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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Juazeiro – BA – 5 a 7/7/2018 1 Semiótica do risível no Auto da Compadecida: Uma análise do “não sei, só sei que foi assim” 1 Allane MARREIRO 2 Diego CAVALCANTE 3 UNIFANOR | WYDEN, Centro Universitário Fanor | Wyden, Fortaleza, CE RESUMO: O propósito desse artigo é analisar a singularidade do riso no filme o Auto da Compadecida (versão da minissérie), de forma específica, do personagem Chicó. Para compreender o significado do riso partiremos da abordagem semiótica de Charles Sanders Peirce e do método semiótico do risível proposto por Cavalcante. Partindo desses pressupostos, compreendemos que a singularidade do risível em Chicó é o da mentira. Nesse processo de significação o efeito não é a manipulação do interlocutor, mas antes o riso que deriva do caráter exagerado e criativo na apresentação das histórias que apresentam dissonância inconciliável com a realidade. Palavras-chave: Semiótica; Semiótica do Risível; Humor; Auto da Compadecida; 1. INTRODUÇÃO O humor se manifesta de diferentes formas buscando sempre provocar o riso. Mas o que gera esse riso? Se uma pessoa não conhecer o contexto do que está sendo narrado, ela vai ser atingida por aquilo? O riso pode ser gerado através das coisas mais banais, ele só depende que o receptor esteja aberto para perceber o que está sendo dito pelo emissor, que nesse caso pode ser uma pessoa, um livro, uma obra audiovisual, ou simplesmente as coisas que estão acontecendo ao seu redor. Vários pensadores desde os mais antigos, como Platão, até os considerados contemporâneos, como Joubert, já refletiam sobre o que gera o riso e chegaram à conclusão de que ele está ligado aos sentimentos e a forma como eles nos afetam: 1 Trabalho apresentado na IJ Jornalismo do XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, realizado de 5 a 7 de julho de 2018 2 Graduanda do curso de Comunicação Social Jornalismo, UNIFANOR | WYDEN Campus Dunas, e-mail: [email protected] 3 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da DeVry | Fanor e orientador desse artigo, e-mail: [email protected]

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Juazeiro – BA – 5 a 7/7/2018

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Semiótica do risível no Auto da Compadecida: Uma análise do “não sei, só sei que

foi assim”1

Allane MARREIRO2

Diego CAVALCANTE3

UNIFANOR | WYDEN, Centro Universitário Fanor | Wyden, Fortaleza, CE

RESUMO:

O propósito desse artigo é analisar a singularidade do riso no filme o Auto da

Compadecida (versão da minissérie), de forma específica, do personagem Chicó. Para

compreender o significado do riso partiremos da abordagem semiótica de Charles Sanders

Peirce e do método semiótico do risível proposto por Cavalcante. Partindo desses

pressupostos, compreendemos que a singularidade do risível em Chicó é o da mentira.

Nesse processo de significação o efeito não é a manipulação do interlocutor, mas antes o

riso que deriva do caráter exagerado e criativo na apresentação das histórias que

apresentam dissonância inconciliável com a realidade.

Palavras-chave: Semiótica; Semiótica do Risível; Humor; Auto da Compadecida;

1. INTRODUÇÃO

O humor se manifesta de diferentes formas buscando sempre provocar o riso. Mas o que

gera esse riso? Se uma pessoa não conhecer o contexto do que está sendo narrado, ela vai

ser atingida por aquilo? O riso pode ser gerado através das coisas mais banais, ele só

depende que o receptor esteja aberto para perceber o que está sendo dito pelo emissor,

que nesse caso pode ser uma pessoa, um livro, uma obra audiovisual, ou simplesmente as

coisas que estão acontecendo ao seu redor.

Vários pensadores desde os mais antigos, como Platão, até os considerados

contemporâneos, como Joubert, já refletiam sobre o que gera o riso e chegaram à

conclusão de que ele está ligado aos sentimentos e a forma como eles nos afetam:

1 Trabalho apresentado na IJ – Jornalismo do XX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste,

realizado de 5 a 7 de julho de 2018

2Graduanda do curso de Comunicação Social – Jornalismo, UNIFANOR | WYDEN – Campus Dunas, e-mail:

[email protected]

3Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da DeVry | Fanor e orientador

desse artigo, e-mail: [email protected]

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Remeter o riso a uma afecção da alma não é propriamente novo na

história do pensamento sobre o riso. Já Platão definia o estado de alma

suscitado pelas comédias como uma afecção mista, feita de uma mistura

de dor e prazer (cf. Philèbe, 48a-ss). No mesmo sentido, foi no contexto

de discussão das paixões a serem suscitadas no ouvinte que o riso e

principalmente aquilo que faz rir surgiram como objetos no campo da

retórica antiga (cf. especialmente Cícero, Del'orateur, II, 216-ss, e

Quintiliano, Institutionoratoire, VI, 3). A novidade de Joubert não está

propriamente no fato de relacionar a causa do riso a uma paixão ou

afecção da alma, e sim no modo como dá conta dessa paixão,

dissecando o processo de formação do riso desde a matéria risível até

os mínimos detalhes da agitação do corpo - processo cuja precisão

depende de longas incursões no terreno das faculdades da alma,

especialmente no que diz respeito à relação entre o cérebro e o coração.

(ALBERTI, 1995, pág.5)

A palavra humor em si é vista como um estado de espírito em que um indivíduo se

encontra, mas para muitos constitui uma categoria cômica que transforma o significado

do mundo a partir da distorção da realidade encontrada no cotidiano. De acordo com

Urbano Zilles (2003, pág.84), “o humor parte de uma abertura da pessoa em relação às

coisas sensíveis, de uma entrega ao claro-escuro dos sentimentos, de uma percepção

perspicaz da ambiguidade da existência. Exige distanciamento e reações imediatas”.

Descobrir as causas do riso pode ser uma tarefa bastante difícil se levarmos em conta que

os indivíduos passam por experiências diferentes ao longo da vida e que tem um

repertório de conhecimento distintos entre si. Dentro da perspectiva da Semiótica

Peirceana, esse repertório simboliza os signos que adquirimos desde a infância, e a partir

deles as coisas ganham significado e são suscetíveis as mais diversas interpretações de

acordo com os signos identificados pelo interpretante.

Então do ponto de vista semiótico como o riso é gerado? A semiótica traz através dos

signos uma representação do real, na semiótica do humor, proposta por Diego Cavalcante,

ela busca na relação dos signos com o objeto, o rompimento da lógica da realidade.

Situações inesperadas e que surpreendem faz com que haja uma quebra da seriedade e

essa interpretação do inesperado é o que faz nascer o riso no interpretante que no caso é

quem recebe a situação cômica.

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Para Diego (no prelo, p..2), “[...] se semiótica investiga a lógica de representação da

realidade e se assumimos que o humor promove a subversão, fuga da seriedade-realidade,

então, a semiótica do humor seria a investigação lógica da subversão da lógica de

representação da realidade”.

Dito isso, esse artigo tem como intuito fazer uma análise do humor do filme O Auto da

Compadecida (versão da minissérie) que foi baseado na peça de teatro de Ariano

Suassuna e o primeiro filme feito inteiramente pela Globo Filmes. Inicialmente foi

exibido como uma minissérie de quatro capítulos e fez tanto sucesso que foi adaptado

para uma versão de cinema com 100 minutos a menos que o tempo da minissérie, levando

mais de 2 milhões de telespectadores aos cinemas mesmo tendo sido exibido

gratuitamente na TV aberta.

Ele traz o drama vivido pelos nordestinos que são representados pelos personagens João

Grilo (Matheus Natchergaele) e Chicó (Selton Mello) que acuados pela seca e pela fome

lutam constantemente contra a pobreza e a miséria. O filme retrata bem o sertanejo

nordestino que vive submetido a opressão dos coronéis donos de terra e das famílias ricas

da cidade e que para sobreviver se apega a religiosidade representada principalmente na

figura de Nossa Senhora.

Através dos conceitos da semiótica, de Chales Peirce, e do estudo de semiótica do humor,

de Diego Cavalcante, focando no personagem Chicó, esse trabalho tem como objetivo

entender como o riso é gerado a partir das características (signos) visuais e verbais desse

personagem quando o mesmo começa a contar histórias bastante peculiares das supostas

aventuras que ele viveu.

2. SEMIÓTICA PEIRCEANA E SEMIÓTICA DO HUMOR

A semiótica é a ciência dos signos, ela investiga as linguagens e processos comunicativos

tirando significados da natureza e da cultura. A semiótica Peirceana tem como base a

fenomenologia que é uma quase ciência que descreve os fenômenos. O fenômeno, por

sua vez, é todo e qualquer tipo de coisa que aparece em nossa mente. Pensando nisso,

pode-se concluir que de certa forma, o processo de semiose pega algo abstrato e cria um

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olhar mais sensível e crítico em cima dessa coisa usando elementos trazidos pelo signo

para a construção de um pensamento lógico que pode ser guiado pelos valores e as

condutas de um indivíduo.

O conceito de signo, de acordo com Peirce, é uma coisa que representa outra coisa que

produz um efeito interpretativo para alguém. Está muito ligado as referências que cada

pessoa adquire durante a vida. São essas referências que dão significado na construção de

novos repertórios quando um indivíduo se depara com algo que estava desconexo do seu

campo de possibilidades.

[...]um homem pegou a idéia de um outro homem; em que, quando um

homem relembra o que estava pensando anteriormente, relembra a

mesma idéia, e em que, quando um homem continua a pensar alguma

coisa, digamos por um décimo de segundo, na medida em que o

pensamento continua conforme consigo mesmo durante esse tempo,

isto é, a ter um conteúdo similar, é a mesma idéia e não, em cada

instante desse intervalo, uma nova idéia. (PEIRCE, 2000, pág. 46)

Um signo pode equivaler a si mesmo ou pode ser um signo que representa outro signo. A

coisa representada por esse signo é denominada objeto e a significação criada na mente

do receptor é designada como interpretante. Esses três elementos juntos são considerados

a triádica do signo que pode ser melhor entendida do trecho a seguir:

Isso assim se dá porque, na definição de Peirce, o signo tem uma

natureza triádica, quer dizer, ele pode ser analisado:

em si mesmo, nas suas propriedades internas, ou seja, no seu poder

para significar;

na sua referência àquilo que ele indica, se refere ou representa; e

nos tipos de efeitos que está apto a produzir nos seus receptores,

isto é, nos tipos de interpretação que ele tem o potencial de

despertar nos seus usuários.

Desse modo, a teoria semiótica nos permite penetrar no próprio

movimento interno das mensagens, no modo como elas são

engendradas, nos procedimentos e recursos nelas utilizados.

(SANTAELLA, 2005, pág. 5)

A semiótica está preocupada com o desenvolvimento da significação, então para que haja

o processo de semiose é necessário entender o signo como um todo que é analisado a

partir do fundamento do signo ou representâmen, do objeto, e do interpretante. Cada parte

dessa tríade tem subdivisões que ajudam no estudo e na compreensão das relações

sígnicas através de modos universais de descrever tudo o que vem à mente. O signo em

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si ou representâmen se divide em quali-signos, sin-signos e legi-signos. O signo em

relação ao objeto se divide em ícone, índice e símbolo. E o interpretante se divide em

rema, dicente e argumento.

Os signos também são divididos em três categorias fenomenológicas que dão fundamento

à semiótica: a primeiridade que retrata aspectos que qualificam os signos, a primeira

impressão dele; a secundidade que confirma a existência do signo, é um registro do

sentimento da sua experiência com o signo; e a terceiridade que é a capacidade de

interpretar, é a conexão das qualidades (primeiridade) com o fato da existência

(secundidade). Para MEDEIROS (pág.3), a “primeiridade é sempre a percepção, algo

abstrato, rápido, secundidade a representação/função e terceiridade o pensamento

completo, dando todo o contexto do signo”.

Os aspectos que estão ligados a primeiridade sempre vão estar relacionada as coisas que

expõe e aguçam os sentidos para as qualidades visuais do signo, na secundidade são

relacionados as ações e reações e na terceiridade aos hábitos e leis. Esses aspectos

coexistem mas tem características específicas com podemos ver na tabela a seguir:

Tabela 1 – Categorias do signo

Categorias do

signo

Signo em si ou

Representâmen

Objeto Interpretante

Primeiridade Quali-signo:

qualidades dos

fenômenos que

envolvem o signo

como cores,

textura, formas,

etc;

Ícone: tem uma

relação de

semelhança/sugestão

com o objeto

representado

podendo substitui-

lo;

Rema: signo que

para o seu

interpretante dá

uma possibilidade

qualitativa. Um

tipo de estilo pode

ser um rema;

Secundidade Sin-signo: aspectos que

particularizam o

signo,

características

existenciais que o

tornam único

dentro do universo

em que ele se

manifesta;

Índice: o signo tem

uma conexão direta

com o objeto, de

maneira que o signo

faz uma indicação

do referente

apontando para ele.

(Ex: a fumaça é um

signo que indica

fogo);

Dicente: signo que

para o interpretante

comprova sua real

existência. É uma

sugestão que

envolve um rema;

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Terceiridade Legi-signo:a

manifestação de

padrões, regras e

convenções no

representâmen. A

extração de uma

característica que

ele tem em comum

com todos os

outros que o coloca

dentro de uma

classe geral;

Símbolo: o signo

representa um objeto

real através de

noções abstratas

associadas a uma

ideia que é

determinada por lei

por conveniência

coletiva;

Argumento:para o

interpretante o

objeto é

representado em

seu caráter de

signo por uma lei

geral que seja

reconhecida por

todos envolvendo

seu dicente;

Segundo Cavalcante, na semiótica do humor, a hipótese do riso semiótico parte de três

pressupostos: no primeiro o riso é gerado pela quebra da lógica de representação realista;

no segundo essa quebra vem da abstração de elementos que representam a realidade; e no

terceiro o riso é influenciado por aspectos sociais e culturais que fazem parte da realidade

do indivíduo que vai ser o interpretante. Logo, se a semiótica estuda a construção do

pensamento lógico e o humor se manifesta a partir da perturbação da razão lógica, a

semiótica do humor seria o estudo do rompimento da lógica da realidade. Em outras

palavras:

A semiótica do humor investiga como o signo (seu fundamento) faz

continuar seu objeto dinâmico abstraindo sua seriedade-realidade

(relação signo objeto) de modo que possibilite ao seu interpretante uma

descarga de riso que deriva da relação entre a realidade-lógica

corrompida e seu reconhecimento. (CAVALCANTE, no prelo, pág. 2-

3)

Apesar de todas as partes do signo coexistirem, pode haver a predominância de uma parte

do signo sobre as outras como é no caso da semiótica do humor em que os aspectos da

primeira tricotomia é o que atinge diretamente o interpretante. O fundamento do signo-

humor é formado pelas qualidades de apresentação da piada. Podemos confirmar isso no

seguinte trecho:

A hipótese é de que a semiose do humor que privilegia o fundamento

do signo humorístico é a que causa o riso imediato. Isso porque o riso

derivaria da subversão das qualidades sígnicas, ou seja, do que se

apresenta, do que é imediato e não da relação do signo com seu objeto

dinâmico. Ou seja, não precisa conectar o signo com algo ou extrair a

conclusão para rir. A subversão do real é a da própria aparência e não

do que ele representa. É importante lembrar: trata-se sempre de

predominância. (CAVALCANTE, no prelo, pág. 3)

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Os quali-signos humorísticos trabalham a estética dos signos, sua aparência em si,

pegando atributos de qualidades de cor, sons, formas, táteis, sinestésicas, que

desarmonizam e deturpam as características da seriedade e da realidade. Os sin-signos

humorísticos singularizam as qualidades dos signos-humor que manifestam de forma

única sons, gestos, movimentos, entonações. A combinação dessas qualidades com a

aparência gera a fuga da seriedade-realidade. Já os legi-signos humorísticos se apoiam

em leis, regras ou hábitos que ordenam as aparências, padronizando a forma como o

humorista constrói as qualidades dos signos-humor no decorrer da sua apresentação. Por

isso, para fazer essa análise foi levado em conta:

A análise semiótica do fundamento do signo é caracterizada pela

abstração da seriedade-realidade-lógica-ordem dos aspectos explícitos

do signo, ou seja, na sua apresentação. Tratar-se-ia de identificar nos

casos singulares (sin-signos) como estes indicam uma gradação de

regularidade (legi-signos) no modo como determinado comediante

associa as qualidades dos signos (quali-signo) para produzir o riso.

(CAVALCANTE, no prelo, pág. 4)

A análise desse artigo, portanto, vai se utilizar da abordagem semiótica do riso para

investigar a singularidade do processo de significação do risível na produção audiovisual

o auto da compadecida, através do que é representado no personagem Chicó e a relação

disso com suas histórias.

3. A semiose do riso mentiroso: “NÃO SEI, SÓ SEI QUE FOI ASSIM”

Ao longo do filme Chicó conta várias de suas histórias (mentiras) para diversos

personagens, por isso, foi separado dois desses casos, em que ele interage com seu amigo,

João Grilo, que serão analisados de acordo com o proposto pela semiótica do humor. A

primeira história vai de 04’47’’ a 06’03’’em que Chicó conta a história de sua caçada as

pacas para seu amigo João Grilo:

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Figura 1 – Cena da história de Chicó quando ele coloca a mão na boca da espingarda por tiro não

sair

João Grilo: Cadê? Caçou alguma coisa?

Chicó: Quase!

João Grilo: Tá aí um bicho gostoso esse quase. A gente quase assa, quase come e quase

morre de fome.

Chicó: Quase pego pra mais de quinze pacas João.

João Grilo: Estou quase lhe pegando na mentira Chicó.

Chicó: Oxefulerage! Quando foi que já me viu mentindo?

João Grilo: Nunca vi, só ouvi.

Chicó: Pois devia tá lá pra ver.

João Grilo: A mentira?

Chicó: Não homem, as pacas. (Dá uma tragada no cigarro) No canto do riacho de Cosmo

Pinto onde as paca atravessa, é tanta paca mais tanta paca que cruza por lá que a trilha

delas fica marcada na água. O riacho vem reto e naquele canto dá uma afundada assim

oh.

João Grilo: Oxe e água é barro pra ficar com o caminho marcado pela passagem dos

bichos?

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Chicó: Não sei, só sei que é assim. Eu tava lá tocaiando quando apareceu pra mais de

trinta paca.

João Grilo: Você tinha falado mais de quinze.

Chicó: Oxente homem! Trinta não é mais que quinze não?

João Grilo: Tá certo. Eu vou calar minha boca para não espantar suas pacas.

Chicó: É melhor mesmo. Pois apontei minha papo amarelo, puxei o gatilho e de repente

apareceu na minha frente a égua do major Antônio Morais. Eu pensei: eu vou matar a

égua do Major Antônio Morais e ele vai me matar. Tenho que dar um jeito nisso.

João Grilo: Que jeito se já tinha puxado o gatilho?

Chicó: Tudo isso eu pensei foi ligeiro, mais ligeiro ainda eu tampei a boca da espingarda

com a mão pro tiro não sair chega a bicha ficou assim oh (barulho e coisa inchando)

quando destampei e soltei a bala as pacas já tinham ganhado mato.

João Grilo: Vamos largar suas caçadas Chicó, vamos caçar trabalho.

A história que Chicó conta é tão absurda que fica claro que não é verdade. A mentira em

si já é uma quebra da lógica realista então temos como objeto a subversão da realidade

que é trazida pela mentira. Ele sempre distorce as caraterísticas do real, tanto que João

Grilo fica questionando sobre essas coisas que ele fala que diferem da realidade como

quando o Chicó conta que é tanta paca passando pelo rio que por onde elas passam a água

dá uma afundada.

Na construção da mentira, Chicó, cria um mundo fantasioso a partir dos signos que ele

pega da situação em que ele está. Nesse momento ele acaba de chegar da caçada sem nada

para assar e para tentar reverter a frustação de não ter conseguido nada ele começa a se

gabar do motivo de não ter conseguido trazer nada de volta. Pegando esse fato e

misturando com as próprias características visuais do personagem que é pobre, medroso

que se passa de valente, entra em desespero facilmente, sempre acende um cigarro quando

começa a contar suas histórias e dá uma tragada, a fumaça que ele solta do cigarro faz ele

viajar na “lembrança” do que está contando que é a forma como visualmente é mostrado

esse mundo que ele cria através da mentira que é uma abstração da realidade em forma

de desenhos que lembram xilogravura, traços típicos que ilustram os cordéis nordestinos.

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A partir da quebra da lógica da normalidade dos signos com o objeto. A quebra da verdade

é tão exagerada que se torna cômico principalmente pela criatividade na explicação da

mentira. A surpresa que traz o rompimento da seriedade vem exatamente da criatividade

da construção da mentira. Ele vai aumentando as dimensões da mentira até esgotar

qualquer traço de razão e quando não consegue pensar em mais nada ele diz “não sei, só

sei que foi assim”.

Mas como o Chicó consegue transformar a mentira em riso? O conhecimento que o

emissor (personagem) e o receptor (quem está assistindo o filme) compartilham é uma

peça chave para a formação do humor. Como dito anteriormente, Chicó é medroso e sem

atitude, então, quando ele produz signos (fundamento) que apresenta grandes feitos, como

o da caçada das pacas, o fundamento do signo (que o apresenta) entra em colapso com o

conhecimento colateral sobre Chicó (medroso, frouxo).

A mentira produz uma dissonância entre o signo e seu objeto. Por isso, a mentira se torna

engraçada quando o conhecimento colateral denuncia e torna explícito, o caráter

desarmônico entre signo e seu objeto, ou seja, todos sabem que Chicó não é capaz de

protagonizar feitos tão corajosos e aventureiros como os que ele narra em suas histórias.

A relação entre o conhecimento da personalidade do Chicó e o signo quebra os esquemas

normativos de representação. O riso se dá pela quebra entre o fundamento do signo,

representados pelas atitudes triunfantes de Chicó, e quem ele realmente é “na vida real”.

O conhecimento prévio e a apresentação do signo são que geram o humor.

A criatividade à serviço da mentira destaca a relação entre fundamento, objeto e

conhecimento colateral, causando a produção de surpresa. A mentira tem um efeito

negativo quando engana, no entanto, o risível tira o peso da mentira pela quebra da

normalidade da situação de mentira. Quando o personagem mente, ele usa artifícios para

parecer real. No caso da mentira risível, ela se aumenta tanto que denuncia, por si só, que

se trata de um fato fictício, logo, fica impossível enganar alguém. E o fato de não enganar

aliado ao exagero leva ao riso.

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A segunda históriavai de 21’37’’ a 23’17’’ quando Chicó conta para João Grilo sobre seu

cavalo bento:

Figura 2 – Cena da história de Chicó quando ele estava montado em seu cavalo bento

João Grilo: Bispo tá pra chegar, eu tenho certeza que o padre João não vai querer benzer

a cachorra.

Chicó: E não vai benzer por quê? O que tem demais? Eu mesmo já tive um cavalo bento.

João Grilo: Que isso Chicó? Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre

alguma coisa toda esquisita e quando se pede uma explicação vem sempre com: num sei

só sei que foi assim.

Chicó: Mas eu tive mesmo um cavalo meu filho, o quê que eu vou fazer? Vou mentir e

dizer que não tive?

João Grilo: Você vive com essas histórias e depois reclama que o povo diz que você é

sem confiança.

Chicó: Eu? Sem confiança? Antônio Martinho tá aí pra provar o que eu digo.

João Grilo: Êh! Antônio Martinho! Faz três anos que ele morreu.

Chicó: Mas era vivo quando eu tinha o bicho.

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João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você que pariu o cavalo, Chicó?

Chicó: Eu não, mas do jeito que as coisas vão eu não me admiro mais de nada. Mês

passado uma mulher teve um lá para serras do Araripe lá pros lados do Ceará.

João Grilo: Isso é coisa de seca, acaba nisso essa fome, ninguém pode ter menino e haja

cavalo no mundo. Comida é mais barata e coisa que se pode vender. Mas seu cavalo bento

como foi?

Chicó: Cavalo como aquele nunca tinha visto (dá uma tragada no cigarro) uma vez

corremos atrás de uma garrota das 6h da manhã até as 6h da tarde sem parar nenhum

momento. Fui derrubar o boi já de noitinha.

João Grilo: O boi? E não era uma garota?

Chicó: Era uma garrota e um boi.

João Grilo: E você corria atrás dos dois juntos assim de uma vez?

Chicó: Corria! É proibido?

João Grilo: Não, mas eu me admiro deles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem.

Com foi isso?

Chicó: Não sei, só sei que foi assim. 17h montado e o cavalo ali comigo sem reclamar

nada.

João Grilo: Eu me admirava era se ele reclamasse.

Chicó: Comecei a correr na ribeira do Taperoá na Paraiba, pois bem, quando dei fé já

estava em Sergipe.

João Grilo: Sergipe? E o rio São Francisco, Chicó?

Chicó: Eita, lá vem você com sua mania de perguntas.

João Grilo: Claro! Tenho que saber. Como foi que você passou?

Chicó: Eu não lhe disse que o cavalo era bento? Por isso que não me admiro mais de nada.

Cachorro bento, cavalo bento, isso tudo eu já vi.

João Grilo: É, mas não vai ser com as suas lorotas que vamos convencer o padre João.

Nesse caso é interessante perceber como eles pegam aspectos sociais e culturais que

fazem parte da realidade do sertanejo que é pobre e passa por dificuldades por conta da

seca usando isso para fazer uma crítica enquanto Chicó em meio disso, insere sua história.

Ele inventa uma mentira para concertar outra mentira até não conseguir criar mais nada e

altera seu tom de voz demonstrando irritação e indignação com seu amigo por questionar

o que ele está dizendo.

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Como o signo é toda a construção de mundo que ele cria para inserir a mentira os sin-

signos com a particularização das características desse novo ambiente que está sendo

criado e os legi-signos com a quebra do convencional, ficam mais evidentes na

composição do riso. A história num todo é um objeto icônico pela representação da

mentira lembrar um cordel e simbólico por quebrar as leis do real de maneira criativa

fazendo com isso que o interpretante seja remático quando se remete a observação da

alteração da tonalidade de voz e a visualização das figuras enquanto conta a mentira, mas

também seja argumentativo já que precisa interpretar o rompimento da verdade

argumentativa.

É necessária uma conexão das qualidades visuais e verbais, além do conhecimento prévio

das características do personagem, para gerar o riso porque as expressões e gestos dos

personagens contam muito na formação do cômico. O humor vem da composição das

qualidades dos signos-humor no decorrer da cena com a forma que o Chicó conta as

mentiras, os sons que ele acrescenta na história e as observações que João Grilo faz

questionando a veracidade daquilo tudo. A combinação dessas qualidades com a

aparência gera a fuga da seriedade-realidade levando ao riso.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se analisa algo tão peculiar como a mentira, principalmente através da semiótica

voltada para o humor, é importante perceber que o ato de mentir em si não provoca o riso.

A princípio deve-se fazer os seguintes questionamentos: O que torna a mentira

engraçada? Quais as conexões entre signo-objeto-interpretante que causam o riso? Nesse

contexto, entender a origem do riso se dá a partir da desconstrução da lógica que está

sendo apresentada, extraindo a verdade dos fatos e identificando o que aproxima a mentira

da realidade.

No caso do estudo proposto nesse trabalho, a singularidade do humor criado pelo

personagem Chicó é exatamente o de transformar a mentira em riso. Pode-se perceber no

decorrer da análise que a mentira só se torna risível através da conexão que o interpretante

tem com o emissor, do conhecimento prévio de características que entram em

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discordância com o que está sendo contado. Ver o interpretante como comunicacional

diante do que lhe está sendo mostrado, acaba dando uma perspectiva diferente de um fato

e a partir disso desenvolve novos caminhos para a compreensão do riso.

Esse artigo se torna relevante justamente por abordar a semiótica aplicada no humor, que

ainda é uma área pouco explorada em estudos acadêmicos, podendo gerar mais pesquisas

tanto no âmbito da semiótica Peirceana em si, como na semiótica do humor, buscando

compreender o riso semiótico a partir da quebra da ordem, da normalidade e dos padrões

convencionais através do rompimento da lógica da realidade.

REFERÊNCIAS

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Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília, UnB, v.3, n.1, 1995, p.5-25.

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2003. Quadrimestral.