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Parte Geral Doutrina Prova Emprestada: Algumas Considerações CARLA HEIDRICH ANTUNES Advogada pósgraduanda em Direito Processual Civil. CAROLINE RIBEIRO BIANCHINI Advogada pósgraduanda em Direito Processual Civil. FERNANDO MAGALDI Advogado pósgraduando em Direito Processual Civil. SUMÁRIO:I Considerações iniciais; II Conceito, valor, forma; III Requisitos de admissibilidade e de eficácia; IV Vícios presentes na prova emprestada; V Prova emprestada e processo penal; VI Considerações finais; Referências bibliográficas . Nos litígios em que figuram os direitos objetivos, a busca da solução tem origem nos fatos, e através deste a prova aparece como um meio eficaz para descobrir a verdade pendente. Neste trabalho, abordaremos os meios de prova que não estão elencados nos artigos do Código de Processo Civil, em especial a prova emprestada. Prova esta que pode ser utilizada de um processo anterior na lide atual, observandose determinados requisitos para que seja válida. No decorrer deste trabalho, estes requisitos serão desmembrados e comparados também na lide penal. ABSTRACT In the litigation where the objective rights, figure out, the search for solution has origin in the facts and though this the proof appears as an efficacious means to find out the pendent truth. In this work we will state the means of proof which are not casted in the articles of Civil Process Code, specially to the loaned proof. Such proof which can be used from previous process in the current litigation therefore it is necessary determined requisites in order to be valid. In the elapse of this work such requisites will be disassembled and compared also to the penal litigation. I Considerações iniciais Fazendo um breve retrospecto da nossa antigüidade, temos na Bíblia, não o que poderíamos chamar de marco inicial, mas algumas das primeiras linhas sobre o instituto da prova, fazendo referências ao versículo de Deuteronômio e às Antigüidades, de Josefo, vejamos então: Deuteronômio 19, v. 15:

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Parte Geral Doutrina

Prova Emprestada: Algumas Considerações

CARLA HEIDRICH ANTUNESAdvogada pósgraduanda em Direito Processual Civil.

CAROLINE RIBEIRO BIANCHINI

Advogada pósgraduanda em Direito Processual Civil.

FERNANDO MAGALDIAdvogado pósgraduando em Direito Processual Civil.

SUMÁRIO:I Considerações iniciais;II Conceito, valor, forma;III Requisitos deadmissibilidade e de eficácia;IV Vícios presentes na prova emprestada;V Provaemprestada e processo penal;VI Considerações finais;Referências bibliográficas.

Nos litígios em que figuram os direitos objetivos, a busca da solução tem origem nos fatos, e atravésdeste a prova aparece como um meio eficaz para descobrir a verdade pendente. Neste trabalho,abordaremos os meios de prova que não estão elencados nos artigos do Código de Processo Civil, emespecial a prova emprestada. Prova esta que pode ser utilizada de um processo anterior na lide atual,observandose determinados requisitos para que seja válida. No decorrer deste trabalho, estesrequisitos serão desmembrados e comparados também na lide penal.ABSTRACT In the litigation where the objective rights, figure out, the search for solution has originin the facts and though this the proof appears as an efficacious means to find out the pendent truth. Inthis work we will state the means of proof which are not casted in the articles of Civil Process Code,specially to the loaned proof. Such proof which can be used from previous process in the currentlitigation therefore it is necessary determined requisites in order to be valid. In the elapse of this worksuch requisites will be disassembled and compared also to the penal litigation.

I Considerações iniciais

Fazendo um breve retrospecto da nossa antigüidade, temos na Bíblia, não o que poderíamos chamar demarco inicial, mas algumas das primeiras linhas sobre o instituto da prova, fazendo referências aoversículo de Deuteronômio e às Antigüidades, de Josefo, vejamos então:Deuteronômio 19, v. 15:

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RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA 29

"Uma única testemunha não é suficiente contra alguém, em qualquercaso de iniquidade ou de pecado que haja cometido. A causa será estabelecidapelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas."

Este instituto foi tornandose cada vez mais necessário em vista do nosso crescimento enquantosociedade, surgindo a cada dia novos confrontos, adversidades, para os quais a busca por soluçõeslevou à necessidade do conflito ser resolvido com a participação de terceiras pessoas que não faziamparte da lide.As pessoas foram evoluindo e, no decorrer desse tempo, tomando posições, aparecendo a figura datestemunha, ou seja, a prova testemunhal; que, apesar das discriminações a ela reveladas, continhamalguma preocupação com a busca da verdade real, conforme demonstrado por FLÁVIO JOSÉ 1 em seulivro:

"Não se prestará fé a uma única testemunha; devem ser três, ou duaspelo menos e pessoas sem culpa. As mulheres não serão recebidas comotestemunhas, por causa da fragilidade de seu sexo e porque falam muitoatrevidamente. Os escravos não poderão ser testemunhas, porque a baixeza desua condição lhes abate o ânimo e o temor ou o interesse os pode levar a deporcontra a verdade."

Os direitos subjetivos que figuram nas lides buscam um assessoramento e têm a sua origem nos fatos(ex fato ius oritur), desta maneira, as partes que integram o litígio possuem interesses contrários,buscando cada qual, para si, a razão.Neste litígio, as partes procuram a prova como meio eficaz e correto para se justificar a certeza do seudireito afirmado, sendo que desta maneira a prova não favorece unicamente a composição da lide, maso reconhecimento da verdade.Assim, toda as vezes que existe uma ação, existem por conseqüência o autor e o réu que invocam osfatos de maneira que justifique a pretensão de um e a resistência do outro. Nesse momento, surge aprova como o meio necessário para tal solução, pois não basta para tal apenas as alegações, semprovas.A classificação das provas iniciou com o jurista italiano MALATESTA e foi seguida por diversosdoutrinadores brasileiros, devendo também ser incluída nesta uma quarta modalidade, conformeapregoa o processualista gaúcho DARCI GUIMARÃES, o momento da produção da prova. Ficandodesta maneira a classificação:a) quanto ao objeto: direta é aquela referente ao próprio fato probando, e a indireta aquela oposta adireta, a qual se refere ao fato que, indiretamente, leva o juiz a ter certeza ou não do fato principal;b) quanto ao sujeito: estas são referentes à origem das provas, podendo ser pessoal, que emana dapessoa, e real que emerge do fato verificável materialmente, ou seja, tem como objeto a coisa (res);c) quanto à forma: referese à maneira que será produzida para ser apresentada em juízo, podendo sertestemunhal, que é a declaração da pessoa oral; documental, que é a declaração por escrito; e amaterial, que é a representação da coisa em sua forma própria;d) quanto ao momento: temos as provas casuais ou simples, que são aquelas que nascem no curso dademanda, tais como a confissão, a prova testemunhal, a vistoria e o juramento; e as preconstituídas,que são formadas antes da relação jurídica, isto é, surgem antes da sua apresentação no processo, porexemplo, os contratos, escrituras de compra e venda, etc.

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30 RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA Temos como objeto de prova, todos aqueles fatos que não sejam reconhecidos, notórios, confessados eos que gozam de presunção legal de existência, sendo que os outros dispensamna.Em regra, provamse apenas os fatos, podendo o juiz exigir que a parte demonstre o teor e a vigênciade direito municipal, estadual ou estrangeiro, conforme o art. 337 do Código de Processo Civil.O clássico JOÃO MONTEIRO 2 coloca que:

"Para que a sentença declare o direito, isto é, para que a relação dedireito litigiosa fique definitivamente garantida pela regra de direitocorrespondente, preciso é, antes de tudo, que o juiz se certifique dos fatosalegados."

E esta certificação, necessariamente, se dá através das provas.BARBOSA MOREIRA 3 destaca a importância da prova, principalmente nas questões de fato:

"E as questões de fato, tem o juiz que resolvêlas através da mediaçãodas provas, já que o juiz, em regra, não tem conhecimento pessoal e direto dosacontecimentos que dão origem ao litígio (...). O acesso do juiz aos fatos dáse,conseqüentemente, por meio da prova."

A prova num processo é conceituada em dois sentidos: um objetivo, em que ela é o meio hábil parademonstrar a existência de um fato; e outro subjetivo, em que ela tornase uma certeza, em virtude detodo o instrumento probatório. "Provar é demonstrar de algum modo a certeza de um fato ou averacidade de uma afirmação." 4Fazemos aqui um destaque, de GIUSEPPE CHIOVENDA: 5

"Releva distinguir os motivos da prova, os meios de prova e osprocedimentos probatórios. São motivos de prova as alegações que determinam,imediatamente ou não, a convicção do juiz (por exemplo: a afirmação de um fatoinfluente na causa oriunda de uma testemunha presencial; a observação de umdano, pelo próprio juiz, no lugar). Meios de prova são as fontes de que o juizextrai os motivos da prova (assim, nos exemplos aduzidos, a pessoa datestemunha, os lugares inspecionados). Consistem os procedimentosprobatórios no conjunto das atividades necessárias a por o juiz em comunicaçãocom o meio de prova ou a verificar a atendibilidade de uma prova."

Desta maneira, percebese que a prova possui um início, poderíamos dizer que com os fatos, um meioou uma finalidade, que é o de formar uma convicção em torno dos fatos, em busca da demonstração daverdade, e um fim ou destino que é o próprio juiz.

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RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA 31 Neste caminho, destacamos os meios de prova, que denominamse em legais e legítimos, e estãoprevistos nos arts. 342 a 443 do Código de Processo Civil, porém não podemos deixar de falardaqueles que não estão elencados no Codex, mas que fazem parte do cotidiano forense, quais sejam oreconhecimento de pessoas ou coisas, os indícios, as presunções e a prova emprestada.É sobre a prova emprestada que vamos discorrer neste trabalho, pretendendo examinar a utilização daprova emprestada tanto no processo civil como no processo penal sem perder de vista o complexo deigualdades e variações que define o confronto entre os dois ramos. Tentaremos observar as ocasiõesem que o traslado da prova é considerado legítimo, ou seja, a admissibilidade e quais o valores queestas tem em Juízo.

II Conceito, valor, forma

A prova emprestada é aquela que foi produzida em outro processo, mas que se deseja utilizar noprocesso em questão, por meio de certidão extraída dos autos primitivos, ou seja, é o aproveitamentoda atividade probatória anteriormente desenvolvida. 6A prova colhida em outro processo pode, perfeitamente, servir de elemento para a formação daconvicção do juiz, pois a prova emprestada está incluída entre os meios moralmente legítimos, já que oCódigo de Processo Civil em seu art. 332 declara como hábeis para provar a verdade dos fatosalegados. 7 É o princípio da economia processual que recomenda o uso da prova emprestada.A prova emprestada será utilizada no segundo processo sob forma de documento, para o qual deverãoser trasladados todos os elementos documentais em que se efetivou a atividade probatória a serreutilizada. Diante do cumprimento dessa necessidade é que se encontrarão presentes os requisitos delegitimidade da prova emprestada, quando a legitimidade constitucional do empréstimo de prova deveser examinado diante de outros valores processuais constitucionalmente consagrados.Cabe à parte que requereu o empréstimo trazer aos autos a integralidade das peças. A parte contráriatem direito de se manifestar quanto à admissibilidade do empréstimo, bem como quanto ao valor queela merece ter no segundo processo.Sobre a valoração da prova, o Professor LADISLAU FERNANDO ROHNELT sustenta que o juizdeve valorar a prova de acordo com o sistema probatório que regule o segundo processo, uma vez queas regras sobre a valoração da prova são determinadas pela natureza do assunto que é objeto da decisãojudicial e não pelo sistema do processo em que as provas foram produzidas. 8Poderá o juiz, no momento da apreciação da prova, darlhe o mesmo valor que esta teria, se houvessesido originariamente colhida no segundo processo. A prova trasladada apresentase sob forma de provadocumental, mas pode ter seu valor originário conservado. Diversos doutrinadores consideram que otraslado de prova documental já utilizada em outro processo não se constitui como prova emprestada,mas sim como prova documental propriamente dita; já as provas casuais reutilizadas são consideradasemprestadas. 9

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32 RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA É importante ressaltar a existência de uma corrente restritiva, que entende que o uso da provaemprestada em outro processo, que não aquele em que fora produzida, fere o princípio da imediação eque, por isso, deve ser produzida pelo juiz que julgará a causa. De qualquer forma, não merece amparoo posicionamento que nega qualquer valor à prova emprestada pelo simples fato de não se terrespeitado o princípio da oralidade, pois a própria lei retirou o caráter absoluto desse princípio, quandoadmitiu que a prova oral fosse colhida mediante carta precatória. 10

III Requisitos de admissibilidade e de eficácia

No entanto, para que a prova trasladada seja eficaz, se faz necessário a presença de certos requisitos,conforme o sistema processual vigente.A primeira exigência que se faz é que a parte contra quem a prova é produzida tenha participado naconstrução da prova, em respeito ao princípio constitucional do contraditório (art. 5º, inciso LV daConstituição Federal). Assim, se a parte participou do contraditório na colheita da prova, esta poderáser utilizada contra ela em qualquer outro processo. Mais precisamente, é imprescindível que a partecontra a qual vai ser usada esta prova, tenha sido parte no primeiro processo. 11A este respeito, já foi julgado pelo STF, recurso extraordinário, reconhecendo a ofensa ao contraditóriono empréstimo de prova colhida sem a participação da parte contra a qual deveria operar. 12Sobre esse aspecto, o ilustre processualista gaúcho DARCI GUIMARÃES RIBEIRO conclui que aprova emprestada não precisa ser colhida entre as mesmas partes para que tenha validade, pois orequisito para tal é o respeito ao contraditório e não às partes. Afirma, ainda, que quanto maior for orespeito ao princípio do contraditório maior será o grau de convencimento que a prova trasladadaproduzirá. 13 Geralmente a doutrina apenas admite a utilização da prova emprestada, outorgandolhe omesmo valor original, quando ela seja produzida perante as mesmas partes, com as mesmas garantiasdo contraditório. 14MOACIR AMARAL SANTOS afirma que a eficácia da prova emprestada vai depender da situaçãoem que se encontrarem os litigantes em relação a ela, colocandoas em três situações distintas ecaracterísticas, vejamos:Quando a prova foi produzida entre as mesmas partes que se controvertem no processo para o qual éemprestada, a prova tem sua eficácia inicial conservada, desde que respeitados seus requisitos deprodução.

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RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA 33 Já quando a prova foi produzida em processo em que uma das partes do processo para o qual étransportada litigou com terceiro, devemos considerar duas hipóteses: a primeira se dá quando a provaé trasladada por quem participou de sua produção no processo anterior. Neste caso, a prova não teráeficácia em relação à parte contrária, a qual não participou da produção, podendo valer a provasomente como auxiliar de prova. A segunda hipótese é a utilização da prova por quem não foi parte noprocesso anterior. Nesta situação, a prova conserva eficácia probatória, sobretudo quando a prova foireconhecida na sentença do processo em que foi produzida.Já quando a prova emprestada for utilizada entre terceiros que não foram parte no processo em quefora produzida a prova, esta terá valor reduzidíssimo, ou terá quase nenhum valor, podendo servirapenas como adminículo de prova. 15No entanto, conforme o que sustenta EDUARDO TALAMINI, é preciso que o grau de contraditório ede cognição do primeiro processo tenha sido, no mínimo, tão intenso quanto o haveria ser no segundoprocesso. Assim, não basta a mera participação no processo anterior daquele a quem a provatransportada prejudicará. 16Já o segundo requisito para eficácia e validade da prova emprestada é que haja identidade ousemelhança do fato probando nos dois processos, as quais funcionam como pressuposto lógico.Sustenta DARCI GUIMARÃES RIBEIRO que não se presta para o traslado a prova que não tenhasemelhança com o fato que se quer provar em juízo, cabendo ao julgador analisar a identidade entre osfatos, sendo que quanto mais idênticos forem, maior será o valor que a prova emprestada recebe. 17Neste sentido julgou o TJSC apelação cível, em que deu a validade da prova emprestada igual à da quefoi ou poderia ter sido colhida nos autos a que veio acostada, desde que tenha sido produzida entre asmesmas partes, e que se tenham observado as formalidades legais e de que o fato probando sejaidêntico. 18Pode também ser considerada como requisito à eficácia do empréstimo de prova a impossibilidade dareprodução no processo em que se pretende demonstrar a veracidade de uma alegação, pois se forpossível a reprodução da prova não há razão para existir o traslado da prova. Este é o sentidoprevalecente na jurisprudência. 19 Outrossim, devese salientar que, havendo dificuldade nareprodução da prova, é cabível o traslado para o segundo processo, de forma a respeitar o princípio daeconomia processual. A esse respeito se manifesta MOACYR AMARAL SANTOS argüindo que aaproveitabilidade e a eficácia de uma prova em outro processo se assentam na razão inversa dapossibilidade de sua reprodução: quanto mais possível esta, tanto menores a sua aproveitabilidade eeficácia; quanto menos possível, tanto maiores a sua aproveitabilidade e eficácia. 20

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34 RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA Para que a prova emprestada seja admissível, deverão ser observadas as prescrições tocantes à naturezaoriginária da prova em ambos os processos. A exigência de que a prova no primeiro processo tenhasido regularmente colhida é requisito de admissibilidade para o empréstimo da prova, bem como aobservância no segundo processo das normas que disciplinam a admissibilidade do empréstimo. Éindispensável o requisito de que no processo do qual saem tenham sido formalmente praticadas e queali se formem com obediência aos princípios da publicidade e do contraditório. 21As regras de admissibilidade e de eficácia da prova emprestada devem ser utilizadas conjuntamente,para que a mesma possa ter validade onde for apresentada. Caso não estejam preenchidos os requisitossupracitados, ela se inserirá na categoria de provas ilegítimas ou ilícitas, conforme a natureza da normainfringida ou violada: se esta for de caráter material, a prova será ilícita; sendo de caráter processual,será ilegítima.

IV Vícios presentes na prova emprestada

A natureza do vício e as conseqüências do empréstimo ilegítimo variam de acordo com os requisitosque tenham sido desatendidos. Toda vez que houver infrigência a princípio ou norma constitucionalprocessual que desempenhe função de garantia, ficando caracterizada a chamada atipicidadeconstitucional, a conseqüência dessa infrigência será a ineficácia do ato praticado. 22A gravidade do vício do ato processual, em que não se verificou a presença de garantiasconstitucionais, exclui a possibilidade de se tornarem os vícios meras irregularidades sem sanção.ADA PELLEGRINI adverte ser necessária a verificação se o ato deve ser considerado juridicamenteinexistente ou nulo: juridicamente inexistente, quando lhe faltarem, de forma absoluta, os elementosnecessários para sua constituição; ou nulo (em sentido processual), privandoo de qualquer aptidão deproduzir efeitos. 23Os atos nulos, por infração a norma constitucional de garantias, serão sempre eivados de nulidadeabsoluta, pois ofendem ao interesse público da norma, devendo ser a nulidade decretada de ofício, semprovocação das partes. Neste caso, é dispensável a demonstração do prejuízo, pois este é manifesto.Assim, a inobservância de requisitos constitucionais torna a prova trasladada juridicamente inexistente.Sendo a prova constitucionalmente ilegítima, gerando como decorrências, nestes casos:a) Não poderá ser anexada ao processo, por cominação constitucional (art. 5º, LVI), a prova eivada devícios de ordem constitucional. Tal dispositivo referese a "provas ilícitas", devendo ser aplicadaextensivamente, incluindose nesta sanção toda a prova ofensiva a valores constitucionais. Nestescasos, não existe meio de sanar o vício existente.b) Se indevidamente juntada, deve ser desentranhada. Esse é o sentido do vocábulo inadmissibilidade,consistindo na inviabilidade de aproveitamento da prova desde o início do procedimento probatório:mais do que ser desconsiderada quando da decisão, a prova vedada não pode nem ser admitida.Desrespeitada a regra e admitida, o que não poderia sêlo, sancionase com o desfazimento daadmissão ofensiva à norma constitucional.

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RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA 35 c) Caso a prova permaneça nos autos, não poderá ser considerada no julgamento. O poder de livrevaloração de que é investido o julgador pressupõe provas legalmente produzidas, dentro desseparâmetro é que se desenvolve a liberdade para a formação de um convencimento motivado.d) Se utilizada pelo juiz, acarretará a nulidade absoluta da decisão. A nulidade absoluta de que seráeivada a decisão fundada na prova emprestada ilegítima ocorrerá independentemente de se considerara parte que requereu o empréstimo.Essas decorrências dos vícios da prova emprestada são apresentadas por ADA PELLEGRINI, emparecer que envolvia caso penal, mas que também são aplicadas no processo civil. 24Já quando não forem observados os requisitos legais de produção e de admissão no processo deorigem, será igualmente inadmissível o empréstimo da prova. Não há meios de serem corrigidos nosegundo processo os vícios advindos do primitivo. Eventualmente, pode ocorrer que o primeiroprocesso não se encerrou ainda, e o vício que compromete a prova é sanável. Nessa hipótese, suprido odefeito no processo de origem, poderá ser utilizada a prova em outro processo, como provaemprestada. 25Se o defeito disser respeito exclusivamente ao segundo processo, devese considerar duas hipóteses:a) a inobservância das regras de admissibilidade da prova documental ou da prova em sua essência deorigem: caso seja juntada no segundo processo, ela deverá ser desentranhada e não deverá serconsiderada pelo juiz no momento da prolação da sentença. A decisão que se der depois de suajuntada, considerandoa, será nula.b) a inobservância das regras sobre a produção da prova documental: a conseqüência variará conformea natureza do vício sujeitandose à disciplina geral das nulidades no campo probatório e havendoreprodução dos atos quando necessário. A decisão que se fundar em prova eivada em vício será nula.Obviamente, a conseqüência não será a inadmissibilidade do empréstimo, mas a cassação do atodecisório e a concessão da oportunidade de saneamento do defeito.

V Prova emprestada e processo penal

A prova produzida no processo criminal pode ser emprestada para o processo civil, desde querespeitados os requisitos de admissibilidade e eficácia da prova emprestada. No campo probatório, aprova civil e penal não se distinguem, inexistindo óbices ao traslado de um para outro.No entanto, existem certas peculiaridades quanto à utilização da prova emprestada no processo penal.Cabe ressaltar que o Direito Processual Civil geralmente se satisfaz com a potencialidade decontraditório: bastando que se dê às partes a oportunidade de participar. Já no processo penal, se exigeo contraditório efetivo, em que a defesa técnica é indisponível. Desta forma, não pode ser emprestadapara o processo penal prova para ser usada contra alguém que não participou efetivamente docontraditório. A prova produzida contra revel em processo civil não pode ser utilizada por empréstimocontra esta mesma pessoa em processo penal, pois restaria inobservada a regra da indisponibilidade dadefesa técnica. 26

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36 RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA A prova obtida através de interceptação telefônica em juízo criminal, sendo autorizada judicialmente,pode ser emprestada para o processo civil, já que se trata de prova produzida licitamente, não sendoeivada por qualquer vício. A Constituição proíbe somente as provas obtidas por meios ilícitos, e não oempréstimo de uma prova que foi colhida por meio lícito.NELSON NERY JUNIOR assegura ser possível o juízo cível valerse da chamada prova emprestadada ação penal, desde que a parte contra quem se vai produzir a prova obtida através de escuta seja amesma em ambas as esferas, e se observe o princípio do contraditório, em respeito à unidade dajurisdição. 27Assim, se nos dois processos (criminal e cível), as partes forem as mesmas, embora ocupem posiçõesdiversas (pólos ativos e passivos), sendo a prova da escuta telefônica autorizada judicialmente, se aprova foi sabatinada pelas mesmas partes e assim observados o contraditório e ampla defesa e, ainda,se a Constituição só não acolhe a prova obtida por meio ilícito, é razoável e, portanto, possível que noprocesso cível se possa utilizar, validamente, uma escuta telefônica ou outra prova que licitamente foiobtida primeiramente no procedimento criminal.Outra questão que surge é a da possibilidade de empréstimo de prova sobre a saúde mental do acusado.A esse respeito afirma VICENTE GRECCO FILHO: "O exame será sempre específico para os fatosrelatados no inquérito ou no processo, e não pode ser substituído por interdição civil ou exame deinsanidade realizado em razão de outro fato. Isto porque, em virtude do sistema biopsicológico sobre ainimputabilidade, colhido pelo Código Penal, os peritos devem responder se à época do fato o acusadoera, ou não, capaz de entender o caráter criminoso do fato e de determinarse segundo esseentendimento. Logo, não pode haver aproveitamento de outro exame referente a outro fato." 28 Esseposicionamento limita, mas não exclui o empréstimo de prova acerca da sanidade. Suponhamos quetenha sido realizada perícia referente ao estado mental do acusado, precisamente na época do fato.Além disso, o empréstimo pode destinarse a comprovar insanidade superveniente. Fora dessashipóteses, o traslado de exame será inadmissível, haja vista que tem por objeto fato irrelevante

VI Considerações finais

A prova emprestada basicamente tem duas funções. A primeira e imediata é a função da economiaprocessual, sendo que, para se evitar gastos e repetições desnecessárias de atos, e para uma maioreconomia de tempo, a mesma é utilizada em processo diferente daquele originário.

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RDC Nº 5 MaiJun/2000 DOUTRINA 37 Para tanto, é necessário que nenhuma garantia constitucional seja violada, sobretudo o princípio docontraditório, bem como que estejam presentes todos os requisitos de admissibilidade da provaemprestada, para que esta seja valorada como prova propriamente dita e não como um simples auxíliode prova pelo julgador.Esta função primária da prova é que justifica a diversidade da utilização da mesma no processo civil eno processo penal, em virtude da diferença de valores que as regem.A outra função da prova emprestada, a qual julgamos a mais importante, é o aproveitamento de atos,os quais não podem ser repetidos, ou a sua repetição seja de difícil acesso. Desta maneira, a provaemprestada adquire uma importância, pois tornase o próprio fundamento de direito à prova, nãoficando, desta forma, as partes privadas de provarem os fatos alegados.Em quaisquer hipóteses passíveis do empréstimo de provas, o juiz deverá, motivadamente, dar à provao valor que ele considerar que ela mereça, observando sempre seus requisitos legais e constitucionais.

Referências bibliográficas

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