro. A Emilia talvez tivesse na poca de 18 a 20 anos de idade. Eramuito gentil e atenciosa e logo revelou uma grande preocupao comigo, euque era apenas criana mas j realizando servios de muita responsabilidade.Eu um menino franzino, que crescia devagar e era considerado muito magro ouat magro em demasia.

    Emilia Hisserich um dia quis saber: - Menino, voc est se alimentandobem?

    Respondi prontamente: - Claro que sim pois em minha casa temos comida

    vontade. Nunca precisei ser levado a um mdico... Sou muito forte... E fizdiante dela um gesto, dobrando o brao para mostrar os meus msculos,imaginando haver um vistoso biceps para ser admirado. Na verdade noexistiam grandes msculos, mas simplesmente uns gambitos finos e magros,de ossos cobertos pela pele.

    Emilia levou-me at o refeitrio da cozinha e ordenou que todas as manhsa cozinheira me servisse uma fatia de po com manteiga e um ovo estrelado,para dar reforo ao caf da manh. O mesmo procedimento tambm acontecia tarde, no horrio do lanche.

    Essa deciso da patroa oportunizou para mim a possibilidade de vivenciarum pouco mais do cotidiano deles. Logo no princpio a minha ateno foi

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    despertada para um curioso ritual que Emilia cumpria todos os dias. Enquantoeu estava ali em torno da mesa da cozinha recebendo um reforo para o cafda manh, observei que Emilia passava por mim, com trs florzinhas na mo,frescas, recm colhidas no jardim. Ela ia at a sala contgua onde eu podia verum quadro emoldurado, mostrando o retrato de um soldado bastante jovem.

    Ela colocava as florzinhas num minsculo vasinho fixado naquela moldura doquadro. Depois ela passava a mo sobre o retrato, como se quisesse acariciaraquele rosto e lgrimas deslizavam pela sua face, marcando-amomentaneamente com sinais de grande tristeza. Ela pronunciava algumaspalavras e depois unia as mos como que fazendo uma breve prece. No finalela enxugava as lgrimas que desciam de seu rosto moreno e lindo.

    Um dia tomei coragem e me aproximei de Emilia, tocando levemente no seubrao. Ela baixou o rosto at o meu e deu-me um beijinho na testa. Com essegesto criei coragem e perguntei: - Por que, todo o dia coloca trs florzinhasjunto a esse retrato?

    Emlia explicou: - Esse retrato do meu irmo que morreu no final da guerramundial, na Itlia. Todos os dias eu chego diante do quadro dele, coloco asflorzinhas, falo algumas palavras com ele e depois oro para que Deus cuidedele, no lugar onde ele agora se encontra.

    FIGURA:Sargento Carlos Walter Hisserich - 2 ROAu FEB.Foi motorista do 2 Regimento de Obuses Auropropulsado, no front da Itlia, durante a IIGuerra Mundial. Morreu em 24.06.1945 em Marano, j aps o trmino da guerra quando atescrevera para a famlia anunciando o seu retorno. Naquele dia do acidente fatal, ele estavaconduzindo militares para a rea porturia. O seu veculo passou sobre uma minha terrestre

    que explodiu vitimando este jovem militar panambiense.

    Com muita curiosidade e pesar eu escutara o relato de Emilia. Em minhainocncia infantil a questionei: - Eu no gosto de v-la chorando detristeza...Porque, a senhora, diariamente, vem sofrer diante desse retrato? Seo seu irmo est l no cu, junto de Deus, ele no est mais aqui, para queconsigas falar com ele...

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    Emilia respondeu: - verdade, eu concordo que ele est no cu. Mas asaudade mesmo depois desses 10 anos da morte dele ainda continua muitogrande. Quando falo com o retrato dele e fao as minhas oraes, consigodepois ir trabalhar com alegria no corao. Eu prometi jamais me esquecerdele...

    O que Emilia falara sobre alegria, era verdade, pois nunca a vira tristedurante o horrio de trabalho, mas sempre com um grande sorriso no rosto,tratando os clientes com muita ateno e carinho. Todos gostavam dela, porcausa dessa alegria espontnea que transcendia do seu semblante de modocontagiante. Tive a partir daquele dilogo a impresso de que ela buscavacultivar a sua f e renovar as suas foras, revelando que, apesar da morte queceifara a vida do irmo, para ela o que importava mesmo era a vida.

    Depois de relatar aos leitores a respeito do meu contato com a figueira e daslembranas de minha terra natal, volto a trazer baila a histria ocorrida em

    1898, aps a Revoluo Federalista.

    J nos primeiros dias, quando pisei no vale do rio Trs Forquilhas escuteirelatos sobre as mortes inaceitveis que teriam ocorrido nessa regio. Pessoasfalavam baixo como que segredando alguma coisa a respeito de um assuntoproibido. Aparentavam serem prisioneiros de um passado mal resolvido e queprojetava sombras escuras sobre o momento presente. Entendi que algumteria que dar ateno para essa situao e ajudar a espantar de vez osfantasmas dos crimes e atos nefandos que haviam sido cometidos e ocultadosda justia, pelas autoridades, como se nada de mal tivesse acontecido.

    A minha ateno foi aguada pelas palavras de inconformismo de Ivo Melode Oliveira - o Ivo Baiano, as lembranas de Lidurino Barroso Menger, ashistorinhas de Octavio Becker. Em muitos relatos surgiam depoimentos nummisto de vergonha, de medo e de sentimentos traumticos. Alguns procuravamesconder os vnculos de parentesco que eles tinham, com os que forameliminados como bandidos. Ivo Baiano me surpreendia quando insistia: -Aconteceram assassinatos praticados depois de uma anistia concedida, ehouve a prtica de injustia, no passado deste nosso povo, em 1898.

    Sempre cauteloso procurei captar a confiana deles, desejando, como cura

    dalmas, lev-los a desabafar os sentimentos retidos, escondidos, abafados,durante tantos anos, e que passaram de uma gerao para outra.

    Aos poucos, veio tona, uma triste histria de assassinatos mltiplosencobertos sob um manto de justia. Junto, veio tona tambm a dor de maisde uma dezena de famlias que tiveram que chorar sua dor e de prantear seuluto s escondidas para no serem estigmatizados como descendentes debandidos vis e perigosos que entretanto haviam sido colocados sob o mantoprotetor de uma anistia.

    Algumas coisas eu jamais poderei revelar pois me foram concedidas sob o

    sigilo da confisso. Outros relatos porm foram transmitidos com a garantia deapenas no revelar o nome do depoente. No entanto, encontrei tambm

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    pessoas que fixaram um prazo, um tempo definido, para revelar seusdepoimentos. Mas, todos eles foram unnimes em solicitar que aguardasse otempo, certo, ou seja, quando eles no estivessem mais nesta existnciaterrena, para somente ento contar todas essas tristes histrias.

    Devo a todos eles a minha gratido no s pelos dados fornecidos, comofonte da tradio oral, mas tambm pela coragem e disposio para revelaremsuas histrias. Concedo destaque para Alberto Schmitt, Joo Nascimento,Barroso Menger, Eugenio Bobsin, Octavio Becker, Clara Justin, Joo JacMauer, Ivo Melo de Oliveira, Vicente Pereira de Souza, dentre outros.

    Passei a me considerar, no vale do rio Trs Forquilhas, no papel da atalaia,para ser voz daqueles que no tem voz.

    A minha pregao, a partir de 1970, passou a ser um alerta veemente contrao imprio da impunidade, da arbitrariedade policial e do desrespeito vida

    humana.

    Sou de opinio que, quando ningum mais reage contra o abuso daautoridade, contra a arbitrariedade ento tende a se estabelecer na sociedade,uma situao semelhante quela vivida pelos colonos de Trs Forquilhas, noano de 1898.

    Nesta obra revelo como, em 1898, os assassinatos, de fundo poltico,haviam se tornado em uma rotina lgubre.

    Por algum tempo, parecia que as mortes no conseguiam mais mexer com

    a sensibilidade, nem dos membros da Igreja. Por isto preciso que haja a vozde atalaia, que alerta. Somente assim se evita, que o tecido social e poltico deum povo, venha a se degenerar ou a se desestruturar por completo.

    Convido-os para voltarmos ao ano de 1898, no vale do rio Trs Forquilhas.Mostrarei o momento, onde a autoridade policial, os lderes polticos e aslideranas eclesisticas da Colnia de Trs Forquilhas, chegaram ao pontomais baixo de suas atitudes, afrontando por completo todos os valores ticos ereligiosos.

    J em 1897, sem o menor constrangimento, montou-se um verdadeiro palcoteatral, para assassinar pessoas.

    Em 1898 chegaram ao disparate de montar cenrios, colocando como panode fundo, a solene Noite de Reis da tradio catlica e, noutro caso, arealizao de um culto evanglico da tradio luterana e, noutros casos,simples ciladas traioeiras.

    Deste modo tanto luteranos bem como catlicos viram-se comprometidosnas armaes de cunho religioso que foram montadas no vale do rio TrsForquilhas, por adeptos dessas duas associaes da f crist.

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    Temos que ter, porm, um pouco de cuidado, em particular, ao quererclassificar eventuais erros atribudos aos que nos antecederam na vida. Paraeles, na situao que eles viveram, talvez aquilo que fizeram, representasse,no momento, o correto.

    Outra grande dificuldade que eu tenho para lidar com o problema doperdo, para tais casos de assassinatos que ocorreram no tempo ps anistia,no seio de uma sociedade j em vias de pacificao plena.

    Como reconstituir, o que foi destrudo, pela matana?

    O morto no pode mais dizer a palavra de perdo, ao seu agressor.

    A vida terrena, de uma pessoa, no pode mais ser trazida de volta, depoisde eliminada.

    O que dizer de crimes premeditados, que ocorreram fora do contexto de umaguerra ou de uma revoluo, de personagens que j haviam sido colocadossob o manto protetor de uma anistia concedida, quando, em seguida, seelimina, com frieza, os mesmos?

    Nesta situao lembro do grande telogo Dietrich Bonhoeffer, martirizadopela sanha nazista, que, esperando a morte na priso, em 1945, soube dizer:De bons poderes estou cercado onde na ltima estrofe da poesia eleafirma:

    De bons poderes vemo-nos cercados,De pensamentos, para o bem voltados,Deus est presente noite e dia,Assim certa hoje a sua companhia

    Destacamos ainda que no volume anterior, em OS PELEADORESfalamos guisa de Concluso que precisamos conhecer o nosso passado,mesmo que no possamos mais reescrev-lo j que o que aconteceu se foi evirou histria.

    Quando digo que precisamos conhecer o nosso passado mais no

    propsito de conseguirmos fazer as pazes com ele. Poder algum querer medizer: - Aquele no foi meu passado. Foi o passado de avs, que vivenciaramaqueles acontecimentos ou deles participaram.

    verdade, foi o passado deles porm, por extenso, transformou-se emnosso passado pois somos herdeiros de nossos antepassados e podemosestar carregando tantas coisas que deles recebemos, desde os nossos genesou quem sabe at ideais, crenas e o modo de lidar conosco, com os outros ecom toda a natureza que nos cerca.

    Fazer as pazes com o passado significa conhec-lo e entend-lo, para

    compreender um pouco mais das motivaes que levaram estes e aqueles afazer o que fizeram e evitar que venhamos a sofrer em nossa vida, hoje, o que

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    ocorreu no passado, seja como indivduo, como famlia ou na situao coletivade comunidade ou sociedade.

    ITATI RS, no Stio da Figueira, no dia 14 de maio de 2012.

    Elio E. Mller

    Membro daAcademia Virtual Brasileira de Letras.