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PAISAGEM CULTURAL MISSIONEIRA: DESAFIOS PARA A VALORAÇÃO E GESTÃO DO PARQUE HISTÓRICO NACIONAL DAS MISSÕES SEIXAS, ANA LUISA (1); SILVA, ADRIANA ALMEIDA (2) 1. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN. Superintendência do IPHAN/RS. Escritório Técnico Parque Histórico Nacional das Missões. [email protected]; [email protected] 2. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN. Superintendência do IPHAN/RS. Escritório Técnico Parque Histórico Nacional das Missões. [email protected]; [email protected] RESUMO O termo "Paisagem Cultural" traz na essência uma nova visão sobre a relação entre o homem e ambiente no qual está inserido. A expressão estimula também a pensar sobre os patrimônios culturais e as transformações sobre seu entendimento ao longo dos anos. Tendo como base o caso de São Miguel Arcanjo e os demais sítios missioneiros no Rio Grande do Sul, este trabalho tem por objetivo refletir sobre a percepção que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional - IPHAN - teve em relação a estes Sítios ao longo dos anos - o tombamento como Patrimônio Nacional em 1938 de São Miguel; a declaração como Patrimônio Mundial em 1983 do mesmo Sítio; a criação do Parque

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PAISAGEM CULTURAL MISSIONEIRA: DESAFIOS PARA A

VALORAÇÃO E GESTÃO DO PARQUE HISTÓRICO NACIONAL DAS

MISSÕES

SEIXAS, ANA LUISA (1); SILVA, ADRIANA ALMEIDA (2)

1. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Superintendência do IPHAN/RS.

Escritório Técnico Parque Histórico Nacional das Missões.

[email protected]; [email protected]

2. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Superintendência do IPHAN/RS.

Escritório Técnico Parque Histórico Nacional das Missões.

[email protected]; [email protected]

RESUMO

O termo "Paisagem Cultural" traz na essência uma nova visão sobre a relação entre o homem e

ambiente no qual está inserido. A expressão estimula também a pensar sobre os patrimônios culturais

e as transformações sobre seu entendimento ao longo dos anos. Tendo como base o caso de São

Miguel Arcanjo e os demais sítios missioneiros no Rio Grande do Sul, este trabalho tem por objetivo

refletir sobre a percepção que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional - IPHAN - teve

em relação a estes Sítios ao longo dos anos - o tombamento como Patrimônio Nacional em 1938 de

São Miguel; a declaração como Patrimônio Mundial em 1983 do mesmo Sítio; a criação do Parque

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Histórico Nacional das Missões – PHNM - em 2009 juntamente com os Sítios de São Nicolau, São

Lourenço Mártir, e São João Batista; o Registro da Tava, Lugar de Referência para o Povo Guarani

em 2014; a declaração como Patrimônio do Mercosul em 2015; e finalmente a atual discussão sobre

a Paisagem Cultural Missioneira, foco deste trabalho. A própria construção do entendimento sobre o

que seja a Paisagem Cultural das Missões apresenta desafios, uma vez que essa definição deve

contemplar temas até então não aprofundados e buscar compreender a área que abrange, não

apenas a região missioneira do Rio Grande do Sul, mas também outras regiões do estado e de

países vizinhos. Dada à dimensão e a riqueza cultural da região ligado aos diversos processos

históricos ocorridos - ocupação pré-histórica; de grupos indígenas pré-coloniais, em especial os

Guarani; conquista espanhola / portuguesa; sistema missioneiro-reducional; colonização luso-

brasileira; imigração a partir da segunda metade do século XIX - diferentes “paisagens culturais”

poderão ser identificadas, assim como diversas áreas de interesse cultural. Este é o estágio atual da

discussão no IPHAN – buscar identificar em que consiste a Paisagem Cultural Missioneira e, dentro

das Paisagens Culturais existentes nesta região, aquelas que farão parte do Parque Histórico

Nacional das Missões, dado os diferentes recortes temáticos, históricos e socioeconômicos

possíveis. Após a identificação desta Paisagem, é necessário se debruçar sobre a ideia do PHNM e

seu conceito, para que possa haver uma seleção daquilo que é representativo no contexto do Parque

e de seu objetivo, levando em consideração a estrutura e missão do IPHAN, responsável por sua

gestão. Para isso faz-se indispensável identificar quais destes bens culturais relacionam-se

diretamente com o PHNM e sua proposta, e como se dará a gestão dos mesmos. Ademais, é

importante refletir também sobre aqueles bens identificados como de valor cultural, porém não

relacionados diretamente ao recorte do Parque e pensar se cabe ao IPHAN atuar, juntamente com

outros atores, sobre esses bens ou apenas acompanhar a sua gestão. Diante deste contexto, discutir

a Paisagem Missioneira, os recortes a serem feitos para a delimitação e a conceituação do Parque

Histórico Nacional das Missões e sua gestão, tornam-se desafios atuais frente a essa nova realidade

- entender Missões não apenas como os quatro Sítios tombados em nível Nacional, mas sim como

Paisagem Cultural das Missões.

Palavras-chave: Paisagem Cultural; Missões Jesuíticas dos Guarani; IPHAN; Sítios Missioneiros;

Parque Histórico Nacional das Missões.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Introdução

Este trabalho parte da experiência prática e cotidiana de técnicas, ambas arquitetas

urbanistas, do Escritório Técnico do Parque Histórico Nacional das Missões, da

Superintendência Estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –

IPHAN1. O objetivo deste trabalho é propor um debate sobre a identificação da paisagem

cultural missioneira, sua complexidade e seus desafios para os gestores. Cabe a ressalva

de que o foco do trabalho não é aprofundar conceitos e conhecimentos produzidos nem na

temática das Missões Jesuíticas dos Guarani e nem da Paisagem Cultural, mas sim refletir

brevemente sobre como o IPHAN atua na valoração dos sítios missioneiros e os desafios

para a gestão desta paisagem em estudo.

Contextualização

A região das Missões, localizada no noroeste gaúcho, possui a história intimamente ligada

ao início da ocupação luso-espanhola no local, nos séculos XVII e XVIII. Durante estes

séculos, a Companhia de Jesus, a serviço da Coroa Espanhola, fundou reduções em terras

tradicionalmente ocupadas por indígenas, situadas nos atuais territórios do Paraguai,

Argentina e Brasil, e que formavam uma unidade territorial - a Província Jesuítica do

Paraguai - composta por 30 povoados. As reduções eram aldeamentos criados para facilitar

o trabalho de evangelização dos povos nativos (chamado de “missão evangelizadora” – que

resulta no nome “Missões”) e garantir a posse do território através de uma ocupação

sistematizada.

1 Esse órgão de preservação, desde sua criação, apresentou diferentes denominações: SPHAN (Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1937 - 1946), DPHAN (Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1946 - 1970), IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1970 - 1979), SPHAN (Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1979 – 1981), SPHAN (Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1981 - 1985), SPHAN (Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1985 – 1990), IBPC (Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, de 1990 - 1994) e, desde 1994, IPHAN novamente. Neste trabalho, será adotado o termo IPHAN, para denominar o órgão nacional de preservação.

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Figura 1- Território da República Jesuítica do

Paraguai. Fonte: Arquivo IPHAN/RS

Figura 2 - 30 povos das Missões.

Fonte: Arquivo IPHAN/RS

A estrutura das reduções seguia uma mesma tipologia urbana – que se adaptava as

características geográficas do local – mas, que poderia apresentar padrões arquitetônicos

diferentes levando em consideração a disponibilidade dos recursos materiais e as

influências do país de origem do padre jesuíta que a administrava. A sua população variava

de acordo com a redução, entretanto podia alcançar cerca de 7 mil indígenas de diversas

etnias, em sua maioria Guarani, e dois ou três jesuítas. As reduções faziam parte de sistema

complexo no qual o núcleo urbano - composto pela praça central, igreja, moradias

indígenas, casa dos padres, oficinas e escola, cotiguaçu (casa das viúvas e órfãos) e

cabildo (função administrativa) e quinta - era rodeado por estruturas periféricas – fontes de

água, pedreiras, barreiros, olarias, etc. Ademais, elas eram interligadas por caminhos que

levavam às áreas de florestas, estâncias para a criação de gado e ervais.

O declínio das Missões inicia-se com o acordo entre as coroas de Portugal e Espanha, o

Tratado de Madri em 1750, que previa a troca das missões orientais, hoje conhecidos como

Sete Povos das Missões2 (pertencentes a Coroa Espanhola e localizados atualmente em

território brasileiro) pela Colônia de Sacramento (pertencente a Coroa Portuguesa,

2 Formam os chamados “Sete Povos das Missões”: São Borja (1682), São Nicolau (1687), São Luiz Gonzaga

(1687), São Miguel Arcanjo (1687), São Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Ângelo (1706).

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atualmente em terras uruguaias), fato não aceito pelos Guarani e Jesuítas, desencadeando

à Guerra Guaranítica entre 1753-1756.

Após os tratados de delimitação de fronteiras (Tratado de Madrid em 1761 e Tratado de

Santo Ildefonso em 1777) os Sete Povos das Missões, começam a ser abandonados pelos

indígenas, principalmente após a expulsão dos jesuítas em 1767. As tentativas de

continuidade do sistema reducional foram fracassadas e as terras passam por um longo

período de abandono deste tipo de ocupação reducional, que contribuiu para o arruinamento

das estruturas. As estruturas permaneceram habitadas até o final do século XIX, porém sem

manutenção e sendo constantemente saqueadas ou para a busca de tesouros ou para

utilizar o material missioneiro (principalmente as pedras) para construir casas e outras

estruturas necessárias ao cotidiano dos moradores.

Dos povoados localizados em território brasileiro, três deles – São Borja, São Luiz Gonzaga

e Santo Ângelo - tiveram parte de seus remanescentes materiais cobertos pelas novas

cidades e os materiais das reduções (pedras) reaproveitados para as novas construções do

período de repovoamento da região. Já os povoados de São Lourenco Mártir (município de

São Luiz Gonzaga), São Miguel Arcanjo (município de São Miguel das Missões) e São João

Batista (no município de Entre - Ijuís), que ainda apresentavam estruturas mais íntegras do

período reducional, foram reconhecidos como sítios históricos e tombados como patrimônio

nacional.

Ao longo do século XIX, ocorrem os processos de imigração na região, através da vinda de

casais açorianos em meados do século XIX e de uma primeira tentativa, em 1824, de

imigrantes alemães, que fracassou devido à falta de assistência e às condições de

isolamento dessas localidades. No final do século XIX, início do século XX, ocorre a

imigração mais intensa, inclusive com descendentes de imigrantes de outras regiões do

estado do Rio Grande do Sul, num processo de migração interna, com a vinda,

principalmente, de alemães, italianos e poloneses que se instalam na região. (URI, 2008.)

Ações Institucionais na Região das Missões

A atenção para a região das Missões de maneira mais institucionalizada acontece na

década de 1920. Segundo Ana Lúcia Meira (2008), o Estado do Rio Grande do Sul

apresenta um pioneirismo nacional na preservação de bens culturais, uma vez que a

preocupação com o tema já estava presente no Regulamento de Terras de 1922, no qual

consta um capítulo intitulado “Lugar Histórico” que estabelece no seu Artigo nº 24 que serão

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“mantidos no domínio púbico ou trazidos para este e devidamente conservados, os lugares

notabilizados por fatos assinalados da evolução do Estado”. O Regulamento fazia, também,

referência direta às Ruínas de São Miguel Arcanjo, com a distinção de “Lugar Histórico” e

como primeiro patrimônio histórico do Estado. Neste momento, através da Diretoria de

Terras da Secretaria do Estado e Obras Públicas, são realizadas obras de estabilização das

ruínas da Igreja de São Miguel Arcanjo, que se encontravam sob risco de desabamento.

Nos anos seguintes, outros trabalhos foram realizados pelo governo estadual, como limpeza

geral, escoramento das vergas das portas e arcos com trilho metálicos e escoramento da

torre (MEIRA, 2008, p.220).

Em âmbito nacional, a atuação na região das Missões, sobretudo no Sítio de São Miguel

Arcanjo, coincide com a trajetória da preservação do patrimônio nacional e do IPHAN.

Durante a fase inicial da preservação, que segundo Cecília Fonseca (1997, p.85), inicia-se

com a criação do IPHAN e se estende até aproximadamente a década de 1970, o foco foi

conhecer e valorizar a “identidade nacional”, o “patrimônio brasileiro”. Buscavam-se, assim,

os bens materiais que melhor expressassem o “ser brasileiro”, visando à unidade nacional e

à formação de um país moderno, incluindo bens de valor “monumental”. Nesse sentido, para

Márcia Chuva (2009, p.31), a instituição federal de patrimônio “identificou a ‘porção

edificada’ do Brasil, ajudando assim a ‘edificar’ o País.”. (SEIXAS, 2014, p.18).

Chuva (2009, p.48) apresenta o que foi designado como “patrimônio histórico e artístico

nacional” - “aquilo que foi classificado como arquitetura tradicional do período colonial,

representante ‘genuína’ das origens da nação”, sempre visando à construção desse Estado

Brasileiro. A autora ainda afirma:

(...) poder-se-ia pensar que a “Guerra Guaranítica” contra os jesuítas, nas

missões do sul da Colônia, e a Inconfidência Mineira, tratada então como

divisor de águas das origens da nacionalidade pela historiografia

tradicional, atenderam à necessidade de reafirmação do fratricídio,

visando a construção e uma genealogia da nação brasileira.

(CHUVA, 2009, p.48)

[grifo nosso]

Neste contexto, no mesmo ano de criação do IPHAN, em 1937, a pedido de Rodrigo Melo

Franco de Andrade3, o arquiteto Lúcio Costa realiza uma viagem às Missões para verificar

3 Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898 - 1969) advogado e jornalista, foi o primeiro diretor do Serviço do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, atual IPHAN, e durante 30 anos dedicou-se à preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro

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os remanescentes das Missões Jesuíticas dos Guarani, a qual resulta em um relatório com

recomendações sobre as ações de conservação das estruturas e a proposta da construção

do Museu das Missões para abrigar as peças de arte sacra produzidas nas Reduções.

No ano seguinte, em abril de 1938, o primeiro bem imóvel é tombado4 a nível federal no Rio

Grande do Sul - uma casa construída com material missioneiro, ou seja, material

reaproveitado das ruínas das reduções, no município de Entre-Ijuís, mas que acabou sendo

demolida posteriormente. Em maio do mesmo ano de 1938, ocorre o tombamento das

Ruínas de São Miguel Arcanjo como Patrimônio Nacional através da sua inscrição no Livro

de Belas Artes devido ao seu valor artístico, de excepcionalidade e monumentalidade.

Em 1970, acompanhando a ampliação da visão sobre o patrimônio, ocorre o tombamento

dos Sítios de São João Batista (Município de Entre-Ijuis); São Lourenço Mártir (Município de

São Luiz), e São Nicolau (Município de mesmo nome) – declarados como Patrimônio

Nacional e inscritos no Livro Histórico. A atribuição de valor histórico e não de Belas Artes

como no caso de São Miguel, poderia ser, talvez, interpretado como uma mudança de visão

do que fosse, à época, o patrimônio brasileiro, entendendo que, os outros Sítios – apesar de

aparentemente “mais singelos” frente à monumentalidade de São Miguel - seriam bens

importantes para o entendimento de Missões e para a identidade nacional.

No ano de 1983, a UNESCO inscreve na Lista do Patrimônio Mundial, as ruínas de São

Miguel Arcanjo, juntamente com as ruínas de San Ignacio Mini, Santa Ana, Nuestra Señora

de Loreto e Santa María La Major na Argentina, pelo excepcional valor universal, pelo valor

arquitetônico e por serem importantes exemplares da atuação da Companhia de Jesus nas

terras sul americanas. Segundo o destacado no site do IPHAN,

As Missões Jesuítico-Guarani - São Miguel das Missões (Brasil) e San Ignacio Miní,

Santa Ana, Nuestra Señora de Loreto e Santa María La Mayor (Argentina) - formam

um sistema de bens culturais transfronteiriços e compõem-se de um conjunto de

remanescentes dos povoados implantados em território originalmente ocupado por

indígenas. Os vestígios materiais existentes do sítio - corpo principal da igreja,

campanário e sacristia, partes das construções conventuais, fundações e bases das

habitações indígenas, praça, horto, canalizações pluviais, objetos sacros -

expressam o modelo de ocupação territorial permeado pela interação e troca cultural

entre os povos nativos e os missionários europeus.

4 O tombamento é o instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio cultural mais conhecido, e pode

ser feito pela administração federal, estadual e municipal. (http://portal.iphan.gov.br/perguntasFrequentes. Acessado em agosto 2016.)

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Poucos anos após a declaração como patrimônio mundial, em 1989, o IPHAN passa a atuar

de uma maneira mais permanente na região, com a implantação do Escritório Técnico das

Missões, ligado à Superintendência Estadual. Isto permitiu à Instituição um trabalho de

conservação permanente nos quatro sítios missioneiros, com formação de uma equipe de

artífices e técnicos.

Em uma nova etapa das discussões sobre patrimônio em nível internacional e nacional, no

ano de 2009, com o intuito de trazer uma visão abrangente das Missões, é criado o Parque

Histórico Nacional das Missões - PHNM, buscando integrar os quatro sítios missioneiros de

São Miguel Arcanjo, São Nicolau, São Lourenço Mártir e São João Batista, por meio do

Decreto nº 6.844. Este Decreto aprova o regimento interno do IPHAN e a criação do Parque,

que passa a ser responsável por “preservar a memória histórica e os remanescentes do

antigo povo de São Miguel Arcanjo; gerir os Sítios Históricos e Arqueológicos Missioneiros;

e executar as diretrizes e ações técnico-administrativas emanadas da Superintendência do

IPHAN no Estado do Rio Grande do Sul.” (Portaria Nº 92, de 5 de julho de 2012). Com a

ideia do Parque, procura-se então valorizar as semelhanças e diferenças em cada um dos

quatro Sítios tombados, entendendo-os, não mais isoladamente como na década de 1970,

mas como parte do sistema missioneiro de uma maneira mais ampla, como é destacado do

site da Instituição:

O Parque Histórico Nacional das Missões foi criado em 2009, por meio do Decreto nº

6.844, reunindo os sítios arqueológicos missioneiros de São Miguel Arcanjo

(localizado no município de São Miguel das Missões), de São Lourenço Mártir (em

São Luiz Gonzaga), de São Nicolau (em São Nicolau), e o de São João Batista (em

Entre-Ijuís).

Sítio Histórico São Miguel Arcanjo - Tombado como Patrimônio Cultural, em 1938,

e declarado Patrimônio da Humanidade, pela Unesco, em 1983. São Miguel Arcanjo,

ou São Miguel das Missões, era uma das reduções jesuíticas do Paraguai que

formava, com seis outras, os Sete Povos das Missões. Reunia grupos catequizados

jesuítico-guaranis situados no nordeste do atual Estado do Rio Grande do Sul, em

território brasileiro, às margens do rio Uruguai.

Sitio Histórico São Lourenço Mártir - A Missão de São Lourenço Mártir foi fundada

pelo padre jesuíta Bernardo de La Veja em 1690, entre São Luiz Gonzaga e São

Miguel das Missões, com mais de dois mil indígenas catequizados na redução de

Santa Maria La Mayor. Destacou-se nas práticas da agricultura, criação de gado,

cavalos, ovelhas e cultivo da erva mate. Sua população ultrapassou os 6.400

habitantes, em 1731. No local, é possível visitar remanescentes da igreja, da adega,

e da escola, também são criadas as ovelhas da raça crioula Lanada, raça

introduzida pelos jesuítas nas Missões e no Rio Grande do Sul.

Sítio Histórico São João Batista - Os remanescentes da Redução Jesuítica de São

João Batista, um dos Sete Povos das Missões, formam esse sítio fundado em

1697 onde foi montada a primeira fundição de ferro do atual território brasileiro

devido às habilidades artísticas (arquitetura, produção de variados instrumentos

musicais e corais) dos habitantes locais. Entre o povo de São João Batista, havia

artistas de todas as profissões, orientados pelo padre Antônio Sepp. No sítio,

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observa-se restos da estrutura do cemitério, da igreja e do colégio, além de

estruturas complementares como olarias, barragem e estradas. Uma exposição com

achados arqueológicos e a trilha de interpretação eco-cultural complementam o

roteiro de visita.

Sítio Histórico São Nicolau - São Nicolau do Piratini foi a primeira redução,

fundada em 1626, antes mesmo da fase dos Sete Povos das Missões. Segundo

relato do escritor e botânico francês, Auguste de Saint Hilaire, que por passou pelo

local em 1821, São Nicolau possuía uma das mais bonitas igrejas da região das

Missões. Os índios Guarani tinham capacidade para criar e os melhores escultores

das Missões estavam nessa redução, onde o povo se desenvolveu na religião,

música, cantos, dança teatro, desenhos, pinturas e esculturas

Em dezembro de 2014, mais um passo importante é dado para a valorização e preservação

das Missões. Após um longo período de trabalhos realizados com a comunidade Mbyá

Guarani a partir do Inventário de Referências Culturais (INRC) iniciado em 2007, a Tava -

Lugar de Referência para o Povo Guarani - é registrada como Patrimônio Cultural Imaterial

Nacional, reconhecendo os significados e valores atribuídos pelos Guarani ao Sítio Histórico

de São Miguel Arcanjo. Segundo o relatado no site da Instituição,

A Tava é um bem imaterial com significados atribuídos, pelos indígenas Guarani-

Mbyá, ao sítio histórico que abriga remanescentes da antiga Redução Jesuítico-

Guarani de São Miguel Arcanjo, localizado no município de São Miguel das

Missões.

Para os Guarani-Mbyá, a Tava Miri (ou sagrada aldeia de pedra) é um local onde

viveram seus antepassados, que construíram estruturas em pedra nas quais

deixaram suas marcas, e parte de suas corporalidades, por conter os “corpos" dos

ancestrais que se transformaram em imortais; onde são relembradas as 'belas

palavras' do demiurgo Nhanderu. Nesses locais, é possível vivenciar o bom modo de

ser Guarani-Mbyá e esse modo de viver permite tornar-se imortal e alcançar Yvy

Mara Ey (a Terra sem Mal).

No ano de 2015, novamente acompanhando discussões internacionais sobre o tema, e

ampliando o entendimento das Missões para além dos Sete Povos atualmente no território

brasileiro, ocorre o reconhecimento das Missões Jesuíticas Guaranis, Moxos e Chiquitos,

como Patrimônio do Mercosul, fato apresentado no site do IPHAN,

A Comissão de Patrimônio Cultural (CPC) do Mercosul reconheceu, em maio de

2015, as Missões Jesuíticas Guaranis, Moxos e Chiquitos como patrimônio cultural

da região, pela importância destes bens no cenário cultural dos países da América

Latina. O reconhecimento busca preservar valores etnográficos, históricos,

paisagísticos, urbanísticos, arquitetônicos, artísticos e arqueológicos. As Missões

formam um bem patrimonial único, com elementos fortemente vinculados entre si,

onde cada parte tem a sua singularidade que ajuda na compreensão e apreciação

de todo o conjunto missioneiro.

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O sistema das Missões faz parte de uma herança comum entre cinco países do

Mercosul (Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai). Estão inscritos na Lista do

Patrimônio Mundial os remanescentes missioneiros: de São Miguel Arcanjo (Brasil);

as reduções de San Ignácio Mini, Santa Ana, Nuesta Señora de Loreto e Santa

Maria Mayor (Provincia de Misiones, Argentina); as Missiones da Santíssima

Trinidad de Paraná e Jesus de Tavarangue (Paraguai); e as Missiones Jesuíticas de

Chiquitos (Bolívia). Estes são os principais remanescentes das Missões Jesuíticas

na região, caracterizando uma particular organização social e forma de ocupação do

território sul-americano.

Concomitante ao registro da Tava e da declaração como Patrimônio do Mercosul, e como

resultado de discussões e amadurecimento internos da Instituição, em 2013, é lançado o

Projeto de Valorização da Paisagem Cultural e do Parque Histórico Nacional das Missões

Jesuíticas dos Guarani, realizado pelo IPHAN com a cooperação da UNESCO. Com isso, o

conceito de Paisagem Cultural, presente nas discussões do IPHAN oficialmente desde

2009, é pontuada e discutida, de uma forma mais sistemática, para a região das Missões.

Paisagem Cultural no âmbito do IPHAN e do Projeto5

O termo “Paisagem Cultural” traz na essência a relação entre o homem e o ambiente numa

abordagem territorial. A expressão trata das transformações no território ao longo do tempo

e a sua configuração na contemporaneidade. Segundo a definição do IPHAN6, a paisagem

cultural brasileira “é uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo

de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram

marcas ou atribuíram valores.”7

Após discussões internas na Instituição e outras áreas de estudo (por exemplo, os caminhos

da imigração em Santa Catarina), o caso de Missões é proposto como objeto de estudo para

essa ideia de Paisagem Cultural. Segundo o IPHAN,

O território das Missões Jesuíticas dos Guarani, no Brasil, se caracteriza por

possuir uma paisagem cultural de altos valores patrimoniais e ambientais,

abrangendo 26 municípios do noroeste do Rio Grande do Sul. (...) As

transformações ocorridas nesses sítios missioneiros ao longo de mais de dois

5 O objetivo deste artigo não é avaliar de forma crítica o Projeto em questão, apenas pontuar a sua existência e

seus objetivos, apresentando-o como mais uma ação do IPHAN na região em estudo.

6 Embora existam outros conceitos e ideias sobre o termo “Paisagem Cultural”, uma vez que este artigo pretende

discutir o assunto dentro da perspectiva institucional do IPHAN e seus desafios para a gestão dessa região,

optou-se por utilizar apenas os conceitos utilizados pela Instituição.

7 http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Livreto_paisagem_cultural.pdf. Acessado em Agosto 2016.

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séculos apresentam, nos dias atuais, situações distintas que podem ser

caracterizadas desde aquelas onde se encontram estruturas expressivas, vestígios

arqueológicos dispersos, até sítios sobre os quais se desenvolveram novas cidades.

(IPHAN, 2014, p.4)

[grifo nosso]

Como uma tentativa de organizar o conhecimento existente sobre o assunto e direcionar

para a gestão dos bens culturais, os estudos e proposições, no âmbito do Projeto referido

anteriormente, partem de uma abordagem do território missioneiro como Paisagem Cultural,

e visam à interação entre os processos culturais e o meio ambiente, seguindo o conceito do

IPHAN. Além disso, o Projeto propõe buscar a valorização dos sítios protegidos, pela

compreensão do “Sistema” reducional”, e numa perspectiva de tornar o seu patrimônio um

ativo para apoiar o desenvolvimento sociocultural e econômico da região, projetando e

estabelecendo perspectivas para o seu desenvolvimento. (IPHAN, 2014, p.4). Para isto, o

projeto pretende

“ampliar o alcance dos instrumentos de proteção e de valorização do patrimônio

cultural brasileiro. Particularmente em relação ao patrimônio missioneiro, busca-se

evoluir na aplicação dos instrumentais técnico-jurídicos e das políticas públicas

voltadas à preservação, por meio de ações amplas, desenvolvidas a partir do

conceito de território, relacionando o fato histórico com seu espaço geográfico, seu

contexto natural/paisagístico e sócio-cultural.”

(IPHAN/RS, 2015)

Para alcançar esses objetivos, estão elencadas algumas estratégias a serem feitas, como o

levantamento de informações e de documentação referente ao patrimônio do território do

antigo Sistema missional; a delimitação de poligonal do PHNM incluindo todos os elementos

considerados significativos; a elaboração de um Sistema de Gestão Integrado entre

Governo Federal (IPHAN), Estado e Municípios; o estabelecimento de projetos estratégicos

visando à recuperação do patrimônio integrado ao desenvolvimento econômico regional.

A complexidade de uma possível paisagem cultural: os quatro sítios

missioneiros e seus desafios de gestão

Ao pensar o Projeto e a área de abrangência dessa possível paisagem cultural missioneira,

os técnicos do IPHAN/RS se viram diante de um cenário extremamente complexo e que

demanda, no trabalho cotidiano, diferentes esforços dentro de um cenário, aparentemente

homogêneo, como é o caso do Parque Histórico. Em função das especificidades e

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singularidades de cada Redução e do processo pós reducional, o cenário e os desafios nos

4 Sítios são diferentes8:

O Sítio de São Miguel Arcanjo, no município de São Miguel das Missões, sempre foi muito

valorizado e alvo principal de intervenções e estudos, tanto acadêmicos quanto

institucionais. O Sítio, tombado pela sua monumentalidade e excepcionalidade em 1938 no

livro de Belas Artes, é uma paisagem já conhecida e cartão postal do Rio Grande do Sul

(por exemplo, foi palco da passagem da tocha olímpica e a imagem do estado gaúcho nos

jogos). O Município, que se emancipou de Santo Ângelo em 1988, e desenvolveu-se no

entorno imediato das ruínas, possui uma ligação com as ruínas desde a década de 1920,

quando, em 1926, é criada a lei do perímetro urbano que preserva as estruturas e a área da

antiga praça da redução. Na década de 1970 a área das ruínas passa a ser uma área

cercada que ao longo dos anos foi sendo ampliada e, para isso, seguindo uma orientação e

tendência nacional, terrenos foram desapropriados.

Este fato gerou, na época, uma indisposição de parte da população com o IPHAN: a escola,

o clube e outras edificações que eram referências e possuíam uma função social para a

população atual e que se encontravam no terreno ao norte do Sítio foram demolidos para

permitir uma visibilidade maior do Sítio para o horizonte e vice-versa. Embora esta não seja

mais a prática do IPHAN, o assunto faz parte de um passado ainda recente e que está

presente na memória de alguns moradores. Esta política de demolição de bens que não são

do período reducional não é mais a seguida pelo Instituto, que busca cada vez mais se

aproximar da população, valorizando e valorando os diferentes processos históricos

ocorridos.

Outro desafio que se apresenta neste Sítio é também de viés morfológico e urbanístico, uma

vez que o Sítio, no entendimento dos moradores, está localizado no meio da cidade e a

divide (embora, cronologicamente, a cidade tenha surgido depois). As principais edificações

da antiga vila e, posteriormente cidade de São Miguel, o “centro” - escola, clube, igreja -

estavam implantadas no entorno imediato do Sítio, como o já apontado anteriormente.

Entretanto, com a intervenção do IPHAN para a ampliação do espaço protegido, esse

núcleo é alterado e muda a dinâmica da cidade. Com isso, há, por exemplo, acessos no

8 Cabe aqui, novamente, a ressalva de que este artigo é baseado na prática cotidiana e profissional dos técnicos

que atualmente estão lotados no escritório do PHNM – IPHAN/RS. Isso significa que são impressões e resultados de observações e discussões enquanto equipe técnica e enquanto gestores do Parque. O objetivo deste trabalho não é aprofundar embasamentos teóricos, e sim propor uma discussão sobre a prática de gestão.

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cercamento do Sítio, de uso exclusivo dos moradores, que cruzam o Sítio para se deslocar

de um lado a outro da cidade.

Os Sítios de São João Batista e São Lourenço Mártir, localizados em distritos rurais e

tombados na década 1970 com valor histórico, embora apresentem diferenças entre si,

poderiam ser analisados juntos. Ambos os Sítios estão localizados em áreas rurais, sem a

pressão imobiliária e num contexto de pequenas e médias propriedades no entorno. Ambos

ainda possuem cemitérios utilizados pela população local, com enterramentos recentes

(sepultamentos desta década, por exemplo) e com um fluxo menor de visitantes do que em

São Miguel, inclusive em função da dificuldade de acesso. Para estes Sítios, a postura do

IPHAN em relação à intervenção no patrimônio foi diferente, optando-se por evidenciar,

através de trabalhos de conservação permanentes, a ação do tempo nas estruturas, criando

uma paisagem “bucólica” e mais integrada à natureza.

Diante desse contexto tipicamente rural, os desafios que se apresentam são outros: As

áreas demarcadas como sítios arqueológicos correspondem a uma área maior que as áreas

cercadas, ou seja, há propriedades particulares demarcadas como “com potencial

arqueológico” e que, portanto, devem seguir a legislação nº 3924, de 26 de julho de 1961,

que limita o uso para criação e plantação em um sítio arqueológico. Isto em um contexto

rural, de criação e plantação muitas vezes para subsistências das famílias vizinhas ao Sítio,

torna-se um problema. As desapropriações foram estudadas, porém não houve recurso

financeiro para que elas se concretizem e a questão fundiária ainda não se encontra

resolvida. Embora nesses sítios haja a colaboração dos poderes municipais em alguns

momentos em função dos usos e atividades da população (uso do cemitério e criação de

ovelhas na área), há o entendimento de que, por ser bem tombado pelo IPHAN, cabe

principalmente e primeiramente a ele a manutenção e preservação do Sítio.

O Sítio de São Nicolau, localizado no município de mesmo nome, possui um outro contexto,

diferente dos anteriores. Assim como o que ocorreu com São Miguel das Missões, a atual

cidade cresceu no entorno do Sitio Histórico, porém sem a área ter sido cercada. Com isso,

a população se apropriou do espaço da antiga praça da redução como principal espaço

público, com a instalação, inclusive, de equipamentos e edificações com função social para

a população atual - o Centro de Tradições Gaúchas- CTG e a Escola, atualmente Secretaria

de Assistência Social. Assim, o atual espaço de socialização da cidade é o mesmo que o da

antiga redução, convivendo a dinâmica atual com as estruturas remanescentes

missioneiras. Observa-se que a apropriação da praça é diferente do que acontece em São

Miguel, talvez em função do não cercamento. O local atualmente é muito frequentado pela

população, o que levou, inclusive, a um projeto de requalificação urbanística na década de

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1980. Neste espaço, ocorrem eventos importantes da cidade, como por exemplo o “Café de

Cambona”, evento já tradicional e que reúne aproximadamente 20 mil pessoas em um final

de semana.

Como desafio que se coloca neste Sítio, está justamente esse aparente conflito entre as

ruínas e a vida na praça, uma vez que há o Café - com estantes e barracas muito próximas

das estruturas e dos pisos originais -; fluxo e permanência de pessoas, que, em algumas

vezes, acarreta em pichações e vandalismo; crianças que necessitam de espaços

recreativos; edificações como o CTG e a Secretaria dentro da área de Sítio - e aqui se

coloca a questão já ocorrida em São Miguel: retirar essas estruturas ou deixá-las e

requalificá-las, uma vez que fazem parte da história recente e da dinâmica atual da cidade.

Além dessas singularidades, a gestão desses sítios apresenta desafios em comum: a

relação com a comunidade de uma maneira geral e a questão de “desenvolvimento versus

preservação”, a questão turística e as suas demandas, a relação com a população indígena,

a necessidade de buscar a participação das municipalidades em ações de valorização e

promoção dos bens e o entendimento das responsabilidades específicas do IPHAN e dos

municípios.

As diferentes paisagens dentro da Paisagem: uma proposta de Paisagem além

das Reduções

A complexidade e o desafio para a gestão da paisagem cultural missioneira ampliam-se na

medida em que a ideia extrapola os limites físicos dos quatro sítios tombados e os limites

históricos do período reducional. Através de uma extensa bibliografia e material produzidos

sobre a região das Missões, principalmente no âmbito acadêmico, observa-se a dimensão e

a riqueza cultural da região ligado aos diversos processos históricos nela ocorridos.

Através de estudos e relatos, é possível identificar outras estruturas missioneiras

relacionadas com o processo histórico das reduções que não se encontram fisicamente nas

áreas abrangidas por estes quatros sítios tombados (lembrando também que o antigo

território das Missões se estendia para outros países). Talvez o exemplo mais claro seja as

fontes missioneiras - estruturas de abastecimento e captação de água que desempenhavam

papel fundamental na vida da redução e que não estão contempladas nos tombamentos.

Além dessas, outras estruturas conhecidas, como fornos, barreiros, olarias e pedreiras, que

também faziam parte do sistema reducional, não estão contempladas, atualmente, nas

áreas protegidas. Ampliando-se ainda mais a questão, há estruturas de estâncias e currais

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de pedra que, segundo alguns estudos e relatos9, integram o sistema missioneiro e que

estão dispersos pelo território gaúcho, como por exemplo remanescentes localizados na

porção sul no estado, em Uruguaiana, Aceguá e Alegrete.

Figura 3- Fazenda no município de Aceguá - possivelmente

do período missioneiro. Fonte: Arquivo IPHAN/RS.

Figura 4 - Taipa de pedra na região sul do

estado. Fonte: Arquivo IPHAN/RS.

Extrapolando este período histórico e pousando o olhar para a região das missões, observa-

se a presença muito forte da cultura de imigração, através dos processos migratórios

apontados anteriormente. Sendo assim, a região missioneira também é constituída de uma

rica, embora singela, arquitetura de imigrantes, com casas em técnica enxaimel, edificações

luso-brasileiras, italiana e polonesa. Além disso, há edificações de outros períodos

arquitetônicos, como edificações ecléticas em Santo Ângelo. Há também, um rico e

diversificado patrimônio imaterial, saberes e culturas não apenas dos indígenas, mas

também dos imigrantes, com festas, danças e comidas típicas das diferentes etnias.

9 Embora já haja relatos e estudos sobre essas estruturas dispersas, é necessário um aprofundamento maior

sobre o assunto para uma maior precisão.

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Figura 5 - Soleira de porta em casa luso-brasileira - uso de

pedra das reduções. Fonte: Arquivo IPHAN/RS.

Figura 6 - Casa feita com técnica enxaimel,

localizado em Pirapó. Fonte: Arquivo

IPHAN/RS.

Figura 7 - Detalhe de casa em Roque Gonzalez, com

entalhes em madeira característicos da imigração italiana.

Fonte: Arquivo IPHAN/RS.

Figura 8 - Edificação eclética, em São Borja.

Fonte: Arquivo IPHAN/RS.

Conclusão

Este é o estágio atual da discussão no IPHAN – buscar identificar no que consiste a

Paisagem Cultural Missioneira e, dentro das possíveis paisagens culturais existentes nesta

região - uma vez que há diferentes recortes temáticos, históricos e socioeconômicos

possíveis - quais delas farão parte do Parque Histórico Nacional das Missões.

Talvez, a questão seja, diante da amplitude e complexidade desta Paisagem, selecionar,

neste momento e dada a capacidade de gestão, um recorte temático temporal. Com isso,

optar-se por um foco do conceito do PHNM, de forma a caracterizar a sua paisagem cultural

e, principalmente, estabelecer um plano de gestão para que o mesmo possa ser um indutor

do desenvolvimento sustentável da região. Ademais, é importante refletir também sobre

aqueles bens identificados como de valor cultural, porém não relacionados diretamente ao

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recorte do Parque e pensar se cabe ao IPHAN atuar, juntamente com outros atores, sobre

esses bens ou apenas acompanhar a sua gestão.

Diante deste contexto, discutir a Paisagem Missioneira, os recortes a serem feitos para a

delimitação e a conceituação do Parque Histórico Nacional das Missões e sua gestão

tornam-se desafios atuais frente a essa nova realidade - entender Missões não apenas

como os quatro Sítios tombados em nível Nacional, mas sim como Paisagem Cultural das

Missões e toda a contribuição que a mesma pode acarretar para o desenvolvimento da

região.

REFERÊNCIAS

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FONSECA, M. C. L. O Patrimônio no Brasil. In: O patrimônio em processo – trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ; MinC IPHAN, 1997. p.85 – 261.

IPHAN. Decreto nº 6844. Brasília, 2009. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6844.htm>. Acessado em agosto 2016.

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IPHAN/RS. [Apresentação: Parque Histórico Nacional das Missões. Rio Grande do Sul. 1922-2015. IPHAN - Brasil]. Porto Alegre, 2015

MEIRA, A. L. G. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação dos cidadãos na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004a.

MEIRA, A.L.G. O patrimônio histórico e artístico nacional no Rio Grande do Sul no século XX: atribuição de valores e critérios de intervenção. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

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SEIXAS, A.L.J. Gestão das áreas de entorno de bens tombados: estudos de caso nas cidades gaúchas de Piratini e Novo Hamburgo. Dissertação (mestrado) - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio De Janeiro, 2014.

SITES ACESSADOS:

IPHAN. Disponível em <www.iphan.gov.br>. Acessado em agosto de 2016.

URI. Levantamento De Elementos do Patrimônio Turístico-Cultural da Região Missioneira. Termo de Cooperação entre IPHAN e URI. 2008 http://www.urisan.tche.br/~iphan/?module=section&action=read&id=apresentacao. Acessado em agosto de 2016.