palácio rio branco- linguagens de uma arquitetura de poder no acre - ana carla

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS LINGUAGEM E IDENTIDADE PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO ACRE Ana Carla Clementino de Lima RIO BRANCO 2011

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Page 1: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS LINGUAGEM E IDENTIDADE

PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO

ACRE

Ana Carla Clementino de Lima

RIO BRANCO

2011

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Ana Carla Clementino de Lima

PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO

ACRE

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre, na Área de concentração em Sociedade e Cultura, sob a orientação do professor Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.

RIO BRANCO

2011

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L732p Lima, Ana Carla Clementino, 1976-

Palácio Rio Branco: linguagens de uma arquitetura de poder

no Acre / Ana Clara Clementino de Lima. – 2011.

100 f.: il.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Acre, Pró-

Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Curso de Mestrado em

Letras Linguagem e Identidade, Área de Concentração em

Sociedade e Cultura. Rio Branco, 2011.

Inclui Referências bibliográficas

Orientador: Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque.

1. Cultura – Linguagens – Rio Branco (AC). 2. Palácio Rio

Branco – Patrimônio cultural – Memória – Rio Branco (AC). 3.

Rio Branco (AC) – Política cultural – Regionalismo – História. 4.

Governo – Identidade Cultural – Rio Branco (AC). I. Título.

CDD: 306.098112

LIMA, 2011. LIMA, Ana Clara Clementino de. Palácio Rio Branco: linguagens de uma arquitetura de poder no Acre. Rio Branco, 2011. 100 f. Dissertação (Mestrado em Letras - Linguagem e identidade) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. Universidade Federal do Acre, Rio Branco.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC

Bibliotecária: Vivyanne Ribeiro das Mercês Neves CRB-11/600

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TERMO DE APROVAÇÃO

Ana Carla Clementino de Lima

PALÁCIO RIO BRANCO: LINGUAGENS DE UMA ARQUITETURA DE PODER NO

ACRE

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, pela Universidade

Federal do Acre (UFAC), na Área de concentração Sociedade e Cultura.

BANCA EXAMINADORA

Orientador: Prof.Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque Universidade Federal do Acre

Prof. Dra. Maria de Jesus Morais Universidade Federal do Acre

Prof. Dra. Lindinalva Messias do Nascimento Chaves Universidade Federal do Acre

Prof. Dr. José Dourado Alves de Souza

RIO BRANCO-AC,

2011

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DEDICATÓRIA

Aos leitores, pesquisadores e interessados pelo tema e pelo compartilhar com as reflexões realizadas nesta dissertação, bem como a todas as pessoas que se inquietam com suas responsabilidades institucionais e não se afastam do esforço de reflexão teórica sobre suas atividades, acreditando que se não podem mudar, podem ao menos pensar no desafio de proporcionar um diálogo mais aberto com as práticas culturais da sociedade em que vivem.

Page 6: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

AGRADECIMENTOS

Nesse processo de pesquisa em que me deparei, muitas vezes, com “portas

fechadas”, documentos “perdidos” ou “não identificados”, com funcionários de

instituições que “não sabiam” dar informações me levando a pensar na

impossibilidade de conclusão ou mesmo em um novo direcionamento da pesquisa,

tive a certeza de poder contar com o apoio, direto e indireto, de pessoas e

instituições necessário ao andamento de minhas reflexões propostas e, a todos

estes, o meu muito OBRIGADA!!! Deixo registrado aqui os meus agradecimentos

sem separar a esfera pública da privada, pois não consigo dissociar o resultado

desse estudo sem considerar o meu “lugar” de sociabilidade que inclui as duas

esferas.

Sem considerar como cumprimento de um ritual, mas para, de fato, tornar

público o papel importante que teve na construção desse estudo, agradeço

imensamente ao meu estimado orientador, Gerson Rodrigues de Albuquerque, por

sua percepção, questionamentos e, acima de tudo, pelos desafios lançados, os

quais me levaram a certas angústias ao ter que “desaprender” alguns conceitos

enraizados, mas que também me ajudaram a exercitar o meu “olhar”, contribuindo

assim para o meu crescimento intelectual.

À minha mãe, Neusa, e meu pai, João Farias, pela compreensão, profundo

incentivo, respeito e amor que têm dedicado à minha pessoa desde que nasci.

Às minhas queridas sobrinhas Blenda e Laura, pelo apoio no levantamento

de dados dos visitantes do Palácio e impressões de documentos.

Ao meu sobrinho de sete anos, João Víctor, pelos momentos de

descontração e até mesmo pelas “broncas” quando me criticava, dizendo “a tia é

preguiçosa, não faz nada! Passa o dia “olhando” para o livro e o computador!”

À minha irmã Iris e ao meu cunhado, Jonathas Vieira, por todo carinho e

“socorros” prestados: quando o pneu do carro furava na UFAC, quando a impressora

sofria danos, quando a tinta acabava, enfim, quando a ajuda era de extrema

importância em momentos cruciais para a minha participação em eventos ou em

conclusões de trabalhos.

Às minhas amigas Aurinete Malveira, pelos diálogos sobre arquitetura, e

Alessandra Dantas pelo apoio nas transcrições das entrevistas.

Page 7: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

Ao meu amigo Vinícius Cotrin Neto e a minha amiga Lucilene Almeida, pelas

palavras de incentivo quando estava “desanimada”.

À Kellen Dantas pelos comentários de algumas leituras sobre identidade.

À prof. Dra. Maria de Jesus Morais, pelos diálogos mantidos nos encontros

em eventos, pelos valiosos empréstimos de livros sobre patrimônio histórico e pelos

comentários durante o Exame de Qualificação.

À prof. Dra. Lindinalva Messias Nascimento, que também compôs a Banca

de Qualificação, pela leitura atenta e os valiosos e sinceros comentários críticos à

forma e conteúdo do texto.

Ao diretor da Sub-regional do IPHAN no Acre e amigo Deyvesson Israel

Alves Gusmão.

Ao Eduardo de Araújo Carneiro, pelas informações de atas e processos

sobre o tombamento do Palácio Rio Branco.

Ao professor e estimado AMIGO Francisco Bento da Silva, pelos livros e

DVDs que muito contribuíram para entendimento e esclarecimento de processos

históricos, mas principalmente, pela companhia agradável em momentos de

descontração.

Aos entrevistados que dispuseram de seu tempo para me atender: o ex-

presidente da Fundação Elias Mansour Antônio Alves, o artista plástico Dalmir

Ferreira, a ex-diretora da Coordenação de Patrimônio da FDRHCD Fátima Almeida,

aos ex-diretores da FDRHCD João Petrolitano e Jacó Píccole, o presidente da

Federação de Teatro do Acre Lenine Barbosa de Alencar e o arquiteto Jorge

Mardine Sobrinho.

A todos os meus colegas da Pós-Graduação que serão sempre lembrados,

em especial a Raquel Alves Ishii, Patricia Redigolo, Valéria Barbosa, Guadalupe

Dagaldilho, Rivanda Nogueira, Gracione Teixeira, Rozane Albuquerque, Maristela

Diniz e Maria Da Luz França.

À Fundação Elias Mansour, destacando a atenção no atendimento

dispensado a mim por Elda Alencar.

Ao Departamento de Patrimônio Histórico, fundamentalmente, a Chefe do

Departamento Suely da Costa Melo e à secretária Lívia Helena Galvão.

Ao Museu Universitário da UFAC (antigo CDIH), principalmente à estagiária

Gercinéia Alves da Silva.

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À equipe do Museu da Borracha pela acolhida nos momentos de pesquisa

na biblioteca.

Aos alunos do 8º período do curso de História Bacharelado, no segundo

semestre letivo de 2009, pelas discussões realizadas durante meu estágio de

docência: Éssio, Wellynton, Arlen, Emilania, José Capistano, Huendeson, José

Welliton, Sandréia, Iolanda, Assis, Maria Zenaide, Edcleu, Aires, Carlos, Jerônimo,

Adriana e Silvana.

A todos os professores do mestrado, ao Coordenador Henrique Silvestre e,

finalmente, agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Letras Linguagem e

Identidade e à Universidade Federal do Acre (UFAC), pela possibilidade de

chegar a esse momento de minha trajetória profissional, bem como à

Capes/Programa Reuni pela bolsa e apoio à pesquisa.

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RESUMO

Este estudo discute a invenção de uma acreanidade forjada pela linguagem, cuja representação constitui-se de narrativas históricas, personagens, mito de origem e símbolos que foram intensamente divulgados durante o “Governo da Floresta” (1999-2006), no Estado do Acre, como referência identitária. Para tanto, lançamos mão de algumas produções acadêmicas que trazem contribuições importantes sobre a temática. Nesse processo de invenção, destacamos, na abordagem da discussão, a atuação da Fundação de Cultura Elias Mansour, do Departamento de Patrimônio Histórico do Acre e do Jornal Página 20 como agências promotoras de um discurso regionalista, em conformidade com os interesses do governo estadual, em um tempo presente, que trazia em seu discurso oficial um conceito de modernidade aliado ao de tradição, para legitimar suas intervenções por meio de um consenso através da via cultural e da ideia de “progresso”. Como materialização das abstrações desse discurso, o governo trabalhou com um projeto urbanístico de revitalização do centro histórico de Rio Branco e criação de novos lugares de memória, que nos levam a refletir sobre o patrimônio e suas articulações com o discurso oficial. Nesse contexto, o Palácio Rio Branco, construído em 1929, como símbolo do rompimento com o “atraso”, foi “revitalizado” em 2002, ressurgindo oficialmente e discursivamente como monumento-símbolo do Acre e da “acreanidade”, simbologia esta que se tornou o ponto chave de nossas reflexões, cuja pesquisa destina-se a lançar um outro “olhar” a respeito do que está posto como unidade a partir desse monumento que apresenta em suas dependências um cenário de uma versão de “história regional”, mas que traz em sua essência a contradição do discurso por sua composição esteticista, ritualística e memorial.

Palavras-Chave: Memória. História. Patrimônio Cultural. Identidades. Representações. Amazônia Acreana.

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ABSTRACT

This study discusses the invention of an “acreanity”, that is, an Acrean identity,

forged by language, whose representation is made up of historical narratives,

characters, origin myth and symbols that have been heavily publicized in the

"Government of the Forest" (1999-2006), in the state of Acre, as identity references.

For this we engaged some academic productions that bring important contributions

on the subject. In the process of invention, we highlight the role of “Elias Mansour”

Cultural Foundation, the Department of Historical Patrimony of the State of Acre, and

of the “Jornal Página 20”, a local newspaper. Those institutions were considered as

agencies that promoted a regionalist discourse, in accordance with the interests of

the state government, which brought in its official discourse the concept of modernity

combined with tradition, in order to legitimize their interventions through a consensus

about the culture, more specifically the idea of "progress". In doing so, the

government created an urban project to revitalize the historic center of Rio Branco,

the capital of the State of Acre, and also created new places of memory, which

leaded us to reflect on the historical patrimony and their links to the official discourse.

In this context, the “Palácio Rio Branco”, built in 1929 as a symbol of the rupture with

the "retrogress", was "revived" in 2002, rising officially and discursively as a

monument-symbol of the State of Acre and also the "acreanity". That symbol became

the key point of our reflections, whose research is intended to launch another "view"

upon this monument that had on its premises a version of "regional history", which

brings a cultural contradiction in its essence, considering its aesthetics, ritual and

memorial aspects.

Keywords: Memory. History. Cultural Patrimony. Identity. Representation. Acrean

Amazon.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS............................................................. 11

1.DIÁLOGOS SOBRE A “INVENÇÃO” DA ACREANIDA................... 19

2.PALÁCIO RIO BRANCO: A TEATRALIZAÇÃO DA “HISTÓRIA

REGIONAL” – E DA “ACREANIDADE”.............................................

42

3.MEMÓRIA, MEDIAÇÃO CULTURAL E CONSTRUÇÃO

DISCURSIVA DO PASSADO-PRESENTE ........................................

67

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 90

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................. 94

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estudo apresentado nesta dissertação faz parte de um caminho longo e

sinuoso, percorrido durante minha trajetória profissional. Foram mais de oito anos de

atividades exercidas como estagiária e em cargo de comissão por vários setores do

Departamento de Patrimônio Histórico do Estado do Acre. Devo dizer que lidar com

questões ligadas à cultura, memória, símbolos e representações é algo

extremamente conflitante, por tratar-se de dimensões simbólicas de valores

individuais e coletivos. Tais valores são ora “impostos”, ora apropriados ou

inventados, criados, recriados, trazendo em sua essência elementos cruciais das

relações sociais, resistências ou negociações pelos mais diversos interesses, em um

“campo de batalha” contínuo que nos leva a refletir sobre a expressão romana cui

Bono, (FUNARI & PELEGRINE, 2006, p.10), ou seja, “quem se beneficia?”

Procuramos nesta dissertação, ampliar reflexões iniciadas em um estudo

intitulado “Entre a memória histórica e o esquecimento: a re-invenção do Acre (2002-

2006)”.1 O interesse pela abordagem surgiu de inquietações pessoais no exercício

de minha atividade na condição de diretora do Museu da Borracha, em 2005.

Vivenciávamos um momento de “entusiasmo” no Acre, quando somente se ouvia

falar de aspectos positivos desse Estado da federação, na Amazônia brasileira.

A visão divulgada na mídia sacralizava uma relação dos acreanos com a

floresta e com “valores tradicionais”. A intensidade das propagandas difundidas

tomava significativas proporções, na medida em que ia produzindo a ideia de que o

Acre vivia uma “nova fase” de “desenvolvimento” e “bem-estar social”. Todos

pareciam extremamente envolvidos e satisfeitos com a “valorização” que se dava a

uma ideia de “cultura”, singularizada e marcada pela lógica do grupo político que

assumira o comando do poder executivo local.

Frente a esse contexto, buscamos refletir acerca das dimensões simbólicas

que marcaram a ideia de construção de um “Outro Acre”, pesquisando sobre os

projetos governamentais que estavam em destaque na mídia: Palácio Rio Branco,

Memorial dos Autonomistas, Casa dos Povos da Floresta, Praça dos Povos da

Floresta, Via Chico Mendes e Mercado Municipal.

1LIMA, Ana Carla Clementino de. Entre a memória histórica e o esquecimento: a “re-invenção”

do Acre. 2007. Monografia (Pós-Graduação em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia) – Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2007.

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Dividido em três partes, aquele estudo traz algumas considerações sobre a

construção de uma memória coletiva apoiada em determinados suportes sociais

para seu reconhecimento. A produção dessa memória histórica concentrou-se em

um conjunto de “realizações” pretéritas de governadores do Acre Território,

especialmente, Hugo Carneiro (1928-1930) e Guiomard dos Santos (1946-1950),

bem como no “mito fundador” da “Revolução Acreana” e em semióforos2 antigos e

recentes, a exemplo de Plácido de Castro e Chico Mendes.

No Acre, naquele início de milênio, ocorria um fenômeno de reconstrução e

criação de “lugares da memória” que visavam conferir legitimidade ao projeto

governamental em voga. O que se evidenciava, portanto, não era uma valorização

da memória social e coletiva das comunidades acreanas, mas da memória que

interessava – e interessa – às elites locais, posto que, esses “lugares da memória”,

no dizer de Pierre Nora, “nascem e vivem do sentimento que não há memória

espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,

organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres [...]” (NORA, 1993, p. 13).

A criação ou recriação ou reconstrução desses “lugares da memória”

concorrem para a invenção/re-invenção de tradições que, em harmonia com

determinados “fatos históricos” sacralizados pelo discurso de um “Acre que se quis

brasileiro”, atualizavam práticas de controle do poder público, preservando ou

estabelecendo a “obediência, lealdade e cooperação” (HOBSBAWM & RANGER,

1997, p. 273) da “comunidade de acreanos” ou dos que “vivem no Acre com o

governante que, também, procurava se legitimar.

Em estreito diálogo com Nora, Hobsbawm e Ranger, observando a partir do

momento presente, é possível dizer que entre os anos 2000-2008, o governo

acreano desenvolveu um trabalho voltado para a “urbanização” efetiva do centro da

cidade de Rio Branco e mesmo de outras cidades acreanas. Nesse processo,

procurou “resgatar” elementos do passado, sob o invólucro da recuperação e

manutenção do patrimônio histórico acreano, a partir de uma “concepção oficial de

2 Para Marilena Chauí, em Brasil - mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu

Abramo, 2001, p.12, o semióforo pode ser um acontecimento, um animal, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito do uso ou sem utilidade direta e imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou valor simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo.

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cultura”3, como mecanismo para manter uma aparência de unidade social, através

da política de preservação e produção de um patrimônio coletivo.

Percebe-se que a política de patrimônio histórico e cultural selecionou bens

culturais de cal e pedra, fixando pontos que orientam itinerários, cuja

representação, compõe o que poderíamos chamar de uma “cartografia do poder”

que teve início com a “reforma”, “restauração” e “revitalização” do Palácio Rio

Branco, símbolo maior do poder político no Acre.

Essa cartografia teve como base a produção material (monumentos) e

simbólica no campo da cultura, constituindo-se de uma relação entre linguagem,

história, memória e sociedade que precisam de maiores reflexões por configurar

formas e conteúdos, criando representações de uma certa identidade no imaginário

individual e coletivo dessa parte das Amazônias.

Ampliando e mesmo superando questões esboçadas no estudo anterior, o

que pretendemos, com esta dissertação, é discutir a construção de uma identidade

acreana ou a “acreanidade” no contexto do “Governo da Floresta”, mais

precisamente no espaço de tempo que consideramos mais significativo para os

objetivos deste estudo, os anos 2002-2006.

A abordagem proposta concentra-se na linha de pesquisa Cultura e

Sociedade, especialmente, por levar em consideração que os significados da

linguagem são produzidos na e para a sociedade por meio de práticas culturais.

Nessa perspectiva, a discussão será realizada a partir dos estudos culturais,4

campo de estudo multidisciplinar em que a cultura entrelaça todas as práticas

sociais.

Consciente da impossibilidade de se discutir todo o sistema de

representações, o objetivo agora é, fazer uma discussão acerca das dimensões

simbólicas e dos discursos que inventaram a ideia de uma “acreanidade”, tendo

como suporte a política patrimonial, articulada a uma complexa rede de significados,

visando criar ou legitimar uma ideia de “tradição” para a afirmação da “identidade

acreana”. Ao dialogarmos com essa identidade, cuja representação manifesta-se

3 Termo cunhado de Leite, (2001, p.13), o qual se refere a práticas orientadas e voltadas para

sociedades que têm o Estado como referência institucional. 4 A preocupação dos estudos culturais está em sondar como as relações são vividas e

experimentadas. É um campo do estudo que surgiu na Inglaterra em meados da década de 1950. Emergiu a partir das obras de Hichard Hoggart (As utilizações da Cultura), de Raymund Wilians (Cultura e Sociedade) e de E.P. Thompson (A formação da classe operária inglesa).

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nos “lugares de memória”,5 questionamos a unidade cultural que foi produzida pelas

representações de um discurso, cuja “linguagem molda o mundo simbólico” (BURKE

& PORTER, 1993, p. 13-37).

Diante da necessidade de questionamento dessa aparente unidade em torno

de uma “identidade cultural acreana”, representada nos lugares de memória,

optamos por discutir o Palácio Rio Branco como estudo de caso, por ser

considerado pelo discurso oficial, um símbolo de “restauração do próprio Acre” e da

“acreanidade” (NEVES apud MORAIS, 2008, p. 229).

A partir deste estudo de caso, propomos fazer uma leitura discursiva na

contramão do que está posto, buscando romper com “exílios interiores”,6 dialogando

com as seguintes problemáticas: quais as condições de criação, no governo de

Hugo Carneiro (1928-1930), daquilo que foi concluído no governo de Guiomard

Santos (1946-1950) e recuperado/revitalizado no governo de Jorge Viana (2002-

2006) em torno do Palácio Rio Branco? Sua preservação como produção simbólica

e material expressa quais experiências sociais? Quais são as memórias que

podemos atribuir à significação desse Palácio, na condição de monumento histórico?

O Palácio Rio Branco – como patrimônio histórico e cultural – exerce sua função

social de direito à cidadania?

Para investigar o período dessa construção de representações simbólicas de

invenção da “acreanidade”, nos lugares de memória, recorremos à biblioteca e à

hemeroteca do Museu da Borracha.7 Nesse museu, tive acesso ao relatório do ex-

governador do Território do Acre, Hugo Ribeiro Carneiro, bem como ao acervo de

jornais com as edições do Jornal “Página 20” e o Jornal “O Estado” (anos 2002-

2006). Essa documentação foi importante para analisar imagens e enunciados na

produção imagético-discursiva da “acreanidade”, tendo como pano de fundo o

Palácio Rio Branco, desde seu projeto inicial, em 1928.

5 NORA, (1993) classifica a dinâmica de criação dos lugares da memória como “o tempo dos lugares”,

momento preciso do fim de uma tradição de memória onde aparece um aprofundamento decisivo do trabalho da história, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída. 6 GLISSANT, (2005) utiliza esse termo para explicar momentos em que o imaginário, a imaginação,

ou a sensibilidade estão alheios àquilo que se passa à sua volta. 7 O Museu da Borracha foi criado através do Decreto Estadual nº 30 de 03 de abril de 1978, pelo

Governador Geraldo Mesquita. Era subordinado ao Departamento de Assuntos Culturais (DAC) da Secretaria de Educação e Cultura do Acre e passou a ser vinculado à Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Cultura e do Desporto em 1979. Atualmente é coordenado pelo Departamento de Patrimônio Histórico da FEM.

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Percorrendo os arquivos do Departamento de Patrimônio Histórico e

Cultural do Estado (DPHC), tive acesso a relatórios, atas, decretos, dossiês,

fotografias, processo de tombamento do Palácio e a um sistematizado arquivo

digital, contendo centenas de matérias e notícias publicadas nos jornais Folha do

Acre, O Acre, Renovação, O Estado, O Rio Branco, O Jornal, Diário do Acre,

Gazeta, A Gazeta e A Tribuna, entre as décadas de 1920 a 1990. Esse acervo foi

constituído a partir de pesquisas e sistematização realizada pelas estagiárias do

DPHC para subsidiar o projeto de “revitalização” do prédio palaciano, visando seu

posterior tombamento8 como bem cultural.

Parte substancial das notícias jornalísticas desse acervo refere-se ao

Palácio Rio Branco como palco de comemorações cívicas: semana da pátria, sete

de setembro, aniversário do Estado, aniversário da Revolução Acreana, aniversário

do Tratado de Petrópolis, Dia da bandeira, entre outros. Outra parte destaca o

palácio como ambiente para cerimônias e solenidades: posses de prefeitos e

governadores, assinaturas de convênios, audiências especiais, recepções, almoços

e jantares - em meio aos cristais e porcelanas finas - para as elites locais e

visitantes oficiais.

Percebe-se uma pequena mudança no teor das matérias, a partir da

década de 1980, quando o Palácio passou a ser citado também como lugar de

reivindicações populares. Isso pode ser indicativo não de uma mudança simbólica,

mas, indício do reconhecimento de sua representação diante da sociedade

acreana, ou seja, símbolo do poder executivo.

No DPHC, também tive acesso ao filme “Território Federal do Acre

(1949)”9, produzido no governo de Guiomard Santos. O filme é uma espécie de

relatório cinematográfico de seu governo, produzido pela empresa Medeiros Filmes,

do Rio de Janeiro, e constitui-se em importante fonte de pesquisa sobre sua

administração.

Na Fundação Elias Mansour (FEM), responsável pela criação, preservação

e manutenção do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural, e,

8 Tombamento é um ato administrativo realizado pelo Conselho Estadual de Patrimônio Histórico e

ratificado pelo poder público com o objetivo de preservar, por intermédio da aplicação de legislação específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados. 9 O original desse filme/documentário pertence ao acervo do Museu Universitário da UFAC e faz parte

dos documentos doados à essa instituição por Lydia Hammes (já falecida), viúva de José Guiomard dos Santos.

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consequentemente, pelos espaços administrados diretamente por este órgão, como

o Palácio Rio Branco, Museu da Borracha, Memorial dos Autonomistas, Casa dos

Povos da Floresta, Sala Memória de Porto Acre, Museu do Xapurys, Museu de

Sena Madureira e outros, tive acesso a documentos oficiais como Leis e Decretos.

Porém, esses registros não foram suficientes para analisar a atuação dessa

instituição no processo de invenção da “acreanidade”. Tal situação me levou a

recorrer às entrevistas para a coleta de depoimentos de ex-diretores-presidentes

das duas fundações de cultura criadas no Estado, ou seja, a Fundação de

Desenvolvimento de Recursos Humanos e do Desporto (FDRHCD) e a Fundação

Elias Mansour (FEM). Nessa mesma direção, realizei entrevistas com artistas que

possuem vínculos com a história das fundações de cultura.

Percorri ainda os arquivos do Museu Universitário da Universidade Federal

do Acre, que congrega um amplo e importante conjunto de fontes documentais,

num acervo que vem sendo constituído desde o ano de 1976, quando aquele

centro foi criado, com a finalidade de coletar e organizar documentos referentes à

história da Amazônia, particularmente a do Acre, visando à produção científica.

O acervo documental desse museu é bastante diversificado e, dentre suas

coleções, está a de Guiomard Santos, composta por milhares de documentos

referentes à trajetória pessoal, política e profissional desse homem público.10 Nessa

coleção, procurei mais especificamente documentos relativos ao período em que

Guiomard Santos foi governador do Território do Acre. Os tipos recorrentes de

documentos acessados foram cartas, telegramas, ofícios, agendas e fotografias.

Esses documentos, embora não constem das referências, citadas diretamente no

corpo do texto, foram de grande importância para a compreensão do imaginário

que se construía a respeito do “construtor do Acre”.

Percorri ainda as dependências do Museu Palácio Rio Branco, observando

as exposições e, consequentemente, fazendo uma leitura. Nesse Museu, tive

acesso aos livros de registros de visitantes no período que compreende os anos de

2005 a 2008. Também realizei entrevista com o arquiteto responsável pelo projeto

de revitalização do Palácio Rio Branco, Jorge Mardine Sobrinho.

10

José Guiomard dos Santos, mineiro nascido em 23 de março de 1907, na cidade de Perdigão em Minas Gerais. Militar nomeado para ser Governador Delegado da União no Território Federal do Acre em 1946, pelo presidente da República Eurico Gaspar Dutra.

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A pesquisa foi fascinante e ao mesmo tempo árdua, provocando em alguns

momentos entusiasmos e, em outros, frustrações, diante do que não se podia

prever. Seu ritmo impôs, muitas vezes, sentimentos de dúvidas e de impotência

frente aos problemas que iam surgindo e me envolvendo a tal ponto que, não

conseguindo me desvencilhar de suas teias, “mergulhei” no imprevisível, no

emaranhado de informações adquiridas e até mesmo na ausência ou silêncios das

mesmas.

Diante dos entraves e ansiedades, tentei manter o controle necessário para

a produção de minhas reflexões e, para superar esses problemas, tomei como

referência de incentivo o provérbio que diz: “quem observa o vento, nunca semeará;

o que olha as nuvens, nunca segará” (Eclesiastes 11:4). Com espírito, procurei

esquecer as dificuldades e foquei somente na conclusão deste estudo.

No percurso da escrita, pude contar com ideias que surgiram em momentos

inspiradores, geralmente, durante as madrugadas. Em uma dessas ocasiões,

recordei-me de uma discussão feita durante a disciplina Linguagens, sociedade e

diversidade amazônica, no Mestrado em Letras da UFAC, sobre a “coruja de

minerva” que, na visão hegeliana, somente alça vôo ao anoitecer. Essa metáfora,

utilizada para pontuar que o conhecimento surge após o acontecido ou às

experiências vivenciadas, ajudou-me a melhor compreender o processo de

elaboração do conhecimento, bem como o “fazer-se” de minhas atividades

intelectuais. Tudo Isso me veio à cabeça, neste momento, como que para realçar os

momentos de inspirações súbitas e os pulos da cama para fazer as anotações

madrugadas adentro, que se constituiu de fundamental importância para o

desenvolvimento das reflexões que compõem a pesquisa que ora apresento.

A partir destas considerações, a presente dissertação está dividida em três

capítulos: No primeiro, intitulado Diálogos sobre a “invenção” da acreanidade,

destaco alguns lugares de memória, que foram estrategicamente criados e

“revitalizados” para compor as representações do discurso sobre a “acreanidade”,

em um (re)ordenamento, no centro da capital acreana, como estratégia para

produzir expectativas, subjetividades e formas de identificação social com o projeto

político em vigor. Procuro, ainda, dialogar com produções acadêmicas, as quais

foram motivadas, direta ou indiretamente, pela discussão sobre a invenção da

“acreanidade”. Inicio, portanto, minhas reflexões dialogando/problematizando com

estudos recentes que considero de significativa relevância para o debate sobre a

Page 19: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

18

realidade social da Amazônia acreana e para as questões de natureza

metodológicas, tais como: “„Acreanidade‟: invenção e reinvenção da identidade

acreanidade”, “A construção discursiva da florestania: comunicação, identidade e

política no Acre”, “O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último

Oeste”, “As raízes ”do autoritarismo no executivo acreano (1921-1964)”. Também

defino o caminho teórico-medotológico pelo qual percorri.

No Capítulo II, Palácio Rio Branco: a teatralização da “história regional”

– e da “acreanidade”, procuro discutir o Palácio na condição de museu e

monumento histórico, que foi oficialmente reconhecido como bem patrimonial,

compondo, assim, uma discursividade em torno de uma exposição musográfica para

apresentar uma “história regional”, bem como de símbolo da “acreanidade”. Nessa

teatralização, pontuo certas contradições dos discursos sobre um “novo” Acre e

sobre “acreanidade” atribuídos discursivamente e oficialmente pelo governo do

Estado.

No Capítulo III, Memória, mediação cultural e construção discursiva do

passado-presente, destaco a participação no processo de mediação cultural na

invenção da “acreanidade” de órgãos estaduais como a Fundação de Cultura Elias

Mansour, o Departamento de Patrimônio Histórico do Acre e do Jornal Página 20

como agências promotoras de um discurso regionalista em conformidade com os

interesses do governo estadual, em um tempo presente, que trazia em seu discurso

oficial um conceito de modernidade aliado ao de tradição. Discuto, ainda, sobre as

práticas de subjetivações que são postas em ação, cujo teor simbólico vem atuando

como armadilha, no sentido de construir uma imagem do governo e de uma

representação histórica em harmonia, divulgadas nos jornais Página 20 e O Estado

em um jogo simbólico eficaz.

Page 20: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

19

1.DIÁLOGOS SOBRE A “INVENÇÃO” DA ACREANIDADE

Com a inauguração do Memorial dos Autonomistas “José Guiomard dos

Santos” (2002) e Casa dos Povos da Floresta (2003), bem como a re-inauguração

do Palácio Rio Branco (2002) e Mercado Velho (2006), instaurou-se no Acre “o

tempo dos lugares”. Expressão esta, que tomo por empréstimo de Pierra Nora para

falar do “momento preciso” em que se finaliza “uma tradição de memória [e] onde

aparece um aprofundamento decisivo do trabalho da história, para só viver sob o

olhar de uma história reconstituída” (NORA, 1993, p. 12).

Esses “lugares de memória” compuseram um “novo” ordenamento, em

especial, no centro de Rio Branco, a capital do estado. Ali, o “Memorial dos

Autonomistas”, talvez, seja um dos “monumentos” mais emblemáticos de uma

“ordem” que silencia vozes dissonantes no “coração da cidade”. Edificado ao lado do

Palácio Rio Branco, o memorial surgiu sobre as “ruínas” de outra memória, tendo em

vista que, nesse local, funcionava anteriormente a “Casa do Seringueiro”.

De acordo com o arquiteto Jorge Mardine Sobrinho, responsável pelo projeto

de “revitalização” do Palácio Rio Branco e criação do Memorial dos Autonomistas,

este último foi pensado com “a mesma estrutura de restauro, resgate e revitalização”

do primeiro.11 O prédio, construído em uma escala menor do que a do Palácio Rio

Branco, trouxe em sua composição elementos de uma arquitetura moderno-

contemporânea, cuja linguagem é, também, intimidante. As paredes de vidros ao

seu redor determinam uma relação de distanciamento, criando uma “vitrine” de

contemplação para os transeuntes visualizarem suas partes interiores, sem

necessariamente entrar nas dependências do mesmo.

Na solenidade de inauguração do prédio, em setembro de 2002, os corpos

do casal Guiomard Santos e Lydia Hammes, transladados do Cemitério “São João

Batista”, no Rio de Janeiro, foram sepultados em local reservado no memorial para

servir de mausoléu ao “Pai do Acre”. Esse novo “lugar de memória” não trouxe de

volta a memória dos seringueiros representados anteriormente naquele espaço,

antes, surgiu para referendar e reverenciar a memória da classe dominante, na

figura do político Guiomard Santos. Na ocasião, a cerimônia fúnebre com benção e

sepultamento aconteceu com todos os aparatos cívicos: honras militares com o ritual

11

Parte do depoimento do Arquiteto Jorge Mardine, em entrevista realizada pela autora, em 24 de fevereiro de 2011.

Page 21: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

20

de hasteamento da bandeira do Acre, ao som do hino acreano. Esses símbolos são

sempre instrumentalizados para compor o mítico de uma comunidade harmônica e

imune às diferenças sociais.

Todo esse aparato discursivo passou a exercer papel de grande relevância

na estratégia do “Governo da Floresta”12 para dar corpo à representação da

“acreanidade”. No momento solene de inauguração do edifício, o governador, Jorge

Viana, proferiu um discurso emocionado que seria retratado pela escrita oficiosa do

Jornal Página 20:

Eu costumo dizer que acreano não é quem nasce no Acre. Acreano é quem

ama o Acre. Aqui nós estamos diante dos restos mortais de dois grandes

acreanos- nascido em Minas Gerais e outro no Rio. Foram pessoas que

deram demonstração de amor à nossa terra e a nossa gente. É por isso que

eu acho que essas homenagens além de justas, representam o desejo de

Guiomard e de dona Lydia. Eles serão para sempre guardados pelo povo a

quem eles amaram tanto (Jornal Página 20, 20 de setembro de 2002, p. 24).

Os esforços propagandísticos de Guiomard Santos, quando governador do

Território Federal, e, depois, político com diversos mandatos pelo Estado do Acre,

ganhavam nova embalagem na apologia ao “outro” e a si mesmo do governador

Jorge Viana. Os corpos de Guiomard e Lydia Hammes, sua esposa, que andavam,

falavam, gesticulavam, movimentavam-se na arena política da cidade, agora eram

transformados em corpos simbólicos de um discurso identitário que encontra

“descanso” no “sepulcro”13 do discurso político.

As palavras emotivas de “amor à nossa terra e a nossa gente” são

introduzidas na narrativa, como exemplo e demonstração do que é ser um acreano

“legítimo”, ou seja, ter “amor ao Acre” e lutar em favor de uma causa. A figura de

Guiomard, apropriada pelo discurso como exemplo de luta por uma causa, é,

também, uma maneira de associar as ações desse ex-governador às ações do

governador do presente. Toda essa simbologia que atravessou, à maneira de um

12

“Governo da Floresta” foi o período de governo de Jorge Viana (1999-2006) que se autodenominou como sendo um “governo da floresta”. “Esse governo desenvolveu uma política econômica baseada no discurso de exploração „„racional” da floresta sob a justificativa de um “desenvolvimento sustentável”, que acabou incorporando a floresta na lógica do capital. 13

Sepulcro, lugar que esconde, túmulo ou máscara, é aqui usado no sentido figurativo.

Page 22: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

21

pathos político, nas cerimônias de inauguração do memorial ganhou espaço em

outras inaugurações

Em 2003 foi inaugurada a Casa dos Povos da Floresta, que buscava

representar as tradições e os modos de vida dos diferentes homens e mulheres da

Amazônia acreana, sintetizados nos estereotipados rótulos “populações tradicionais”

ou “povos da floresta”. Rótulos esses que articulam uma noção de cultura

essencializante e idealizada, principalmente, no tocante à relação homem-natureza.

Localizada no Parque da Maternidade,14 um dos pontos turísticos mais

conhecidos de Rio Branco, e inspirada nas malocas indígenas, a casa é toda em

madeira – contrastando com a “modernidade” do concreto armado e do asfalto –, e

coberta de palha. Em seu interior, consta um significativo acervo de objetos, em sua

maioria indígenas, que são expostos, permanentemente, de forma lúdica, composto

por painéis e bonecos que “retratam” histórias de “lendas regionais”. Tais “lendas”

são o equivalente folclórico das práticas sociais que a visão civilizadora nunca

reconhece como cultura.

No evento de inauguração da Casa, o governador fez menção à luta pelo

reconhecimento da presença indígena, na década de 1970, como um dos motivos

de inspiração da política de esquerda. Como mea culpa das discriminações sofridas

pelos indígenas, o governo se coloca como porta-voz num “processo de reparação”

aos diferentes grupos que ali vivem no Acre. Tal manifestação seria reforçada pela,

então, ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao ressaltar que:

essa atitude é uma demonstração de que os acreanos estão aprendendo a

mostrar sua identidade e estão perdendo a vergonha de dizer que são

índios, ribeirinhos, seringueiros [...] estamos fazendo um processo de

reparação, mostrando o quanto a nossa cultura é boa. O mais importante

é fazer realizações bem intencionadas, como a criação de espaços que

proporcionem o acontecimento dessas culturas (Jornal Página 20. 15 de

abril de 2003, p. 10).

O que se evidencia na argumentação dos “herdeiros” dos movimentos

sociais das décadas de 1970-80, notadamente, de seringueiros e indígenas, é um

14

Inaugurado no dia 28 de setembro de 2002, o Parque da Maternidade corta a parte central da cidade com uma extensão com mais de 06km. Possui quadras de esportes, restaurantes, bares, ciclovia, pista de skate, pista de cooper. Trata-se de um lugar de uso coletivo, destinado à prática de esportes, lazer e turismo.

Page 23: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

22

recorrente enunciar sobre a “identidade” e a “cultura” do Acre. “Cultura” essa que,

inspirada num passado próximo, se materializava em determinados espaços

físicos, os “lugares de memória” em que não apenas a história, mas a condição

humana era reificada. Para Marina Silva, ser acreano seria uma tradição e a

valorização de uma “identidade regional” feita pelo discurso de reconhecimento dos

modos de vida de índios, ribeirinhos e seringueiros. Por essa lógica discursiva,

processava-se uma alquimia que colocava no mesmo panteão de “produtores” da

idílica „identidade acreana‟, os opressores e os oprimidos, como se nada os

diferenciasse.

Seguindo a agenda do “novo” ordenamento acreano, em seis de agosto de

2006, seria (re)inaugurado o Mercado Municipal. A “reinauguração” do edifício fez

parte da programação promovida pelo governo estadual que celebrava, naquele

ano, os 104 anos do início da chamada “Revolução Acreana”. O prédio construído

e inaugurado durante o governo de Hugo Carneiro tornou-se símbolo dos conceitos

de higiene e sanitarismo, implantado no governo de Hugo Carneiro, no Acre

Território Federal, em fins da década de 1920.

Entre os anos 1960-80, ocorreu toda uma mutação no espaço do mercado,

que foi sendo re-ocupado por infinidade de atividades comerciais. A área de seu

entorno, conhecida como “Praça da Bandeira” foi “devorada” por diferentes grupos

de pessoas e atividades, dando origem a becos e labirintos de “um rico e variado

comércio de corpos, alimentos, vestuário, confecções e dezenas de outros produtos

vendidos no varejo”.15

A intervenção, realizada a partir de 2005, visando à “revitalização” do

Mercado Municipal, ocasionou a expulsão de centenas de pessoas, abrindo caminho

para uma nova concepção e uso do espaço, posto que a paisagem do comércio

informal era vista como obstáculo para a contemplação das estruturas arquitetônicas

e da praça do mercado, monumento da “modernização” do Acre, agora re-surgido

com uma nova roupagem, e voltado para o lazer e o turismo.

As atividades de “revitalização” do “Mercado Velho” alcançaram, também,

seu entorno, com a Praça da Bandeira e a Avenida Epaminondas Jácome, surgindo

com “ambientes inovadores, envoltos por cores, calçadas e iluminação planejada

pela arquiteta e especialista em iluminação de ambientes, Ester Stiller. O Mercado

15

No artigo Representações sobre a capital do Aquiry e a cidade “moderna” em Carlos Drummond de Andrade, Albuquerque e Silvestre (2010) discutem parte dessas transformações urbanas.

Page 24: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

23

passou a ser mais um ponto de referência do discurso de uma “tradição” que

renascia.

A revitalização beneficia diretamente dezenas de pontos comerciais, sendo

que 16 deles dentro do prédio mais antigo e 12 no segundo prédio: são

pensões, lojas de armarinhos, bancas de ervas e plantas medicinais e

muitos outros estabelecimentos que estão ali há décadas. Cada um

desses comércios tem uma história para contar – e, agora com o Novo

Mercado Velho, para recontar [...] (Jornal Página 20, 08 de agosto de

2006, p.5).

A nova roupagem criou um ambiente alegre para consumo e lazer com

bazares, cafés e bares, visando atrair mais clientes e consumidores desse “bem

cultural” dos acreanos. Acompanhada de um espaço contemplativo para passeios,

a “revitalização” do mercado trouxe novos significados de uso e função,

demonstrando a força “onipresente” do Estado, com sua capacidade

intervencionista justificada pela política de valorização histórica posta em ação.

O que se pode perceber, no bojo desta análise, é que esse “lugar de

memória”, concebido como espaço de identidade cultural e histórica, mostrou-se

excludente, pois as medidas de “preservação” adotadas em sua revitalização não

levaram em consideração as necessidades e significados da população que tirava

seu sustento e assegurava sua sobrevivência a partir das atividades ali

desenvolvidas. Indiferente a tudo e a todos, os mentores e executores do projeto de

“revitalização” do centro de Rio Branco não se deram conta, no dizer de Uriart, que

o respeito ao patrimônio não pode passar por cima do respeito às pessoas

(URIARTE, 2003, p.73-92).

O que foi ficando evidente é que o engajamento do projeto “modernizador”

associado à política de “valorização cultural” tomou conta do centro da cidade,

estabelecendo medidas autoritárias, elitistas e segregadoras, justificadas pela

preservação de determinados bens patrimoniais de cal e pedra.

No projeto urbanístico emergente, a (re)vitalização do centro histórico da

capital transformou-se no símbolo do discurso governamental de “modernização”,

que buscou na produção material da cidade unir o “velho” e o “novo”. Nessa lógica, a

ação da política patrimonial de preservação arquitetônica e valorização cultural

participou do “engrandecimento”, “embelezamento” e “fortalecimento” da ideia que

Page 25: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

24

se criava de uma “cidade ideal”, sob o discurso de “modernidade”, reinventando

centralidades em locais estratégicos, como estratégia para produzir expectativas,

subjetividades e formas de identificação social com o projeto político em vigor.

A paisagem desse (re)ordenamento urbano de valorização simbólica, com

suas áreas e prédios, constituíram representações e leituras idealizadas do Acre e

do “ser acreano”, a partir daquilo que Walter Benjamin classificou como “reificação

dos fatos” históricos – de um passado distante e próximo –, como pano de fundo do

discurso identitário, que objetivava ganhar forma e conteúdo nas abstrações

coletivas.

No ápice desse re-ordenamento, o Palácio Rio Branco constituiu-se como

marco central de uma série de (re)inaugurações marcadas pela política de

valorização cultural do discurso da “acreanidade”. Surgindo como monumento e

museu de um “patrimônio cultural de todos os acreanos”, naquele específico

contexto, o Palácio tornou-se a materialização do discurso oficial, tomando por

assalto uma versão de história e memória para legitimação dessa identidade. Nesse

processo, rearticularam-se narrativas, atribuindo-lhes significados num presente em

que um sistema simbólico eficaz condensava espaços, tempos e práticas culturais

diversificadas, numa mesma lógica identitária.

Sistema esse que passou a assediar a todos, diuturnamente, com base

numa intensa e bem elaborada campanha publicitária que visava alcançar “as

mentes e os corações” de diferentes grupos sociais. Mesmo muitos daqueles que se

propuseram a analisar criticamente essa construção discursiva, tornaram-se reféns

de suas teias.

Ressalto esse aspecto, para enfatizar que a discussão crítica acerca da

“construção identitária” da “acreanidade” recente, manifestou-se no ambiente

acadêmico a partir de estudos que partem de diferentes e interessantes abordagens,

refletindo os olhares e experiências de seus autores em diversas áreas do

conhecimento. Desse modo, inicio minhas reflexões, dialogando/problematizando

com estudos recentes que considero de significativa relevância para o debate sobre

a realidade social da Amazônia acreana e para as questões de natureza

metodológicas que apresento neste estudo.

Em “„Acreanidade‟: invenção e reinvenção da identidade acreanidade”, Tese

de Doutorado defendida junto à Universidade Federal Fluminense, em 2008, Maria

de Jesus Morais analisa a “construção da acreanidade” pelo “viés geográfico” da

Page 26: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

25

identidade territorial, entendida como aquela “construída em sua relação com o

território”. Notamos que, no primeiro capítulo, a autora estabelece um diálogo teórico

em torno dos conceitos de “território, memória e identidade”, por ela considerados

como conceitos importantes para o debate sobre a invenção e reinvenção da

“identidade acreana”.

Em sua abordagem, a ênfase maior é dada ao conceito de território em

dimensões que vão desde a relacionada ao estado-nação – território enquanto

espaço delimitado e controlado em que se exerce poder estatal –, até a perspectiva

de estruturador de identidades, ou seja, enquanto “lugar fundador das identidades

locais”. Pela leitura atenta de seu texto, foi possível perceber que Morais concentra

maior atenção nesta última proposição (MORAIS, 2008, p. 25-37).

A autora analisa e discute processos que englobam, por um lado, uma

dimensão histórica, ancorada na memória histórica da “Revolução Acreana”,

movimento autonomista e o movimento de índios e seringueiros, e, por outro lado,

uma dimensão geográfica, ancorada nos espaços de referência identitária tanto do

passado quanto do presente (MORAIS, 2008, p. 36-54). Nessa vertente, define

como espaços de referência as cidades de Xapuri e Porto Acre, pautando-se na

justificativa de que, no presente, essas cidades tornam-se espaços para a

materialização do discurso oficial. Os elementos de mediação, utilizados pela autora,

para tal conclusão é a construção e representação de espaços de memória, tais

como a criação do Museu dos Xapurys e Casa Chico Mendes, em Xapuri; e a Sala

Memória de Porto Acre e a “restauração” do Chalé do Seringal Bom Destino, em

Porto Acre.

A autora se apega a essas duas cidades, como referências de um passado

idealizado pela historiografia oficial que impregnou sua análise: “Porto Acre – antiga

Puerto Alonso – foi o local do „último‟ combate da „Revolução acreana‟ e assim

constitui-se na cidade histórica mais importante do Estado do Acre”; e Xapuri por

“ser revestida de uma „áurea de resistência‟ contra a ocupação boliviana, sendo

também berço do líder sindical Chico Mendes” (MORAIS, 2008. p. 252-255).

A escolha teórica de Morais demonstra sua ligação com os debates mais

recentes no terreno da geografia humanista, na qual a dimensão material-concreta

(política e econômica) do território é permeada por uma dimensão subjetiva e/ou

simbólica, engendrada pelas e nas relações sociais. Seguindo a linha teórica de

Rogério Hasbaert, a autora realiza uma ampla “descrição” histórica, tentando

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26

demonstrar quais foram os processos que possibilitaram a invenção e reinvenção da

identidade acreana, protagonizada pelo “Governo da Floresta”, no período de 1999 a

2006.

Logo no primeiro capítulo de sua tese, afirma que “a questão da defesa dos

territórios, no caso a „conquista territorial‟, é mito fundador de todos os acreanos” e

que “o acreano enquanto povo foi inventado a partir da chamada „Revolução

Acreana‟” que é “constantemente realimentada em determinados momentos para

justificar reivindicações políticas da classe dominante e política do Acre” (MORAIS,

2008, p. 28-87).

Ao explicar tais afirmativas, a autora assume, no entanto, o caminho de uma

descrição linear de determinados “acontecimentos”, tomados como coisas dadas e

intocáveis, numa clara identificação com a historiografia historicista ao não se dar

conta que “os acontecimentos do passado ou seus fragmentos só ascendem a uma

legibilidade em um espaço e um tempo determinados e não necessariamente no

instante que os viu nascer” (MATTOS, 1992, p. 151).

Na reflexão geo-histórica de Maria de Jesus Morais, o território é o

estruturador de três “eventos históricos” acionados na invenção da acreanidade: i)

na “Revolução acreana”, o território significa um recurso econômico e também

desempenha um papel simbólico na construção do acreano; ii) no Movimento

autonomista, o território é “abandonado” pelo governo federal e é o estruturador em

torno do qual se constrói o discurso acreanista; iii) no movimento social de índios e

seringueiros, o território passa a ser defendido contra os “paulistas”, momento em

que constitui um discurso de defesa da floresta (MORAIS, 2008, p. 25).

Para a autora, esses “eventos” passaram a ser re-significados pelo discurso

governamental, desde o início do governo da “frente popular”.16 Por esse discurso, a

“identidade acreana” estruturava-se em torno de dois “eventos históricos”,

ressaltando o papel de protagonistas da elite local: a “Revolução Acreana”

(organizada e dirigida por seringalistas e comerciantes) e o Movimento Autonomista

(organizado e dirigido por seringalistas, comerciantes e funcionários públicos). Este

“movimento autonomista” seria responsável pela formulação de um manifesto em

defesa do “acreanismo” que, segundo Morais, seria seu “discurso identitário” em prol

16

A autora refere-se literalmente à articulação político-eleitoral denominada “Frente Popular do Acre (FPA)”, surgida no ano de 1999 e composta pelos seguintes partidos políticos: PCB, PC do B, PDT, PPS, PSB, PT e o PV.

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da transformação do Acre, Território Federal, em Acre, estado autônomo da

federação brasileira.

Seguindo a pena de Morais, o “Governo da Floresta”, acrescentaria um

terceiro “evento” aos dois anteriores. Esse “evento” seria o “movimento de índios e

seringueiros”, no qual aparece o semióforo Chico Mendes. Com ele, prossegue

Morais, o “Governo da Floresta” e seus propagandistas, pontuando ou dando

representatividade aos interesses simbólicos dos “de baixo”, em contraste com o

“acreanismo” das elites locais, produziu o termo “acreanidade”, re-significando a

“identidade acreana”, agora ancorada na trajetória de índios e seringueiros do Acre,

mas, sem negar os signos identitários do “acreanismo”.

Esse era o ponto crucial no qual Morais poderia ter feito uma guinada em

direção contrária aos “fatos” sacralizados pelo historicismo amazonialista, não

somente porque a “acreanidade” do “Governo da Floresta” foi tecida com as

mesmas cores do “acreanismo” das elites, que dizia combater, mas,

fundamentalmente, porque os articuladores da “acreanidade” mantiveram e

reforçaram os mesmos “fatos” ou “eventos históricos” constituintes da “epopéia do

Acre brasileiro”. “Epopéia” essa, marcada por toda a sorte de violências e

exploração contra milhares de seringueiros e indígenas, perpetradas por

seringalistas, comerciantes e políticos ou, no dizer de Walter Benjamin, os

dominadores do passado, com os quais têm profunda empatia os dominadores do

presente (BENJAMIN, 1993, p. 225).

No título da tese de Maria de Jesus Morais, podemos depreender que sua

principal preocupação era discutir a “identidade acreana” enquanto “invenção” e

“reinvenção”. Partindo dessa concepção, a “identidade” foi discutida como uma

“construção histórica e social na relação com o outro”, formulando diferenças no seu

caráter contrastivo17 e performático,18 estando sempre “sujeita ao jogo da história, da

cultura e do poder”, aberta a múltiplas reconstruções. Todavia, a

invenção/reinvenção não é discutida de maneira clara nos processos históricos que

a autora afirma ser “discursivos” e, embora tente mostrar algumas contradições nas

formas como o “Governo da Floresta” aciona os significados desses processos,

17

Por caráter contrastivo, a autora entende que a identidade é construída de oposição com vistas à afirmação individual ou grupal. 18

Para Morais, a construção performática diz respeito aos enunciados que “orientam” um pensamento não se limitando em descrever um estado de coisas, mas fazem com que alguma coisa aconteça, e, a eficácia dos enunciados performativos ligados à identidade depende de sua incessante repetição, diante do Outro e de sua assimilação, tanto internamente quanto pelo Outro.

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acaba contribuindo para a afirmação do discurso governamental, pois trata a

“Revolução Acreana”, o Movimento autonomista e o movimento de índios e

seringueiros como coisas dadas e não como construções discursivas, conforme

seus próprios enunciados.

Verificando as fontes consultadas por Morais, percebe-se que foram

substancialmente diversificadas: discursos, manifestos, artigos, relatórios, material

de campanha eleitoral, matérias jornalísticas, resoluções e entrevistas. No entanto,

durante a leitura de sua tese, constatei que tais fontes não foram submetidas ao

escrutínio da interrogação problematizadora de sua condição histórica, das vozes,

sujeitos e projetos que, por intermédio delas, se manifestam, mas como suportes

para a afirmação da descrição histórica, da abordagem e das escolhas da autora.

Em, “O mito fundador do Acre e dos acreanos”, segundo capítulo de sua

tese, Morais afirma que o mito fundador do Acre é a “Revolução acreana”,

ancorando-se em Marilena Chauí, que conceitua tal mito como “um momento

passado imaginário” e Durval Muniz de Albuquerque, como uma “invenção do

presente”. Porém, em seguida, se contradiz ao relatar todos os combates travados

pela conquista das terras acreanas como “fatos” e não como mais uma construção

discursiva de tal mito fundador e do ideário da “acreanidade”.

No capítulo intitulado, “A re-significação da identidade acreana: o movimento

social de índios e seringueiros como símbolo da „defesa da floresta‟”, não constatei

uma discussão sobre essa “re-significação”, mas uma leitura descritiva de certos

acontecimentos que, “progressiva e linearmente”, culminam com a criação da

“Aliança dos Povos da Floresta”, como se isso, em si e por si, tivesse a capacidade

de explicar a “re-significação” que a autora anuncia e não analisa ou explicita.

Mais adiante, no quarto capítulo, Morais anuncia que vai colocar em

discussão a forma como:

O movimento indígena e seringueiro é acionado pelo Governo da Floresta

para implementação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre,

e como símbolos da acreanidade (MORAIS, 2008, p.159).

No entanto, se detém em situar a formação do Partido dos Trabalhadores e

em esclarecer o que significa o conceito de “desenvolvimento sustentável”,

preocupando-se mais em mostrar quais foram as primeiras iniciativas e programas

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do que, realmente, em “discutir de que forma o movimento indígena e seringueiro é

acionado pelo Governo da Floresta para implementação do Programa de

Desenvolvimento Sustentável do Acre”.

No conjunto, a forma como a tese está estruturada dificulta o entendimento

de sua proposta, em especial, nos capítulos acima destacados. A preocupação em

“comprovar” a relação do território com a “identidade acreana” levou a autora ao

caminho metodológico de uma história de continuidade e linearidade dos “fatos”, o

que corrobora com a ideia do discurso oficial dos grandes “eventos” e

“personalidades”, acionados pelo discurso da acreanidade.

Minha perspectiva e abordagem caminham em direção contrária à de

Morais, ao não propor reafirmar “fatos” ou “eventos” históricos sacralizados, mas

apresentá-los como construções mentais, pois, concordando com Walter Benjamin:

“nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele

se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos

que podem estar dele separados por milênios (BENJAMIN, 1993, p. 232).

Forjados e significados no terreno da linguagem, “fatos históricos” são

narrativas produzidas por determinados sujeitos sociais, em determinados contextos

e situações. Nessa perspectiva, com a qual compartilho – sob direta influência de

Edward Thompsom, Raymond Williams, Stuart Hall e Edward Said –, não estão

imunes aos valores e percepções de quem escolheu e lhes conferiu sentidos.

Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, que o texto de Morais é

oportuno por nos possibilitar uma leitura sobre a formação do Partido dos

Trabalhadores no Acre, bem como a apropriação discursiva dos ideais do

movimento de trabalhadores rurais na construção da auto-imagem do ”Governo da

Floresta”. Um governo que se auto-proclamou “realizador dos ideais de Chico

Mendes”, objetivando assim, justificar sua política estadual que lançou a floresta

como eixo de “desenvolvimento” econômico e “sustentável” para o Estado do Acre.

Nesse sentido, considero mérito da autora as questões e apontamentos que faz

sobre as ambiguidades e tensões, que estão latentes na implementação do

programa de “desenvolvimento sustentável”, tendo por base o manejo florestal

madeireiro.

Page 31: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

30

Outro estudo, com o qual mantive diálogo foi “A construção discursiva da

florestania: comunicação, identidade e política no Acre”, de Isac Guimarães Júnior,

dissertação de mestrado defendida no ano de 2008, junto ao Curso de Mestrado

em Comunicação e Mediação, da Universidade Federal Fluminense.

Partindo da escolha do título de sua dissertação, antevi que a preocupação

principal de sua análise seria discutir como se deu a construção do discurso que

gerou o conceito de Florestania.19 Porém, na leitura do texto, percebe-se que sua

maior preocupação foi mostrar a participação dos meios de comunicação, e da

cultura midiática, na produção e reprodução de bens em produtos de consumo,

minimizando a problematização com a lógica da construção de tal conceito. Para

ele:

é na vigência do predomínio do consumo da imagem que ele busca

compreender as articulações entre comunicação, política, ambientalismo e

movimentos sociais, tal como se configuram no Acre nas políticas

implementadas pelos governos do PT a partir de 1999. (GUIMARÃES Jr.,

2008, p.16).

Em sua perspectiva e abordagem, esse autor procura:

identificar no discurso oficial do Governo da Floresta, manifesto num

conjunto visões e princípios sintetizados no conceito de florestania, a

constituição, para o conjunto da população acreana, sobretudo através de

difusões midiáticas, de um modelo de identidade capaz de gerar

engajamentos e consensos nos vários estratos sociais, assegurando,

assim, a direção moral e cultural indispensável à hegemonia do bloco

político liderado pelo Partido dos Trabalhadores a partir de 1999

(GUIMARÃES Jr., 2008, p.11).

Sua análise parte, portanto, de difusões midiáticas realizadas em jornais,

revistas, mídia eletrônica, material publicitário do governo e do Partido dos

Trabalhadores. De acordo com Guimarães Júnior, o discurso do grupo político do PT

e de alguns setores da mídia local passou a integrar a:

19

Segundo o autor (p.22), o termo Florestania foi cunhado no final da década de 1990, por intelectuais ideólogos do PT acreano e membros de governos municipais e estaduais petistas. Remetendo-se a um modelo de cidadania e de relações socioambientais, socioeconômicas e socioculturais, adaptadas a uma vida na floresta amazônica, tendo como fundamento os modos de vida, as práticas produtivas e os valores culturais das populações da floresta.

Page 32: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

31

construção de uma imagem do Acre, a partir das experiências extrativistas,

como uma „comunidade‟ amplamente qualificada a se colocar para os „de

fora‟ como referência de sociabilidade e equilíbrio ecológico. (GUIMARÃES

Jr., 2008, p.91).

Para o autor, é essa imagem que alimentará a formação discursiva em torno

do discurso da florestania, conceito este que parece assumir, em suas palavras:

a função de (re)ordenador de uma história e de uma memória acreana

ligadas sobretudo à acontecimentos considerados decisivos da história do

estado, criteriosamente selecionados na composição dos materiais que

integrariam o discurso oficializado [...] os momentos/eventos mobilizados na

operação discursiva posta em atividade seriam os seguintes: I) as batalhas

pela incorporação do território acreano à Federação Brasileira, no início do

século XX, e os atos apontados como eventos fundadores da história local,

como assinatura do Tratado de Petrópolis, em novembro de 1903; II) o

movimento pela autonomia político administrativa, entre 1957 e 1962; III) o

movimento extrativista de seringueiros, nas décadas de 1970 e 1980, como

marco da luta pela terra contra a expansão das atividades agropecuárias e

pela afirmação da causa ambientalista (GUIMARÃES Jr., 2008, p.22).

Nesse sentido, Guimarães Jr. considera os “efeitos positivos resultantes

desse tipo de reorganização da história e da memória em termos de fortalecimento

de vínculos identitários com o lugar e com seus símbolos” (GUIMARÃES Jr., 2008,

p.22). Partindo de uma outra perspectiva, não pretendo afirmar seus efeitos

“positivos”, mas pontuar que são invenções constituintes do discurso de

“acreanidade”, que procura sua “essência” a partir de uma versão idealizada do

passado.

O autor acredita que uma análise cuidadosa das operações simbólicas pode

revelar indícios de que a sistematização constituída no discurso do “Governo da

Floresta”, em torno da noção de florestania, seria mais adequadamente classificada

como uma identidade legitimadora do que de resistência.20 Ele constrói sua narrativa

apoiado no esquema teórico de Castells, mostrando a participação da imprensa na

20

Para Guimarães Jr., “a identidade Legitimadora consiste naquela produzida e alimentada pelas instituições da sociedade no intuito de fortalecer o controle sobre os atores sociais e gerar conformidades em torno de interesses específicos”.

Page 33: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

32

construção de representações identitárias, especificamente, no capítulo intitulado

“Cultura e representação política: velhas e novas imagens da acreanidade”.

Nesse capítulo, o autor faz uma narrativa linear e corrobora com as

representações do discurso da acreanidade, ao tratar os diferentes movimentos de

índios e seringueiros como “um acontecido tal qual” ou um “fato histórico

naturalizado”, bem ao gosto da perspectiva linear e historicista presente no espectro

da historiografia amazonialista. Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, que a

discussão, feita pelo autor, sobre a relação da mídia com a política local, é

extremamente relevante ao destacar as articulações e negociações entre as

empresas publicitárias, os setores sociais e as elites dominantes.

Nas leituras dos textos de Morais e Guimarães Jr., de um modo geral,

percebe-se um certo tom de denúncia a uma “acreanidade” que se torna o discurso

governamental de motivação e adesão ao modelo de política econômica adotado no

Estado. Política essa em que a floresta deixa de ser um conjunto de mundos de

trabalhos, produção cultural e intercâmbios homem-natureza, para ser

mercantilizada, com a ampla e agressiva retirada e comercialização de madeira que

está no âmago do modelo de “desenvolvimento” “sustentável” do governo acreano.21

Nota-se, também, que os referidos autores não colocaram sob o crivo da

análise e da interrogação a perspectiva histórica do discurso da acreanidade, mas,

ao contrário, caíram nas malhas das representações forjadas por esse discurso.

Suas abordagens, fundamentadas a partir das áreas da comunicação e da

geografia, respectivamente, percorreram metodologicamente o que Benjamim (1985,

p.159) classificaria como “história do progresso”, como se o discurso da acreanidade

e a construção do conceito de florestania fossem resultados de um processo linear e

automático, gerado por uma cadeia de acontecimentos, e não uma construção

discursiva do “tempo presente”, das cores, preferências e projetos político-

ideológicos desse “tempo presente”.

Em “O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último Oeste”,

dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em

Letras: linguagem e identidade da Universidade Federal do Acre, no ano de 2008,

Eduardo Carneiro, também, aborda a questão da acreanidade. Nesse estudo, em

que busca “compreender tão somente a formação do Discurso Fundador do Acre”, o

21

Interessantes reflexões críticas a esse modelo podem ser encontradas em Elder Andrade de Paula, (Des)envolvimento insustentável na Amazônia ocidental, 2005.

Page 34: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

33

autor faz um recorte que o permite explorar os elementos centrais constituidores do

discurso fundador do Acre, especialmente, aqueles que emergiram durante o

processo de “anexação do Acre ao Brasil” (CARNEIRO, 2008, p.12).

Com tal recorte, Carneiro procura mostrar a historicidade do sentido

“glorioso” e “ufanista”, dados como elementos “naturais” e inaugurais de uma

“comunidade acreana” que se alicerça no mito do heroísmo e do patriotismo. Para

esse autor, a ideia do “patriótico” “povo do Acre” (CARNEIRO, 2008, p. 76-81), está

presente nos discursos de José de Carvalho22, Galvez23 e Plácido de Castro.24

Para tal análise, o autor optou pelo instrumental teórico da Análise do

Discurso (AD),25 cuja escolha deveu-se, segundo ele, ao fato desse referencial

assegurar um diálogo com a natureza tridimensional do discurso: o histórico, o

linguístico e o ideológico. A partir de sua perspectiva:

o discurso é a língua posta em funcionamento por sujeitos que produzem

sentidos numa dada sociedade. Sua produção acontece na história por

meio da linguagem, que é uma das instâncias por onde a ideologia se

materializa (CARNEIRO, 2008, p.27).

Contextualizando o surgimento e os fundamentos desse campo de estudo,

Carneiro procura uma forma de explicar o surgimento do discurso fundador “nas

malhas da análise do discurso”, pois em seguida, apoiado em Foucault,

Maingueneau e Orlandi, discute como foi pensado o conceito de discurso fundador,

sintetizando-o como uma:

dispersão de textos que age sobre o universo discursivo tanto para nomear

o sem-sentido, quanto para re-nomear um sentido já existente, de modo que

essa re-nomeação regra a formação de outros discursos, estabelecendo,

22

Ver Carneiro, 2008, p. 75. José de Carvalho era advogado formado em Pernambuco, foi quem primeiro mobilizou os seringalistas a apoiarem um movimento contrário ao governo boliviano na região acreana. 23

Luiz Galvez Rodríguez de Arias foi um dos primeiros personagens homenageados pelo governo como um dos fundadores dos ideais do Estado acreano. 24

José Plácido de Castro, gaúcho nascido em São Gabriel em 1873. Formou-se na escola militar, trabalhou como agrimensor e foi contratado para comandar seringueiros para lutarem contra os bolivianos. Foi transformado pela historiografia acreana em um “herói” e foi homenageado pelo governo durante a comemoração do centenário da “Revolução Acreana”. 25

A Análise do Discurso é um campo de estudo fundado na França em fins dos nos de 1960. Tem como objeto de análise o discurso enquanto produção de sentidos.

Page 35: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

34

com isso, um eterno retorno si próprio e um constante vir a ser (CARNEIRO,

2008, p.51).

Tal síntese limita a análise do discurso, enquanto efeito de sentido, na

medida em que o define apenas como “dispersão de textos” e apresenta o “mito

fundador” somente a partir de um fragmento de texto literário não enfatizando a força

que o discurso tem ao se materializar de diversas formas, nas mais variadas

espécies de linguagens produzidas culturalmente.

A opção pela categoria do discurso fundador é utilizada pelo autor para

“provar que o começo da comunidade acreana é puramente convencional e que a

valoração positiva de sua fundação tem uma história” (CARNEIRO, 2008, p.108).

Carneiro optou, então, por discutir o Acre enquanto comunidade imaginada,

afirmando que “o Acre é invenção discursiva” (CARNEIRO, 2008, p. 53). Com esse

argumento, o autor procura evidenciar o caráter não-natural da identidade acreana a

partir da representação narrativa da “Revolução acreana” posta em circulação pelo

governo do Estado.

Carneiro, também, recorreu a “acontecimentos históricos” para mostrar que

a formação do que hoje é o Acre, somente teve caráter de unidade na imaginação,

pois “a „questão acreana‟ foi sustentada por múltiplos interesses” (CARNEIRO, 2008,

p. 65) e conflitos – “Primeira Insurreição Acreana”, com José de Carvalho, passando

pela proclamação do “Estado Independente do Acre”, com Luiz Galvez, a

“Expedição dos Poetas”, com sua “desarticulação” e Plácido de Castro, com sua

dificuldade em arregimentar “voluntários” – e não por sentimentos patrióticos. Sob

essa lógica, para ele, a “unidade foi uma construção póstuma”, sendo que trata a

“Revolução Acreana” como um “fato histórico” inalterado, contribuindo, com isso,

para o fortalecimento/legitimação das representações do discurso de invenção da

“acreanidade”.

Para o autor, “a memória da gênese do Acre foi estabilizada pelo discurso

fundador materializado nos livros de história” (CARNEIRO, 2008, p. 102),

contribuindo na formação do imaginário local. “As primeiras manifestações literárias

dessa comunidade foram fundamentais para o estabelecimento ou „afirmação‟ da

identidade pautada nos paradigmas de patriotismo e heroísmo” (CARNEIRO, 2008,

p. 95), que se materializam no discurso do centenário da “Revolução Acreana” por

Page 36: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

35

meio do discurso fundador do Acre que, em sua narrativa, estaria classificado da

seguinte forma:

a) consagra a existência do povo; b) mostra que o povo só é capaz de fazer

algo por meio da liderança do herói, no caso Plácido de Castro; c) a

conquista foi positiva, pois foi gloriosa e, por isso, enriqueceu a história

recente do país; d) o Acre (no caso o Estado) tem na bravura o sentimento

original constituinte; e) para finalizar, reforça o discurso liberal que fundou

essa discursividade: O povo fez a Revolução Acreana (CARNEIRO, 2008,

p. 102).

Em sua análise, ao tratar da discursividade da historiografia acreana, por

meio do arquivo de textos que tematizou o Acre, Carneiro parece dar mais ênfase à

questão econômica, inclusive afirmando que “o Acre é na prática, uma função do

capital internacional e das reservas naturais de hevea brasiliense” (CARNEIRO,

2008, p. 66), ao invés de problematizar os discursos que criaram esse Acre

“imaginado”. Nessa direção, não apenas “joga fora” a perspectiva foucaultiana que

anuncia em seu texto, como se deixa levar pelas narrativas dos historiadores

economicistas e de “linha marxista”, cujas abordagens ancoram-se na linearidade

histórica, na ideia de progresso e de continuidade histórica.

Tal perspectiva, assumida por Carneiro, em sua ânsia de combate à

idealizada “acreanidade” e ao “mito fundador do Acre”, o distanciou de Foucault,

para quem, a história somente será “efetiva” no momento em que destruir todas as

formas e artimanhas de reconhecimentos e quando “reintroduzir o descontínuo em

nosso próprio ser”. Essa história:

não deixará nada abaixo de si que teria a tranqüilidade asseguradora da

vida ou da natureza; ela não se deixará levar por nenhuma obstinação

muda em direção a um fim milenar. Ela aprofundará aquilo sobre o que se

gosta de fazê-la repousar e se obstinará contra sua pretensa continuidade.

É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar

(FOUCAULT, 1999, p. 27-28).

Em “As raízes ”do autoritarismo no executivo acreano (1921-1964)”,

dissertação de mestrado apresentada junto ao Mestrado Interinstitucional em

História, UFAC/Universidade Federal de Pernambuco, no ano de 2002, Francisco

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36

Bento da Silva, desenvolve uma análise sobre “a história política acreana”,

perpassando pela questão do “autoritarismo”, que é discutido na perspectiva

teórica:

em que são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a

autoridade governamental e declinam em gradações diferenciadas o

consenso, mantendo o poder político nas mãos de uma só pessoa, de um

órgão ou de um grupo específico, colocando em posição secundária as

instituições representativas e exacerbando de maneira significativa o

predomínio do poder executivo (SILVA, 2002, p. 07).

Dividido em três capítulos, o autor aborda características de cunho estrutural

e conjuntural na formação de um poder autoritário e personalista no Acre. Para

analisar as características mais gerais das adoções de medidas políticas de cunho

autoritário, Silva centraliza sua análise no período que engloba a organização

burocrática e administrativa do Acre (1921-1964), em que “predominava o esquema

de conexões políticas em detrimento à competência, ao título e ao saber” (SILVA,

2002, p.67), procurando identificar os interesses e as principais forças e atores

políticos que engendraram práticas de procedimentos autoritários e clientelistas,

nesta região, impedindo a formação de uma relação baseada em estatutos

universais entre o governante e os governados.

Ao discutir esse período, o autor remonta de forma sucinta à história

política acreana desde sua formação e organização na fase embrionária do regime

de departamentos,26 identificando o que chama de “as raízes do autoritarismo”,

com a exacerbada centralização do poder nas mãos do executivo.

Ao dialogar com suas fontes de pesquisa: jornais, entrevistas, depoimentos

e documentos dos arquivos do Centro de Documentação e Informação Histórica da

UFAC e do Museu da Borracha, Silva (2002) utiliza como principal base de análise

os relatos jornalísticos. Ele foi o primeiro pesquisador a falar sobre o autoritarismo

26

De acordo com Silva, (2002, p. 21-28), depois de ser resolvida a questão litigiosa do território do Acre entre o Brasil e a Bolívia, através do Tratado de Petrópolis (1903), o governo Federal institui um modelo político-administrativo estranho a Constituição republicana de 1891. Inspirado nos Estados Unidos criou o Território Federal do Acre (1904). Como o poder executivo era descentralizado, o território foi dividido em três e, posteriormente, em quatro Departamentos. Eram estes administrados pelos prefeitos departamentais nomeados pelo presidente da República que centralizava e mantinha sob seu controle dos cargos administrativos e do recolhimento dos impostos advindos da produção de borracha. Após a unificação do Território os governadores territoriais (de origem militar) e os membros do corpo judiciário continuaram sendo indicados pelo governo federal.

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37

no executivo acreano, contribuindo de forma significativa para a compreensão de

certas práticas políticas presentes na estrutura do aparelho de estado no Acre.

Seu estudo não aborda a problemática da construção da “identidade

acreana”, mas traz questões que põem em dúvida toda a aparência de unidade em

torno do discurso sobre o “Movimento Autonomista”, propagado como ideologia na

incorporação do discurso da acreanidade.

A partir de algumas considerações de Silva, é possível compreender a

complexidade dos vários movimentos que surgiram na região acreana,

posteriomente, rotulados como “Movimento Autonomista”. No segundo capítulo de

sua dissertação, o autor faz uma abordagem das várias fases do movimento pela

autonomia acreana, evidenciando os conflitos e divergências entre os grupos

políticos e econômicos dos vales do Acre, do Purus e do Juruá. Neste último,

ocorreram as mais fortes tentativas de contraposição à unificação departamental e

de projetos/ações separatistas. De acordo com Silva:

Em princípio, não havia um movimento unificado e sim vários focos

autonomistas que foram surgindo ao longo dos anos: nos seus primórdios

são movimentos dispersos e inconsistentes, em alguns momentos

exacerbados em revoltas. (...) Excetuando a oposição mais ferrenha dos

membros do Partido Autonomista do Juruá – PAJ, na verdade, a elevação

do Acre a Estado era algo que todos concordavam. Mas esta era

obstaculizada por interesses pessoais e de grupos: os comerciantes e

seringalistas devido o medo de sentirem no próprio bolso uma sensível

avaria nos seus lucros e uma mudança em torno das relações de trabalho

que se encontravam baseadas em um certo tradicionalismo; a turma do

PTB liderada por Oscar Passos, porque se opor ao PSD e a Guiomard

Santos significava acima de tudo sobrevivência política e a manutenção de

um aura de confronto perante parte da população. Assim, as oposições

estavam pautadas em interesses imediatistas e pragmáticos, jamais

ideológicos (SILVA, 2002, p. 48-64).

Acompanhando a interpretação de Silva, é possível refutar a ideia de

harmonia e consenso no conflituoso processo de luta pela autonomia política do

Acre. Porém, sua análise não se diferencia da representação do discurso oficial de

que esses movimentos significavam o desejo de todos. Essa ideia de uma “unidade

harmônica” entre diferentes processos, recorrentemente, utilizada na construção da

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38

“acreanidade”, é ratificada por Silva, ao afirmar que a “elevação do Acre a Estado

era algo que todos concordavam” (SILVA, 2002, p.64).

As visões e percepções de Morais, Guimarães Júnior, Carneiro, e Silva,

partindo de suas fontes e áreas de estudo, são abordagens importantes para a

produção do conhecimento, mas a ideia de “acontecimento” ou “fato” histórico

petrificado e ancorado em uma perspectiva de tempo linear, funcionou como uma

espécie de grilhão que não lhes permitiu romper com aquilo que estava posto pela

concepção histórica que sustentou e fez avançar o discurso da invenção da

“acreanidade” no “Governo da Floresta”. Suas narrativas trazem à tona as versões

históricas das representações discursivas que foram selecionadas no referido

governo para criar uma identidade “essencial”, ou melhor, regional.

Nesse aspecto, procurei colocar minha análise em um terreno diferenciado

daquele que foi trilhado por esses autores. Para efeito de análise neste estudo, a

construção da “acreanidade” será discutida no campo da linguagem, enquanto

discurso político articulado ao patrimônio histórico e aos interesses de um tempo

presente. Desse modo, a história passa a ser concebida não como uma narrativa de

“progresso”, percurso inquestionável, característico daquilo que Vilela (2001)

identifica como “história sedentária”, mas, um tipo de fazer histórico que estabeleça

como perspectiva central, a necessidade de “recuperar o acontecimento como objeto

do pensamento”. Perspectiva essa que possibilita outras aberturas e formas de

encarar o passado e as ações humanas, não meramente como “escolha teórica”,

mas como uma “sensibilidade política” (VILELA, 2001, p.235).

A noção de memória como trabalho do presente é uma evidência na

reelaboração do passado. Ela está viva e atuante entre nós. Para tratar da memória

concernente às narrativas de “invenção da acreanidade”, encontrei inspiração em

Beatriz Sarlo (2007). Essa intelectual, ao discutir os testemunhos como base

probatória de julgamentos e condenações do terrorismo de Estado na Argentina,

questiona os usos públicos destes testemunhos como ícone da verdade sobre as

“visões do passado”. Ao tratar desses testemunhos como narração da experiência,

ela declara que esta:

inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer

(ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo

irrepetível), mas de sua lembrança. A narração também funda uma

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39

temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar

(SARLO, 2007, p.25).

A memória, nesse caso é uma visão do passado que não deve ficar

confinada a cristalizações, porque “a questão do passado pode ser pensada de

muitos modos” (SARLO, 2007, p. 21). Essa discussão levou-me a considerar a

memória como um campo aberto, não cristalizado em versões únicas.

Em conformidade com os objetivos desta dissertação, a identidade no

sistema de representação será discutida sob a luz dos estudos culturais, onde o

sujeito social não tem uma identidade fixa, essencial e permanente, porém,

construída nas práticas culturais, no seu “fazer-se” enquanto sujeito da história e

pela representação do sistema social no qual está inserido. Nessa linha de

raciocínio, “a identidade é um lugar que se assume, uma costura de posição e

contexto e não uma essência ou substância a ser examinada” (HALL, 2003, p. 15).

Na companhia de Stuart Hall, procuro ressaltar que as identidades não são

naturais: são produções simbólicas e discursivas, concebidas culturalmente pelos

sujeitos nas relações sociais que forjam suas representações.

Essas representações, com suas formas e conteúdos, produtores de

sentidos, são oriundas da linguagem, detentora do poder de classificar, nomear e

definir os aspectos que se querem como culturais de uma identidade. Posto que o

poder da linguagem leva o “leitor” ou o “observador” a ler, a ver e acreditar nas

representações como algo real, sem dar-se conta de que as

estruturas do mundo social não são um dado objectivo, tal como o não são

as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente

produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que

constroem as suas figuras (CHARTIER, 1990, p.27).

Nesse aspecto, torna-se relevante uma análise das práticas sociais que se

articulam com a dimensão política, possibilitando a discussão da cultura27 como

“formas de luta”, “campo de batalha”, conforme afirma Hall, para quem:

27

Para Hall a cultura está perpassada por todas as práticas sociais e constitui a soma do inter-relacionamento das mesmas.

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40

há uma luta contínua, por parte da cultura dominante, no sentido de

desorganizar e reorganizar a cultura popular, onde há pontos de resistência

e também momentos de superação transformando o campo da cultura em

uma espécie de campo de batalha permanente, onde não se obtêm vitórias

definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem

conquistadas ou perdidas (HALL, 2003, p.239).

No que concerne a essas estratégias, a política patrimonial pode ser um

dos mecanismos usados, principalmente, por sua capacidade em desencadear

operações de ritualização cultural, visando a “coesão social”. A prática política de

utilização do patrimônio, como mecanismo para assegurar tal “coesão”, tem sua

gênese na formação dos estados-modernos nacionais. No caso do Brasil, com a

formação do estado republicano, buscou-se um conceito de nação, cujo patrimônio

histórico seria transformado em conteúdo para a unidade nacional e em expressão

ideológica do nacionalismo. Ao refletir sobre esse processo histórico, Chuva,

ressalta que na experiência do Brasil,

no contexto do projeto de unidade nacional, ter uma cultura autenticamente

brasileira significava, ao mesmo tempo, construir fisicamente um patrimônio,

dando-lhe uma feição homogeneizada que fosse reconhecida por toda a

comunidade nacional imaginada e que se tornasse natural e inquestionável,

além de articular as redes de relações pessoais engajadas na “causa” da

defesa do patrimônio, submetidas a alianças e trocas (CHUVA, 2009. p.31).

As nações, em Benedict Anderson, não são somente entidades políticas,

elas são imaginadas, “não há, portanto, „comunidades verdadeiras‟, pois qualquer

uma é sempre imaginada [...] o que as distingue é o „estilo‟ como são imaginadas e

os recursos de que lançam mão” (ANDERSON, 2008, p. 12).

No processo de “imaginação” da nação, em suas diferentes faces, a

definição de patrimônio e identidade nacional tinha a pretensão de ser o reflexo fiel

de uma essência nacional. Essência essa que, no dizer de Canclini, não se “inculca”

apenas pelos conteúdos, programas ou planos nacionais de ensino e educação,

mas, constituem-se como

motivo de celebrações [...] daí que sua principal atuação dramática seja a

comemoração em massa: festas cívicas e religiosas, comemorações

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41

patrióticas e, nas sociedades ditatoriais, sobretudo restaurações

(CANCLINI, 2008, p. 163 e 165).

Desse modo, a “preservação” do “patrimônio nacional, regional e local”

tornou-se tão “natural” que suas motivações históricas passam a ser

inquestionáveis. Mas, por mais que o “patrimônio sirva para unificar cada nação, as

desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como

espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos”

(CANCLINI, 2008, p.195), pois,

falar de patrimônio cultural é falar de valores e, não podemos esquecer de

que estes estão sendo tratados no campo da cultura. É preciso sublinhar

que esses valores são sempre atribuídos, daí serem sempre historicamente

marcados pela rede de interação por intermédio dos quais são produzidos,

armazenados, consumidos, reciclados ou descartados (MENEZES, 1992, p.

189).

No raio de abrangência deste estudo, portanto, contextualizar historicamente

os efeitos políticos e culturais dos símbolos passou a ser uma questão de vital

importância, porque, articulando as instigantes reflexões de Stuart Hall, como fonte

de inspiração para a análise durante toda a pesquisa, “o significado de um símbolo

cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado e pelas

práticas às quais se articula e é chamado a ressoar” (HALL, 2003, p.241).

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42

2.PALÁCIO RIO BRANCO: A TEATRALIZAÇÃO DA “HISTÓRIA REGIONAL” – E

DA “ACREANIDADE”

Como ação da política de patrimônio histórico, o Palácio Rio Branco foi o

primeiro monumento a ser tombado pelo Estado do Acre, na condição de bem

patrimonial. A primeira medida, nessa direção, ocorreu com a publicação do

Decreto28 de tombamento em 1999, pelo governo do estado. Porém, sua inscrição

no Livro de Tombo Histórico somente ocorreu em 16 de março de 2006. Atualmente,

esse monumento encontra-se inserido na Zona de Preservação Histórico-Cultural

(ZPHC), do Plano Diretor (PD) do Município de Rio Branco,29 elaborado pela

Prefeitura Municipal de Rio Branco (PMRB), em 2006.

O Palácio Rio Branco faz parte de um complexo de edifícios que compõem o

“centro histórico” da cidade de Rio Branco, ao lado dos prédios da Assembléia

Legislativa, Palácio da Justiça, Palácio das Secretarias, Memorial dos Autonomistas,

Praça dos Povos da Floresta, Praça dos Seringueiros e Catedral Nossa Senhora de

Nazaré.

A visão panorâmica desse monumento exerce papel representativo diante

de todos os outros edifícios, por sua imponente arquitetura, importância funcional e

simbólica. Projetado pelo arquiteto alemão Alberto O. Massler na década de 1920, o

Palácio Rio Branco foi inspirado na arquitetura eclética,30 trazendo elementos do

grego e do romano e formando um mix de estilo grave e majestoso de ordem jônica.

Sua linguagem arquitetônica imprime, de maneira inequívoca, a intenção de

destacá-lo como elemento forte e marcante.

Qualquer visitante que se dirija ao prédio do palácio, se deparará com sua

Placa de (Re)Inauguração, na qual se lê: “O governo do Estado sente uma grande

alegria ao recuperar este símbolo do Acre e da acreanidade que é o Palácio Rio

Branco (ACRE, 2002)”. Esse enunciado indica quais os significados atribuídos pelo

28

Decreto nº 680 de 11 de maio de 1999. O governo do Estado decreta o tombamento do imóvel para o Patrimônio Histórico do estado e deixa a cargo do Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Elias Mansour a inscrição no livro de tombo. 29

O Plano Diretor do Município de Rio Branco foi aprovado através da Lei 1.611/2006, objetivando estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como, do equilíbrio ambiental. 30

SZAJKOWSK, 2000, p. 15. O termo “arquitetura eclética” refere-se a um movimento arquitetônico predominante desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. Propõe a justaposição num mesmo edifício de referências de diferentes origens.

Page 44: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

43

governo à “revitalização” do edifício, que estão sintetizados em torno da ideia de

representar simbolicamente a “recuperação” do Estado do Acre e da “acreanidade”.

Essa representação foi uma produção intencional do governador. Não por acaso, em

depoimento a Bousquet Viana, o então governador acreano diz ter feito cursos

preparatórios de planejamento em gestão, fazendo questão de destacar que “uma

coisa que o gestor tem de bom a fazer é que quando está tudo por ser feito é mexer

naquilo que representa símbolo” (VIANA, 2011, p. 83).31

Após ter sido abandonado por sucessivos governos, passando por um

período de degradação em sua estrutura física, o prédio do Palácio Rio Branco

passou por um processo de “restauração” que durou, aproximadamente, três anos.

O projeto de “revitalização” do edifício ficou sob a responsabilidade do arquiteto e

especialista em restauração de monumentos e sítios históricos, Jorge Mardine

Sobrinho.32

Reinaugurado e aberto ao público no dia 15 de junho de 200233, em

comemoração cívica ao 40º aniversário do Estado do Acre, o Palácio Rio Branco foi

apresentado à sociedade com uma nova concepção de espaço em sua estrutura

interna, caracterizado pela encenação de objetos, símbolos e imagens usados para

representar a ideia de “cultura” e “identidade” regional homogênea, resultado da

fusão de diferentes grupos humanos.

A solenidade de reinauguração fez parte, também, da vasta programação

de celebração do centenário do mito da “Revolução Acreana”, programação essa

que teve início na cidade de Xapuri e término na esplanada do Palácio, com o

hasteamento das bandeiras do Brasil e do Acre. A cerimônia aconteceu ao som do

hino acreano, tocado pela Banda da Polícia Militar.

Projetado em fins da década de 1920 para ser a sede do governo territorial,

o palácio funcionou durante alguns anos, também, como residência oficial do

governador. Em meados dos anos 1970, passou a funcionar somente como sede

31

Palácio Rio Branco: o palácio que virou museu. Dissertação de mestrado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil – CPDOC, Rio de Janeiro, 2011. 32

O arquiteto Jorge Mardine foi contratado pelo governo para trabalhar com dedicação exclusiva na reforma do Palácio. Na época em que foi contratado, o arquiteto morava no Rio Grande do Sul e tinha se especializado recentemente em restauração de monumentos e sítios históricos, curso realizado na Bahia, na Universidade Federal do Centro de Estudos Avançados de Arquitetura, financiado pela Unesco. Informações adquiridas em entrevista à autora no dia 24 fevereiro de 2011. 33

O Palácio Rio Branco foi aberto ao público no dia 15 de junho 2002, porém, na publicação no Jornal Página 20 o convite é feito para o dia 13 de junho, no entanto, neste dia houve uma solenidade interna de re-inauguração reservada somente para convidados do governo.

Page 45: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

44

administrativa do executivo acreano. No projeto original, o palácio estava pensado

para funcionar da seguinte forma: no pavimento térreo estariam os gabinetes e as

seções da chefatura de polícia, das diretorias de obras, instrução e da saúde, o

arquivo, a pagadoria e o corpo da guarda; no pavimento superior funcionaria o

gabinete do governador, a sala de audiências, o salão de honra, a biblioteca, o

gabinete do secretário geral, as salas de diretorias de contabilidade e do interior, e a

sala dos oficiais de gabinete e assistente militar (CARNEIRO, 1929, p. 76).

Ao longo dos anos, essa estrutura funcional foi sendo alterada, em

diferentes momentos históricos que não estão no foco da presente pesquisa.

Interessa-nos, no entanto, o fato de que após a “revitalização”, em 2002, a

funcionalidade do prédio foi alterada, passando a se constituir como museu, com

temáticas selecionadas e rigorosa orientação de guias, previamente instruídos para

“relatar os fatos históricos” que o museu do palácio passara a abrigar.

Em estudo recente, Viana (2011), destaca que percorreu as dependências

do palácio, com o objetivo de conhecer os atores envolvidos no projeto de

concepção de seu acervo, especialmente, por entender que o processo de criação

de um museu é sempre anterior à data de sua inauguração. Nessa direção, ela

apresenta relatos do principal idealizador desse projeto, o governador Jorge Viana, e

as opiniões contrárias à sua criação. Para a autora, em se tratando da exposição

museográfica, “a comunicação narrada neste museu não é uniforme”, e “não

encontramos nele um discurso isento e neutro” (VIANA, 2011, p. 77).

No processo de diálogo com o depoimento do engenheiro responsável pela

“revitalização” do prédio, foi possível compreender que, a partir de 2002, o Palácio-

monumento, em seu térreo, passou a servir de palco para a “encenação” de uma

“história regional”. Essa concepção de espaço museal foi pensada como

componente do projeto de revitalização, como destaca Mardine Sobrinho, ao

enfatizar que:

foi feliz também a decisão do governador, ao deixar também uma parte de

museu de história que é a parte térrea. A parte de cima continua sendo um

prédio de uso público, com o fim de servir ao governo do Estado, como

sede do governo.34

34

Mardine Sobrinho, entrevista realizada em 24 fevereiro de 2011.

Page 46: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

45

Devidamente projetado, o prédio palaciano foi transformado em um museu,

composto por seis salas temáticas, porém, continuou servindo como espaço de

solenidades oficiais:

Aquilo era o Palácio que servia pra administração do governo, a sede da

administração do governo e também residência. Então, a parte da

residência ficou Museu, a gente deixou a parte do térreo todo como museu

e a parte de cima continua sendo, pelo menos continuava sendo utilizada

como atos oficiais do governo do Estado pra fazer uma chancela, uma

reunião, assinar um documento, toda parte de cima foi reservada para os

atos do governo.35

O ritual de exposição e de visitação do prédio, instituído oficialmente como

Museu Palácio Rio Branco, no ano de 2008,36 com o ordenamento e o

direcionamento do olhar do visitante, o transformou em um texto a “ser lido”,

compreendido, internalizado, “normalizado”, para utilizar uma expressão de

Foucault. Ali, sob as condições, as luzes e cores do presente, os “fatos” do passado

passaram a ganhar um novo significado, constituindo-se como forte amparo ao

“acreanismo” do “Governo da Floresta”.

Nessa perspectiva, de construção do “novo” Acre, é possível afirmar,

acompanhando as reflexões de Nestor Canclini, que:

a solenidade dos edifícios, as complexidades das mensagens que

transmitem e as dificuldades para entendê-los obrigam a atuar neles como

quem representa docilmente um texto dramático, que prescreve a maneira

pela qual o visitante deve mover-se, falar e, sobretudo, calar, se quiser que

sua ação tenha sentido (CANCLINI, 2008, p. 175).

No caso do Palácio Rio Branco, a distribuição espacial e funcional foi

projetada dentro de uma dimensão estética e ritual, que selecionou “conteúdos” para

“orientar” os visitantes, através de um itinerário “histórico”, com o devido

acompanhamento de guias que os conduzem a contemplar os suportes que

pretendem representar a “memória coletiva” dos “acreanos”. Não se pode deixar de

35

Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011. 36

Decreto nº 3.083, de 13 de junho de 2008 institui oficialmente sua criação.

Page 47: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

46

ressaltar, no entanto, que essa tem sido a tônica do trabalho dos museus, em escala

mais geral, posto que, no interior desses espaços se estabelece

um trabalho de sedução do público, que busca conduzi-lo a conclusões,

apresentando-lhe um discurso elaborado pela instituição. Este pode ser lido

por meio da disposição dos itens materiais, com relação às informações que

o observador traz até aos objetos selecionados para figurar o evento,

construindo dessa forma um discurso que deve se transformar em memória

histórica (CERVEIRA & SILVA, 2009, p. 4).

Porém, o surgimento do “museu do palácio”, em meio ao processo de

construção discursiva da “acreanidade” e do “novo Acre”, conferiu ao Palácio Rio

Branco uma maior força simbólica. Os altos investimentos do Estado, em suas

instalações, com a contratação de profissionais de reconhecido prestígio em escala

nacional colocam isso em evidência. O cenário expositivo, para se ter uma ideia,

ficou sob a responsabilidade da arquiteta e cenógrafa Bia Lessa,37 que transformou

o prédio em sede de cerimonial, palco-vitrine de um sistema ritualizado de ação

social e, acima de tudo, política.

Ao entrar no prédio palaciano, o impacto é imediato. O luxo e o requinte são

as marcas mais visíveis de ostentação do poder e riqueza de um Estado que,

paradoxalmente, é um dos mais pobres e carentes da federação brasileira. Os

lustres são de cristais e o mármore é importado da Grécia. O material usado na

restauração - processo que resgata os elementos construtivos da obra física – foi

escolhido com a mesma perspectiva de sua construção:

Como é um material muito bom, durável e refletia a expectativa que a gente

tinha de fazer o melhor, porque era essa expectativa; era o Palácio do povo

acreano, e não pode ser uma casinha de sapê. Tinha que ter essa

referência porque quando ele foi feito, foi feito com o melhor material. Então,

a gente tinha que resgatar essa história.38

Pela interpretação que Mardine desenvolve, ao relembrar o processo de

“revitalização” do palácio, o que se apreende é que a “reprodução” material do

37

Beatriz Ferreira Lessa, conhecida como Bia Lessa é cenógrafa e diretora cinematográfica. Atuou como atriz, realiza curadorias e cenografias para grandes espetáculos e para museus. 38

Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011.

Page 48: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

47

edifício procurou “resgatar” e “refletir” a mesma compreensão e objetivos que

estavam presentes em sua construção, na década de 1920: ser luxuoso e mostrar a

materialidade representativa do discurso do que é ser “moderno”. Esta é uma das

contradições mais frequentes no ideal de “modernização” do “novo Acre”, ao qual a

maior parte dos críticos do “Governo da Floresta” preferiu não dar atenção. O tempo

evolutivo e linear foi rompido, posto que, se em Hugo Carneiro, a construção do

Palácio Rio Branco era sinônimo de “modernidade” e de “modernização”, de que

maneira, passados oitenta anos, “restaurar” ou “revitalizar” um certo monumento

poderia ser sinônimo de “modernizar”?

A materialidade do Palácio Rio Branco, sua construção nos anos 1920 e sua

“restauração” ou “revitalização” nos anos 2000, sob o mesmo invólucro do discurso

da “modernidade”, denunciam que o tempo histórico, o tempo secular dos homens,

não obedece a nenhuma sequência linear e que, no dizer de Benjamin, a ideia de

“progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no

interior de um tempo vazio e homogêneo” e a crítica da ideia de progresso, nesse

caso, de evolução histórica, a partir de um dado acontecimento do passado, implica

obrigatoriamente em “crítica da ideia dessa marcha” (BENJAMIN, 1993, p. 229).

A questão central é que na “revitalização” desse edifício não estava,

necessariamente, em discussão, a “restauração” de sua estrutura física, porém, de

sua representação simbólica. Isso implica dizer que, na busca de legitimidade para a

ordem política do “novo Acre” os “modernos” do presente lançaram seu “salto de

tigre em direção ao passado” (BENJAMIN, 1993, p. 230), mas, não para

(re)apresentá-lo como ele “de fato foi”, e sim como construção de um “agora” em que

teciam suas estratégias de poder.

A empatia dos governantes acreanos, auto-rotulados de “Governo da

Floresta” era com as elites e os poderosos do passado e não com os “oprimidos”, os

“seringueiros”, os “indígenas” que dizem representar. Talvez, essa seja a única

ligação perene no continuum da história. Isso pode ajudar na compreensão de todo

esse esforço para consagrar o Palácio Rio Branco, como monumento e patrimônio

“legítimo” de “todos os acreanos”.

O esforço no sentido de “normalizar” a construção discursiva está na

etnografia física e simbólica do palácio. Na primeira Sala, denominada Do seringal

ao Palácio, encontram-se objetos e utensílios usados pelos seringueiros na coleta

do látex e produção da borracha, bem como, fotos que idealizam os “tempos áureos”

Page 49: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

48

da produção gumífera. Constam ainda imagens da primeira sede do governo, toda

em madeira, seguida de outras referentes ao processo de construção do Palácio,

todo em alvenaria e concreto, símbolo da “modernidade” na década de 1920 e,

principalmente, década de 1940, momento em que o governo de Guiomard dos

Santos, o concluiu e re-inaugurou.

Na segunda sala, as paredes são cobertas por imagens do prédio

deteriorado, lembranças dos anos de “desgoverno” e “abandono”, levando o

visitante-leitor a comparar o antes e o depois da “revitalização”. As vitrines são

ornamentadas com material de construção: pregos, britas e areia. Dentre os objetos

expostos nessa sala, o destaque está na imagem de Dom Pedro I,39 busto doado

pelo governo federal aos Estados membros da federação, em 1973, por ocasião da

Comemoração do Sesquicentenário da Independência do Brasil. Naquele contexto

dos “anos de chumbo”, governava o país, o General Emílio Garrastazu Medici (1969-

1974), considerado o mais duro e repressivo do período de ditadura militar.

Na terceira sala, História e Povoamento, encontram-se imagens de sítios

arqueológicos, sobrepostos nas paredes por tecidos transparentes, possibilitando a

visualização das urnas e dos “vasos caretas” que estão por trás dessas imagens.

Acoplada a esta seção encontra-se a sala denominada Povoamento Indígena,

contendo adornos, plumárias, instrumentos musicais, armas, vestimentas, cestarias

e fotografias de diferentes grupos indígenas do Acre. No entanto, na exposição, os

referenciais da cultura material indígena são expostos sem apresentar as diferenças

intrínsecas a cada um desses grupos étnicos.

Logo em seguida, encontra-se a sala denominada Uma Terra de Muitos

Povos. Nesta, as paredes são cobertas por imagens de migrantes, e contam com a

disposição de fones de ouvido que possibilitam a escuta de narrativas, previamente

selecionadas, de migrantes árabes e “nordestinos”.

Na sala seguinte, Em defesa da Floresta, há uma variedade de manchetes

de jornais, nacionais e internacionais, estampados em uma parede, com “notícias”

sobre as lutas dos movimentos sociais, enfatizando como principal agente, o líder

sindical Chico Mendes. Em outras duas paredes há uma imagem de José Plácido de

Castro, em combate contra os bolivianos, pela posse das terras acreanas e uma

imagem do sindicalista Wilson Pinheiro, ao lado de homens armados. Nessa seção

39

D. Pedro de Bragança e Bourbon, fundador do Império Brasileiro, foi consagrado imperador e defensor perpétuo do Brasil.

Page 50: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

49

há um forte apelo para as representações dos discursos de luta pelas terras

acreanas. Numa parte da sala foi colocado um painel, com o seguinte texto: “O povo

acreano, formado por tantas e diferentes raças, construiu sua singular identidade a

partir das diversas lutas que teve que travar ao longo do tempo pela conquista dos

seus direitos mais essenciais”. A partir dessa “fantasia histórica” articula-se a versão

da história que compõe o discurso da “acreanidade”, mas, o destaque da exposição

é para as idealizadas imagens de Plácido de Castro e Chico Mendes.

Na última sala, consta uma exposição sobre o Tratado de Petrópolis,40

enfatizando a atuação do diplomata Barão do Rio Branco, na resolução da questão

das terras acreanas, disputadas com a Bolívia. Em vitrines encontram-se o sabre

pertencente a Plácido de Castro e a bandeira do Estado Independente do Acre,

produzida em 1899, por Luiz Galvez.41 Chama a atenção, nessa sala, que a

mensagem transmitida passa por uma série de recursos visuais, nos quais a

linguagem museográfica cria representações para dar a ideia da comunidade

imaginada, possuidora de origem e heróis, apagando a memória de outros sujeitos e

outras histórias conflitantes ou distintas do que é apresentado como

“acontecimentos” fundadores de uma unidade social.

No Palácio Rio Branco, os objetos e temas apresentados congregam o

esforço em construir uma memória histórica que repousa em valores cristalizados42,

cujo arranjo expositivo não está fora do âmbito político e ideológico de apelo

regionalista, visando provocar sentimentos de orgulho, civismo e pertencimento que,

em certa medida, a linguagem museográfica parece alcançar, como se observa na

leitura de Cabral:

Contemplar aquela Bandeira, me fez pensar em quando ela foi costurada,

quem a costurou, o que estava sentindo ao fazer isso, a emoção que

sentiam aqueles que estavam presentes no seu hasteamento, os ideais que

aquela bandeira representava, os sentimentos daquelas pessoas que

40

O Tratado de Petrópolis foi firmado no dia 17 de novembro de 1903, em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro. Através de negociações diplomáticas, feitas pelo Barão do Rio Branco, concedendo ao território brasileiro a incorporação de quase 200.000 km² de extensão de terra. 41

Narrativa de Emilania Cabral, estudante do 8º período do curso de História Bacharelado da Universidade Federal do Acre, referente ao relatório de visitação ao Palácio Rio Branco apresentado pela estudante como atividade da disciplina Patrimônio Histórico e Cultural, em 09 de outubro de 2009. 42

Costa (1993, p. 20) O museu clássico repousa em valores cristalizados, no entanto, o museu contemporâneo ajuda a pesquisar valores proporcionando informações accessíveis para oferecer outras possibilidades de interpretação, estimulando o diálogo e o questionamento.

Page 51: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

50

sobrevivem através desta bandeira. Ao menos para mim, muito mais que

um valor histórico, há em tais objetos um valor espiritual, uma forma de

conservar vivas a pessoas e fatos aos quais ela representa, nos dando a

possibilidade de tecer uma nova história sobre tais fatos e pessoas

(CABRAL, 2009, p.2 ).

Esse relato demonstra a incrível capacidade que os símbolos possuem em

seduzir o púbico, ao ponto de vislumbrar uma imagem que só existe no campo da

imaginação de um passado não vivido pelo espectador, mas incorporado

mentalmente, pela eficácia que a linguagem museográfica tem ao transmitir crenças

e valores.

A exposição alusiva ao Tratado de Petrópolis é, portanto, um desses

recursos discursivos que servem para transmitir mensagens de coesão grupal por

meio de um amálgama de elementos cívicos evocados por apelos emocionais.

Assim, os visitantes são assediados por recursos simbólicos que conferem

benefícios “espirituais” para compreender ou assimilar os consensos que a

simulação de um social múltiplo produz. Toda narração funda uma temporalidade,

afirma Beatriz Sarlo, nas narrativas:

as visões de passado são construções e sua irrupção no presente é

compreensível na medida em que seja organizado por procedimentos de

narrativa [...] nem sempre o retorno do passado é um momento libertador

da lembrança, mas um advento, uma captura do presente. (SARLO, 2007,

p. 9 e 12).

Na seleção dos conteúdos daquilo que deve ser mostrado e exibido como

possibilidade única de uma história passada, a funcionalidade museográfica possui

uma interpretação que foi montada por um grupo de “especialistas” que delimitara,

classificara e ordenara os temas, as imagens, os sons e as cores. Nas exposições

do palácio, o visitante é levado a assimilar as representações dos temas escolhidos

e apresentados em diversas linguagens, como “verdadeira cultura” regional. O

problema, que não se deve esquecer, é que as “representações culturais, desde os

relatos populares até os museus, nunca apresentam fatos, nem cotidianos nem

transcendentais; são sempre re-apresentações, teatro, simulacro (CANCLINI, 2008,

p. 201).

Page 52: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

51

O que interessa é perceber as técnicas utilizadas como convenções

imagético-discursivas incitando questões positivas, gloriosas, harmônicas e

singulares, servindo como propaganda para atender a finalidades políticas que

compõem a retórica de invenção de uma “identidade acreana” que, muitos

incorporam, porque suas subjetividades estão impregnadas de datas e fatos

históricos que foram “naturalizados” e içados à condição de verdade objetiva e

inquestionável.

É necessário destacar que uma ação cultural realmente democrática não se

reduz à ação e decisão de especialistas, pois, se a memória social constitui objeto

de trabalho, é com a sociedade que se deve dialogar, retirando das mãos dos

“especialistas” e cenógrafos o poder de dar a última palavra sobre o que é

importante preservar (CUNHA, 1992, p.11).

Em entrevista ao jornal Página 20, na ocasião em que o Palácio participou

de um concurso, promovido pela Revista Caras, para ser reconhecido como uma

das Sete Maravilhas Nacionais, a coordenadora Mirla Cristina Aranha fez a seguinte

declaração: “desde a inauguração do Palácio Rio Branco, 256.880 visitantes já

passaram por aqui. É um lugar bonito e requintado, além de atraente pela sua

história. Não há um dia sequer que o palácio não seja visitado”.43

Pesquisando no livro de registro de visitantes, no período que compreende o

mês de março de 2005 a dezembro de 2008, foi possível constatar, em primeiro

lugar, que a maioria dos visitantes são acreanos e estão identificados como

estudantes; em segundo lugar, estão os visitantes de outros estados, identificados

como profissionais das diversas áreas. Esses dados corroboram com a informação a

seguir de Renata Brasileiro, publicada no artigo “As sete maravilhas brasileiras”:

Moradores de Rio Branco, portanto, são os que menos conhecem o palácio

por dentro, segundo a coordenadora. A arquitetura cheia de pompa por fora

pode ser um motivo inibidor para que isso aconteça. Da capital acreana, os

maiores grupos de visitantes estão ligados à classe estudantil. Geralmente

seus integrantes visitam o espaço acompanhados de um professor de

História (Jornal Página 20, 14 de nov. de 2007).

43

http://pagina20.uol.com.br/14112007/especial.htm

Page 53: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

52

Avaliando esses dados podemos concluir que a maioria da população de Rio

Branco não tem uma relação de proximidade com o Palácio Rio Branco como

patrimônio histórico acreano, a qual deveria apreendê-lo como objeto de

pertencimento, posto que “sem o envolvimento compreensivo e afetivo” da

população este Palácio fica desprovido da significação que lhe foi atribuída (Costa,

1993, p. 29). Embora tenha um número relevante de visitação, a maioria dos

acreanos são estudantes da rede estadual acompanhados por um professor. Isto

quer dizer que se dirigem ao local como parte de suas obrigações escolares e não

movidos por um sentimento de pertencimento aquele “lugar de memória”. Em outras

palavras, o que ali está representado, não é a memória social dos diferentes grupos

humanos que vivem no Acre.

Em relação aos ambientes, a lógica de acesso desvela as contradições do

discurso de unidade das relações sociais, dentro do próprio monumento histórico,

pois, esse símbolo da “identidade acreana” define os lugares sociais dentro do

próprio edifício. No primeiro piso, o acesso é permitido a todos os visitantes; no

segundo, os visitantes têm acesso à visitação aos salões “nobres”. O acesso é

proporcionado por duas escadas, revestidas de tapetes vermelhos, peça ornamental

utilizada nos palácios que remonta ao cerimonial indicativo de riqueza e poder,

usados para impressionar os súditos dos reis. Além do Salão Nobre, onde o governo

recebe “pessoas ilustres”, nos eventos oficiais, existem as salas reservadas para o

governador e o vice-governador. Entre público e a porta de entrada dessas salas os

visitantes se deparam com balizadores que fazem separação entre o espaço

público, permitido a todos, e o espaço dos que detém o poder de mando no estado,

traduzindo o lugar de posição das classes sociais.

Então, nessa parte residencial ficou uma parte mais pra museu, e a parte de

uso, que era o Salão Nobre e os outros salões, e, o gabinete do governador

ficou intacto, inclusive, o gabinete hoje que é o que o governador despacha

pra alguns eventos era o mesmo local do gabinete de todos os outros

governadores, quer dizer, a gente manteve essa identidade.44

A identidade destacada pelo arquiteto Jorge Mardine não é a dos acreanos,

a identidade que ele se refere é a do poder executivo que permanece atuando em

44

Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011.

Page 54: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

53

sua “casa”. Na opinião de Jorge Viana, o “significado dessa obra traduz a

recuperação da nossa história. Eu estou proporcionando, acompanhando e vivendo

esse momento” (Jornal Página 20, 13 de junho de 2002). A fala é de quem auto-

reconhece suas qualidades e créditos e, por conseguinte, espera o reconhecimento

de todos.

A ritualização de uma versão do passado é movida pelo impulso não de lutar

contra o esquecimento das memórias, que os suportes incitam em representar, mas

de lutar por um significado no presente, onde o apelo ao passado vem à cena numa

interpretação enaltecida tanto pelo discurso do governante e seus escribas, que

procuram inventar uma “tradição”, quanto pelo significado celebrativo do prédio do

palácio reinaugurado.

No diálogo com essa “invenção”, compartilho das observações de Canclini,

ao afirmar que, em relação ao patrimônio ele

existe como força política na medida em que é teatralizado: em

comemorações para renovar a solidariedade afetiva, nos monumentos e

museus [...] sendo essa teatralização o esforço para simular que há uma

origem, uma substância fundadora, em relação à qual deveríamos atuar

hoje. (CANCLINI, 2008, p. 162).

A busca da rememoração de um passado é feita para ser assimilada

positivamente em relação com o presente. Nesse sentido, o Palácio Rio Branco

transformado em Museu histórico apresenta, em sua composição museográfica,

todo um suporte simbólico como estratégias de persuasão para se pensar em uma

história regional harmônica e gloriosa, de modo que fica relegada ao esquecimento

toda a dinâmica dos conflitos sociais dos processos históricos e da própria história

de construção desse monumento.

A tendência de se buscar uma unidade ocorre porque a harmonia social

impede a percepção de outras alternativas, inclusive a de se questionar a

legitimidade da dominação. Manter vínculos coletivos é uma estratégia que opera

com lembranças, memórias, mas também, com o esquecimento.

A importância do monumento histórico se dá por sua essência e papel

memorial. Os monumentos históricos são importantes portadores de mensagens e

são usados pelos atores sociais para produzir significados. Em Choay, o

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54

monumento, no sentido original, “denota o poder, a grandeza, a beleza: cabe-lhe,

explicitamente, afirmar os grandes desígnios públicos, promover estilos, falar à

sensibilidade estética” (CHOAY, 2006, p.19). Para Canclini “os monumentos são

quase sempre as obras com que o poder político consagra as pessoas e os

acontecimentos fundadores do Estado” (CANCLINI, 2008, p. 302). Também

discutindo questões desse porte, Le Goff ressalta que

a palavra monumentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime

uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O

verbo monere significa “fazer recordar” [...] Atendendo às suas origens

filosóficas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado,

perpetuar a recordação (LE GOFF, 1985, p.95).

O patrimônio nessa condição é usado como uma imagem congelada do

passado, para atestar que há uma herança. Sendo assim, situado em um lugar

público, o Palácio-Monumento, aberto à dinâmica urbana da cidade nos estimula a

ler outras histórias enquanto parte de uma “cultura memorial”, pois no que se refere

aos discursos do passado “é mais importante entender do que lembrar, embora para

entender também seja preciso lembrar” (SONTAG, apud SARLO, 2007, p. 22).

Procurando não os pontos de junção, mas de disjunção, no dizer de

Thompson, que articulam a dinâmica simbólica do Palácio Rio Branco, inspirei-me

nas discussões de Rodrigo Vidal Rojas, sobre a diversidade de papeis e de funções

atribuídas, implícita ou explicitamente, ao território, em diferentes experiências de

ordenamento urbano, na cidade de Santiago do Chile. Para ele, “entender a lógica

do ordenamento urbano contribui para a compreensão da dinâmica da mudança

social” (ROJAS, 1981. p.190).

É preciso destacar que o Palácio Rio Branco foi projetado e erguido em um

contexto histórico que nada tem a ver com o da invenção da “acreanidade”. A

“história” do Palácio teve início no segundo aniversário de governo de Hugo Ribeiro

Carneiro, em 15 de junho de 1929, quando aquele engenheiro, que governava o

Território Federal do Acre, lançou em ato solene a pedra fundamental da obra que

substituiria a antiga sede do governo.

Parcialmente acabado, o palácio seria inaugurado em 15 de junho de 1930.

Dezoito anos depois, no governo de José Guiomard dos Santos, a construção do

mesmo seria concluída. O Acre território de fins dos anos 1940 vivia uma “febre

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55

modernizadora”, marcada por uma série de construções em alvenaria, numa

perspectiva de reformas urbano-paisagísticas das principais cidades.

Dentre as obras construídas, naquele momento, destacam-se: um conjunto

residencial para funcionários públicos, internatos para escola normal, um hotel,

maternidade e clínica de mulheres Bárbara Heliodora, diversas escolas e um

aeroporto. A retórica que embasava a materialização dessas obras fazia ressoar os

apelos de uma “modernidade” representada na “superação do infortúnio de uma

imagem que precisava erradicar as barracas da paisagem urbana”. Realimentando o

ideal civilizatório, sob uma prospecção cosmopolita, ergueram-se cenários para

esconder a “cidade floresta”, exigindo que se colocassem abaixo as antigas

construções em madeira e palha. Essas “primitivas construções” seriam substituídas

por “modernas” obras em alvenaria, condizentes com os novos valores em voga. Tal

perspectiva calou fundo no imaginário de muitos que, a exemplo de Maria José

Bezerra, chegaram a acreditar que o Acre vivia uma fase de “luzes na selva”. Nessa

fase, predominou a vontade de Guiomard Santos, que, articulando imaginação e

ação

dialeticamente através da formulação e materialização de um projeto de

mudança, com base na concepção instituída do Acre como selva, como um

espaço que necessitava ser dominado e exorcizado dos seus demônios, de

suas mazelas para que o progresso vencesse as trevas do atraso

(BEZERRA, 2002, p. 15).

Na aparente crítica de Bezerra, o discurso de “progresso” para a região

rejeitava a floresta com o programa de modernização de Guiomard operando em

mudanças econômicas, sociais e culturais (BEZERRA, 2002, p.16). Isso

representava o rompimento com a paisagem e costumes tradicionais da região,

vistos como atrasados e incompatíveis com a “modernidade”. Essa incompatibilidade

entre o “tradicional” e o “moderno”, também estava presente nos discursos do

governador Hugo Carneiro, como pode ser destacado em seu “Relatório de

Governo”, apresentado ao Ministro Augusto de Vianna do Castello.

A conclusão das obras do Palácio Rio Branco, ocorrida na década de 1940,

estava integrada ao discurso de “modernização” da cidade. Sua linguagem

Page 57: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

56

arquitetônica, influenciada pela arquitetura do Renascimento,45 incorporou alguns

elementos voltados para a questão do urbanismo, como podemos observar a partir

da leitura da Figura – 1 a seguir.

Figura 1 - Vista frontal do Palácio Rio Branco – Década, 1950.

Fonte: Acervo digital do Dept° de Patrimônio Histórico e Cultural - FEM

O espaço aberto à frente do prédio com a praça, o obelisco e a fonte

luminosa jorrando jatos d‟ água multicor, intencionava promover um espaço de

sociabilidade ligado ao urbanismo. Embora concebendo um ambiente de relação

mais próxima entre a população e o poder executivo, por meio da criação de um

espaço para passeios, atraindo a população para a frente do Palácio, a conformação

arquitetônica gerada, com um ambiente amplo na frente do edifício e a abertura de

escadas nas laterais do prédio, têm a intenção de direcionar a população para se

colocar naquele local e, assim, visualizar o prédio a partir de um ângulo que lhe

confere mais suntuosidade. A monumentalidade conferia maior legitimidade à “casa

do governo”. Sobre essa questão, observa Mardine Sobrinho:

Quando a renascença faz o renascimento dos elementos gregos ela inclui

mais uma questão importante, o quê que é? O urbanismo que fica na frente

45A arquitetura renascentista, influenciada pelo espírito de valorização do ser humano, representou

uma nova forma de entender o espaço como algo universal, compreensível e controlável através da razão do homem. Uma das principais marcas desta arquitetura é a distribuição espacial matemática das edificações, contribuindo assim com as formas de urbanização das cidades, onde as edificações são dispostas de modo que as pessoas entendam a lei que as regem e estruturam.

Page 58: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

57

do prédio. A questão dos elementos da arquitetura grega, ela não tinha essa

preocupação com o urbano, a parte aberta. A renascença, você vê a capela

de São Pedro no Vaticano, tem a Basílica de São Pedro. Você tem a

basílica no fundo e tem na entrada da Basílica uma grande praça que tem

uma coluna em volta pra formar um elemento de transição e de perspectiva

pra visualizar aquela grandeza. Então nada podia atrapalhar! De fato,

quando a arquitetura eclética aqui no Brasil retoma esses elementos, aquele

espaço aberto tipo o obelisco, a fonte, as escadas e aquela conformação do

espaço grande na frente é para a população se colocar e visualizar o

elemento com uma certa perspectiva pra ficar ainda maior.46

A construção de obras impactantes, portanto, é carregada de subjetividades

e intenções, fundamentalmente, porque a linguagem arquitetônica se constituiu

como importante forma de impor sentidos, reordenar os espaços urbanos, criar

formas, percepções e sentimentos e, ainda, exercer o poder disciplinar sobre os

habitantes da cidade.

Avaliado na época de sua construção, em “mil e quinhentos contos de réis”

(Jornal o Acre, 15 de junho de 1930, p.3), a construção do Palácio Rio Branco foi

realizada pelos esforços de soldados que pertenciam à Força Publica do Território

do Acre (F.P.T.A.), sob o direção inicial do Comandante da Força Policial, Major

Djalma Dias Ribeiro e, posteriormente, do Sr. 1º Tenente Manoel Barbosa de Araújo

(Jornal o Acre, 8 de dezembro de 1935, p. 3). Por ocasião da cerimônia inaugural do

prédio, o governador, Hugo Ribeiro Carneiro, declarou inaugurado o novo Palácio do

Governo do Território, sob a denominação de Palácio Rio Branco, em homenagem

ao Barão do Rio Branco”.47 Porém, o reconhecimento oficial da sede do governo do

Acre, com o nome de “Palácio Rio Branco”, somente ocorreu em setembro de 1943,

na comemoração da “Semana da Pátria”, durante o governo do Coronel Silvestre

Coelho, através do Decreto nº 192 (jornal O Acre, 12 de setembro de 1943, p. 1).

Ao observador desatento ou por demais envolvidos no clima de emoções

que a exposição do Palácio-Museu desperta, em processo de invenção da

“acreanidade”, todos esses processos históricos passam despercebidos. A dinâmica,

própria das práticas sociais, em diferentes tempos históricos, mais que apontar para

46

Mardine Sobrinho, entrevista citada, 24 fevereiro de 2011. 47

José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco, foi professor, político, jornalista, diplomata, historiador e biógrafo. Nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 20 de abril de 1845, e faleceu na mesma cidade, em 10 de fevereiro de 1912. Foi escolhido pelo Presidente da Republica Rodrigues Alves para exercer o posto da diplomacia em 1902.

Page 59: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

58

a ideia de continuidade, evidenciam o descontínuo da história, como enfatizam

Benjamin (1993) e Foucault (1999).

Se forem acrescentados ao processo inicial de “fundação” do palácio, sob a

égide do governo de Hugo Carneiro, todos os processos anteriores, da fase das

prefeituras departamentais, a ruptura, como marca característica da história se

acentua sobremaneira. Porém, não se pode esquecer que aquele “modernoso”

prédio em alvenaria foi construído no mesmo local em que estava instalada a antiga

sede – em madeira – do Departamento do Alto Acre.48 Sede essa, construída na

margem esquerda do rio Acre, na quadra central (área mais alta) do arruamento

diante do porto de Penápolis,49 para que ficasse visível desde a margem desse

porto. Visibilidade essa que, para o Prefeito Departamental, Gabino Besouro,

deveria se dar, também, desde o outro lado do rio, lugar onde foi instalada a primeira

sede provisória do Departamento em 1904, pelo prefeito departamental Cel. Raphael

Augusto da Cunha Mattos,50, na margem direita do mesmo rio, numa povoação com

pouco mais de 200 habitantes, chamada “Volta da Empreza”.

Para Gabino Besouro, a margem esquerda foi escolhida para ser a sede da

capital do Departamento, depois de verificadas e devidamente analisadas uma série

de questões que conferiam reconhecimento àquele local como em ótimas condições

“para o desenvolvimento de uma cidade: salubre, bom porto e terreno enxuto”

(BESOURO, 1908, p. 78). Nessa retórica, é preciso destacar, fazia parte do projeto

de reformas urbanas que, desde a Europa de meados do século XIX, atravessava os

mares, impondo modelos, reconhecidamente, “civilizados” de urbanização.

O mapa a seguir mostra a primeira divisão de lotes e arruamento feito na

margem esquerda do rio Acre, nas terras do seringal Empreza, local onde foi

construída a “sede definitiva” do executivo acreano, e onde, décadas mais tarde

seria construído o Palácio Rio Branco.

48

Esse Departamento surgiu após a anexação do Território do Acre ao Brasil, quando o Território foi dividido em Departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. 49

Penápolis foi o nome escolhido pelo Prefeito Departamental do Alto Acre, Gabino Besouro (1908), em homenagem ao Presidente da República Afonso Pena. 50

Cel. Rhaphael Augusto da Cunha Matos foi nomeado prefeito do Departamento do Alto Acre de 1904 a 1905.

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59

Figura 2 - Croqui do 1º arruamento do núcleo urbano de Rio Branco

Fonte: Prefeitura Municipal de Rio Branco

Essa configuração territorial direcionava o local de existência da “futura

cidade”, uma estratégia de organização da base territorial urbana, início de uma

projeção que intencionava fazer separação entre o “urbano” e o “rural”. A questão

do território e todos os conflitos culturais a ele subjacentes, já estava colocada

desde o início da formação da cidade. Para Rojas (1981), todo processo de

mudança social e todo esforço para controlar essa mudança sempre possui uma

projeção no tempo e uma base territorial, posto que:

o território é um espaço construído por um ator individual ou coletivo em

função de certos objetivos e a partir de uma representação do espaço

terrestre [...] a representação coletiva do território não é a soma de

representações individuais, nem tampouco a expressão de uma

unanimidade, mas o resultado de uma seleção-exclusão de interesses

dominantes ou majoritários a partir de uma diversidade de interesses

(ROJAS, 1981, p.184-185).

Essa reflexão ganha relevância, quando se discute o papel do patrimônio

histórico, no reordenamento de espaços, principalmente quando está em jogo a luta

pela memória, que é uma luta de poder (LE GOFF, 1992, p.426). No processo de

pesquisa, para investigar o período histórico da construção das representações

simbólicas em torno do Palácio Rio Branco, mantive intenso diálogo e

problematização com o Relatório de Governo de Hugo Carneiro. Apresentado ao

Page 61: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

60

Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Augusto de Vianna do Castello, esse

relatório dava conta de um período compreendido entre os anos 1928 a 1929.

Sabemos que os documentos não surgem espontaneamente e nem

destituídos de significados. Sua existência ou inexistência derivam de ações

humanas de produção ou exclusão. Isso significa que são baseados em valores,

interesses, concepções de classes e instituições. Em Le Goff (1985) o documento

não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que

o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder.51 Nessa direção,

compreendemos que o documento não tem pleno significado sozinho, constituindo,

assim, uma fonte de interpretação com suas linguagens e sentidos históricos.

De acordo com o governador, sua intenção ao produzir esse documento era

a de “fazer uma resenha dos atos de sua gestão” (CARNEIRO, 1929, p.15).

Metodicamente elaborado, na modalidade de uma linguagem escrita em que a voz

do narrador predomina, o relatório descreve a visão que Hugo Carneiro tinha do

território acreano e, cria com sua narrativa, as representações sobre o Acre, sua

população e seu governo.

As expressões que irradiam das páginas são sempre de um lugar isolado,

insalubre, com uma população de maus hábitos, atrasado, desprovido do mais

elementar material de construção, onde “tudo era preciso improvisar” (CARNEIRO,

1929, p. 68). Essas expressões refletem um “olhar” de ordem “civilizatória” do autor

do relatório, que não aceitava os modos dos que viviam numa região, onde o cenário

composto por uma arquitetura predominante da época, feita em sua maioria de

madeira com cobertura de telha de barro ou palha era, para Hugo Carneiro, uma

“visão desconsoladora”, um “montão de ruínas” (CARNEIRO, 1929, p.67). Para ele,

a situação do “velho barracão de madeira”, como se referia à antiga sede do

governo, espelhava, ao vivo, a situação material de todo o Território. Situação essa

marcada pela visão de alguém que a tudo traduzia como “velhos” e “desalentadores”

“barracões de madeira” ou um

desconfortável pardieiro [...] símbolo, terrivelmente expressivo, da desordem

em que se alastrava pela administração toda. Ninguém, ao de longe,

poderia fazer a idéia exacta do descalabro em que definhava a opulenta

51

Enciclopédia: Memória-História, sobre o documento-monumento. p. 102

Page 62: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

61

terra acreana, fallida, a principiar pela propria instalação de sua casa de

governo (CARNEIRO, 1929, p. 56-67).

Nesse recorte da narrativa do relatório, a sede administrativa do governo

aparece como representação material de todo Território acreano, completamente,

desqualificada e refletindo uma cultura regional vista como atrasada. A partir dessa

visão desqualificadora das práticas culturais e dos modos de viver na Amazônia,

Hugo Carneiro produziu uma narrativa do “progresso” e da “modernização” da

região. Nessa narrativa, colocava-se como o responsável pelo melhoramento

material de todo um mundo em que “o problema principal”, para ele, era o

“hygienico”:

Sempre entendi constituir principal dever do administrador no Brasil, e muito

especialmente no Acre, devido ao seu clima tropical, dispensar a maior

attenção aos problemas attinentes ao saneamento do solo e, de certo

modo, à eugenia da raça (CARNEIRO, 1929, p. 52).

Sob a justificativa de que a salubridade do ambiente propiciaria o

“desenvolvimento” físico e moral da população (CARNEIRO, pp. 52, 58), Hugo

Carneiro pôs em ação todo um aparato repressivo para impor uma lógica

“civilizatória”, dando a entender em seu relato que estava prestando assistência

necessária ao “agricultor pobre”, ao “seringueiro paupérrimo” e “ao proletariado

desprotegido”, como se referia aos habitantes da região (CARNEIRO, 1929, p. 53).

Os termos “melhoramento” e “saneamento” saíram dos relatórios técnicos

para o discurso oficial. Com base no discurso de ordem pública do saber técnico e

científico, impôs restrições, visando dificultar a construção de casas em madeira

consideradas sinônimo de “atraso”, bem como normas de “hygiene” e “assepsia” por

meio de um instrumento jurídico chamado Código de Posturas, para intervir no

cotidiano dos habitantes. De acordo com Bezerra,

esse documento extenso, detalhado e composto por 319 artigos regulava

toda a vida econômica, social, política e cultural da cidade de Rio Branco.

Autoritário e coercitivo impunha multas e prisões aos que ousassem não

cumpri-lo (BEZERRA, 2002, p. 31).

Page 63: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

62

Como ação intervencionista, sob o ideal de assepsia, Hugo Carneiro diz ter

criado a Diretoria de Higiene52. Dirigida pelo Dr. Amaro Theodoro Junior, com o

auxilio da polícia, essa Diretoria, segundo consta no documento, fiscalizava todas as

habitações particulares e coletivas, incluindo o Leprosário, casario construído em

lugar distante e conveniente para o isolamento dos indesejados (CARNEIRO, 1929,

p.53). Dessa forma, o espaço público era fiscalizado, a vigilância do poder estatal

interferia, legislava, proibia e reprimia os costumes contrários ao estabelecimento da

ordem “civilizatória”, para uma outra concepção de sociedade que não tinha o

“tradicional” como referência do “progresso” e da “modernidade”.

Sobre “modernização” no Acre, em Fábulas da Modernidade no Acre: a

utopia modernista de Hugo Carneiro na década de 20, Souza (2001), discute a

constituição do espaço urbano da cidade de Rio Branco - durante a administração

do governador Hugo Ribeiro Carneiro (1927-1930) - enquanto signo de “intervenção

técnico/políticas”. Souza dialoga sobre o projeto modernista, pensando como este

visava anular os diferentes territórios e constituir uma concepção homogênea de

espaço e comportamento com suas atitudes e medidas centralizadoras. Para ele,

a proposição que se tentava impregnar na população, era da necessidade

de deixar o passado e suas ruínas para trás, e pensar na construção de um

futuro a partir de uma visão progressista da sociedade, ou seja, tudo deveria

“iniciar do começo”, o Acre deveria ser reinventado (SOUZA, 2001, p. 48).

Sob essa ótica, Hugo Carneiro deu início a um projeto de intervenção urbana

na capital do Território, local “onde apenas existiam duas modestas e inacabadas

construcções em alvenaria”, com o intuito de fazer de Rio Branco a cidade-modelo

para todo o Território (CARNEIRO, 1929, p.68).

Com a retórica de transformar o Acre em “um Acre redivivo, ressurgindo das

ruínas do seu passado”, iniciou a construção de prédios públicos em alvenaria para

espelhar a imagem de um futuro desejável (CARNEIRO, 1929, p. 75). Para isso,

construiu o Mercado Público, o Quartel da Força Policial, o prédio da primeira

agência do Banco do Brasil e, indubitavelmente, um novo Palácio do governo. Para

52

De acordo com o relatório, a Diretoria de Higiene foi a responsável pela organização sanitária, assistência publica, serviço medico-legal, serviço demographo-sanitário, serviço sanitário fluvial, assistência medico-escolar, assistência dentário-escolar, fiscalização do meretrício e consumo de medicamentos (CARNEIRO. pp. 58-211).

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63

Hugo Carneiro, as construções eram avaliadas positivamente, como descreve no

trecho de seu relatório:

[...] se formos avaliar o ingente sacrifício que essas obras exigem e nos têm

custado, pela carência de artífices, pela distancia formidável que nos isola,

pelas difficudades do transporte, pelo preço exaggerado da mão de obra e

do material; pela escassez de meios, pela falta de tudo; é muito, si

considerarmos que, às custas de economias às vezes dolorosas, estamos a

construir um Acre definitivo, um Acre em alvenaria [...] (CARNEIRO, 1929,

p. 75).

Em conformidade com Souza, “esta postura pode ser entendida como uma

recusa em conviver com símbolos que representavam o espaço da floresta, tendo

em vista que as casas construídas em madeira constituíam-se no principal padrão

arquitetônico dos seringais” (SOUZA, 2001, p. 49). Numa localidade em que a

maioria das casas era de madeira, a presença e a complexidade arquitetônica do

novo Palácio do governo era algo impactante e desproporcional para a realidade da

região na época.

Figura 3 - Palácio Rio Branco em construção

Fonte: Acervo digital do Dept° de Patrimônio Histórico e Cultural – FEM

O prédio com arquitetura grandiosa e com aspecto de um templo sagrado

transmitia a mensagem de sofisticação do ecletismo, movimento historicista que se

remetia à antiguidade para dizer: nós não somos simples. A fotografia acima

possibilita visualizar uma imagem fantasmagórica, no dizer de Hardman (1988),

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erguendo-se em meio à terra devassada: o que importava era a chegada da

“modernidade”. Essa construção, portanto, materializava o discurso do que

significava ser “moderno”, representado no edifício construído em alvenaria,

contrapondo-se aos “barracões” de madeira. Nesse caso,

a apropriação-transformação do espaço não é fruto da representação

cultural coletiva desse espaço, mas sim o resultado de uma representação

elaborada por alguns membros influentes da coletividade. Deste ponto de

vista, o território aparece como uma desculturação e como desnaturalização

(ou redução) da complexidade social (ROJAS, 1981, p. 191).

A concepção de cidade e a linguagem arquitetônica implantada não

apresentavam vínculo com o estilo predominante na região, antes, era um

rompimento, uma mudança. Toda essa gama de experiências e mesmo de tensões

pelo poder foi silenciada no processo de “revitalização” material e simbólica do

Palácio Rio Branco, como mecanismo de construção e afirmação da “identidade

cultural acreana” e do ideal de “acreanidade” do “Governo da Floresta”.

Chama atenção, no entanto, que a restauração do edifício em 2002, além

de renovar o prédio, trouxe, também, a renovação dos elementos arquitetônicos

que compunham sua ambiência no governo de Guiomard Santos, formando um

conjunto arquitetônico que silenciava Hugo Carneiro e rendia claras homenagens

ao autor do Projeto de Lei do Acre Estado.

Figura 4 - Vista aérea do Palácio Rio Branco - março de 2009.

Fonte: AFC Foto Clube

Page 66: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

65

Pela leitura da imagem, percebemos que a Fonte Luminosa,53 retirada no

governo Wanderley Dantas, voltou ao seu lugar de origem. O obelisco, construído

em 1937 - em homenagem aos “heróis da Revolução” -, sofreu alteração em seu

tamanho tornando-se maior. Em sua revitalização foi instalada uma colunata de

palmeiras imperiais para causar a impressão de uma maior grandiosidade ao prédio

do palácio e aos elementos em seu entorno. Pela lógica desse “urbanismo

modernizador”, Guiomard e Viana se encontravam na formulação de uma

“acreanidade” repleta de “glória” e apego ao poder.

Na estrutura visual do prédio do palácio, sempre esteve em evidência a

monumentalidade. Durante a “revitalização”, os acréscimos para destacá-la foram

intencionalmente executados para diminuir a escala do humano diante de sua

grandiosidade, provocando ante o olhar uma sensação de impotência e reverência

ao monumental e, principalmente, ao que representa. Para além do imediato prazer

visual, a imagem gera um sentimento de temor e respeito. Tal intervenção nos leva

a considerar que

toda prática política se traduz numa produção territorial [...] Assim,

territorializar o espaço terrestre significa apropriar-se dele concreta ou

abstratamente, transformá-lo em função de um sistema cultural e de

objetivos bem precisos (ROJAS, 1981, p. 184-185).

O termo “Palácio” é sugestivo para se pensar no significado que a obra pode

traduzir. Na antiguidade, palácio era um edifício suntuoso destinado à habitação da

corte real, lembra, portanto, a grandeza dos reis, soberania, poder e domínio. O

termo é indicativo de tudo o que esse Palácio-monumento pode expressar em sua

historicidade, ou seja, o poder.

A preocupação em consagrar um monumento como patrimônio de todos os

acreanos apagou marcas importantes da experiência social. No entanto,

acompanhando as significativas reflexões de Paoli, acredito que pensar numa

produção cultural que incida sobre a questão da cidadania é “fazer com que

experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da população se reencontrem

53

A fonte foi inaugurada no dia 07 de julho de 1948, no governo Guiomard Santos, em homenagem ao primeiro bispo do Acre D. Júlio Matiolli. A fonte foi instalada na praça Eurico Gaspar Dutra e foi retirada no governo de Wanderley Dantas (1971 a 1975) em 1973, para a praça Plácido de Castro, onde ficou instalada até o momento em que retornou ao local de sua primeira instalação .

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66

com a dimensão histórica” (PAOLI, 1992, p.27). Esse encontro, somente poderá

ocorrer, no caso do Acre, quando formos capazes de romper com a sacralização

que envolve, discursivamente, os signos e semióforos fundadores da “acreanidade”

que transforma as vidas e as trajetórias de milhares de sujeitos em coisas ou objetos

reificados pela história regional.

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67

3.MEMÓRIA, MEDIAÇÃO CULTURAL E CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DO

PASSADO-PRESENTE

A memória e tudo o que ela implica em termos de tensões e disputas, nunca

foi tão invocada, no âmbito dos discursos e intervenções políticas, no estado do

Acre, quanto nos anos 2002-2006. Tal apelo fez parte do “impressionante” esforço

governamental para criar a imagem de um “novo Acre”. O apelo ao regionalismo foi

o procedimento adotado para forjar os símbolos que repercutiam nas diversas

formas de linguagens manifestas em comemorações cívicas, propagandas

televisivas e radiofônicas, placas, outdoors, exposições, publicação de livros e

“lugares de memória” específicos para as representações da ideia de “identidade

regional”.

No referido contexto, a política adotada pelo governo do estado trazia em

seu discurso um forte apelo ao passado. A rememoração desse passado tomou

conta dos museus, memoriais, avenidas e praças com representações compatíveis

com os discursos da política emergente que dizia pautar-se em valores

“tradicionais”. Valores esses que passaram a articular diferentes grupos humanos,

projetos e práticas culturais em uma mesma, e única ideia de “acreanidade”.

Nesse contexto, instituições governamentais e não-governamentais

desenvolveram um intenso trabalho na produção dessa imagem regionalista. Essa

iniciativa tomou proporção com a criação da Fundação de Cultura e Comunicação

“Elias Mansour” (FEM) e do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural

(DPHC) do Estado do Acre, em 1999. As ações dos dois órgãos públicos foram

desenvolvidas numa perspectiva de “resgate” e valorização do patrimônio histórico e

da “história regional”.

Nesse processo, tornaram-se usuais, termos como “restauração”,

“revitalização” e “comemoração”, indicando a forma de como se processou a política

que tomou impulso nesse período de invenção de uma “acreanidade”. Os termos

remetem à busca de identificação com um passado remoto ou uma certa ideia de

ancestralidade. Apontam, portanto, para uma tentativa de promover a recuperação

de um passado (restauração) dando nova vida (revitalizando), por meio de

cerimônias realizadas em memória de um acontecimento (comemoração).

Para compreender a problemática dessa política adotada, deve-se levar em

conta as articulações entre o discurso de unidade e identidade regional e as práticas

Page 69: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

68

desses órgãos vinculados ao governo e, inevitavelmente, às concepções ideológicas

do grupo político que tornara-se “hegemônico” no controle do aparelho estatal.

A Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour (FEM) foi criada em

1999, para substituir a Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos da

Cultura e do Desporto (FDRHCD). Nessa ocasião, também foi criado o

Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado, que substituiria a

Coordenadoria de Patrimônio da FDRHCD. O diretor-presidente, nomeado pelo

governo para gerir a administração dessa nova Fundação, foi o militante político,

jornalista, poeta e ensaísta, Antônio Alves.54 Em conjunto com ele, foram nomeados

outros dois diretores: Jorge Henrique e Simoni D‟Ávila. Sua ascensão ao cargo de

diretor-presidente da Fundação de Cultura, no primeiro mandato do governo da

coligação intitulada “Frente Popular do Acre (FPA), causou entusiasmo e esperança

para intelectuais e artistas, que se deslumbravam com a possibilidade de maior

participação da classe artística e da comunidade em geral, na produção cultural do

Estado.

Um dos mais antigos militantes no campo das artes acreanas, o artista

plástico Dalmir Ferreira, expressa um pouco do entusiasmo vivenciado nesse

período:

A minha relação com a velha Fundação e a nova Elias Mansour se dá numa

transição, num momento em que de repente nós da cultura estávamos

super-entusiasmados [...] porque todo mundo da cultura na época tinha

votado no PT. Eu fui um dos que votei, e tem uma coisa, na época da

transição do último governo que não era do PT para o PT reuniu-se quase

todo mundo, nós fizemos reuniões, isso e aquilo, esperávamos muito,

esperávamos muito.55

A nova Fundação Cultural - (FEM) - viria então substituir a antiga Fundação

de Desenvolvimento da Cultura e do Desporto56 que, criada em 1979, tinha como

objetivo incentivar o fazer artístico-cultural do homem acreano, em todas as formas

de expressão. Idealizada e fundada por Elias Mansour Simão Filho, a FDRHCD

54

Antônio Alves participou, nas décadas de 1970 e 1980, de movimentos sociais e da criação do partido dos Trabalhadores no Acre. 55

Dalmir Ferreira, entrevista realizada em 11 de novembro de 2010. 56

Diário Oficial do Estado do Acre, em 7 de junho de 1979. O Poder Executivo autoriza a instituir a Fundação de Desenvolvimento de Recursos humanos da Cultura e do Desporto através da Lei Nº 667 de 23 de maio de 1979.

Page 70: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

69

passou por mudanças em sua estrutura organizacional e permaneceu funcionando,

oficialmente, até a criação da Fundação de Cultura e Comunicação “Elias Mansour”.

A criação da FEM ocorreu num processo em que ocorria o desmembramento de

alguns setores, até então, vinculados à fundação cultural, que passaram a se

constituir como secretarias autônomas: Secretaria do Esporte, Secretaria da

Juventude, Secretaria de Assuntos Indígenas e Secretaria de Comunicação, e, esta,

segundo Alves, “passou a gerenciar, na prática, aquilo que juridicamente pertencia à

Fundação, como a rede de comunicação de rádio e televisão”.57

Conhecida como Fundação Cultural, a FDRHCD, quando criada, na década

de 1970, no governo de Joaquim Falcão Macedo, tinha em sua estrutura interna,

basicamente, além dos setores administrativos: uma Coordenadoria de Recursos

Humanos, uma de Ação Cultural, uma de Esportes e uma Diretoria da Biblioteca

Pública. A gerência da FDRHCD era subordinada ao Gabinete Civil e seu primeiro

diretor-presidente foi Elias Mansour, que passou a acumular os cargos de diretor-

presidente e o de chefe da Casa Civil do governo de Joaquim Macedo, tio de Jorge

Viana.58

Em 1985, na gestão do diretor-presidente Jacó Cesar Píccole,59 a FDRHCD

foi reformulada com a ampliação de sua estrutura organizacional, que passou a

incorporar outras coordenadorias e, dentre elas, a de Patrimônio Histórico. Os

trabalhos da coordenadoria de Patrimônio Histórico, durante essa e outras

administrações, ficaram restritos a algumas produções literárias, audiovisuais e à

preservação de três espaços de memória: Sala Memória de Porto Acre, Museu da

Borracha60 e Casa do Seringueiro.61

Por alguns anos a FDRHCD atuou como um organismo forte, e manteve

certa independência do governo, graças à arrecadação de recursos financeiros, via

ministração de cursos de formação, hospedagem de alojamentos, cobrança no uso

de ginásios esportivos, vendas de artesanato e produtos gastronômicos em seu

57

Entrevista com o ex-diretor da FEM Antônio Alves, realizada em 2 de dezembro de 2010. 58

Os elementos que constituem parte dessa retrospectiva histórica foram produzidos a partir da entrevista com o ex-diretor da FDRHCD, Jacó Píccole, realizada em 09 de setembro de 2010. 59

Antropólogo indicado a Diretor-Presidente (1983 a 1987) da FDRHCD pela Assembléia Popular constituída por um Fórum para indicação de nomes que ocupariam pastas do governo Nabor Júnior. 60

Informações adquiridas com o depoimento do ex-diretor presidente da FDHHCD, Jacó Pícole (em 09/11/2010) e da ex-coordenadora de Patrimônio Histórico Fátima Almeida (em 19/11/2010). 61

A Casa do Seringueiro foi criada pela Fundação Cultural do Acre, no governo de Flaviano Melo, em 1989, localizava-se na Av. Brasil, 216 - Centro. A casa visava representar os modos de vida dos seringueiros.

Page 71: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

70

restaurante. Essa dinâmica funcionou a contento até meados da década de 1980, na

gestão de Francisco Gregório da Silva Filho,62 período em que houve uma certa

ebulição de atividades culturais no estado. Porém, tal dinâmica foi desaparecendo,

pouco a pouco, ao longo dos anos, levando a FDRHCD a desenvolver apenas ações

eventuais.63

Observa-se que a estruturação das políticas culturais é produzida dentro de

um campo atravessado por dependências, ficando, na maioria das vezes, a mercê

das flutuantes “prioridades” governamentais. A partir do depoimento de outro ex-

presidente da FDRHCD, João Petrolitano, essa percepção parece ganhar mais

força:

Quando eu fui nomeado, o governador me colocou assim: Nós queremos

revigorar a cultura e a história do estado. Então naquela ocasião se

elaborou um projeto que visava exatamente fazer um resgate histórico,

compilar tudo que nós temos, cadastrar, e, não só nessa área, na área dos

elementos de referências históricas, mas na área do desporto a gente

pensava em trazer o resgate da história do desporto, como ele tem

acontecido e, fortalecer aqueles movimentos culturais, inclusive, os nossos

movimentos teatrais e por aí afora. Havia isso. Aí por que, que isso não

aconteceu? É que os governos priorizam ou não priorizam. Não é suficiente

dizer que vai fazer, tem que priorizar. E naquela ocasião, não sei por quais

motivos, quatro meses depois deixou de ser prioridade.64

Com a inércia da Fundação Cultural do Estado, a proposta de criação de

uma nova fundação fez brotar esperança para muitos artistas, que acreditavam na

possibilidade de manter um diálogo maior com a instituição, posto que, em alguns

governos, conforme nos explica Lenine:

não existia uma forma de estabelecer o diálogo sobre qualquer aspecto [...]

a gente tinha o problema que era relacionado a todos os projetos que a

62

Francisco Gregório da Silva Filho, acreano que saiu para estudar no Rio de Janeiro. Servidor público federal do quadro da Fundação Biblioteca Nacional, vinculada ao Ministério da Cultura. Veio assumir a gestão da FDRHC no governo de Flaviano Melo (1986-1990). 63

Entrevista com Antônio Alves, realizada em 27 de dezembro de 2010. 64

Entrevista com João Petrolitano, realizada em 11 de novembro de 2010.

Page 72: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

71

gente tentava dialogar. Porque o grande problema do poder público era o

problema do diálogo [...] e esse permanece até hoje.65

Para Antônio Alves, a proposta de uma nova Fundação era “para trabalhar

com a cultura num sentido mais amplo, sem ter que se restringir à função de apoio

às artes”.66 Nessa direção, a Fundação Elias Mansour seria uma espécie de

“renovação” de uma velha Fundação que havia sido sucateada:

A Fundação velha e a nova permaneceram convivendo. Acho que a

Fundação Elias Mansour passou a ser quase um organismo gerenciador da

velha Fundação Cultural, porque os dirigentes pertenciam a FEM, e os

funcionários a FDRHCD. Então, ela foi como um organismo que revitaliza as

funções da Fundação Cultural. Acho que no final das contas a FDRHCD

passou a ser uma espécie de cavalo e a FEM o cavaleiro.67

A metáfora usada no depoimento de Alves é elucidativa de que a criação da

FEM não foi suficiente para promover as mudanças desejadas, na área da cultura no

Acre. A Fundação Elias Mansour, segundo ele, “retornou às funções básicas

anteriores, que eram de apoio às artes e realização de eventos artísticos,

principalmente”.68 O apoio às artes parece não ter atingido as expectativas de trilhar

novos caminhos.

Em sua reflexão sobre o passado recente, o artista plástico Dalmir Ferreira

faz a seguinte observação:

Todo o primeiro mandato não foi feito absolutamente nada, que, inclusive,

depois eu falando com o Jorge, eu disse: Jorge a cultura ficou de fora do teu

governo. - Ele disse: Sim, nós tínhamos outras prioridades, mas nesse

segundo mandato (Isso foi quando ele foi candidato para o segundo mandato)

e, ele disse: Nesse segundo mandato nós vamos fazer tudo, tudo que nós

deixamos de fazer. E, Infelizmente, hoje o Binho está entregando, e,

justamente por isso a gente tá brigando ainda, porque as poucas coisas que

fizeram foi aprovar leis que a gente estava perseguindo; que nos asseguraria

o funcionamento legal das instituições e que esse, aliás, tem sido o grande

65

Depoimento de Lenine Barbosa de Alencar, Presidente da Federação de Teatro do Acre (FETAC), realizado em 17 de novembro de 2010. 66

Depoimento de Antônio Alves a autora, realizado no dia 27 de dezembro de 2010. 67

Depoimento de Antônio Alves a autora, realizado no dia 27 de dezembro de 2010. 68

Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010.

Page 73: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

72

problema das instituições de cultura no Acre. Elas não têm uma sustentação

legal e fica fácil pra qualquer um desses transeuntes do poder, que chegam

ao cargo de governador e diz: não, não, isso não presta. Aí manda fechar e

acabou. E como as coisas não têm uma estrutura, um alicerce jurídico, não

tem algo que sustente, normalmente são fechadas e descartadas.69

A necessidade de uma estrutura jurídica regularizada para assegurar a

manutenção do patrimônio cultural passou a se constituir como uma questão

importante. Com a criação da FEM e do DPHC, a Lei 1.14570 de 1994, que dispõe

sobre o tombamento de Bens Culturais, no Estado do Acre, foi reformulada abrindo

espaço para o surgimento de uma nova Lei Estadual, em setembro de 1999 (Lei nº

1294), que instituiu o Conselho de Patrimônio Histórico e o Fundo de Pesquisa e

Preservação. Fundo este que até hoje não foi repassado, “porque nunca foi

regulamentada a arrecadação regular, que deveria ser um tanto percentual do

orçamento do Estado repassado regularmente”.71 O fundo que deveria subsidiar

ações culturais ficou sobrevivendo de repasses do gabinete para atender aos

eventos de comemoração dos centenários, como explica Alves,

o governo então mantinha repasses, principalmente, pelo interesse que o

governo tinha na época na comemoração dos centenários que aconteceram

naquele período: Centenário da Revolução Acreana, Centenário do Tratado

de Petrópolis. Tinha toda uma série de eventos que estavam completando

cem anos [...]72

Acompanhando as injunções de diferentes grupos em atuação na arena

cultural acreana, é possível perceber a inegável insuficiência e dependência

orçamentária, fator que corrobora para que as ações da área cultural permaneçam

restritas aos interesses governamentais. Nas reflexões de muitos dos entrevistados,

que, também, traduzem suas participações no campo do fazer cultural, o patrimônio

se encontra sob a custódia legal do estado, tornando evidente que muitas ações da

instituição, incluindo a museologia, não ficam fora do âmbito político e ideológico. Ao

contrário, o Estado é quem dita às orientações que devem ser seguidas.

69

Dalmir Ferreira, entrevista realizada em 11 de novembro de 2010. 70

Lei nº 1.145, de 21 de novembro de 1994. Institui o Conselho de Patrimônio Cultural e cria o Fundo de Amparo, Preservação e Restauração dos Bens Culturais do Estado do Acre. 71

Entrevista com Antônio Alves, realizada em 27 de dezembro de 2010. 72

Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010.

Page 74: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

73

No caso da Fundação Elias Mansour, que deveria gerenciar e ser

responsável direto pela promoção de debates e outras ações relativas a datas

celebrativas, por exemplo, torna emblemático perceber que, nos anos de construção

do mito da “acreanidade”, a mesma foi reduzida à condição de órgão executor e

pagador dos interesses do Gabinete Civil que, por sua vez, ficou responsável pela

direção das programações dos eventos. Na avaliação de Antonio Alves,

o governo deu bastante importância a esses eventos, na comemoração

deles, na simbologia desses eventos, e o órgão que deveria gerenciar as

promoções relativas a esses centenários seria a Fundação Cultural, a

Fundação Elias Mansour, o seu Departamento de Patrimônio Histórico e o

Conselho de Patrimônio Histórico. Mas, a importância política, digamos

assim, desses centenários fez com que o governo passasse boa parte do

gerenciamento dos eventos para o gabinete civil, e a fundação ficou mais

como, enfim, um executor das coisas e um organismo pagador das coisas,

mas a definição do que deveria ser feito ficou bastante influenciado pelo

interesse do gabinete, no assunto. Acho que é um interesse legítimo e que

deveria realmente existir, e foi um acerto do Jorge Viana dar importância a

essas datas e investir nelas e todo prestígio do governo, a atenção do

governo, mas acho também que muitas outras iniciativas poderiam ter sido

tomadas pela Fundação especificamente, e que muitas vezes por falta de

recursos e porque os recursos estavam prioritariamente destinados aos

eventos não definidos diretamente pela fundação e o pessoal da fundação

estava destacado para trabalhar nessas coisas, muitas vezes a gente

deixou de realizar coisas importantes, mas enfim acho que isso também não

foi um prejuízo grande e deu pra fazer um trabalho que eu acho

satisfatório.73

Antonio Alves já não fala do lugar em que se encontrava quando diretor-

presidente da FEM. Nesse sentido, sua interpretação, sob o peso do presente,

desnuda o quanto aquela fundação de cultura passou a ser mera agência promotora

de um discurso regionalista. Tal discurso acionou uma reelaboração do passado

para projetar uma versão de história regional. Sob um princípio teleológico,74 a

versão histórica selecionada deu origem e estímulo à retórica da “acreanidade”,

conduzindo a uma interpretação de unidade sobre as descontinuidades em um

73

Entrevista com Antônio Alves, realizada no dia 27 de dezembro de 2010. 74

Esse princípio organizador se baseia na origem e causalidade.

Page 75: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

74

trajeto de “acontecimentos”, onde as narrativas passaram a ser a expressão do

“real” e cristalizadoras de uma determinada memória.

O ponto culminante desse condicionamento foi durante a programação do

centenário da “Revolução Acreana” ou da “Guerra do Acre”, como preferem

historiadores bolivianos. Para contribuir com os sentidos de unidade em torno desse

cristalizado “acontecimento”, vários artigos foram publicados em revistas produzidas

e organizadas pela FEM, e no Jornal Página 20, fundamentalmente, na coluna “O

Acre é Cem”, de autoria do chefe do Departamento de Patrimônio Histórico e

Cultural, entre os anos 1999-2004, Marcos Vinícius Neves.

Na proporção em que essa discursividade ia ganhando novas formas, com

suas representações e construções, o discurso da “acreanidade” passou a ser

assimilado como “natural”, e não como uma representação social, “um produto

social, mutável e irregular” (BURKE & PORTER, 1997, p. 240).

Os temas escolhidos para caracterizar um tipo regional foram massivamente

divulgados e seus efeitos persuasivos tiveram vários suportes: publicação de

revistas e livros, realização de eventos e exposições, criação de museus, memoriais

e salas memórias. A visão síntese do passado de glória, narrado pelo recorte de

uma determinada versão histórica, elegeu, em primeiro lugar, o mito da “Revolução

Acreana” como argumento discursivo para justificar a coesão imaginária da

sociedade acreana. O mito fundador conceituado por Chauí “é aquele que não cessa

de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e

ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição

de si mesmo” (CHAUÍ, 2001. p.9).

O mito da “Revolução Acreana” passou a ser amplamente divulgado,

principalmente, durante o período de celebrações dos diversos centenários que o

rodearam: 1999, Estado Independente do Acre; 2000, Brasil 500 anos; 2002,

“Revolução Acreana” e 2003, Tratado de Petrópolis. Essas datas foram marcadas

por uma intensa propaganda oficial, pasteurizando um passado idealizado pelas

consagrações e projetos políticos do presente.

Em todas elas, a ideia de “Revolução Acreana”, segundo os apologistas da

“acreanidade”, marco de “nascimento do Acre brasileiro”, permeou por todas as

celebrações. Acontecimento orquestrado pelo tom pastel do “Governo da Floresta”,

essa “revolução” mitificada passou a funcionar como uma metáfora para outras

Page 76: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

75

histórias e memórias que foram sendo produzidas no presente por uma ideologia

ufanista de valorização de “heróis”, personagens e símbolos.

Para Walter Benjamin, em célebre passagem de suas Teses sobre a

história,

articular historicamente o passado não significa conhecê-lo „como ele de

fato foi‟. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela

relampeja no momento de um perigo (BENJAMIN, 1993, p.224).

Partindo dessa premissa, ressalvo, mais uma vez, que toda narrativa do

passado acontece em um tempo presente e, uma vez que essa construção é feita

no presente, trata-se de uma visão de quem relata, e não dos “fatos” como

aconteceram. Isso significa dizer que foi escolhida uma determinada dizibilidade

que selecionou seus signos, personagens, imagens, enunciados e mito de origem,

criando através das diversas linguagens elos e conexões de sua criativa

discursividade totalizadora, marcadamente ideológica.75

A “identidade acreana” que se inventava era a do homem que “amava e

lutava por sua terra”, reconhecendo a floresta como seu “lugar de viver”, razão pela

qual era necessário preservar suas tradições. A produção dessa “identidade”, numa

visão romântica de apego à natureza, foi gestada pela re-atualização de uma visão

histórica seriada, servindo para fornecer uma sugestiva conexão no sentido de se

projetar uma ideia de “história em progresso”, cujo viés triunfalista impede de se

pensar em outras alternativas.

O encadeamento das versões apresentadas não foi uma produção inocente

e, sim, impregnada de intenções e subjetividades, articulando temporalidades e

manifestando-se a partir de limites codificados pelos interesses do governo

estadual. Sob o verniz do incolor e do inodoro, a narrativa da “epopéia do acre

brasileiro” suavizava os conflitos entre seringueiros, indígenas e patrões para

ressaltar a bravura, determinação, coragem e “amor a terra”. No entanto, no

panteão do discurso midiático, o “Governo da Floresta” elegeu, como personagens

desses atos “heróicos” – de bravura, determinação, coragem e “amor a terra” –, as

figuras de Plácido de Castro, Guiomard dos Santos e Chico Mendes, que, agora,

75

Para Chauí (2006, p.21), o termo ideologia aqui utilizado significa sistema abstrato de representações, normas, valores e crenças dominantes que invertem a realidade, produzindo uma universalidade e uma unidade ilusória, que ocultam a divisão social de classes.

Page 77: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

76

apareciam como protagonistas do mesmo projeto político do qual Jorge Viana se

apresentava como o legítimo herdeiro.

No corredor dessa “linha de evolução” de “personagens” e “fatos” históricos

reificados, o governador do “novo Acre” se apresentava como o único capaz de dar

continuidade ao processo de “Revolução Acreana”, iniciada cem anos antes.

Projetando-se como “herdeiro” de todos os que já venceram, Jorge Viana,

reafirmava o quanto a “identificação com o vencedor”, sempre concorre para

beneficiar aquela pessoa ou grupos de pessoas que, em determinado contexto

histórico, se torna “detentor do poder” (BENJAMIM, 1993, p. 157).

Não obstante, o caminho traçado pelo governo pretendeu conciliar o

discurso da “tradição” com o discurso da “modernidade”. Por ele, o Acre deveria se

“modernizar” sem perder seu caráter regional. Na apresentação de uma das revistas

publicadas pela FEM, com o título “Galvez e a República do Acre”, o governo

anunciava o tipo de projeto que pretendia por em ação no Estado:

Nosso projeto é mostrar que é possível viver na floresta sem destruí-la,

aproveitar seus recursos com sabedoria, apontando o caminho do novo

tipo de desenvolvimento que a humanidade procura. Uma sociedade da

floresta, juntando a tradição e a modernidade, o passado e o futuro, eis o

que podemos ser.76

Essa conciliação da “tradição” com o discurso de “modernidade” pretendia

criar uma valorização cultural para legitimar as intervenções do poder público. A

política recorria à construção de um imaginário para o consentimento e adesão da

população, pela via cultural, na construção de uma auto-imagem do Acre e dos

acreanos.

Foi essa a construção discursiva que regeu o conjunto de intervenções

urbanas, no Acre dos anos 1999-2006. O discurso da “identidade acreana” nomeou,

marcou e projetou suas representações com intensa força na paisagem urbana que,

serviu como o mais eficaz instrumento de “normalização” do discurso da

“acreanidade”.

Naquela conjuntura de início de uma “nova era”, a retórica do

“desenvolvimento”, “progresso”, “bem-estar” e “modernidade” retornou à cena

76

Trecho da apresentação da Revista do 1º Centenário do Estado Independente do Acre- “Galvez e a República do Acre”, assinada pelo governador Jorge Viana.

Page 78: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

77

política do Acre, como cimento inquestionável para provocar “consensos”.

Reacendendo a chama dos “fatos” históricos idealizados, o governo estadual tratou

de desenhar a “cidade ideal”, impondo padrões estéticos de caráter monumental e

de embelezamento, para apresentar uma imagem de cidade “moderna”. Era essa, a

tônica presente nas obras que foram executadas ou projetadas para alterar a

paisagem do centro de Rio Branco.

Não por acaso, o cenário criado era composto por grandes avenidas,

palmeiras imperiais, parques, pontes, praças; fachadas coloridas e forte iluminação a

irradiar uma aparência estimulante de cidade “ideal” e atraente. O Acre parecia

ressurgir como um sonho, um “lugar nobre”. Nesse mesmo diapasão foram criados

ou recriados os “lugares de memória”, dos quais o Palácio Rio Branco encontra sua

expressão máxima.

Nesse re-ordenamento a política de patrimônio histórico e cultural do Acre

fez conhecer uma de suas faces, mostrando que os significados sociais do

patrimônio cultural exercem grande eficácia simbólica na construção social dos

lugares.

O elemento de mediação de toda a “febre desenvolvimentista” do “novo

Acre” e do mito da “acreanidade”, foi a imprensa escrita, eletrônica e televisiva, que

exerceu significativo papel na difusão de representações que passaram a fabricar e

a ampliar sentidos. Não era, simplesmente, uma questão do formato dos

enunciados, mas das condições culturais e políticas de produção das

representações e estratégias de “normalização” dos produtos veiculados por

imagens, palavras e sons. Nesse sentido, a imprensa é uma fonte poderosa e

inesgotável de produção e reprodução de subjetividades, evidenciando sua

sofisticada inserção na rede de poderes que criam as sujeições do presente.77

No que se refere à produção de ideais identitários, no contexto temporal

abrangido por esta pesquisa, o trabalho realizado pelos grupos que se manifestavam

por intermédio da mídia, procurou cumprir com eficácia a função de massificar

generalizações para a integração social dos indivíduos à “comunidade imaginada”

dos “nascidos no Acre” e dos que “vivem no Acre”.

77

GREGOLIN (2007). A autora faz uso de Foucault para dizer que a subjetividade diz respeito às práticas, às técnicas, por meio das quais o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de “verdade”.

Page 79: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

78

A produção de textos e imagens trabalhou na difusão dos referenciais de

uma memória histórica, em que a linguagem construiu as narrativas e os discursos

para viabilizar a adesão emocional das pessoas às coisas que elas precisavam

aceitar, como consumidores em um supermercado. Nesse aspecto, em se tratando

da produção de representações midiáticas, escolhi desenvolver uma reflexão a partir

de dois jornais locais: o Página 20 e o O Estado do Acre.

O Jornal Página 20, foi criado por Antônio Stélio e depois adquirido por

pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores. Começou a circular semanalmente a

partir do dia 05 de março de 1995. Sem possuir assinantes, a primeira tiragem de

1.000 exemplares, foi toda vendida. Na época a tiragem dos exemplares era

pequena, porém, em 1996 - declarado oposição ao governo de Orleir Cameli (MDB)

–, o jornal obteve maior visibilidade, passando a ser publicado diariamente.

Observando a trajetória desse jornal, percebe-se que, por seu caráter oposicionista

ao governo de Orleir Cameli, o Página 20 foi auto-nomeado, por seus editores, como

o “galinho bom de briga”.

Com o lema “Um jornal para pessoas inteligentes que sabem e gostam de

ler” sua editoração se propôs a trabalhar com um perfil mais cultural e político. Sem

explorar desastres e acidentes, embora tenha feito cobertura nas delegacias durante

algum tempo, o jornal Página 20 não possuía página policial. Quando divulgava

notícias oriundas dessas delegacias, publicava-as somente nas capas, como forma

de denúncia e não como suítes,78 ou seja, não explorava as tramas policiais.

Em formato de tablóide, o Página 20, oriundo da iniciativa privada, visando

fins lucrativos tem como maiores clientes, a Prefeitura Municipal de Rio Branco e o

Governo do Estado, prestando, ainda, serviços ao Governo Federal. A tiragem

diária do jornal era, em média, de 1.500 exemplares semanais e 3.000 exemplares

aos fins de semana. A venda desses exemplares era realizada em todos os

municípios acreanos. Atualmente, sua difusão via internet tem contribuído para a

redução da produção de exemplares impressos.

Em junho de 2002, em várias edições, foram veiculadas notícias em

pequenas notas, sobre a restauração e (re)inauguração do prédio do Palácio Rio

Branco, até o dia do evento de sua reinauguração. Depois as notícias tomaram

conta da primeira página. As chamadas de capa e os espaços privilegiados, dados

78

O termo suíte significa seqüencia de um mesmo assunto visando sua exploração junto aos leitores.

Page 80: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

79

às matérias e propagandas oriundas da Secretaria de Comunicação Social do

Governo, que passou a controlar tudo o que era veiculado nesse e em outros

órgãos de imprensa, dão uma dimensão do quanto “ganhar a guerra da mídia”

passou a fazer parte das prioridades do governo. Nesse caso, de identificar os

membros da sociedade acreana ao “novo lugar de memória”, ao seu governante e

à política de valorização de “resgate” de uma história acreana.

Figura 5 - Manchete do Jornal Página 20, 13 de junho de 2002

Fonte: Museu da Borracha

A divulgação da matéria, sobre a re-inauguração do Palácio Rio Branco,

publicada no dia 13 de junho de 2002, é sugestiva para se pensar em dois

acontecimentos: O primeiro, “É hoje 13”, direciona-se para a ação de um tempo

presente que nos leva a pensar de onde emana o poder que realiza a ação de

“entregar” à população o Palácio Rio Branco. A data do dia 13 é indicativa do

número do Partido dos Trabalhadores (PT). A imagem fotográfica do prédio tem uma

posição privilegiada, com o ângulo de baixo para cima a imagem destaca a

grandiosidade dessa obra arquitetônica, possibilitando uma visão grandiosa desse

monumento como objeto-símbolo da “recuperação” do patrimônio histórico acreano.

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80

O segundo direciona-se para um tempo passado, identificado por

referenciais de exaltação cívica, pois a (re)inaguração faz parte da comemoração do

centenário da “Revolução Acreana” (2002-2003) e da programação do 40º

aniversário do Estado.

Os jogos simbólicos usados pela imprensa não são ingênuos, e, assim,

elementos dispersos se coordenam e vão traduzindo outros significados, como a

exemplo do convite feito à população, divulgado no jornal Página 20.

Figura 6 - Jornal Página 20, 12 de junho de 2002

Fonte: Museu da Borracha

O convite faz referência a diversos signos que nos permitem fazer uma

leitura associativa entre representações de momentos distintos que se articulam

para criar uma imagem do que deve ser valorizado no momento em que se

(re)inaugura o palácio do governo. Em primeiro plano aparece com traços fortes e

marcantes o desenho do palácio acompanhado de uma marcação temporal (1929 –

2002). Esses são os marcos de “construção” e “revitalização” da obra que podem

ser “lidos” como dois momentos de “renovação” do Acre e empreendimento,

característico das intenções “modernas” de Hugo Carneiro (1929)79 e de Jorge Viana

(2002)80. A justaposição de momentos históricos distintos, porém, unidos em um

discurso do presente é uma tentativa de projetar no imaginário coletivo a ideia de

79

Hugo Ribeiro Carneiro foi nomeado para se o governador do Território do Acre pelo Presidente da República, através do Decreto de 13 de abril de 1927. 80

Jorge Viana foi eleito governador do Estado do Acre (1999-2002) e re-eleito em 2003.

Page 82: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

81

continuidade de um projeto “modernizador” inspirado nas ações do ex-governador

Hugo Carneiro.

A “revitalização” do Palácio, em 2002, acrescida de sua nova função, como

referencial de uma “cultura acreana”, demonstra o quanto esse monumento foi

discursivamente produzido no imaginário social como símbolo de poder e ruptura

com o “atraso” e em prol do “progresso”. Ele foi (re)significado, ressurgindo no ano

de comemoração do centenário de uma “Revolução Acreana”, moldada ao gosto das

leituras e representações do presente, para construir um forte sentimento de

patriotismo em grupos de pessoas que, nos diferentes tempos históricos, não tinham

nenhuma relação. “Ressurgia, também, como símbolo de uma “nova fase” para o

Acre, de uma “nova revolução”, de uma “nova história”, como podemos depreender

da seguinte fala: “A obra de restauração do Palácio é o mais importante da nova

história do Acre que se inicia neste século” (Jornal Página 20, 14 de junho de 2002,

p. 12).

O que se evidenciou, ao longo da pesquisa, é que o discurso político de uma

“nova história” para o Acre foi constituindo o cenário para classificação e valorização

de bens culturais, proporcionando uma visão de como a sociedade pode se

apropriar de uma história do passado, e, fundamentalmente, do presente, através de

um patrimônio comum à “comunidade acreana”.

O patrimônio passa a ser usado como força política, como lugar de produção

e reprodução de subjetividades que cria as sujeições necessárias para controle e

manutenção do poder vigente. Para cumprir essa função, como forma de assegurar

seu reconhecimento como tal, foi necessária uma divulgação maciça de imagens e

textos. Nisso, o Página 20 exerceu significativo papel.

As técnicas utilizadas pela imprensa confabularam para a criação simbólica

da “identidade acreana”, como indica o enunciado a seguir:

A sede do governo acreano tem uma peculiaridade que a torna singular

entre as demais. Ela não se constitui apenas de um prédio governamental

onde são tomadas as resoluções que definem os rumos do Estado, ela faz

parte da vida de um povo, da infância de uma gente. É a identidade do povo

acreano (Jornal Página 20, 14 de junho de 2002, p. 15)

Desse modo, a linguagem, mediante o enunciado propicia uma

representação na qual o Palácio Rio Branco passa a ser interpretado como palco e

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82

depósito de uma tradição, pretendendo estabelecer uma relação natural entre esse

monumento e a suposta identidade, evocada pelo discurso.

Nesse processo de fabulação para a formação de um imaginário, não

somente o Página 20, mas, a quase totalidade dos jornais locais foram primordiais

em suas articulações discursivas, reorganizando os signos sob a espetacular visão

de uma vida cotidiana em que o “patrimônio recuperado” funcionava como recurso

para configuração de valores tradicionais e associados com as imagens dos

monumentos:

Figura 7 - Jornal Página 20, 14 de junho de 2002

Fonte: Museu da Borracha

Os dispositivos utilizados no jornal contribuem para a construção de uma

visão enraizada na ideia de uma “cultura local”, apresentando em primeira escala a

bandeira do Acre, ao lado da chamada da matéria “O palácio é do Povo”. Essa

afirmação é acompanhada de uma “vontade de verdade”, no dizer de Michel

Foucault, pretendendo estabelecer uma filiação harmônica entre poder

governamental e o “povo”. Esse vocábulo busca criar uma identificação coletiva,

inserindo os sujeitos em uma “comunidade imaginada”. A bandeira do Estado do

Acre aparece como símbolo de valorização cívica; o Palácio Rio Branco, como

Page 84: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

83

símbolo do governo e da recuperação do patrimônio; a Fonte Luminosa, como

recuperação do patrimônio histórico e o retorno de uma fase de caráter “moderno” e

de “desenvolvimento” urbanista, diretamente vinculada ao período do governo de

Guiomard dos Santos, pois a imagem compõem elementos arquitetônicos também

desse governo.

A imagem revela os signos utilizados para, supostamente, criar as

conformidades necessárias às pretensas representações identitárias. Nessa direção,

o discurso continua associando à ideia de unidade e de continuidade da nação ao

patrimônio. Isto porque sua representação alude a uma origem e essência,

aparecendo como algo que sempre existiu, e não como produto de uma seleção

feita com objetivos políticos e estéticos específicos.

Essa re-atualização permite-nos apreciar determinados desdobramentos do

jogo simbólico que pretende indicar a direção interpretativa entre o passado

“glorioso” e o presente, que se quer “revolucionário”. Nessa direção interpretativa,

determinados elementos acompanham a confecção da imagem do Acre como se o

mesmo vivesse um processo revolucionário, proporcionado pelas ações do governo

da Frente Popular.81

81

A Frente Popular do Acre é formada pela integração do PT, PCB, PC do B, PDT e PV, liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT).

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84

Figura 8 - Jornal Página 20, 06 de agosto de 2002

Fonte: Museu da Borracha

Na manchete o “Acre é 100, acreanos comemoram Centenário do início da

Revolução”, o Palácio Rio Branco e o Obelisco, são usados na linguagem visual com

a função de reunir algo que possa aludir a uma origem. As imagens são

incorporadas como representação de uma “nova fase” que pode ser interpretada

com a intenção de levar o receptor a pensar em uma “fase moderna”, com a

recuperação do Palácio, e “revolucionária”, com a presença do Obelisco da

“Revolução”.

O apelo ao rito foi marca constante nas representações públicas do

“Governo da Floresta”. Sua utilização conferia força ao ideal que a publicidade do

governo queria massificar. Nessa direção, são interessantes as palavras de Canclini,

para quem,

é raro que um ritual aluda de forma aberta aos conflitos entre etnias, classes

e grupos. A história de todas as sociedades mostra os ritos como

dispositivos para neutralizar a heterogeneidade, reproduzir autoritariamente

a ordem e as diferenças sociais (CANCLINI, 2008, p. 192).

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85

A comemoração do centenário do início da “Revolução” serve como apelo

para renovar a solidariedade afetiva, dissimulando com seu rito de comemoração as

contradições da sociedade. O rito faz parte de uma rede de encenações imaginárias

que determina o que deve ser lembrado e valorizado e, nesse sentido, o patrimônio

torna-se ator principal, por sua capacidade de gerar representações que possam ser

apropriadas pela sociedade, motivo que o leva à cena em atos comemorativos,

indicando assim, sua opção pontual e não aleatória por aqueles que o chamam a

ressoar em um dado momento.

Outro jornal impresso, escolhido para análise, é O Estado do Acre. Chama a

atenção que a própria denominação oficial desse jornal, que sugere uma conotação

de território nacional, gerenciado política e administrativamente por um governo, já é

indicativa de onde emanam as decisões de sua produção, bem como seu

engajamento político. Não obstante ser editado pela Assessoria de Imprensa do

governo, O Estado do Acre, passou a ser publicado, semanalmente, desde o mês de

janeiro de 2001, segundo ano do primeiro mandato do governador Jorge Viana.

Coordenado pelo jornalista Oli Duarte, nos anos de 2002 a 2006, o jornal

funcionou como órgão oficial de divulgação das ações do governo, com vistas a

“prestar contas com a população local” das ações do mesmo. Mais que “prestação

de contas”, o jornal procurava dar evidência às ações do governo para conferir-lhe

maior legitimidade diante da sociedade.

Sem compromisso comercial e com tiragem semanal de 20.000

exemplares, esse jornal era distribuído gratuitamente para órgãos públicos de todo

o Estado: escolas, postos de saúde, bibliotecas e outros. Em Cruzeiro do Sul, sua

distribuição era feita pelo escritório de governo. Nos demais municípios, em locais

de referência como a Rádio Difusora, farmácias e comércios. O esquema de

distribuição e sua gratuidade demonstram o interesse do governo em atingir o

maior número possível de pessoas para consolidar sua imagem de governante

empreendedor.

Com setenta e cinco edições publicadas, incluindo as edições especiais, o

jornal passou por quatro modificações em seu layout, objetivando criar um formato

capaz de atrair ainda mais o público leitor. Seu projeto gráfico foi pensado para

estimular a leitura com textos curtos e linguagem atrativa, valorizando, sobretudo,

as imagens.

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Em sua edição de nº 63, a imagem utilizada pela equipe editorial na

diagramação da primeira página, nos oferece um arquivo sensível de imagens

carregadas de códigos importantes, falam implicitamente por meio de um jogo de

linguagem tão sedutor quanto as palavras. Com cara de revista, a montagem da

cena decide o que é importante e o que merece atenção.

Figura 9 - Jornal O Estado do Acre, 17 a 23 de junho de 2002

Fonte: Museu da Borracha

A evocação subliminar, sob o título “Resgate da dignidade de um povo, o

maior monumento da história acreana, símbolo do amor e orgulho pela nossa terra,

é entregue de volta à população numa festa que reuniu mais de três mil” (O Estado

do Acre, 2002, p. 01), além de pretender estabelecer uma relação do prédio

monumental com as administrações de governos anteriores, colaborando com a

ideia de que sua depredação significava o descaso por parte daqueles com o

Estado, destina-se à produção e difusão de sentimentos cívicos, honra e triunfo

acionados pelo discurso de “resgate”.

Observa-se na imagem que a fotografia noturna ganha fundamental

relevância. A iluminação na imagem do prédio, rodeada de fogos de artifícios,

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87

realça a arquitetura imponente demonstrando força, poder e brilhantismo. As

pessoas que comemoram e aplaudem, parecem completamente desvinculadas da

cena, demonstrando a montagem da imagem, porque o que se quer afirmar é a

aceitação e adesão entusiástica da população frente à política adotada pelo

governo. Nessa direção, tanto a imagem visual agradável, colorida, emotiva,

espetacular, bem como os símbolos constituem técnicas, assim, “os textos da mídia

são verdadeiros dispositivos por meio dos quais instalam-se representações”

(GREGOLIM, 2008 ).

A construção imagética atende a intenção de espalhar uma carga emotiva

de modo que atinja o público receptor levando-o a um estado de aceitação e

satisfação que impossibilite reações críticas.

Na encenação desse tipo de espetáculo, tratando-se de patrimônio histórico

acreano, o Palácio Rio Branco passou a ser a matéria-prima na produção

discursiva de uma identidade acreana propagada pela imprensa jornalística:

Depois de anos de depredação e abandono, temos de volta o nosso

palácio. Símbolo maior do que fomos e do que somos. Os símbolos são

vitais para os seres humanos. Sem eles, não encontramos nossa identidade

[...] o palácio dos acreanos simboliza o recomeço da reconstrução da nossa

alma de filhos desse chão (Jornal O Estado do Acre, 17 a 23 junho de 2002,

p. 2).

O enunciado acima estabelece uma relação direta entre a “revitalização” do

palácio e a valorização de uma “identidade”. Reside aqui um esforço conjunto de

homogeneização do discurso, com intenção de deslocar uma ideia de identidade do

plano abstrato para o real espelhado no monumento.

O trabalho desenvolvido pelo jornal, procurava cumprir a função de produzir

práticas de subjetivação que são postas em ação, cujo teor simbólico vai atuando

como armadilha, no sentido de construir uma imagem do governo e de uma

representação histórica em harmonia, de maneira que “todos” pudessem se

identificar com “acontecimentos” do passado e do presente, simulados na visão

excepcional do governador como homem público, líder que condensa o passado do

Estado, encarna o presente e traduz consigo os traços do futuro.

A imagem do dirigente político empreendedor e preocupado com o

patrimônio dos acreanos estava sendo construída com os traços que os

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88

caracterizava nas matérias divulgadas: “Jorge Viana recupera o patrimônio”, “a

restauração do Palácio é mais um marco na resposta de comprometimento do atual

governo com a história de seu povo”, “o Acre pode se orgulhar hoje não somente

porque está agora no caminho certo, rumo ao desenvolvimento e à modernidade. O

Acre pode e deve se orgulhar porque hoje tem um verdadeiro líder” (Jornal O

Estado do Acre, 20 a 26 maio. 2002, p. 2).

A expressão da última frase: “O Acre pode e deve se orgulhar porque hoje

tem um verdadeiro líder”, encontrada no editorial do jornal O Estado, evidencia o

esforço de criação da imagem do homem excepcional, fadado ao triunfo, o

“verdadeiro líder”.

Na obra O Estado Espetáculo, Schwartzenberg discute o papel

desempenhado pelos dirigentes do estado como empresa de espetáculos, onde a

política se faz pela encenação:

A política, tal como o espetáculo, tem os seus maquinistas. Para plantar

cenários e ajustar as trucanagens. Pertencem esses técnicos a um ramo

em pleno desenvolvimento: à indústria da persuasão. Para não dizer à

indústria do espetáculo político (SCHWARTZENBERG, 1978, p. 215).

A partir dessas considerações, é possível dizer que, não por acaso, o Pagina

20 e O Estado do Acre foram utilizados como instrumentos de mediação, divulgando

ações demonstrativas das atividades realizadas pelo governo, articulando e

conferindo nova roupagem às narrativas de “eventos passados”. Nesse processo,

articularam lugares e símbolos, para conferir maior poder de persuasão e formular a

ilusão participativa, através da exploração de sensações e emoções eficazes no

envolver da população na crença de aspectos singulares capazes de identificá-la na

“comunidade de acreanos” que estava sendo inventada.

As construções do discurso identitário, o jogo de significados e a coerência

de cada texto concorreram para a formação discursiva de uma “identidade acreana”

singular e amplamente divulgada na mídia local. Nessa direção, Guimarães pontua

uma questão que pode explicar o porquê da atuação das empresas de comunicação

na produção de representações:

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89

como é comum nas empresas de comunicação do Norte e Nordeste do

país, os grupos de mídia do Acre, em sua maioria, propriedades de políticos

da região ou de empresários com fortes vínculos com o Estado e com os

mandatários de cargos eleitorais. Em alguns casos, o estabelecimento

desses vínculos segue um rito inicial de hostilidade ao governo até a

subseqüente inclusão da empresa na distribuição dos recursos de

publicidade governamental (2008, p. 37).

A necessidade de sobrevivência financeira dessas empresas de

comunicação subjuga, portanto, a imprensa local aos interesses dos governos,

quando assumem a função de divulgar em suas matérias os projetos, discursos e

imagens da agenda governamental. As representações, afirma Chartier, “são

sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam” (1990, p.17).

Evidenciar as articulações entre as práticas discursivas e a produção dos

sentidos, difundidos pela imprensa, no âmbito de um jogo de relações, implica em

dizer que as noções, os conceitos, os temas e as imagens foram sistematizados

pelos “enunciadores”. Segundo Gregolim (2003), estes “controlam, delimitam,

classificam, ordenam e distribuem” os símbolos, os signos e as falas para dar

sentido ao discurso de uma coletividade, operando assim configurações que

inventam subjetivações para a conformação dos sujeitos, na tentativa de inseri-los

em uma “comunidade imaginada” através do “estilo” e dos “recursos utilizados”

(ANDERSON, 2008, p.12).

Como construtora de imagens simbólicas, a imprensa local participou

ativamente na consolidação do imaginário da “acreanidade”. O discurso dessa

“coletividade imaginada” adquiriu visibilidade por intermédio do papel

desempenhado pelos jornais, nas subjetividades de muitas parcelas da população.

Foram fatores externos, portanto, que produzidos, divulgados e interiorizados pelas

diversas performances da linguagem, com seus dispositivos e capacidade de dar

forma ao pensamento, projetaram construções mentais que circularam e circulam na

“sociedade acreana”.

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90

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre a invenção de uma “acreanidade”, inventada durante os anos

de “Governo da Floresta”, especialmente, 2002-2006, me permitiu penetrar em um

mundo de representações forjadas pela linguagem e materializada em idealizadas

narrativas históricas e “lugares de memória”. Nesse processo de invenção os temas

históricos foram, criteriosamente, selecionados e postos em circulação por meio de

diversos suportes que procuravam criar uma ideia de “evolução” no tempo, sem

abandonar “tradições” de um Acre “como antigamente”.

A representação desse passado construído, para ser cultuado, teve como

referência um mito de origem, intencionando com isso provocar sentimentos cívicos

e criar uma ideia de unidade social. Para isso, o governo contou com a contribuição

de diversas instituições que concorreram na produção e divulgação de seus ideais.

Naquele contexto dos anos 2002-2006, a Fundação Elias Mansour e o

Departamento de Patrimônio Histórico do estado, desenvolveram uma política de

“resgate histórico” e valorização patrimonial de um passado em comum, exerceram

papel de destaque no âmbito do projeto estatal e das lógicas do poder em curso.

Essa política de patrimônio histórico teve uma atenção sem parâmetros em gestões

anteriores, produzindo uma efervescente onda “preservacionista” em relação ao

“resgate histórico” que foi intimamente articulado à produção da “acreanidade”.

Além de divulgar as versões atualizadas de “narrativas históricas” em

revistas, artigos, exposições e eventos, a FEM e o DPHC criaram e revitalizaram

“lugares de memória” que apresentam objetos, imagens e signos compatíveis com

as representações dos temas escolhidos para se pensar em um tipo de homem

regional, possuidor de uma “tradição” de lutas e conquistas, tendo como referencial

uma relação de harmonia com a floresta.

Em meio a toda “febre neo-modernista”, em curso naquele momento, o

Palácio Rio Branco, “revitalizado” como símbolo do Acre e da “acreanidade”, passou

a se constituir como espaço de cerimônias cívicas e das demais liturgias auto-

consagradoras do poder da Frente Popular do Acre (FPA), tendo frente o engenheiro

florestal Jorge Viana. O palácio, símbolo do poder executivo, passou a ressoar um

discurso regionalista acoplado à ideia de “modernidade”, em pauta na retórica

governamental e em destaque na mídia.

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91

O edifício passou a ser palco de teatralização de uma “história regional”,

projetada pelos governantes e apresentada em uma composição museográfica – por

reconhecidos profissionais –, com narrativas e cenários repletos de sentidos,

subjetividades e projetos políticos afinados com a “nova” ordem acreana.

A valorização de uma “cultura regional” não estava alheia ao discurso

político. Muito pelo contrário, estava diretamente ligada aos interesses do governo

estadual que dizia apontar um novo tipo de “desenvolvimento” fundindo o

“tradicional” ao “moderno” numa alquimia que condensava diferentes tempos,

espaços e culturas numa mesma “comunidade de destino”.

Durante a pesquisa, foi ganhando cada vez mais evidência que o

reconhecimento oficial do palácio-monumento, como símbolo de uma “acreanidade”,

inventada e projetada desde o presente, nada tinha de continuidade com as

múltiplas práticas culturais e as tradições amazônicas, como insistiam em anunciar

os porta-vozes oficiais. Não obstante, o próprio edifício do Palácio Rio Branco,

erguido em fins da década de 1920, durante o governo de Hugo Carneiro, expressa

ruptura com tudo o que a antiga sede do governo – feita em madeira – representava.

Ao fazer uma leitura acerca dos períodos de construção, conclusão e

“revitalização” do prédio do palácio, percebe-se que ele se encontrava inserido em

contextos históricos de governos que trabalharam na perspectiva de transformar a

capital acreana em uma metrópole, onde as construções monumentais foram, sem

dúvida, priorizadas. Porém, a representação simbólica desse monumento está

investida implicitamente dos discursos sobre “modernidade” e, nesse sentido,

podemos dizer que ele está imbuído de contradições, demonstrando a movência do

discurso dos que ditam o que é ser “moderno” para as sociedades regionais.

O próprio termo “Palácio” é sugestivo para se pensar no significado que a

obra arquitetônica, em sua produção material, pode traduzir. Na antiguidade palácio

era um edifício suntuoso destinado à habitação das realezas, lembrando, portanto, a

grandeza dos reis, soberania, poder e domínio. O termo é indicativo de tudo o que

esse Palácio-monumento pode expressar, ou seja, o poder e distanciamento das

amplas camadas populares.

Enquanto monumento histórico que tem como objetivo fazer recordar o

passado, o Palácio Rio Branco, transformado em palácio-museu, silencia sobre a

memória de sua fundação, posto que foi erguido com base em um discurso que

tratava as culturas ou os modos de vida dos habitantes da região como repugnantes.

Page 93: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

92

Esse discurso excludente era – e é – entoado pelo dirigente do Poder Executivo, que

regulava, fiscalizava e reprimia em nome da “ordem pública”. A inspiração para sua

“revitalização” fazia ecoar, portanto, não as diferenciadas e ricas tradições das

Amazônias acreanas, mas, os ranços desse discurso de “modernização regional”.

Para um observador mais atento, ao visitar o palácio-museu, fica evidente

que em meio à aparente polifonia, presente em sua atual exposição museográfica, o

Palácio representa muito mais a história de projetos políticos das elites e classes

dominantes do que as histórias e tradições de nossas Amazônias. Não pode ser

considerado, portanto, um símbolo de uma memória afetiva, indispensável para

constituir-se patrimônio de todos, mesmo que isso fosse algo possível, algo

realizável. Trata-se única e exclusivamente, de algo historicamente determinado e,

mais que isso, uma demonstração de forças, na qual o poder público manifesta de

forma concreta o quanto a memória é um campo de lutas e de tensões, como

afirmou Le Goff, e manter seu controle é sinônimo de dominação (1992, p. 426).

Durante anos o Palácio foi designado para ser, exclusivamente, um lugar de

atuação do Poder Executivo, que mantinha certa relação de distanciamento com a

população. Relação essa, regida por regras de atendimento, com dias e horários

marcados para audiências públicas. Transformá-lo em um museu, “recuperado” e

aberto à visitação pública, consistiu numa tentativa de criar uma ideia de

proximidade do Poder Executivo com a “sociedade acreana”. No entanto, abrir as

portas do palácio, reordenar a função dos espaços internos do edifício e montar uma

exposição que traz em si elementos para motivação e assimilação do discurso de

uma “identidade regional”, não eliminou o distanciamento que existia, posto que o

“povo” continua sem entrar naquele “espaço de poder” e a utilizar o prédio apenas

como paisagem para passeios e fotografias aos finais de semana, como foi possível

perceber no processo da pesquisa.

Observa-se que a política de preservação do “patrimônio histórico” faz parte

de uma complexa rede de formação discursiva de construção de uma “identidade

acreana”, perante a qual as narrativas históricas e a memória, previamente

selecionadas e re-significadas, são elementos constitutivos do discurso oficial,

expressando o poder da linguagem em forjar representações coletivas e em manter

a “ordem”, o “controle” e o “poder”.

A atuação dos órgãos de “gestão da cultura” e do “patrimônio histórico”

revela o papel que o patrimônio desempenha no interior dos mecanismos de poder,

Page 94: Palácio Rio Branco- linguagens de uma arquitetura de poder no Acre - Ana Carla

93

especialmente, por atuarem como instrumentos de legitimação de grupos que se

revezam no controle do aparelho estatal. No caso em análise, o discurso

regionalista, erigindo, no plano simbólico, representações de uma comunidade

imaginada, a ação do Estado configurou-se como estratégia de controle social, pois

o discurso de valorização de uma “tradição” e de uma “identidade acreana” teve por

objetivo ocupar os espaços vazios de uma prática política que não foi capaz de

atender às necessidades e interesses das coletividades locais.

A preocupação em consagrar um monumento como patrimônio de todos os

acreanos apagou marcas importantes das múltiplas experiências sociais. Ao

apresentar essas questões, no presente estudo, o que se busca é lançar outro

“olhar” para essa temática. Um olhar que não seja o do interesse governamental,

ainda, dominante, mas, não hegemônico; um olhar que propicie o suscitar de um

debate que nos permita entender patrimônio histórico como prática social e cultural

de diversos e múltiplos agentes; e que o exercício da cidadania esteja ancorado em

uma memória capaz de afirmar a alteridade e o conflito como dimensões

constituintes da história e da linguagem humana.

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CERVEIRA, T. V.; SILVA, J. C. O sesquicentenário da Independência do Brasil: a escrita de um discurso e a memória como seu fundamento. Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, nº33, Rio, 2009 [ISSN 1981-3384]. Disponível em: <http://www.tempo.tempopresente.org/index.php?option=com_content&view=article&id=5228%3Ao-sesquicentenario-da-independencia-do-brasil-a-escrita-de-um-discurso-> Acesso em: 15 fev. 2011.

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Teses

LEITE, R. P.S. Espaço público e política dos lugares: usos do patrimônio Cultural na reinvenção contemporânea do Recife antigo. 2001. 390 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2001.

MORAIS, M.J. “Acreanidade”: invenção e reinvenção da identidade acreana. 2008. 302 f. Tese (Doutorado em Geografia ) – Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.

Dissertações

BEZERRA, M. J. A invenção da cidade: a modernização de Rio Branco na gestão de Guiomard dos Santos. 2002. 275p. Dissertação (Mestrado em História do Brasil), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Pernambuco, Recife.

CARNEIRO, E. A. O discurso fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no ultimo oeste. 2008. 119 f. Dissertação (Mestrado em Letras, Linguagem e Identidade) – Universidade Federal do Acre, Rio Branco.

GUIMARÃES Jr, I. A construção discursiva da florestania: comunicação, identidade e política no Acre. 2008. 192 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Mediação), Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.

SILVA, F. B. As raízes do autoritarismo no executivo acreano – 1921/1964. 2002, 127 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE.

SOUZA, S. R. Fábulas da Modernidade no Acre: a utopia modernista de Hugo Carneiro na década de 20. 2001, 136 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife/PE.

VIANA, A. P. B. Palácio Rio Branco: o Palácio que virou museu. 2011, 102 f. Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/CPDOC, Rio de Janeiro.

Monografia

LIMA, A. C. C. Entre a Memória Histórica e o Esquecimento: a “re-invenção” do Acre. 2007. 49 f. Monografia (Pós-Graduação em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia) – Universidade Federal do Acre, Rio Branco, 2007.

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Fontes Consultadas:

a) Lei e Decretos

ACRE. Decreto nº 680, de 11 de maio de 1999. Dispõe sobre tombamento do imóvel para o Patrimônio Histórico do Estado e deixa a cargo do Departamento de Patrimônio Histórico da Fundação Elias Mansour a inscrição no livro de tombo, Rio Branco: FEM, 1990.

ACRE. Decreto nº 3.083, de 13 de junho de 2008. Institui a criação do Museu Palácio Rio Branco, Rio Branco: FEM, 2008.

ACRE. Aprova e Institui o novo Plano do Município de Rio Branco e dá outras providências. Lei Nº. 1.611, de 27 de outubro de 2006. Rio Branco: PMRB, 2006. CD Rom.

b) Relatórios

CABRAL, E. Relatório da visitação ao Palácio Rio Branco e Memorial dos Autonomistas. Rio Branco, 2009.

CARNEIRO, H. R. República dos Estados Unidos do Brasil – Governo do Território do Acre. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto de Vianna do Castello Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Rio Branco, 1929.

BESOURO, G. Relatório do Prefeito do Departamento do Alto Acre (1908). In.: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ACRE. Acre: relatórios de governo (1906-19105) – os anos do conflito – v. II, José Paravicini, Cunha Mattos e José Marques Ribeiro. Rio Branco: Tribunal de Justiça do Estado do Acre, 2002. 152 p. 45-109.

c) Vídeo

FERREIRA, Francisco J. Território Federal do Acre. [Documentário-Vídeo]. Produção de Medeiros Filmes. Rio Branco: FEM 1949 “?”. 1 Cassete VHS, 38min. Color.Som.

d) Jornais

(Sem autor). Palácio Rio Branco. Página 20, Rio Branco, 12 jun. 2002, ano VIII, nº 1.844, p. 13.

Da Redação. É hoje, Dia 13! Palácio Rio Branco é entregue à população. Página 20, Rio Branco, 13 jun. 2002, ano VIII, nº 1.845, p. 1, 5 e 16.

NEVES, M. V.; SILVA, M. R. Palácio Rio Branco. Página 20, Rio Branco, 14 jun. 2002, ano VIII, nº 1.846, p. 9-15 e 23.

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(Sem autor). Edição histórica O Acre é 100: acreanos comemoram centenário do início da revolução. Página 20, Rio Branco, 06 ago. 2002, ano VIII, nº 1.888, p.1.

MAIA, Tião. Gratidão eterna: Guiomard e sua esposa serão sepultados como estadistas. Página 20, Rio Branco, 20 set. 2002, ano VIII, nº 1.928, p. 24.

(Sem autor). Ministra Marina Silva inaugura Casa dos Povos da Floresta. Página 20, Rio Branco, 14 abr. 2003, ano IX, nº 2.094, p. 10.

FERREIRA, Edimilson. O Novo Mercado Velho. Página 20, Rio Branco, 8 ago. 2006, ano XII, nº 3.055, p.5.

Editorial. Um verdadeiro líder. O Estado do Acre, Rio Branco, 20 a 26 mai. 2002, ano II, nº 59, p. 2.

(Sem autor). Palácio dos Acreanos: resgate da dignidade de um povo. O Estado do Acre, Rio Branco, 17 a 23 jun. 2002, ano II, nº 63, p. 6, 7 e 8.

O Território do Acre na Administração Hugo Carneiro. O Acre, Rio Branco, 15 jun. 1930, ano 2º, nº 44, p.3.

Semanário Official do Governo do Território Federal do Acre, Republica dos Estados Unidos do Brasil. O Acre, Rio Branco, 08 dez. 1935, ano 7º, nº 306 p. 3.

Órgão Oficial do Governo do Território. O Acre, Rio Branco, 12 set. 1943, ano XIV, nº 711, p1.

e) Revista

VIANA, J. Galvez e a República do Acre. Revista do 1º Centenário do Estado Independente do Acre. Rio Branco, v. Único, 51 f., 1999.

f) Entrevistas

ALENCAR, L. B. Depoimento, 17 de novembro de 2010, Rio Branco/AC. Entrevista concedida a Ana Carla Clementino de Lima.

ALMEIDA, F. Depoimento, 19 de novembro de 2010, Rio Branco/AC. Entrevista concedida a Ana Carla Clementino de Lima.

ALVES, A. Depoimento, 27 de dezembro de 2010, Rio Branco/AC. Entrevista concedida a Ana Carla Clementino de Lima.

PICCOLE, J. Depoimento, 09 de novembro de 2010, Rio Branco/AC. Entrevista concedia a Ana Carla Clementino de Lima.

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SOBRINHO, J. M. Depoimento, 24 de fevereiro de 2011, Rio Branco/AC. E Entrevista concedida a Ana Carla Clementino de Lima.