paes, vivian ferreira. gramáticas de controle e sensibilidades jurídicas em jogo

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   Agenda Social . Revista do Programa de Políticas Sociais. Campos dos Goytacazes, UENF, v.1 n.1, jan-abr/2007  Gramáticas de controle e sensibilidades jurídicas em jogo: o papel do registro na reforma da polícia Grammars of control and Legal sensibilities in game:  the registe r’s paper in reform of p olicy Vívian Ferreira Paes Doutoranda Sociologia Instituto de Filosofia e Ciências Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro 1  [email protected] RESUMO: Neste trabalho, tenho por foco de análise uma política pública dirigida a implementar uma nova forma de gestão dos produtos da Polícia Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, chamada “Programa Delegacia Legal”. Em específico, objetivo analisar as formas de organização dos policiais com relação a uma reforma que visa governar a conduta dos policiais interferindo nos produtos do trabalho ao dispor informação. Se por um lado observo que as práticas das delegacias consolidam movimentos de criatividade situada pelas regras de registro, por outro, considero que os agentes relacionam-se de forma a manter a autonomia de dizer o direito como uma ética corporativa interna e disponível à instituição. Uma norma que visa preservar os agentes das formas de controle que também os tornam vulneráveis a punição. Palavras-chave: registros; controle; informação; polícia. ABSTRACT: In this work, I had focused the analysis of a public policy way, called “Programa Delegacia Legal”, directed to implement a form of a resource management of the Judiciary Police of Rio de Janeiro state. Specificly, I have the objective to study the forms of policemen's organization in relation to a reform that interferes on the results of their work as soon as it has the information. On one hand, I observe that the practice of the police stations consolidates movements of situated creativity by the rules of register, on the other; I observe that the agents become related of form to keep the autonomy to say the right as internal and available corporative ethics to the institution. Such norm aims to preserve the control form agents that become them vulnerable to punishment. Keywords: registers; control; information; police. Introdução Tomando por referência a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, objetivo analisar a forma como uma política pública é atualizada como práticas de registro na delegacia. Com esta exposição pretendo esboçar alguns resultados apontados em minha monografia de bacharelado em Ciências Sociais (Paes, 2004) e aprofundados em minha dissertação de mestrado em 1  Bolsista CAPES; Pesquisadora Associada do NECVU/IFCS.

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  • Agenda Social. Revista do Programa de Polticas Sociais. Campos dos Goytacazes, UENF, v.1 n.1, jan-abr/2007

    Gramticas de controle e sensibilidades jurdicas em jogo: o papel do registro na reforma da polcia

    Grammars of control and Legal sensibilities in game: the registers paper in reform of policy

    Vvian Ferreira Paes Doutoranda Sociologia

    Instituto de Filosofia e Cincias Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro 1 [email protected]

    RESUMO: Neste trabalho, tenho por foco de anlise uma poltica pblica dirigida a implementar uma nova forma de gesto dos produtos da Polcia Judiciria do Estado do Rio de Janeiro, chamada Programa Delegacia Legal. Em especfico, objetivo analisar as formas de organizao dos policiais com relao a uma reforma que visa governar a conduta dos policiais interferindo nos produtos do trabalho ao dispor informao. Se por um lado observo que as prticas das delegacias consolidam movimentos de criatividade situada pelas regras de registro, por outro, considero que os agentes relacionam-se de forma a manter a autonomia de dizer o direito como uma tica corporativa interna e disponvel instituio. Uma norma que visa preservar os agentes das formas de controle que tambm os tornam vulnerveis a punio.

    Palavras-chave: registros; controle; informao; polcia.

    ABSTRACT: In this work, I had focused the analysis of a public policy way, called Programa Delegacia Legal, directed to implement a form of a resource management of the Judiciary Police of Rio de Janeiro state. Specificly, I have the objective to study the forms of policemen's organization in relation to a reform that interferes on the results of their work as soon as it has the information. On one hand, I observe that the practice of the police stations consolidates movements of situated creativity by the rules of register, on the other; I observe that the agents become related of form to keep the autonomy to say the right as internal and available corporative ethics to the institution. Such norm aims to preserve the control form agents that become them vulnerable to punishment.

    Keywords: registers; control; information; police.

    Introduo

    Tomando por referncia a Polcia Civil do Estado do Rio de Janeiro, objetivo analisar a forma como uma poltica pblica atualizada como prticas de registro na delegacia. Com esta exposio pretendo esboar alguns resultados apontados em minha monografia de bacharelado

    em Cincias Sociais (Paes, 2004) e aprofundados em minha dissertao de mestrado em

    1 Bolsista CAPES; Pesquisadora Associada do NECVU/IFCS.

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    Sociologia, com concentrao em Antropologia (Paes, 2006). Este trabalho foi realizado a partir de uma pesquisa feita em delegacias legais e convencionais da capital e do interior do Estado do

    Rio de Janeiro entre os anos de 2001 e 2005.

    A reforma da Polcia Civil do Estado do Rio de Janeiro teve incio em maro de 1999, com o ttulo Programa Delegacia Legal. Veiculando princpios tais como transparncia e modernizao das atividades policiais, com o objetivo de produzir maior celeridade dos procedimentos policiais, o Programa Delegacia Legal entre outras medidas, props uma forma de gesto dos

    recursos da Polcia Civil que estivesse baseada na responsabilidade individualizada pelos procedimentos e no monitoramento das atividades policiais. Props uma reforma da infra-

    estrutura fsica, a abolio da carceragem, a adoo de um sofisticado aparato tecnolgico, e uma nova organizao dos processos de trabalho policiais para que as atividades da Polcia Civil passassem a ser submetidas a uma forma de gesto baseada no controle por accountability2.

    Em linhas gerais, essas foram as principais medidas propostas pelo Programa Delegacia Legal no que diz respeito gesto dos recursos policiais: os registros e todos os procedimentos devem ser produzidos diretamente no computador em formulrio padro; os procedimentos passam a estar disponveis em uma rede que os armazena e os disponibiliza para todas as Delegacias Legais e instncias responsveis pela realizao de monitoramento e controle das aes policiais; os policiais devem ser responsabilizados diretamente pelo resultado e andamento das ocorrncias que atendem.

    A partir disto, duas problemticas obrigatrias passam a fazer parte de minhas preocupaes: Qual a natureza dos procedimentos que o Programa pretende mexer? O que significa uma reforma administrativa em uma polcia que no s administrativa, mas tambm judiciria?

    Vale notar que a Polcia Civil tambm judiciria, tendo a obrigatoriedade de atuar a partir do conhecimento de fatos considerados como crime. Segundo estudos realizados por Kant de Lima

    2 A introduo de procedimentos informatizados em conjunto com a publicizao das informaes e a

    responsabilizao individual dos agentes pelo andamento da ocorrncia que eles atendem, propiciaria a criao de novas formas de controle do trabalho policial - baseadas em ltimas prescries nas teorias de administrao de empresas cujo fundamento reside na possibilidade de acompanhamento, avaliao e responsabilizao dos agentes pblicos sobre seus resultados - accountability, em ingls para que seja feito um monitoramento disciplinar. Entretanto, para que seja feito o devido controle nesse modelo, uma pressuposio necessria que as regras sejam internalizadas pelos indivduos.

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    (1995), apesar dos inquritos policiais estarem geralmente entranhados nos processos judiciais, eles so de natureza administrativa e esto vinculados a uma tradio inquisitorial de produo de

    verdade. O inqurito policial constitui-se, portanto, na coleo de indcios e provas que possam fornecer ao juiz elementos suficientes para que ele se convena a culpabilizar um suspeito presumido culpado, sistema no qual mtodos de instruo escrita e secreta so sumamente valorados.

    Nessa lgica repressiva, a aplicao das regras percebida antes como uma ameaa do que uma

    proteo, pois est estreitamente vulnervel interpretao particularizada do agente do Estado que a aplica. Do ponto de vista do agente, ao mesmo tempo em que ele est orientado pelo

    princpio da obrigatoriedade em agir, instaurando o inqurito policial nesses fatos classificados como crime, seu trabalho controlado atravs da verificao de suas aes, erros e omisses, ou seja, de atribuio de culpa. Por um lado, so dadas oportunidades de arbitrar aos agentes, mas, por outro lado, a responsabilizao direta por suas escolhas acaba deixando-os extremamente vulnerveis, o que fomenta a formao de lealdades pessoais que neutralizem as ameaas de punio a que eles possam estar submetidos. O controle social punitivo que orienta a forma de produo de verdade policial influencia sobremaneira no contedo e nos usos dos produtos policiais.

    A seguir, pretendo analisar a forma como os policiais interpretam as normas prescritas pela reforma, bem como considerar a forma como percebem e se utilizam dos registros nas Delegacias Legais.

    Parto do pressuposto que nenhuma interveno rotinizada inteiramente. Assim, o efeito de uma determinada poltica pblica depende acima de tudo da diversidade de interpretao das regras e de como os agentes fazem uso delas. Assim, o Programa Delegacia Legal exerce influncia sobre as atividades policiais. No entanto, esta influncia no se traduz em uma reproduo mecnica das propostas, mas a reforma se efetiva por meio de sua atualizao nas prticas policiais, por

    meio de uma criatividade situada pelo rigor que a regra introduz.

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    O Programa

    Em relao forma de gesto do trabalho policial, o trmite dos procedimentos nas Delegacias Legais (Registro de Ocorrncia, Verificao de Procedncia da Informao e Inqurito) foi reorganizado segundo preceitos administrativos modernos para que a responsabilidade pelos resultados da investigao pudesse ser identificada. Nessa nova organizao do trabalho, os lugares antes ocupados pelos Setores de Investigao e Cartrios nas delegacias foram abolidos, o nico setor encarregado em produzir as ocorrncias criminais passou a ser o Grupo de

    Investigao (GI) - setor encarregado do atendimento ao pblico e posteriores desdobramentos das ocorrncias na delegacia. No GI, o policial que recebe a comunicao e formaliza o registro

    deve iniciar as investigaes to logo tome conhecimento do fato, estaria tambm incumbido do desdobramento desses procedimentos em Inquritos e Flagrantes.

    Com a responsabilizao individual pelo resultado final dos procedimentos (accountability), a Delegacia Legal criaria um vnculo entre o fato, o investigador e os resultados de seu trabalho para que as investigaes fossem mais otimizadas, no fosse depreendido tempo excessivo com o rito processual que demandado pela atividade cartorria da delegacia e fosse possibilitado um maior controle sobre as atividades policiais.

    No que diz respeito coleta e processamento de informaes, os servios policiais das Delegacias Legais foram informatizados com vistas a possibilitar um melhor gerenciamento sobre o andamento dos procedimentos policiais. A partir da informatizao, seriam introduzidas novas normas institucionais, j que as terminologias e procedimentos policiais se tornam uniformes a partir do uso dos formulrios e das categorias padronizadas que so fornecidas pelo prprio sistema. importante notar que a reforma se realiza por meio da imposio de novas formas e categorias ao trabalho policial.

    A reforma tambm aboliu quase todos os 66 livros da Polcia Civil (apenas seis permanecem) e fez com que todos os procedimentos ficassem disponveis em um sistema que interliga todas as

    delegacias. Alm dos dados sobre as ocorrncias policiais, esse sistema oferece uma maior quantidade de informaes que possam vir a auxiliar as investigaes, tais como: o acesso via

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    Intranet3 ao banco de dados do Instituto Flix Pacheco, a criao de um banco de dados relativo s atividades das delegacias, e o mapeamento estatstico e georeferencial dos crimes.

    Se, por um lado, a democratizao da informao acabaria por diminuir a burocracia na forma de disposio e coleta dos dados com fins de auxiliar as investigaes, por outro, permitiria que atravs de um controle administrativo, a falta de eficincia pudesse ser publicizada. Essa lgica orienta-se pelo princpio de que informatizando os procedimentos policiais, a informaes tornar-se-iam mais transparentes e aumentaria a possibilidade de vigilncia e controle sobre as

    atividades policiais. O discurso reformador sugere que os procedimentos policiais estariam orientados ao controle que exerce sobre as pessoas (controle social) e a favor do exerccio do controle do trabalho realizado pelos policiais.

    J o acesso s informaes das Delegacias Legais seria controlado com base nos nveis de senhas distribudas aos agentes. Assim, os policiais que elaboram os registros s tm acesso aos

    procedimentos por eles produzidos; cada Delegado Adjunto teria acesso aos procedimentos sob sua responsabilidade; os Delegados Titulares, a todos os procedimentos da sua delegacia; e a Seo de Inteligncia Policial (SIP) teria acesso a todos os procedimentos elaborados em Delegacias Legais. Qualquer pesquisa acerca de antecedentes ou outras ocorrncias nas delegacias tem, portanto, de ser solicitada aos policiais que trabalham nesse ltimo setor. O procedimento policial passa a ser disponvel tambm aos analistas de informao de outros setores internos Secretaria de Segurana, mas a senha visa identificar e limitar as pessoas que tem acesso s informaes4. Apesar dos registros de ocorrncia e aditamentos terem se tornados

    pblicos, os policiais e delegados podem, tambm, limitar o acesso de outros agentes em suas investigaes quando achar necessrio, marcando pea sigilosa5.

    3 Rede que interliga e compartilha as informaes entre todas as delegacias que fazem parte do modelo legal.

    4 Por exemplo, se eu tiver uma senha e for tentar abrir alguma pea que no esteja disponvel para mim, vai aparecer

    uma tela escrita Vvian Ferreira Paes no tem acesso a esta pea!. 5 O sistema do Programa Delegacia Legal pode ser consultado por nmero de registro. Neste caso, a primeira tela

    que aparece uma glide listando todas as movimentaes que foram feitas a partir daquele registro que se consulta, tais como: os laudos que foram solicitados, os depoimentos que foram colhidos, os despachos que foram dados e as escutas que foram realizadas. Avocando o princpio de segredo de justia, por vezes, os policiais classificam estes documentos como pea sigilosa. Com exceo destes documentos de acesso restrito, podemos ter acesso integral aos outros documentos clicando em qualquer dos elementos da glide.

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    A idia do programa a de que a democratizao da informao poderia auxiliar, por um lado, no esclarecimento dos crimes, pois a base de dados policiais uma importante fonte de investigao

    e, por outro, no controle mais severo sobre o andamento das investigaes. Para Luiz Eduardo Soares (2000, p. 85), informao para valer, aquela que funciona como elemento automaticamente disponvel sempre que necessrio. Nesse mesmo sentido, informa uma delegada que atua no Grupo Executivo do Programa: as delegacias deixam de trabalhar em feudos para trabalhar em rede. A seo de inteligncia no do policial, da polcia. Informao dinheiro, informao poder. a polcia, no o policial que tem informao (entrevista, 2005). Isto relevante, porque o Programa Delegacia Legal props-se a influir sobre a apropriao particular por parte dos policiais dos recursos que so pblicos.

    Verifico que ao condensar as informaes em sistema, o PDL impe trs modificaes cruciais na Polcia Civil: muda o potencial dos registros das delegacias - os registros de todas as delegacias esto em uma base comum de dados e podem ser pelos policiais pesquisada - integra as unidades policiais isoladas e, por ltimo, confere novo desenho s relaes de poder.

    Vale ressaltar que o Programa Delegacia Legal deve ser tomado como um modelo e no tpico subseqente, veremos os principais impactos que essa forma de gesto da informao tem sobre a ao policial para, em seguida, analisar as formas como se atualizam as prticas levadas a cabo pelos agentes e autoridades nas Delegacias Legais.

    A Prtica

    Vimos, anteriormente, que a forma de controle do Programa Delegacia Legal (PDL) visa responsabilizar por accountability os policiais, visando a normalizao de sujeitos em uma instituio. Esta forma de controle baseada no monitoramento garantiria a governabilidade da instituio na medida em que os policiais pudessem utilizar, a partir de uma forma mais adequada e otimizada, os novos instrumentos. No entanto, o problema que se coloca que essa forma de controle preconizada pelo PDL baseia-se em uma forma de racionalidade burocrtica que tem um significado dissonante do controle social exercido pelas instituies jurdicas brasileiras, pois a

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    tradio inquisitorial baseada no segredo, na suspeio e presuno da culpa afeta a polcia judiciria.

    O registro constitui-se no livro que documenta a existncia e a validade de algo, o cartrio, a fixao de um fato por escrito. A partir da publicizao deste documento, o programa pretende monitorar as rotinas e influir sobre as atividades policiais: atravs do monitoramento, a reforma daria condies para que fosse mais bem utilizado o recurso burocrtico; com a transparncia das informaes contidas nos registros, municiaria a policia de fontes que poderiam subsidiar no

    trabalho investigativo. O programa pretendia, portanto, atuar sobre os resultados das investigaes a partir da interferncia na forma de produo e disponibilizao dos registros.

    A partir disto, importante notar a forma pela qual esses registros (documento que d incio a toda e qualquer atividade policial) so produzidos nas Delegacias Legais. Primeiro, h de se ressaltar a potencialidade dos recursos tecnolgicos disposio da polcia em contraposio aos

    processos de trabalho anteriores: por um lado, os registros de ocorrncias produzidos nas Delegacias Legais so produzidos em formulrios padres inseridos em um sistema rgido, no so mais produzidos em formulrios de papel na mquina de escrever; por outro, os registros produzidos no sistema das Delegacias Legais ficam disponveis para todas as delegacias que compem esse novo modelo e no ficam disponveis somente para a corregedoria ou restritos delegacia que o produziu.

    Assim, vale ressaltar que um dos impactos causados pela adoo da nova tecnologia diz respeito possibilidade de maior controle sobre o contedo dos registros, pois os policiais no mais os preenchem de forma livre. Certos campos, tais como a tipificao do delito (traduo do fato segundo algum tipo do cdigo penal), a qualificao do comunicante (dados sobre a pessoa que comunicou o fato na delegacia) e a descrio do fato (reconstruo narrativa do fato orientada pelo ttulo que lhe foi dado) passam a ser de preenchimento obrigatrio por parte dos policiais. Nas delegacias convencionais, esses campos j eram de preenchimento obrigatrio, mas a partir do programa h um maior controle quanto presena de alguns contedos porque o policial no consegue concluir o procedimento se estiver faltando algumas informaes bsicas. Por exemplo,

    se o policial no atribuir um ttulo ocorrncia, o programa no vai fechar e o policial no vai conseguir concluir o registro.

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    Ainda no que diz respeito tipificao do delito importante notar que o sistema impe um esforo de traduo e padronizao para que os policiais s possam classificar da forma como

    est disponvel no sistema e no preencher de forma livre, escrevendo algum ttulo que ele queira dar. No entanto, a implantao das Delegacias Legais no implica uma mudana no sistema

    classificatrio, porque apesar do sistema disponibilizar a ferramenta, a classificao muito relativa, porque o policial quem vai classificar, ele s vai buscar no sistema aquele ttulo que ele considera mais adequado para a ocorrncia que ele atende.

    A partir da pesquisa de campo que realizei nas delegacias, percebi que a tipificao do evento consistia em uma das primeiras iniciativas que os policiais tomavam quando faziam o registro.

    Antes, porm, eles faziam uma pequena entrevista informal com a pessoa que veio comunicar a ocorrncia na delegacia e, a partir desta entrevista, adequavam o evento a alguma classificao penal ou administrativa. Era a partir da atribuio do ttulo, que eles buscavam ento descrever o evento. O que se observa que, em primeiro lugar, os policiais realizam uma pequena entrevista com as pessoas para saber de que se trata o evento (adequando o fato como crime ou no), depois, por meio de um processo de criminalizao, procuram impor uma definio legal ao crime, isto , ver qual artigo do Cdigo Penal pode ser atribudo ao fato - em caso de suspeitas ou estando sustada a existncia do crime, so atribudas algumas categorias administrativas, tais como

    remoo de cadver, fato atpico ou auto de resistncia - em seguida, por meio de um processo de criminao, os policiais descrevem os fatos, orientados pela classificao mais adequada com o

    fim de reconstruir o crime e incriminar seu autor (Misse, 1999).

    Em relao ao campo descritivo do registro, h de se notar que a informao que consta na dinmica do fato, quando no se reproduz a partir do depoimento dado pelas pessoas que

    comunicam o fato, na maioria das vezes, conta apenas com os relatos tcnicos do trabalho demandado s instituies envolvidas em tal empreendimento. A dinmica reproduz-se enquanto um relato do tipo: o policial em patrulha foi comunicado que aconteceu um homicdio, a partir disto, ele compareceu ao local, constatou que realmente aconteceu o homicdio, chamou o corpo de bombeiros para a retirada do corpo e comunicou delegacia 6. Nesse sentido, essa descrio

    6 Este relato foi construdo com base nos relatos padronizados que encontrei ao ler as dinmicas dos registros de

    homicdio, encontro de cadver e leso corporal seguida de morte. Sobre a padronizao dos relatos contidos nos registros de homicdio, ver Miranda et alli, 2005.

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    no fruto de um resultado investigativo, um registro literal que exime de responsabilidade qualquer interpretao errnea que possa ser feita pelo policial que o formaliza.

    Esse fato est extremamente relacionado ao valor excessivo que se d aos registros pblicos no sistema inquisitorial e cartorial que orienta as aes da polcia. Como exercida uma suspeita sistemtica sobre as pessoas, o cartrio se responsabiliza por estabelecer a veracidade da assero. Como quem tem f pblica nesse sistema cartorial quem atesta, no quem simplesmente relata, uma importante estratgia para eximir o agente de responsabilidade expor

    apenas o que lhe for mencionado. Ademais, entendo que a lgica do documento que tem de ser registrado e protocolado precede a lgica do registro como um insumo para a investigao.

    Outra caracterstica interessante de ser notada em relao ao contedo dos registros a

    impreciso dos papis atribudos s pessoas, quando lhes outorgada a categoria envolvido. A categoria envolvido uma das categorias disponveis nos procedimentos policiais. Alm das

    classificaes vtima, autor, e adolescente-infrator, a Delegacia Legal introduziu a categoria envolvido para a qualificao de pessoas nos procedimentos policiais. Vrias vezes, ao justificarem o uso dessa categoria, os policiais diziam que o envolvido correspondia ao suspeito de ter praticado ou colaborado para o cometimento do crime. Geralmente essa categoria usada quando a polcia ainda no dispe de provas para assegurar quem seja o autor. Os policiais, assim, antecipam-se incriminao atravs da sujeio criminal, melhor dizendo, da sujeio de pessoas ao papel de suspeitas da autoria do crime (Misse, 1999). Assim a suspeio sistemtica (Kant de Lima, 1992 e 2000) aparece como uma prtica amplamente perpetrada na rotina da delegacia.

    Segundo os policiais, eles utilizam essa categoria somente na fase do RO, no seria aberto um Registro de Aditamento para classificar algum como envolvido. ainda uma categoria provisria que ir ser modificada, segundo eles, caso haja a comprovao da autoria. No entanto, um policial uma vez me relatou que quando quer forar uma testemunha a vir rpido dar

    depoimento na delegacia, a classifica como envolvido tambm. Assim, podemos observar que o uso dessa categoria d ampla margem de manipulao das ocorrncias por parte dos policiais.

    Isso importante, porque chama a ateno para o fato de que o termo envolvido abrange acima de tudo, um comprometimento das pessoas com o fato, o que retificado pelo tratamento legal

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    dado s testemunhas. A testemunha no Brasil responde ao crime de perjrio, enquanto ao ru lcito mentir, o acusado pode mentir em sua defesa. Assim, as testemunhas passam a estar

    envolvidas, ou melhor, comprometidas com o que falam muito mais do que os autores dos crimes sobre os quais vai depor.

    Se, num primeiro momento, eu objetivei desconstruir o contedo dos registros, agora desejo atentar para a forma como os policiais utilizam os registros policiais. Anteriormente, citei que a

    reforma props-se a democratizar as informaes policiais, a modificar o potencial e impor uma

    nova forma de controle sobre o processo de produo dos registros a fim de identificar a responsabilidade pelas investigaes e inquritos. Desse modo, o programa tenta implantar uma

    forma de acompanhamento por accountability dos procedimentos policiais. No entanto, a prtica policial aponta para caractersticas bem diversas.

    Certa vez observei chegar um homem de terno na delegacia que entregou um documento

    atendente para que ela, por sua vez, repassasse ao inspetor com quem ele tinha falado em ocasio anterior. A atendente pediu que ele aguardasse ao balco e levou o documento para o policial. Cerca de cinco minutos depois, o policial veio falar com o homem que o esperava ao balco. Em meio conversa dos dois, entendi que o homem havia recebido cheque sem fundo de uma mulher (que lhe deu o endereo e telefone falso), repassou-o para algum e estava sendo acusado de estelionatrio. Ento, o homem foi delegacia com o cheque (que estava em meio papelada entregue ao policial) a fim de resolver o problema. No entanto, o que o policial lhe disse que se ele quisesse resolver o problema rapidamente, em trs a quatro dias, deveria ir agncia bancria

    de quem lhe passou o cheque ao invs de fazer o registro na delegacia, onde se levariam meses para chegar a alguma soluo. O policial deixou a cargo do homem decidir, mas aconselhou-o

    a no fazer o registro, avisando que se corria o risco do cheque que ele estivesse entregando na delegacia desaparecer. O homem, porm, insistiu em fazer o registro porque, em momento anterior, ele havia conversado com o delegado e este lhe orientara sobre o procedimento mais correto a se fazer. O policial, ento, falou-lhe que se o cheque sumisse, o delegado iria falar que no sabia de nada e a responsabilidade da perda recairia em cima dele (o policial) e no do delegado, por isso no queria assumir a responsabilidade do cheque que lhe estava sendo entregue. Mesmo assim, o homem disse que queria dar entrada no procedimento para poder receber o dinheiro de volta. O policial afastou-se do balco, entrou na delegacia e falou em tom

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    de ironia (que parecia tambm uma ameaa): Ah, se isso que voc quer eu vou dar entrada, hein? Mas eu te avisei!. O homem esperou mais uns quinze minutos at o policial voltar, quando

    retornou, o policial disse que j estava tudo certo. O homem pediu ao inspetor o nmero do protocolo, que lhe respondeu que no poderia fornecer porque o delegado ainda iria protocolar. O

    homem insiste. O inspetor pede que retorne noutro dia para receber o nmero do protocolo. O homem sai da delegacia, sem o nmero do protocolo.

    O registro entendido como se fosse algo que possa ser utilizado contra algum, um

    instrumento do Estado contra tudo e contra todos, para apurar a verdade dos fatos (Kant de Lima, 1995). O registro seria assim entendido muito mais como uma ameaa do que como um direito. Essa assero insere-se em uma lgica na qual a sociedade est sempre sob suspeita e cabe ao Estado estabelecer uma verso sobre a verdade dos fatos, verdade essa que no pode ser em momento algum submetida negociao. Enquanto um agente do Estado, ao policial imputada a obrigao de manter a ordem social, mas como ele obrigado a agir, ele tem que prestar conta de suas atividades, apesar de diretamente responsabilizado por quaisquer incorrees. Dessa forma, o registro tambm pode ser usado contra o agente. O uso do filtro7 no um privilgio da polcia brasileira, os policiais geralmente tm discricionariedade por serem responsveis pela aplicao da lei.

    Todo trabalho organizado necessita de interpretao e adaptao das regras, no caso, negociao e compromisso; e que ela nunca funciona portanto em conformidade perfeita com as normas que supostamente a dirigem, mesmo quando elas no so contraditrias (Monjardet, 2003, p. 41).

    Entretanto, diferentemente da polcia francesa e americana, Polcia Civil brasileira negada a

    capacidade de negociao do conflito; por ser tambm judiciria - trabalhando somente com fatos crime - orienta-se pelo princpio da obrigatoriedade de agir quando toma conhecimento de alguma conduta criminosa. A prtica descrita acima no diz respeito a uma opo de escolha legtima que ele tenha (discretion), mas representa uma oportunidade, o que obedece mais s convenincias de fugir ao controle e cobrana que pode ser feita sobre suas aes e faz prevalecer lgica pblica, a lgica corporativa (Kant de Lima, 1995).

    7 O filtro consiste em uma seleo das ocorrncias que sero atendidas. Esta seleo pode se dar de diferentes

    formas: os policiais negam a formalizao do registro alegando que tal fato se trata de crime, os policiais desestimulam a vtima a realizar o registro, ou impem uma negociao forada entre os envolvidos no conflito.

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    Assim, para avaliar a efetividade da capacidade de monitoramento e controle proporcionada pela reforma, deve-se no s atentar para as informaes que esto sendo mostradas, mas tambm

    para o que est sendo velado. Outra questo passa a ter importncia crucial: o programa visa publicizar as informaes, mas como os policiais se relacionam com os novos instrumentos?

    No que diz respeito disposio de informao, a adoo de novas tecnologias viria possibilitar um acompanhamento georreferencial dos crimes. Porm, um delegado me informou que utiliza esta ferramenta muito mais para confirmar a competncia circunscricional dos crimes do que para

    desenvolver formas investigativas mais inteligentes. Assim, seu argumento, quando perguntado sobre a forma como utiliza o georreferenciamento:

    Aquela rua, ela minha ou deles, ou parte minha ou parte deles?A, voc vem e consulta, entendeu? Isso que bastante usado; a gente usa muito aqui. Porque as delegacias, (...) so divididas at por meio de rua; meio de rua pra l seu... Subida do morro: a do lado direito minha, a do lado esquerdo sua. Entendeu? Ento, a gente tem que usar. Por exemplo, um homicdio... Se a gente tem dvida, ns vamos l consultar. Num homicdio, s vezes... a gente, s vezes, tem dvida. A, ningum quer homicdio; cada um quer... quero empurrar pra ela, ela quer empurra pra c, entendeu? A, aqui no. Aqui, a gente tem [a informao]... no tem jeito; mostra de quem . E voc no pode fugir daquilo.

    Em regra, as delegacias de polcia devem atender qualquer tipo de ocorrncia que lhe comunicada, para s depois encaminhar o procedimento para andamento na delegacia competente. A publicidade das informaes pelo sistema ideal proposto pelo programa deve ento ser ponderada pela forma como os policiais utilizam os instrumentos disponveis, pois claramente me deparei com prticas que vo contra ao que propaga o PDL. Alm deste exemplo,

    um delegado me relatou em entrevista que opta por fazer alguns procedimentos no word (editor de texto), para ningum ter acesso, disse que no inclui certos procedimentos no sistema das delegacias para assegurar o sigilo das investigaes.

    Assim ele exemplifica: s vezes voc faz uma escuta no telefone e todo mundo sabe que naquele perodo qual o telefone que eu estou pesquisando. Isso ruim. Atrapalha na investigao, pois

    pode vazar alguma informao sobre isso. No tem porque todo mundo ter acesso. Vale ressaltar que o nico procedimento disponvel para todas as delegacias no sistema o registro. E o registro

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    um documento inicial e no contm muitas informaes que dizem respeito investigao. Tem-se neste documento a formalizao de um fato e a identificao de pessoas, servindo como

    um indicador para os posteriores desdobramentos que sero realizados pelos policiais. No entanto,

    ... mesmo quando a informao relevante est acessvel (e em nvel confortvel de generalidade), ainda permanece o problema da resistncia implementao de recomendaes dela derivadas. Essa a antiga luta entre as foras da tradio herdada e da prtica rotineira, para no mencionar o interesse velado versus os frutos da anlise racional (Bittner, 2003, p. 361-362).

    As informaes que dizem respeito investigao realizada pelos policiais esto disponveis na

    forma de termos de declaraes (que consiste no relato de todos os envolvidos no crime), relatrios de investigao (reconstruo do fato com base no resultado das investigaes) e etc. Apesar de comporem o inqurito, estes documentos no esto disponveis em rede para todas as delegacias e os policiais resistem em colocar no sistema algumas informaes que so oriundas de sua investigao. O trabalho investigativo realizado pelo policial apropriado por ele de forma

    particular. Assim, outra gramtica de controle que no se baseia no princpio da accountability tem lugar nas delegacias, pois o controle social tambm exercido particularizadamente.

    Certa vez observei um Policial Militar entrar no Setor de Inteligncia Policial (SIP), pedindo para o policial do setor verificar os antecedentes de um motoboy que estava envolvido em um acidente de trnsito, e que o PM tinha encaminhado para a delegacia fazer o registro. O policial digitou o nome do motoboy na pgina da Polinter, no sistema da Delegacia Legal e no encontrou nenhuma

    referncia quanto aos antecedentes desta pessoa. Por ltimo, revelou uma base de dados particular, abriu uma gaveta no armrio ao lado e dela retirou uma pasta com os dados de vrios

    motoboys que trabalhavam e residiam na rea.

    principalmente porque a atuao policial se orienta a partir de uma lgica de suspeio, que a manuteno da guarda das informaes de forma particular (arquivos pessoais) conserva-se como uma regra. Apesar da transparncia ser o discurso oficial do programa, o segredo e a importncia atribuda s informaes no-pblicas que permanece enquanto prtica na delegacia.

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    De fato, h uma mudana no estatuto das estatsticas e no potencial dos registros a partir do programa. Agora, responder se a reforma implicou em uma maior qualidade dos registros e

    conseqentemente da investigao, implicaria perguntar se mudou a forma de gesto desses recursos. O que vale notar que se no modelo anterior, os produtos da delegacia direcionavam-se

    somente divulgao, os recursos disponveis pela Delegacia Legal fazem com que as informaes tenham mais facilidade em ser coligidas, reorganizadas e trabalhadas em prol do exerccio do controle social. No entanto, o que se pode observar atravs dessas prticas que avocando algumas prerrogativas jurdicas, atravs do segredo de justia, ou ainda prerrogativas tcnicas, atravs da especializao, ou os policiais invocam outra gramtica para tornar manifesto o preceito de que tudo mude, desde que continue a mesma coisa (entrevista, 2004).

    As Sensibilidades Jurdicas

    Observa-se que a seleo das ocorrncias e a forma como os policiais percebem o registro

    abrangem uma particular noo do prprio sistema de justia e do papel da instituio no processo de construo de verdade judiciria. Explicitam uma sensibilidade jurdica (Geertz, 1997) mais orientada s formalidades burocrticas do que, de fato, em administrar justia.

    Segundo um policial, o trabalho por ele realizado um trabalho de convencimento. O Inqurito Policial um trabalho administrativo e sem valor judicial, mas que serve de fonte para o convencimento do juiz. Assim, o policial deve produzir um sem nmero de provas e lanar mo de todas as estratgias para tentar persuadir o delegado, o promotor e o juiz sobre a verdade dos fatos presumidos que ele investiga.

    Assim, a polcia obrigada a agir quando toma conhecimento de uma conduta criminosa. A partir disso, inicia uma forma inquisitorial de produo de verdade, toma algum como suspeito e busca todos os indcios que possam convencer o juiz de que o suspeito na verdade culpado. No entanto, a instituio assume uma posio vulnervel no sistema de justia, pois todos os procedimentos colhidos pelos policiais deveriam ser reproduzidos na esfera judicial a fim de assegurar o princpio do contraditrio e defesa do acusado, o que segundo um policial, faz com que a polcia seja um bode expiatrio do sistema de justia. Assim, suas observaes:

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    Aqui a gente est mais em contato com o fato, com a pessoa, a gente ta aqui no calor da situao, e a gente visualiza a situao, s que eu tenho cinco minutos para resolver e ai claro que eu fico muito mais propenso a tomar uma deciso errada, deixo uma coisa para acertar depois... Mas no juiz j chega o processo encaminhado e s papel, voc no tem contato com a parte, s tem em uma audincia... Ai j leu, j releu o promotor, o juiz j pediu... E aqui a gente fica muito exposto porque a gente tem um contato muito grande com a vtima, o lesado, o homicdio, uma tentativa de homicdio, o parente, a gente t em contato no dia a dia e claro, quem que vai se indispor? o policial. Quem est na rua trocando tiro e incomodando gente dentro de casa em uma favela trocando tiro, o traficante dando tiro na polcia e a polcia tendo que revidar, quem vai ficar incomodado? Morador. Com quem? O traficante? Em quem ele vai tacar pedra? No policial, que o policial arbitrrio. A historia est marcando que a corrupo no privilgio da polcia, mas a gente est de frente, a gente a primeira pessoa a dar a cara a bater e a gente acaba sempre pagando o pato, a gente tem menos fora poltica, a gente uma classe que est sendo desmerecida a cada dia, nos policiais civis, os policiais militares principalmente que esto na rua no dia a dia, eles eu sofrem mais at que a gente, entendeu? E a a gente fica desmotivado a trabalhar. E a acaba refletindo na desmotivao em trabalhar, o policial fica desmotivado. Porque qualquer coisa que est errada, ele culpado. (entrevista, 2005)

    Em um ambiente que no lhe concede autonomia, no h responsabilidade por accountability, mas sim o estado de suspeio e de identificao de culpados. Assim, o papel assumido pela polcia no processo de construo da verdade judiciria torna extremamente vulnerveis seus agentes, pois deles que se cobra a obrigatoriedade de agir. Para eles, os problemas que tem origem no sistema de justia, no podem ser atribudos individualmente aos agentes responsveis pela primeira etapa de formalizao e investigao. Avaliando a questo da meritocracia e da avaliao de desempenho no setor pblico brasileiro, Barbosa (1996, p. 88) salienta que

    ... na sociedade brasileira esperamos sempre que nossas produes individuais sejam avaliadas no contexto em que foram produzidas e cada um de ns atuou. Isso significa que queremos ser analisados dentro da lgica do eu e minhas circunstncias. O que eu fui capaz de fazer dentro do contexto social em que operei. Se, na sociedade americana, as circunstncias so invocadas apenas para valorizar o desempenho individual, na sociedade brasileira elas so sempre lembradas para justificar a qualidade do que cada um foi e capaz de produzir. (...) A melhor forma de sintetizar a concepo do que desempenho para ns dizer que, no Brasil, desempenho no se avalia, se justifica.

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    por isso que ganharia espao a desmotivao de agir (policial em entrevista, 2003) e a lgica corporativa das malhas que garantem proteo diante do risco proporcionado por outras formas

    de controle que os tornam vulnerveis punio.

    A existncia dessa gramtica de controle baseada no controle punitivo combinada falta de autonomia que os policiais tm em tomar decises faz com que se desenvolvam nas delegacias vrias maneiras de evadir ou manipular as novas regras. Diante do Programa Delegacia Legal, os policiais tiveram de encontrar novas maneiras para fazer as mesmas coisas at que o programa

    perdesse seu sentido original. Atualmente, as Delegacias Legais so as convencionais informatizadas, os tipos de adaptao reforma so formas de negar a reforma, pois o programa

    no foi colocado em prtica no que diz respeito gesto.

    O Programa Delegacia Legal representa avanos por modificar o estatuto e o potencial dos registros. No entanto, os diferentes usos dos registros por parte dos policiais denotam que so eles

    que dominam as regras do jogo (Bibas, 2005), quem deve ou no registrar, o que deve ou no ser registrado, o que merece ser investigado e o que procede ou no virar inqurito. essa lgica corporativa e inquisitorial que faz com que as prticas reproduzidas nas formas de dizer o direito estejam encasteladas dinmica interna da prpria instituio.

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