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1 Débora Brenga Eu (quase) cozido, Outro (mal) passado PROAC 2014 Bolsa-Incentivo à Criação Literária – Dramaturgia

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Débora Brenga

Eu (quase) cozido,

Outro (mal) passado PROAC 2014

Bolsa-Incentivo à Criação Literária – Dramaturgia

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A boa vingança

Celebrar a gratidão é praticar a boa vingança, que segundo Nietszche, se

origina da profunda alegria e potência.

Eu, para chegar aqui, cruzei o meu caminho com muitas pessoas que, de algum

modo, me apoiaram nessa empreitada.

Muitas nem imaginam que assim o fizeram. Outras tantas sabem que o fizeram

e, no entanto, eu mesma nem imagino seus gestos em prol desse trabalho.

Pode ser, também, que ao atravessar o caminho de algumas, tenha afetado os

seus cotidianos. Como saber?

Assim, não citarei nomes com receio de esquecer alguns ou mesmo ignorar

outros. Citarei Nietszche:

“Gratidão em tempo de colheita, vitória, paz – alguns acontecimentos invocam

um sujeito em relação ao qual o sentimento se descarrega. Deseja-se que todas as coisas

boas que acontecem a alguém, tenham sido feitas - deseja-se que haja feitor. Da mesma

forma, diante de uma obra de arte, evoca-se quem a fez. O que é então essa evocação?

Uma tentativa de equilibrar o que se percebe como benefícios recebidos, um ‘dar de

volta’, uma forma de atestar o nosso poder (...) pois ao evocar aquilo que gera as coisas,

afirma-se, decide-se, estima-se, juga-se: nos damos o direito de ser capazes de afirmar e

de distribuir honras (...) o mais alto sentimento de felicidade e vida é também o mais

alto sentimento de poder: a partir deste sentimento se evoca (a partir deste sentimento

se inventa e se busca algo que tenha feito as coisas um sujeito). A gratidão se apresenta

como boa vingança: demandada e praticada onde a igualdade e a honra são mantidas

firmes onde a boa vingança é melhor efetuada”.

Espero que a feitura dessa dramaturgia dialogue com o seu tempo. Possa

contribuir com o pensamento contemporâneo a respeito do Eu e do Outro,

provocando a reflexão sobre as relações de alteridade.

Sobre como o Outro me afeta, me modifica, me transforma.

Nessa trajetória iniciada em 2012, fui, aos poucos, desenvolvendo a perspectiva

da generosidade, a qual teve o seu cume no encontro com os Guarani Mbya.

Com eles, descobri que a minha voz não lhes serve, que o meu teatro não lhes

tira da marginalidade – lugar, que nosso mundo os colocou.

Coube, então, a mim o exercício cru, mal cozido e mal passado da honestidade.

Acho, que é disso, que as próximas páginas tentam falar.

Que a boa vingança, aqui, se propague.

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Qual é a parte que nos cabe nesse latifúndio?

Estamos em tempo de privação. Privação do privado. O espaço privado perdeu-

se no espaço público. O público, por sua vez, tornou-se árido, desertificação do lugar

do encontro.

Busco Milton Santos para me aconselhar. Ele me diz: Quando um homem se

defronta com um espaço que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja

memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação.

Então, penso - é isso! Desde o começo era sobre isso que eu queria falar. EU,

esse homem, essa mulher, esse vir-a-ser que me habita, habitando esse lugar de

“vigorosa alienação”.

Como fugir desse desatinado destino de ser brasileira? E, sendo, me perceber

no completo desconhecimento do que, efetivamente, eu sou ou poderia ser?

Perco-me nesse “lugaroso”, busco-me e não me encontro, senão pelo viés de

uma identidade forjada pela nacionalidade, cor, RG. CPF, nome e sobrenome. Mas,

seria isso o ser? E, como seria o ser se a ele não houvesse sido negado o conhecimento

do outro, esse outro que, desde o princípio, já vivia aqui?

Como eu seria se pudesse pensar, sentir e me comunicar em Nhengatu? Por

quais experiências EU teria passado?

Se o Brasil não se faz essa pergunta, não deseja nem mesmo cogitar que nação

seria, caso os povos originários ocupassem seus territórios e, nós outros soubéssemos

nosso lugar e tamanho... se isso está distante de acontecer, então, não temos a menor

chance de experimentar o “sentimento de pertencer aquilo que nos pertence”.

Mas, pelo menos na ficção, posso garantir esse espaço de pertencimento, que

se configura na escolha de criar Cantos ao invés de Cenas. Uma espécie de vingança

dessa História mal tecida e mal narrada desse “lugaroso” chamado “terra de

ninguém”. Vontade de que meu teatro seja esse Ato, tempo-espaço de resistência.

Também, é possível que as perguntas norteadoras, desde o momento em que

Lucienne Guedes Fahrer me conduziu ao “Meu tio, o Iauraetê” de Guimarães Rosa,

tenham de algum modo, provocado essa perspectiva. Talvez...

Afinal, era (continua sendo) “lugaroso” demais e, não saber ao certo se estava

indo ou voltando me provocou, muitas vezes, uma vontade profunda de repouso, de

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ter um canto onde eu pudesse apaziguar (ou seria definitivamente enterrar?) essas

questões.

Canto como lugar que nos abriga, o qual precisamos ter a chave, posto que sem

ela, vivemos errantes ou a constatação das Covas que nos cabem nesse latifúndio?

Um palmo e meio de profundo...

No meu caso, essa dramaturgia foi o próprio espaço de conflito e

apaziguamento - espaço de territorialização e, ao mesmo tempo, espaço fronteiriço.

Pensar-se nessa linha divisível do invisível entre EU e um OUTRO foi o exercício

com o qual me deparei durante este caminho dramatúrgico, esse interminável ir e vir

para desassosegar-me na divisa da alteridade.

Criando Cantos, ocupo lugares que as Cenas por si não se bastam e, ao

ultrapassar a palavra escrita, busco rasgar o tempo e o espaço cênico para que, ao

menos, no papel não haja a necessidade de demarcação de território – deformação do

tecido social - afinal “o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos

objetos sociais tem uma tamanha imposição sobre os homens, nenhum está tão

presente no cotidiano dos indíviduos”.

Aqui, seja por resistência, seja por luta, seja por conquista árdua, cada figura

tem seu Canto - lugar de ser pertencindo por algo, que reconhecemos, somos

pertencentes e, nesse sentido, os espaços privado e público se configuram como

extensões de cada corpo, voz, ser que se habita.

.

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Do Eu (quase) cozido, do Outro (mal) passado

Canto Zero – Do enterramento de Carapiru Awá Guajá

Assim como as ondas do mar vão e vem o tempo todo, assim também, caminho eu.

Ora vou ora volto. Às vezes, me encontro no meio como agora. Sempre entre um dia e

outro há uma noite no meio. Agora sei, estou no meio. Nem vou nem venho. Estou no

meio, na noite escura, no centro dessa encruzilhada. Carrego uma urna funerária. O

texto que carrego na outra mão, daqui a pouco, virará pó. Eu virarei pó? Mas, ainda,

posso escolher. Sou eu quem escolho o que queimo; se queimo. O que eu enterro; se

enterro. Dessas páginas, algumas quero salvar. O resto é ritual cênico. O prólogo? As

profecias.

Pronto. Agora não dá mais pra retroceder. Há um oceano de olhos que me espreitam.

Também vão e volto intermitentemente. Eles podem me engolir. Posso, também,

devorá-los. Devo prosseguir, mesmo que doa, mesmo que sangre. Vou. Eu vou até o

fim. Porque havendo prólogo, haverá epílogo. É; não dói tanto assim. Pensam que eu

estou no início ou no fim, mas não – eu estou no meio. ... Todos essas cenas eu pico.

Nanos pedaços de papel. Picadinho de cenas. Assim... bem assim. Todas elas eu queimo

- algumas gotas de álcool, um fósforo. É o suficiente. Não tenho tempo pro

arrependimento. Nem vontade. Nem dom. Mas ainda assim é preciso que se diga –

desculpa Carapiru, pouco ou quase nada vai sobrar de seu enredo. Dou uma pausa

nada dramática. Preciso tossir. Ler o prólogo, espécie de homenagem póstuma. Não é

assim que falam? Não vou pigarrear. Acho ridículo quem faz isso. Também não vou

chorar. Tenho aprendido que a morte é só um instante da vida. ... Tudo isso não é dito

nem bendito nem maldito. Nem fluxo de pensamento é. Tudo isso é só rubrica.

EU – ...Eu sei, você não concorda. Mas é fato, só o que está escrito está posto no

mundo. Salvei o prólogo, as profecias, não vê? ... Pode repousar em paz Carapiru.

Comigo tua vida foi curta, mas respeitosa.... Agora deve ir. Vai; segue o seu caminho;

eu sigo o meu. É melhor assim. Sem mágoas, sem ressentimentos. ...Não, Carapiru;

não devemos. Sua história segue sem mim. Nem me pertence mais. Nunca me

pertenceu. Mas ouça o prólogo, o seu epitáfio. Ah, você não sabe o que é um

epitáfio... Não faz mal, é o que restou dessa história. Ouça, ouça...

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Canto Um – Do que restou do Res Nullius

Leio o prólogo ao Carapiru. Na vida real isso seria patético. Mas nessa vida de faz de

conta, onde tudo pode, esse gesto está validado. Isso é bom; gosto. Então, leio:

A PRIMEIRA HORA DO INSTANTE AGORA

O MAR ENGOLE QUASE TUDO - Carapiru Awá-Guajá contempla e ouve o mar.

Ele sabe que o mar engole o tempo e o devolve outro. Desde o princípio foi assim.

O CÉU ENGOLE QUASE TUDO - Carapiru Awá-Guajá não contempla nem ouve

o céu do avião. Ruído e sombra presentes no tempo de sua presentificação. Ele sabe

que o quê o céu traz, o céu leva. Desde o princípio foi assim.

O MAR ENGOLE QUASE TUDO - Carapiru Awá-Guajá veste trajes de não-índio e

carrega seu arco e sua flecha. Ele coloca-os alguns metros à sua frente, na areia

molhada.

Ele retira os trajes da civilização. Retira, também, o cocar, os colares e outros

adereços.

Ele os arruma cuidadosamente, um ao lado do outro, próximos de seu arco e flecha e

espera que as ondas do mar venham buscar o que é seu.

Ele espera e contempla o horizonte marítimo... Ondas do mar arrastam os seus

apetrechos. Desde o príncipio foi assim.

A TERRA ENGOLE QUASE TUDO - Carapiru Awá-Guajá retira a pintura de seu

corpo e entra para a floresta. Ele sabe que lá é o lugar dos povos originários. Lá,

também é o seu lugar.

EU - Ouve bem, você agora é cinzas. É pergaminho enrolado; homenagem póstuma

que já foi prólogo. ...Virou epílogo? Não, não! ...Mas o que é que você virou, Carapiru?

Por que não dá logo o último suspiro? Morre homem, morre. É necessário que você

morra. É das cinzas de suas entranhas que um novo enredo vai nascer...

Ele não morre. Respira do interior dessa urna funerária; eu posso ouvir. *(...) Fraco, é

verdade, mas respira. Finjo que ele dorme. Embalo sua urna; canto pra ele dormir. É

preciso continuar, inventar outro tempo. Fugir desse lugar do enterramento.

*(...) Carapiru Awá-Guajá é personagem do documentário “Serra das Desordens”, de Andrea Tonacchi.

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Canto Dois- EU sou o que eu não sei

Qual é o meu lugar, eu me pergunto. O enterramento desse Carapiru me pertuba.

Como enterrar o que, ainda, respira? Transpira em mim esse estado febril. Deliro, às

vezes. Falo coisas. Vejo coisas inquietantes. Ouço vozes como agora... Tudo depois

desse enterramento. Tudo!

EU – Eu sei lá! E, se eu não sei, por que você quer saber? *(...) Que paradeiro? (...) Que

diferença faz se estou indo, se estou voltando? Faz? Faz? Então tá: estou bem no meio

da encruzilhada; bem no meio! (...) Não! Eu não tenho fome! Para. Já disse, eu não

quero comer. (...) Psiu, espera! Para, para de falar comigo. Não vê que estão me

chamando? Sim, sim, eu sei; é ela.

Canto Três – Eu sou Valdelice Verón...

Valdelice Verón está no centro da cena, sentada em uma cadeira. Eu estou sentada à

frente dela. Eu entrevisto, ela é entrevistada. Eu me pergunto, quais perguntas devo

fazer? O que ela quer me dizer? Será que ela quer me dizer algo? Eu arrisco...

EU – Nome.

ELA – Valdelice Verón.

EU – Valdelice Verón é o seu nome indígena?

Ela silencia. Depois responde.

ELA – Eu me chamo Valdelice Verón.

Eu silencio. Depois insisto.

EU – Mas esse não é um nome indígena.

Ela me olha longamente nos olhos.

ELA – Tá gravando? (Crio uma imagem em minha mente, eu a vejo em um telão). Eu

sou Valdelice Verón, filha de Marcos Verón, o cacique morto apyrupã1 por jagunços

*(...) - a personagem EU dialoga com o personagem onçeiro de “Meu tio, o Iauraête”, de José Guimarães Rosa, podendo aqui se configurar na personagem da Avó. 1 Apyrupã – (v.t.d) matar a pauladas, pág. 24

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dos fazendeiros, coronéis dos latifúndios, que eles insistem em chamar de

agronegócio. Capitães de Naus que querem a terra dos Guarani-Kaiowá, mesmo que

manchada de sangue. Querem a terra também para sugar sua seiva até sua morte. (Eu

penso que índia é essa com esse português? Eu penso, mas me calo, enquanto ela

continua) Eu falo assim, porque sou professora em Dourado, no Mato Grosso do Sul...

Eu sou Valdelice Verón, filha do cacique morto às pauladas, Marcos Verón. Guerreiro

até o fim pela causa de vida e morte dos Guarani-Kaiowá. Eu sou uma Guarani-Kaiowá.

Muito prazer. E você quem é?

Eu confesso, ela me incomoda. A entrevista tomou um rumo diferente, e eu não sou

jornalista, sou dramaturga... Não sei muito bem como continuar ou interromper.

EU - Quer um pouco de água?

ELA – Sim, obrigada.

Eu a sirvo. Ela bebe. Eu aproveito e bebo também. É preciso respirar, ganhar tempo,

talvez.

Canto Quatro - Do corpo e do sangue de cristo?

Eu escrevo: A avó está sentada no centro da cena. O fogo da pequena fogueira, aos

poucos, se atiça, espalhando luz e calor; revelando o lugar do encontro. A avó está

entre seis representantes de etnias indígenas brasileiras de um lado e seis do outro.

(Um deles... parece que eu conheço aquele ali, do lado esquerdo da “vó”. É... eu devo

conhecer sim. Ele me lembra... quem ele me lembra? Ah! Ele me lembra Carapiru). Ela

apresenta e reparte o alimento em treze partes.

AVÓ – Apytu’ū!2 (a avó experimenta a parte que lhe cabe desse cérebro de um morto.

Parece gostar.) Inhakã porã! (Ele está bom da cabeça, ela diz).

A princípio rejeito essa ideia canibal. Eu tento dizer a ela, não! Não, avó! Carne de

gente, não! Mas, ela não me vê nem me ouve. Eu não existo para ela. Não existo para

nenhum deles. Os convivas comem em efeito coral. 2 Apytu’ū – Ver cérebro, pág. 138

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AVÓ (ela aponta à sua direita) - Xeaxu e'ỹa re.3

UM À DIREITA – É duro. Difícil de engolir.

AVÓ (agora, ela aponta à sua esquerda) – Xeaxua re.4

DOIS À ESQUERDA – Hum! Melado... Amargo?

DOIS À DIREITA – Escapa na boca. Ágil como uma ave de rapina?

UM À ESQUERDA – Hei, fiapo de mente que se enfia entre os dentes!

TRÊS Á DIREITA (este grita) – Axê!5 Gosto de cinzas.

AVÓ – Camaleão!

Todos falam ao mesmo tempo.

AVÓ (repartindo e apresentando o alimento) – Kuraxô!6 Tinha um bom coração para a

sua gente... sempre dividia a comida.

SEIS À DIREITA – Tem calor dentro dele! Ata pyī Ata pyī!7

ESQUERDA – Ai! Dor que me rasga! Ipy'a tyty vaipa.8

AVÓ - Mbopy'a tyty.9

CINCO À DIREITA – Py’a Guaxu.10 Destemido. Engulo de sua valentia.

CINCO À ESQUERDA – Não, não... Temeroso na morte. O que faço com o medo dele?

TODOS – Mbojevy! Mbojevy!11

O quinto à esquerda vomita em uma cuia.

QUATRO À DIREITA – É limboso... Coração limboso já viu de tudo um pouco.

QUATRO À ESQUERDA – É... é... Seco! Parou de chorar faz tempo.

3 Xeaxu e'ỹa re – Ver –axu (s) à minha direita, pág. 28

4 Xeaxua re – Ver –xu (s) à minha esquerda, pág. 28

5 Axê – (v.i.) gritar sem pronunciar palavra como medo ou dor, pág. 28

6 Kuraxô, py’a – (s) coração, pág. 63

7 Ata pyī – Ver ata (s) brasa, pág. 26

8 Ipy’a tyty vaipa – Ver –py’a (s) tem taquicardia, com o coração palpitando, pág. 98

9 Mbopy’a tyty – Ver py’a tyty (s. modificado) fazer com que alguém fique taquicárdico, pág. 99

10 Py’a Guaxu – (s) corajoso – lit. “fígado grande”, pág. 99

11 Mbojevy – (s) Ver vomitar, pág. 194

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Todos falam ao mesmo tempo.

AVÓ – Vamos cantar para ele. Pevy'aa pemoĩ pendepy'a re.12 Vamos alegrar esse

coração sofrido.

Eles cantam, enquanto a velha índia, agora, reparte e repassa o sexo do morto.

AVÓ – Akuã-embu!13 (experimenta e sente prazer)

UM À DIREITA – He'ē axy! He’ē axy!14

SEIS À ESQUERDA (lambe os beiços) – Tembi'u ee!15

AVÓ - Mba'eaxy gui ha'e nhandereraa jepe.16

DOIS À DIREITA – Comi o hevi kua17 dele.

Risada Geral

DOIS À DIREITA – Você jexa kuaa uka.18

Mais risadas

CINCO À ESQUERDA - (arrota) – Xerevy atã ma.19

TRÊS À DIREITA (lambe dos dedos) – Ruxã'i.20

Mais risadas

QUATRO À ESQUERDA – Omboguevi atãmba ngovaigua kuery.21

A luz, gradativamente, se apaga. Agora só é possível ver a velha índia.

AVÓ (na medida em que menciona as partes do corpo do morto, coloca-as em um

cesto) – Dividam as mãos para as mulheres... Para os meninos se guiarem pela mata,

dividam os pés... A língua vai para os caciques... As orelhas para os pajés afinarem a

escuta dos seus filhos e de toda a floresta (lá no escuro, onde ficaram os doze líderes

indígenas, há um burburinho. A avó pressente uma presença alheia. Ela funga. Ela

cheira).

12

Pevy'aa pemoĩ pendepy'a re – ponham a alegria em seu coração, pág.98 13

Akuã-embu – experimenta e sente prazer 14

He’ē axy – Ver –axy (adv.) doce demais, pág. 28 15

Tembi’u ee – Ver e (adj) comida gostosa, pág. 30; ee variante do adj e – temperado c/ gordura, pág 31 16

Mba'eaxy gui ha'e nhandereraa jepe Ver -eraa jepe (v.t.direto) salvar - ele nos salva da doença, ág.34 17

Hevi kua - ânus 18

Jexa kuaa uka – 1. Tornar-se conhecido a alguém. 2. Por eufemismo, ter relações sexuais com alguém 19

Xerevy atã ma – já estou satisfeito; lit. minha barriga já está dura 20

Ruxã’i – (adj) bem pequeno, pág. 103 21

Omboguevi atãmba ngovaigua kuery – Ver –mboguevi (v.t.d) fazer alguém se afastar, indo de costas: fez todos os seus adversários se afastarem, pág.41

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UM À DIREITA (do escuro aonde se encontra) - Evoko ma oua!22

A avó me localiza e vem em minha direção. Quer me dar os olhos do morto.

UM À ESQUERDA - Não, não! Os olhos não.

Epa! Eu conheço essa voz! ... Sim, claro! É Carapiru, mesmo no escuro, eu sei que é ele.

AVÓ (ela grita) – Axê! Estes irão pra você... (silêncio) Toma. Come! (Eu estou, deveras,

assustada. Ela sabe disso. Ela sorri. Sorriso de canto de boca. Agora, menos incisiva,

porém, mantendo a firmeza). Mecê quer de comer?

EU – Já falei que não, avó. Desculpa, mas, eu não como nem carne de bicho, que dirá

de gente!

AVÓ – Bobagem, isso! Tudo pode ser gente, tudo! Bicho pode, árvore pode, gente

pode ser gente, ou não! Comer os olhos do morto é ver o mundo com os olhos dele.

Mecê não é escrivinhadora? Então, escrivinhador tem que ver o mundo com muitos

olhos, ouvir com todos os ouvidos.

Eu gostaria de dizer a ela que isso é uma bela metáfora, mas receio que ela não veja

desse modo. Eu, afinal, como vejo?

AVÓ – Pega, vamos! Engole. (ela me olha profundamente) Lembra, minha neta, que o

padre também se alimenta do outro.

Eu – Avó, o que fala?

AVÓ – Pois não é ele que come do corpo e bebe do sangue de Cristo? Padre ikaru

jae'a23. Come, anda!

Canto Dois – Eu sou o que não sei ou Da matéria fina dos sonhos

EU – Este é Teodoro. (imagem de um bebê) Ele é meu neto. Ele tem seis meses. Eu

sonhei com ele na noite passada e, foi depois de ter comido os olhos e bebido o

²² Evoko ma oua – Ver Evoko (adv demonst) - Aí vem alguém! Pág. 37 23

Ikaru jae’a – tem muito apetite

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sangue que a jaryi24 me deu, que o sonho nasceu dentro de mim. Eu não sei se foi

sonho. Pode ter sido uma visagem. Bem, ele estava sentado em sua cadeirinha de

bebê e eu vou em sua direção. Ele me vê e se agita de contentamento... Eu vou ao

encontro dele, mas na medida em que me aproximo do Teo, ele vai reagindo de um

modo estranho, diferente... Aquela agitação inicial vai dando lugar a outra coisa. É... eu

percebo, ele está meio acuado. Tem medo de mim, parece... Eu me pergunto - Por

quê? Será que ele vê coisas feias? Dizem, que as crianças até os sete anos são

suscetíveis às visões. Acredito. É possível. ... Então, eu continuo caminhando em sua

direção, mas o Teo, ele está muito assustado. Cada vez mais. Quanto mais eu me

aproximo dele, mais assustado ele fica. ... Já estou a um passo de beijá-lo. ... É bem

nesse instante que eu me percebo. Eu, na verdade, não poderei beijá-lo porque minha

condição física me impede. É... eu me vejo. Tenho bico e penas. Penas pretas e

brancas. Tornei-me uma mulher-pássaro ou um pássaro-mulher? ...Acordei. Suando,

assustada. Vasculhei a cama pra ver se não tinha nenhuma pena caída por lá. Não

tinha. Perdi o sono. Medo que a realidade e a ficção fossem uma coisa só? Também. ...

E, tudo tudo, depois de ter comido aqueles olhos, de ter bebido daquele sangue! Ah,

jaryi! ... Vocês estão pensando o mesmo que eu? ... Será que a avó, ela me enfeitiçou?

Afinal, o Teo é um bebezinho! Sim, eu acredito que ele possa ver coisas! Agora, eu? Eu

me vendo como um pássaro? Eu me vendo como ele mesmo estava me vendo? Mas

por que ela me enfeitiçaria? Não faz sentido! ... A não ser, claro, que ela me enganou

me fazendo pensar que eu comia o que não comi. É isso; pode ser! Os olhos que eu

comi e o sangue que eu bebi não era de padre, coisa nenhuma! ...Será? Então quem

era o morto? A quem pertenciam aqueles olhos? É, .. começa a fazer sentido. ... Não,

não faz nenhum sentido! Eu nem sei mais o que falo, o que penso! Eu via o Teodoro

como meu neto. Ele é que não me via como sua avó. ...Ah, foi só um sonho! Só um

sonho! Só um sonho! ...Mas, afinal, do que são feitos os sonhos? De que matéria são

tramados? Olha, eu só sei que perdi o sono... Fiquei pensando se o Teodoro não tinha

sonhado também o mesmo sonho... quer dizer, nesse caso, pesadelo e, só não liguei

pra minha filha porque eram três horas da manhã! Três horas da manhã e, eu lá me

antropomorfizando...

24

Jaryi – (s) avó, pág. 48

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Passagem de um Canto (dois) a outro Canto (quatro) – Da dança que cria asas e

raízes

AVÓ – Toma, minha neta! É pra te ajudar escrevinhar o que precisa ser escrevinhado.

EU – A senhora tava aí...

AVÓ – O tempo todo. Pega, vamos!

EU (Espera! Ela pensa que eu uso chocalho pra escrever?) – Avó, pra escrever eu uso

lápis, caneta, lap top. Essas coisas...

AVÓ – Quer falar da minha gente, dos meus costumes e nem sabe a força do mbaraka

mirim!25 (Ela movimenta o chocalho, inicia uma espécie de dança) *(...) Isto aqui é

palavra em movimento, que dança na boca, que sussurra nos ouvidos... Se mostra aos

olhos.

Eu olho pra ela dançando e parece que vejo raízes, muitas, em seus pés. Então, a avó é

árvore?, eu penso.

AVÓ (ainda na sua dança) – Árvore, pássaro, água, terra, bicho do mato. Avó é de tudo

um pouco...

Eu continuo olhando pra ela. Um misto de admiração e assombro porque, agora, além

das raízes, eu percebo que ela tem asas enormes.

AVÓ (dançando ainda) – Você precisa se acostumar comigo.

EU – Vai ser bem difícil, isso. A avó é uma caixinha de surpresas.

AVÓ – (Ela me convida pra dançar com ela) Come um pouco de mim, também, come!

Vai, se lambuza de mim!

Eu, meio tímida, aceito o convite metafórico da avó. Ficamos lá eu e ela dançando, sei

lá quanto tempo. Sei que ficamos assim...

25

Mbaraka mirim – (s) chocalho, pág. 67 *(...) O Chocalho do xamã é um acelarador de partículas (Eduardo Viveiros de Castro – Coleção Encontros)

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EU (ainda dançando) – Aqueles olhos que você me deu/

AVÓ (dançando ainda) – /Não estavam enfeitiçados, não. Olhos de homem, urubu rei!

EU – Urubu rei, eu?

AVÓ – Urubu rei, ele. Cuidado minha neta. Não dá palavra pro urubu rei, não! Se não...

Ela me passa o mbaraka mirim. Eu pego. Já não estou tão tímida, percebo pequenas

raízes que se espalham pelos meus pés. E brotos de asas querendo rasgar a minha

carne.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

EU (ainda de olhos fehados) – Se não?

Agora sim, abro os meus olhos. Cadê ela? Cadê a avó? Ela não está mais ali.

EU – Eu sinto... eu posso ouvir... sim, é ela que me chama novamente...

Aos poucos a voz de Valdelice Verón sai do meu escuro e, já é possível vê-la sentada,

exatamente, onde ela ficou, tomando aquele copo de água.

Canto Três – Eu Sou Valdelice Verón... E tenho um exército Guarani-Kaiowá

ELA - Na manhã de treze de janeiro Kelen chegou correndo ao quarto. Kelen é minha filha.

Eu me aproximo dela e retomo o meu lugar de entrevistadora.

EU – Kelen... ela também tem nome de jurua?26

Ela não me responde. Olha-me, mas é como se não me visse. Passeia pela sua

memória, eu acho.

26

Jurua – (s) não-índio: branco, negro, outras etnias; ao pé da letra significa boca com bigode, pág. 55

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ELA - Pois Kelen gritou Manhê o vovô tá ruim! A TV Globo, no Bom dia Mato

Grosso do Sul dizia “O líder indígena foi encontrado à beira da rodovia

que liga Juti a Caarapó. Em estado grave, foi levado para o Hospital

Evangélico de Dourados”. Bom dia Mato Grosso do Sul? Bom dia Brasil? ...Bom

dia Mato Grosso do Sul! Bom dia Brasil! ...Senti o meu corpo amolecer. Meu

medo é que me manteve em pé. Meu pai; xeru oikoa pukukue re27, ele sempre

disse não quero mulher atrás de mim, mulher é medrosa. Ah, meu pai... (Ela

se levanta, está agitada) Você não tem api'a,28 não tem memby ryru29 pra saber sobre a

força e os medos de uma mulher. Nunca te falei sobre isso, nunca. Mas, agora, eu vou falar.

Mulher pode virar em yvytu apu'a30 pra defender os seus. Pode ser, como dizem os

brancos, “o cão chupando manga”. E, eu fui. Cada vez mais, eu sou.... (ela volta pra

cadeira, senta-se) Ele dizia isso... de não querer mulher atrás dele, de mulher ser

medrosa... dizia assim antes de cada ação de seu exército. Mas eu, meu pai, xerua gui

aju!31

Um som de trem se inicia distante de nós. Aos poucos ouvimos a sua aproximação.

EU - Exército?

ELA – Os Guarani-Kaiowá têm um exército de arcos, flechas e conduta de guerreiro. Eu

sou Valdelice Verón. Sou guerreira Kaiowá. Só meu pai não via; não me via. E, eu

sempre lhe respondendo Eu temo é pelo senhor, meu pai... pelo senhor!

O trem engole a fala dela. A sombra dele nos engole.

27

Xeru oikoa pukukue re – Ver puku (adj.) durante a vida toda de meu pai, pág. 95 28

Api’a – (s) órgãos genitais de mulher, pág. 73 29

Memby ryru – Ver memby (s) útero, 73 30

Ivytu apu’a – Ver apu’a ( adj.) tufão, vento tempestuoso, pág. 24 31

Xerua gui aju – Ver a gui (sufixo a com posposição) do lugar onde algo ou alguém está. Xerua gui aju – vim do meu pai, pág. 17

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Canto Cinco – Para Poty quer ser atriz

A imagem do meu blog aparece na metade de um telão. A outra metade está

reservada para a mensagem que chega de um celular. Então, pode-se ver o movimento

das palavras que se interligam e se completam em um comentário, porque a escrita de

quem comenta acontece em tempo real.

COMENTARISTA – Nhande Ka’aruju!32 Eu tenho quatorze anos e sou da etnia Guarani

Mbya. Quero ser atriz. Você pode me ajudar?

EU – Oi. Eu não sei como posso ajudá-la. Você sabe como?

COMENTARISTA - Queria fazer um curso de teatro, mas moro longe.

EU – Onde você mora?

COMENTARISTA – No tekoa Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo.

EU – Em uma aldeia! Eu posso conhecer sua aldeia? Posso levar uma oficina de teatro

praí. Que acha?

COMENTARISTA – É bom. Mas, preciso ver com as lideranças daqui. Vou pra escola,

agora. Depois combinamos.

Canto Quatro - Do corpo e do sangue de cristo ou Do desenterramento do novo

enredo

AVÓ – Você me chamou, minha neta?

EU - Chamei? Não sei... estava aqui com os meus pensamentos.

AVÓ – Precisa de ajudinha... mas como não sou das letras, desconfia de mim.

EU – Não, avó. Não se trata, disso. É que preciso fazer um enredo, só que não sei como

se faz isso! Pra fazer, eu teria que saber o começo o meio e o fim da história, mas avó,

eu não sei! É estranho... me dá a sensação de ser um pouco Nhanderu, sabe?

AVÓ – Não diga bestagem, que você nem conhece Nhanderu Kuery!

32

Nhande Ka’aruju – boa tarde – após às 12 horas essa é a forma de saudação, mesmo que o encontro entre as pessoas ocorra às 24 horas, ainda é Nhande Ka’aruju, mas na despedida diz-se japytu’uju e no amanhecer do dia até às doze horas diz-se javuju. (informações recebidas por Jera Giselda – etnia Guarani Mbya, Tekoa Tenondé Porã)

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EU – Sei bem que não! Mas é como, avó! Se eu tenho que saber tudo da história,

passado presente futuro, começo meio e fim, é como se fosse, não é?

Avó pita o petỹgua33 dela. Impregna o espaço de fumaça. Eu tusso. Ela pita. Pita, pita,

depois, solta fumaça em mim. Várias vezes.

AVÓ (quase sussurando) - Pra fazer enredo precisa primeiro enterrar Carapiru Awá-Guajá.

EU – Awá-Guajá está vivo! Como posso enterrar quem está vivo?

AVÓ (ela me entrega uma urna funerária) – O Carapiru que você vai enterrar não é o

Carapiru que Nhanderu criou. Esse está vivo! O outro, esse que você criou na sua

cabeça de jurua, esse é que precisa morrer. Sem enterrar o Carapiru da sua cabeça de

jurua não tem enredo, não!

Canto Zero – Do enterramento de Carapiru Awá-Guajá ou Do epitáfio em sua urna

funerária

Caminho com a urna funerária que jaryi me deu. Levo, também, um texto de teatro. Eu

retiro alguma cenas, inclusive as profecias. As demais, depois de picá-las em nanos

pedaços, ateio fogo em todas elas. As cinzas? Coloco-as na urna. Converso com

Carapiru de dentro da urna.

.

EU – Carapiru Awá-Guajá, eu tentei... Você sabe que sim, mas não fui capaz. Eu achava

que podia ser sua porta-voz quando você nem queria nem precisava de uma. Agora,

olha bem, só sobrou as cinzas de cada palavra escrita em vão. As cinzas, o prólogo... as

profecias. Essas partes, eu deixei que sobrevivessem... Eu gosto delas e antes de botar

fogo nelas, eu quero ler pra você. É como se fossem vários epitáfios gravados em sua

urna funerária, sabe? (uma luz se acende de dentro da urna, mas eu não me dou conta

disso) Não, você não sabe. Isso é coisa de não-índio. Coisa de jurua... Mesmo assim, eu

vou ler. ...Ora, por quê! Porque eu quero; pronto e acabou.

Passagem de um Canto (Zero) para outro Canto (Um) – Dos restos, memorial do

esquecimento

Entre as páginas que salvei, escolho a Primeira Profecia – do trem

33

Petỹgua – (s) cachimbo, pág. 89

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EU (Se é verdade que todos temos uma odisseia, esta profecia, diz respeito ao drama

pessoal de Carapiru Awá-Guajá. Está lá na Serra das Desordens, de Andrea Tonacchi.

Está aqui, como material que sobrevive ao naufrágio de uma dramaturgia incinerada).

... Presta atenção, Carapiru! Vai doer, eu acho, mas é necessário... HUM MIL NOVECENTOS E

SETENTA E OITO (a luz na boca da urna se intensifica) quê? Sim, sim. *(...) Foi o fatídico

ano. Eu disse que ia doer... Mas, homem, sossega! Já passou... Já vai longe. Posso ler?

(A luz se agita, ainda, mais. Depois, se azula na sua tristeza. Sim, eu posso ler).

*(...) – ano de 1978, quando Carapiru escapa de um ataque surpresa de fazendeiros, mas sua família

não, sendo toda ela dissimada

HUM MIL NOVECENTOS E SETENTA E OITO

Som de trem rasgando o espaço

Carapiru Awá-Guajá ouve tiros perto dali.

Ele sabe que a bala, mais que assustar aves e répteis, elas matam.

Ele sabe que a bala é a arma do homem branco

(a luz torna-se mais forte) ãh? Tá, tá... (reflito) Mas por que sem cor? (a luz pulsa,

impõe um ritmo) Eu não concordo, mas tudo bem, que seja. (o que eu mais quero é ler

essa profecia. Mudo a palavra e pronto...)

Ele sabe que a bala é a arma do homem sem cor.

EU – É isso? A arma do homem sem cor? Eu não tenho cor, Carapiru? (Agora, ele se

finge de morto. É o ponto final dessa sentença que ele acaba de me dar) ...É, eu não

tenho cor. (retorno à leitura)

Ele corre para lá onde está o seu clã.

Ele corre para lá ao encontro da morte.

Do clã morto à morte do clã.

Jaz o tempo dos rituais mortuários.

Agora o tempo do clã jaz.

Ele corre do tempo da morte, do fogo chispando o corpo do clã.

Muito distante pode se ouvir o ruído de um avião.

Ele tem uma panela e vontade de correr.

Na sede, chupa cana em território privado.

E pernas pra que te quero.

Ele tem arco, tem flecha.

No calor, banha-se em açudes alheios.

E corre sempre, cada vez mais.

Ele corre muito e sempre e sem parar.

Agora, o barulho do avião está mais próximo, capaz de engolir a minha voz.

Carapiru andante. Carapiru errante corre muito, cada vez mais. Carapiru Awá-Guajá

corre por dez anos. ... Agora já pode parar. Pode olhar para o rastro de 2000 km que

deixou para trás. Som de trem rasgando o espaço.

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A sombra do avião está sobre as nossas cabeças. Não há mais corpo nem voz. Nem luz

na boca da urna funerária há.

Canto Dois – Eu sou o que não sei ou Da matéria fina dos sonhos E da matéria viva do

enredo

Eu, mais por comodismo do que por pulsão, convenço-me de que enterrar Carapiru foi

um grande acerto. Olho para essas três nativas que me contemplam no vazio de minha

imaginação. A velha índia (a antropófoga), a madura (a da entrevista) e a jovem (a do

blog).

EU (estou aos pés desse vazio, dessa matéria onírica de onde nascem os enredos, os

dramas, os poemas; os sonhos. Sinto-me atraída pela essência da mais velha. Vou em

sua direção. Um claro lumia minhas mãos, as quais iniciam essa feitura de baixo pra

cima, dando forma, contornos a esse corpo. Agora ela está na luz. Posso contemplá-la.

Posso modificá-la se assim desejar. Posso nomeá-la, mesmo, na incógnita de quem é) –

Avó. (Sigo em direção a do meio e apalpo o escuro que habita o contorno da mulher

madura. Ela, também, recebe das minhas mãos as luzes que a modelam. Já posso

percebê-la. Mais que isso, posso sentir sua carne, seu cheiro, sua respiração quase

bélica e, também, posso lhe nomear) – Mãe. (repetindo o mesmo jogo cênico entre

minhas mãos modeladoras e a luz que dá forma, sigo em busca da terceira, da mais

jovem. Apalpo a matéria que dá forma e desforma, criando os contornos da jovem

nativa, certamente, a futura atriz) – Filha.

Passagem de um Canto (dois) para outro Canto (zero) - Do Desenterramento da luz

que fala

Trabalhando na matéria bruta da mais nova, sinto uma mão de homem segurando a

minha mão de mulher. Minha mão está paralisada e, a luz que acompanhava minha

modelagem se aloja, agora, na boca da urna funerária, onde mora o que resta de

Carapiru. Por ela, Carapiru fala.

ELE – Não adianta me enterrar. Quanto mais você me enterra, mas eu broto! Das

cinzas eu broto.

EU – Carapiru?

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ELE – Enterrando a história que fizemos juntos?

EU – Fizemos?

ELE – Acha que tudo só saiu da sua cabeça?

EU – Também, saíram de outras partes de mim!

ELE – Muitas luas convivemos juntos. Jurua não tem memoria? Jurua só tem

esquecimento!

EU – Você está sendo injusto. Pensa que foi fácil o seu enterramento? Não foi. Mas a

vida é movimento. Você, muito mais que eu, sabe que não se pode percorrer duas

vezes o mesmo rio, não sabe? (...) O que o vento traz num dia, ele leva no outro. Não é

assim que é?

ELE –Aquele yvytu ijava ete.34 Agora, outro vento está me trazendo. Você ouve? (...)

Pode ouvir? Pode sentir?

Uma neblina toma conta do espaço. O som do vento é quase um lamento.

EU – Sim, eu posso.

ELE – Ouve? Sente? Então, sabe que é inútil me enterrar. Sabe que me movo (ele

quase sussurra) Ontem fui andarilho, onça, cacique? Hoje, talvez, eu seja o pajé. Aquele que vê o polvo, a

cobra, o pássaro grande... Vejo os disseminadores da morte.

EU – Ando confusa. Não se deve tomar nenhuma decisão nesse modo duvidoso...

Preciso de tempo.

ELE – Temos pouco tempo. Temos urgência. Não se demore.

EU – Também tenho pressa. Tenho prazos, cobranças.

ELE - Não se demore muito.

EU - Deixa eu te encontrar nesse novo enredo.

ELE – Eu vou, mas eu volto. Assim como o dia vem depois da noite, eu também tô indo

e vindo o tempo todo. Só mais uma coisa... (agora fala mais baixo) este encontro entre

um Awá-Guajá e um branco...

EU – O que é que tem?

ELE – Ani ke eremombe'u.35 Pra ninguém! Esse encontro é só nosso, só nosso...

34

Yvytu ijava ete – o vento estava perigoso 35

Ani ke eremombe’u – não conte isso de jeito nenhum (Ani, palavra Paraguaia ), pág.22

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A luz da urna já se apagou. Carapiru se foi, mas deixou um nó na minha cabeça. Não

sei quanto tempo fico em meus pensamentos.

Canto Seis – Das imagens que revelam o não revelado

Tão rápido como Carapiru aparece, ele desaparece. Carapiru é só um pensamento

meu? A fala contudente dele é só um pensamento meu colocado em sua boca? ...Não

sei. Sei da impressão que fica. Dessa confusão de pensamentos ora reais ora ficcionais,

ora meus ora de ninguém. Por quanto tempo estou assim? Há quanto tempo ele, o

fotógrafo, está ali, a me observar, a me espreitar, tal qual esse mar de olhos que me

olham? Tal qual a velha índia que me espia e eu a ela?

FOTÓGRAFO – Olha só. Se reconhece?

EU (olho-me na minha imagem que ele acabou de fazer. Parece quente, saída da

fornalha. Ela me parece enorme, crescida no fermento que se mistura à carne, ao

sangue, aos músculos que me compõem, me disforma) – Você, agora, deu pra

fotografar pensamentos?

FOTÓGRAFO – Quem dera! Mas neste caso é palpável. Você estava em qualquer lugar

do planeta, menos aqui.

EU – Já conseguiu segurar uma onda de mar? ...Esse enredo parece o próprio mar no

seu ir e vir. Ele me contém, mas não eu a ele. Eu sou só uma gota.

FOTÓGRAFO – Também comigo é assim... Às vezes, na revelação de uma foto ela se

revela outra pra mim. O processo é uma linha tênue.

EU – Neste, eu começo a me sentir personagem. Eu, à mercê de mim... O pensamento

daquela figura é dela ou é meu? Isso tá me consumindo.

FOTÓGRAFO – Fala; aonde tá o nó?

EU – ... Nisso está o nó. Em Carapiru está o nó. Na “avó” está o nó! Imagina, que ele

suspeita dela? Receia que ela não é quem aparenta ser. ... Ela pode mesmo não ser.

FOTÓGRAFO – Eu também posso não ser. Você, também, pode não ser quem

aparenta.

EU – Eu, um urubu rei... ela falou, outro dia.

FOTÓGRAFO – Sua orientadora sabe disso? Dessa interferência de Carapiru sobre sua

obra? Da avó sobre sua pessoa?

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EU – Não. Isso eu preciso resolver comigo mesma. Se não fosse essa foto nem contigo

eu teria falado.

Canto Três - Eu sou Valdelice Verón. Tenho um Exército Guarani Kaiowá E um pai

morto a pauladas

O corpo de Valdelice Verón caminha de lá pra cá, enquanto busca no infindável ir e vir

de sua memória, as palavras cruas para relatar o cozido de pai assassinado. O corpo

dela é, todo ele, ressentimento e raiva. O meu por fora se mantém estático, sentado na

cadeira. Por dentro, é fio condutor que se conecta com a dor das suas lembranças mais

doídas, não cicatrizadas, sangrentas. O ir e vir de Valdelice Verón coloca os meus

nervos em frangalhos. O silêncio que as lembranças desse episódio provoca, me

envergonha. Pela primeira vez, é no corpo que a vergonha da minha consciência de

jurua chega.

ELA – O pai, ele estava internado na UTI... (aqui, há longo silêncio repleto de imagens

internas, que são dela. Não nascem em mim. Moram nela) Pra poder vê-lo fora do

horário de visitas, eu paguei R$ 50 a um enfermeiro que eu conhecia. (ela silencia

novamente... seu silêncio continua cheio de dor, raiva, gastura). Esse enfermeiro, ele

me disse parece que foi meio grave. O que que ele é, mesmo? (outro silêncio;

agora entre ir e vir de seu corpo, até que ela para) Ele é meu pai. Cacique Guarani-

Kaiowá (retoma o ir e vir, o balançar de seu corpo) Eu sempre dizia pra ele - Medo,

pai? Eu temo é pelo senhor! Mas, ele ria e me dizia. Não minha filha, você teme

é por você! ... Nessa noite pouco dormi. Em meio a uma nesga de cochilo, ele chegou

em meu sonho, rindo. Ele falou eu vou lá na roça filha, vou lá buscar milho

branco pra gente fazer chicha. Chicha é uma bebida fermentada. (...) Lá pra

onde eu vou vai ter festa grande, filha! (Ela para. Silencia novamente, mas desta

vez, seu silêncio está cheio de imagens que sangram bem aos meus pés. Desconcerto-

me).

EU (limpo a poça de sangue. Preciso falar qualquer coisa, quebrar esse silêncio

sangrento. Talvez um lapso no tempo) - Não acha que vai chover?

ELA - Vi meu pai como quem vê um peixe em um aquário e senti um

segundo de paz. Ele ali, adormecido, plácido (ela me olha e não me vê. Em

mim vê o jagunço, jurua como eu, que matou o cacique a pauladas) Que é que há? Eu

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sei muito bem o que é plácido! Eu falo o português! Eu penso nessa bosta de língua

imposta! (ela se desmonta toda) Mas eu sinto em Guarani. (novamente me olha e não

me vê. Vê o outro jagunço. Talvez, veja o instrumento que matou o seu pai) E você,

hein? Você fala o guarani? Pensa em guarani?

EU – Me perdoe, Valdelice. (olho para o mar de olhos que me olham)

ELA – Xeru oiko axy karamboae.36 (ela olha para o mar de olhos que nos olham) Têm

olhos e enxergam. Ouvidos, e escutam só o próprio umbigo. O EU, o EU, o EU!

Ela não me ouve, ela não está ali. Ela está lá, na hora h.

ELA - Esse segundo de paz que eu senti foi logo antes da enfermeira tocar em meu

ombro e me falar Você é parente? Seu Marcos Verón não agüentou. Ele

acabou de falecer.

Canto Cinco – Para Poty quer ser atriz E o mundo virtual invade a nossa cena

O mundo virtual invade o espaço de meu enredo. O telão se divide entre o espaço de

meu blog e o monitor do celular dela. Pode-se ver o movimento das palavras que se

interligam e se completam em um comentário, porque a escrita de quem comenta

acontece em tempo real. É a jovem Guarani retornando.

COMENTARISTA – Ka’aruju! Você está aí? Pode me responder?

EU – Ka’aruju! Tudo bem com você?

COMENTARISTA – Sim. Tudo. Você quer conhecer a aldeia onde moro?

EU – Caraca! Quero muito!

COMENTARISTA – Vem pro nosso encontro de jovens. Vai ser na sexta-feira, na Opy

EU – Opy?

COMENTARISTA – É, na Casa de Reza. Você vem?

Evolução do Canto Cinco – Para Poty quer ser atriz E o mundo virtual invade a nossa

cena Quando a língua Guarani se espalha feito fumaça de petỹgua

36

Xeru oiko axy karamboae – meu pai passou por sofrimento (que eu vi). Adv. Ação no passado, e presenciada pelo falante (sobre karamboae), pág.57

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Eu na Opy. A fumaça dos petỹguas se espalha pelo ambiente. Uma pequena fogueira

aquece e ilumina o espaço, todo ele, rodeado por jovens Guarani. Somos, Eu e o

fotógrafo, dois peixes fora d’água salvos por ela, a comentarista de meu blog.

Finalmente, em carne e osso.

PARA POTY – Nhande ka’aruju. Que bom que vocês vieram. O encontro já vai começar.

EU – Nhande ka’aruju.

FOTÓGRAFO – Nhande ka’aruju! Sobre o que vão discutir?

PARA POTY – Aqui se discute sobre tudo. Meu nome é Para Poty.

EU – Bonito. O que significa?

Nossa conversa é interrompida. Um ritual com canto, dança e fumaça dos petỹguas

inicia o encontro - o bom encontro. Enquanto dançam, cantam e pitam, nós, os jurua

kuery, de olhos vermelhos e garganta irritada, apenas assistimos. Há muita

transpiração ali. Aos poucos, o canto e a dança se acalmam; adormecem. A fumaça

não. Para Poty senta-se entre nós dois. Um jovem vai à frente e narra um sonho. Para

Poty quase sussurrando, traduz todo o sonho para nós. Penso, ela é tradutora e nem

sabe que é. Mas, mesmo que ela não saiba disso, mesmo que ela nunca saiba disso,

aqui ela é. É a tradutora de sonhos, por isso pode falar baixinho, bem baixinho. Eu

gosto, eu penso que Para Poty traduz, não ao pé da letra. Ela traduz... é ao pé do

ouvido.

- Kuee mboa37, sonhei que xejaryi38 falava comigo. Ele falava Ijava ete. Nhembo’e

reko ijava ete nhanhembo’eporã’i ta ramo. Ha vy pe’i tembiu pi py

ha’e rami, teῖ ke reiporavo ma.

TRADUTORA – Anteontem, ele sonhou com sua avó, que disse pra ele: São desafios. Existem

muitos desafios para rezar, quando vamos rezar mesmo. É a mesma coisa com a

alimentação, você tem que escolher bem.

- Nhandy ndere’uvei ma rã, ndee ae ndeparte gui rive, nateinkontevei

ijayvua.

37

Kuee mboa – Anteontem (pág. 62) 38

Xejaryi – minha avó (sobre Xe - pref. Pron. 1ª pessoa do singular) , pág. 115

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Nhandy ndere’uvei ma rã, jurua roo kue ndere’uvei ma rã, sinhora roo

ndere’u vei rã, evoi roo kue, mboi roo kue, xype, ju’i, ha’e rengua

ndere’u vei rã.

TRADUTORA - Gordura, você não pode comer mais. Você mesmo tem que ter iniciativa,

ninguém precisa falar. Não pode comer mais gordura, carne que foi de branco [porco] não

pode mais comer, carne que foi de mulher branca não pode comer mais, carne de minhoca,

carne de cobra, lesma, rã, não pode comer nada dessas coisas.

- Ndee reiporavo ma rã, tove ndera’y kuery to’u, ndee’i rive’i ma rã.

Repuã re re’u mba’emo rei. Ere ngau nderayxy pe “ejapo rora rive’i

xe vy pe, mbeju rive’i”, ndee nderei rã ke, “tembiu vaikue ko pe’u,

ndaevei ri ma pe’u aguã” nderei.

TRADUTORA - Você vai ter que escolher, pode deixar os seus filhos comerem, só vale pra

você. Você levanta e come coisas simples. Você pede para sua esposa “faça apenas rora

[farinha de milho], ou mbeju [tipo de beiju de milho]”. E você não pode ficar falando, “vocês

estão comendo comida ruim, vocês não podem comer isso”, você não deve falar isso.

- Nderei rã nderay kuery pe, tove to’u, tove to’u ojeupe va rã pe.

Ndee ha’e rami ndejeupe vã rã.

TRADUTORA - Não pode ficar falando assim para seus filhos, deixe que comam, deixe que

comam para si mesmos. Você também está comendo para si mesmo.

- “Mba’e rã tu xeru, mba’e re tu xeramoῖ, mba’e re tu xeretarã, tembiu

oiporavo nguau ri”. Hei xe vai ko jaexe vai ko.

TRADUTORA - “Pra que o meu pai, pra que meu avô, pra que meus parentes estão

escolhendo a comida?” Assim eu iria falar, assim se fala.

- Tekoaxy gui ha’e va’e re ju nhandeayvu, pero ndajaikuaai py mba’e

re pa ha’e, ha’e oikuaa rupi rã.

TRADUTORA - Criticamos porque somos tekoaxy, mas nem sabemos quais são seus

princípios.

EU – O que é tekoaxy?

TRADUTORA – Coisas da terra, o que é imperfeito.

- Ha’e rami tujakue oikuaa xamoῖ kuery nhandereko ma ha’e va’e ae.

Ha’e ma opamba’e ipyau.

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TRADUTORA - É assim que os mais velhos sabem, os nossos avós, é esse o nosso modo de

ser. Tudo se renova.

PARA POTY – Pela dança e pelo suor ficamos mais leves. Ndaetei ky’a vei.

“Ndaetei ky’a vei”, ela fala baixinho. Mais tarde soube que dizia “o corpo não está mais

sujo”.

Insurreição entre Cantos – De como Para Poty torna-se Valdelice Verón e Carapiru

busca seu lugar na cena

Depois da Opy, do encontro de jovens, meu olhar está modificado. Retomo para minha

dramaturgia e a aldeia não sai mais de mim. Retorno à entrevista com Valdelice Verón,

mas toda vez que ela começa a falar, vejo que ela fala pela boca de Para Poty. Ela,

Valdelice Verón está sentada em sua cadeira. Eu estou na minha. Mas na minha

cabeça, Para Poty está entre nós. Tem corpo, tem voz, quer falar, quer agir. ...

Carapiru, esse também se aproxima, mas fora da minha cabeça e, só mais à frente, é

que terei consciência de sua presença. Já, o mar de olhos que me olham, também a ele

olham.

EU – Como você ficou?

ELA – Naquele instante, eu fiquei nhemyrõ. Vocês mataram meu pai? Agora vão

ter que ressuscitar!, eu gritava pelos corredores da UTI. Alguns enfermeiros

tentaram me segurar. Mesmo assim, eu cheguei a socar um dos médicos. (...) Sedada e

amarrada, eu escapei e fui pra rua. Era uma manhã de segunda-feira, me lembro bem.

Eu despejei toda a minha raiva sobre a cidade dos jurua kuery. (ela levanta

bruscamente. Vem em direção ao oceano de olhos) Vocês é que deviam morrer,

seus desgraçados! Vocês acabaram comigo! (depois, respira fundo. Olha em

minha direção) E antes de desabar em pleno asfalto por causa dos calmantes, eu

balbuciei ao procurador da República Você! Você me enganou! A morte de xeru

ojapo ndakyjevei aguã ramiri.39 Ah, xeru rãgue’i! Ah, xeru rãgue’i!40

39

Ndakyjevei aguã ramiri – meu pai fez com que eu não tivesse mais medo (Ver aguã rami – conj. (de tal maneira que), pág. 18 40

Xeru rãgue’i – meu falecido pai (Ver ãgue (s.), pág. 18

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Eu apago a luz sobre Valdelice Verón. Acendo outra sobre Para Poty. Eu vou até ela.

Carapiru aproveita para se aproximar mais desse instante cênico. Eu pressinto algo,

mas ainda não tenho consciência de que se trata dele.

EU (que, ainda, vejo em Para Poty vestígios da tradutora, a ela pergunto) – O que é

“nheyrõ”?

PARA POTY – Nhemyrõ.

EU – Nhemyrõ?

PARA POTY (ela sorri) – Com o tempo você aprende. Nhemyrõ é um estado entre

desespero, braveza. A gente sente muita tristeza quando está nhemyrõ. A gente em

nhemyrõ é céu de tempestade. No instante em que um guarani se mata, ele está

nhemyrõ.

Não, Para Poty não é só tradutora. Para Poty é mais. Quem é essa menina, que é moça,

que é mulher? Quem é? Para Poty... um vir-a-ser? Para Poty, será? Pode ser... não

custa experimentar, eu penso. Mas, é preciso sair desse campo das elucubrações. É

preciso agir. Ser mais rápida que ela. Assim, entrego-lhe um texto. Ela senta-se em uma

cadeira igual a de Valdelice; eu também, bem à sua frente. Ela sabe, não preciso dizer

palavra. Para Poty sabe que, agora, é o devir de Valdelice Verón. Que é pela sua boca

que Valdelice falará e, é claro, isso é melhor para mim. ... Afinal, Para Poty quer ser

atriz? Então... aí está! O que é o ator, senão camadas e camadas de identidades que

ele é capaz de possuir sem ser possuído? Não, não preciso sentir nenhuma culpa de lhe

dar a voz de Valdelice Verón. Não preciso, desta vez, pedir perdão à Valdelice por lhe

emprestar uma sombra, lhe dar um duplo.

EU – Como foi sua educação?

DUPLO dELA (ainda tímida, não se solta do texto, fica ali, bem pressa ao papel) -

Fui criada em meio aos homens, na guerra. Junto de meu pai, eu

participei... olha, acho que mais de dez ações de guerrilha.

Sempre na reconquista do centro do mundo. (...) Eu era a única

mulher entre centenas de homens. (ela para e me olha. Sorri e me diz) Nessa

fala dela, você acha que ela sente orgulho?

EU – O que você acha?

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PARA POTY - Eu acho que sim.

EU – Então, tenta.

DUPLO dELA (Agora, ela já lê com mais soltura) - Fui criada em meio aos

homens, na guerra. Junto de meu pai, eu participei... olha, acho

que mais de dez ações de guerrilha. Sempre na reconquista do

centro do mundo. (Aqui, bem aqui, ela dá mais ênfase) (...) Eu era a

única mulher entre centenas de homens. (Para Poty sorri. Está feliz com

essa possibilidade de ser outra, ser quem não é sem perder o seu centro) Todas as

outras kunha41 só chegavam no dia seguinte da ocupação. Eu ia

primeiro, por causa da habilidade de lidar com kuatiá.

EU – Kuatiá?

PARA POTY (agora, sem ler o texto) – Documentos produzidos por brancos.

Já, já vai acontecer um jogo entre Valdelice e seu duplo. Não sei se esse jogo fui eu

quem criou. Se sim, diria que se trata de um jogo cênico. Mas pode ser que não. Pode

ser que esse jogo não venha de mim, mas por mim. Digo, pelo processo que diz, muitas

das vezes, na maioria das vezes, bem mais alto, do que a nossa pobre vontade cênica.

Penso, fico pensando que, talvez venha de uma luta de forças, de ter o poder, de não

perder sua voz nem seu canto. De não precisar de nenhuma representatividade, de não

precisar do meu teatro. Assim, ELA apaga a luz sobre Para Poty e retorna ao seu lugar,

à sua cadeira.

ELA – Eu sou Valdelice Verón; filha do cacique Marcos Verón, o cacique morto a

pauladas...

Para Poty acende a sua luz.

DUPLO dELA (lendo, mas também, encarando Valdelice Verón) – ... por jagunços

dos fazendeiros, coronéis dos latifúndios, que eles insistem em

chamar de agronegócio. Capitães de Naus que querem a terra dos

Guarani-Kaiowá, (ELA tapa a boca de Para Poty)

ELA - ... Mesmo que manchada de sangue.

41

Kunha – (s) mulher, pág. 63

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EU (só agora percebo a presença de Carapiru nesse lugar que, já nem sei se é o lugar de

criação dramatúrgica) – Não, Carapiru, não! Agora não!

CARAPIRU – Agora sim.

EU – Deixa eu terminar essa cena.

CARAPIRU – Axê! Não vim pra pedir nenhum favor, não! Sou intruso, eu? Não, não. Eu

sou mba'e ypy ymaguare,42 não sou?

VALDELICE VERÓN – Sim. Aqui é mais seu que nosso.

PARA POTY – É... Você fica.

ELA oferece um copo de água para ELE. ELE bebe. Estou desconcertada com todos eles.

PARA POTY – Carapiru pode ser o mboruvixa43 que você procura, não vê?

ELA – Sim, acha logo o lugar dele nessa história.

EU – Eu? E, vocês precisam de mim pra alguma coisa?

Sem saber muito bem como proceder, pego o copo da mão de Carapiru e bebo em um

só gole a água que resta. Os três me olham.

ELE – Pensou?

EU – É besteira, mas vá lá! O que acha de fazer uma viagem no tempo... ir pra 1500,

antes da chegada dos jurua kuery?

ELE – Pindorama! E pra quê?

EU – Mostrar as profecias do polvo, cobra e pássaro grandes. Tentar convencer os

nativos de não fazer barganha de espécie alguma. Ouro por espelho, cocar por

carapuça, essas coisas...

ELE – Não rezar a primeira missa.

EU – Isso.

ELE – Quando eu parto?

EU (jurava que essa ideia espatafúrdia só renderia risadas, Mas não! ... É sempre

assim. Sempre, me surpreendendo... Dão risada do que considero sério e levam a sério

42

Mba’e ypy ymaguare – Ver ymaguare (s) - história antiga, pág.118 43

Mboruvixa – (s) grande líder, pág. 71

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o que eu considero bobagem. E, tem mais... o que é pra dar risada e o que não tem o

mesmo peso, a mesma medida. Eu não sei nada mesmo.... Então, me recupero da

surpresa ou pelo menos tento) - Só o tempo de escrever essa cena. Toma, são as

profecias.

PARA POTY - Ake'e, any!44

ELA (se colocando entre eu e ele, não permite que ele pegue as profecias e, lhe

entregando arco e flecha, coloca uma de suas mãos na goela dele) - Aa ma ikuai

ereraa va'erã.45 Xerexa pyxo.46

PARA POTY – Kova’e ára gui47, joguereko!48 Juntos, ficamos mais forte.

VALDELICE VERÓN (Ela pega as profecias de minha mão. Usa de um isqueiro para

queimar as profecias) – Japy mba’emo yty!49

EU (reajo... tento tirar as profecias de suas mãos) – Não!

VALDELICE VERÓN – Japy mba’emo yty!

Agora é a vez dele. Ele, Carapiru se colocando ente Eu e Ela. Ele, Carapiru me defende!

Eu? Ganho dia, a noite, ganho essa dramaturgia.

CARAPIRU – Não. Não, vai queimar não! Dei minha palavra. Essa parte sobrevive.

PARA POTY – Se deu palavra, está ha'eve va'e!50

ELA devolve-me as profecias, mas sei que está insatisfeita. ... Depois, sorrindo, encara

Carapiru Awá-Guajá.

VALDELICE VERÓN – Carapiru é ava poapē!51

PARA POTY – Carapiru é ava poxy.52

Eles riem, parecem felizes.

44

Ake’e, any – nessa, não. Ver Ake’e – interjeição, que indica susto, espanto por ver coisa perigosa, errada ou desagrável, pág. 20 45

Aa ma ikuai ereraa va’erã – Ver eraa jepe (-v.t.direto) aqui estão as coisas que você vai levar, pág. 34 46

Xerexa pyxo – ver –exa pyxo (s.) os meus olhos estão bem abertos, pág.37 47

Kova’e ára gui – Ver gui - de hoje em diante, pág. 41 48

Joguereko – Ver -ereko (v.t.d) 1. Conviver com uma pessoa, assumindo responsabilidade pela vida dela; 2. Joguereko (v.i) andarem juntos, ajudando um ao outro, pág. 34 49

Japy mba’emo yty – Ver –apy (v.t.d) vamos queimar lixo, pág. 24 50

Há’eve va’e – expressão nominalizada; coisa ou ato correto, certo, pág. 43 51

Ava poapē – índio mítico, homem de unha, pág.27 52

Ava poxy – índio mítico bravo, pág.27

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CARAPIRU – Opa marãgua oiko teī xee ha'eve vai!53

Canto zero – Do enterramento de Carapiru Awa-Guaja ou Da epígrafe de sua urna

funerária Há o Desenterramento da luz que fala E Da luz que não fala

Só me restou estas folhas - recortes de uma dramaturgia que virou pó. Estas folhas, um

arquivo word e uma urna funerária com um punhado de cinzas.

EU – Carapiru, sai dessa urna, vai. Vem conversar comigo. (ele não sai; ele não me

ouve; não está nem aí pra mim). Então, tá. Você não sai nem eu vou embora. Vou ficar

aqui, bem no meio desse caminho. (Eu fico. Ele não aparece. A sombra da noite cai)

Carapiru... estamos bem no meio da noite escura. Iauraête vem comer a lua, não vê?

(Ele come, come, rumina). São muitos os ruídos de sua ruminação. Não ouve? Daqui a

pouco vou sentir frio e fome. O medo vai virar paúra. Eu sou jurua, lembra? (Eu sinto

frio. O som de um avião longínguo é como um sinal para mim) Tá ouvindo? Eles não

param de vir. Nem o breu da noite que Iauraête devora, eles respeitam. (desenrolo as

folhas). É sempre bom relembrar. Ouça...

Passagem do Canto Zero para o Canto Um – da luz que não fala ao avião que diz pra

que veio

Tenho uma das profecias em mãos. Quero ler. Tenho esperanças que minha voz possa

ecoar até ele no mais profundo dessa urna. Ajudá-lo na difícil tarefa de ressignificar o

passado.

Canto UM – Da profecia Ave Ão

EU (lendo) - Há cinco séculos atrás - SEGUNDA PROFECIA - Do Avião – Ave Ão

Quase cinco séculos atrás é Carapiru-Pajé errante; Carapiru-Pajé visionário; Carapirú-Pajé

profeta. Ele, de olhos fechados, enxerga o tempo da Ave gigante. Ela brota da vontade de Júpiter e

sobrevoa o céu da floresta. Ela não pia nem canta como os pássaros que Carapiru-Pajé enxerga

53

Opa marãgua oiko teī xee há’eve vai – Ver há’eve vai (v. i. modificado) - mesmo que todo tipo de coisa aconteça, eu fico tranquilo – há’eve vai – estar tranquilo, não perturbado, pág. 43

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de olhos abertos. Ela ronca e sua enorme sombra passeia pelas aldeias. Sua enorme sombra toca

os corpos dos nativos. Corpos estremecidos. Suas asas não movimentam o ar? Carapirú-Pajé

perplexo. Ave que caga e mija fezes e urina que não aduba nem fertiliza a terra? Ave que poliniza

epidemia? Empesteia o clã de fraqueza, ferida e febre? Gérmen da doença. Ah, Ave de

Encantamento! Ave Gigante fala. Ela diz: Eu inoculo Orthopoxvírus Variolae, vulgo bexiga. A

Varíola responde: Eu sou O Vírus.

Carapiru-Pajé de olhos fechados enxerga o interior da Ave. Ela sobrevoa; ele dentro dela. Onça

quando come tatu, tatu sangra. Onça tritura corpo de tatu. Ave Encantada engole Carapiru e

Carapiru não sangra. Nem morre dentro da barriga dela. Carapiru continua vivo. Olha pelo olho

dela e vê a floresta lá embaixo. Vê o clã lá embaixo. Vê o clã olhando Ave Encantada no céu da

floresta. Ela caga. Mixa sobre a aldeia. Empesteia a mata de fezes fumaça. Onça quando caga

tatu, tatu não vira fumaça. Ave Encantada engole Carapiru e caga Carapiru fumaça? Como pode

Ave cagar Carapiru fumaça e Carapiru continuar vivo dentro dela? É Ave de Encantamento, sim!

Carapiru olha pelo olho dela e não tem mais aldeia lá embaixo. Não tem mais clã lá embaixo. Ave

de Encantamento espalhou a morte lá. Ave Gigante, agora, diz Eu inoculo a morte. A Varíola

retruca: Eu sou a Morte!

O dia amanhece e aproxima o som do avião. A sombra do avião ronda a minha cabeça.

Ouço vozes que tramam o sinistro. São o piloto e o co-piloto. A profecia já é realidade;

já é século XXI. Das asas da Ave Encantada é que se deslocam o Piloto e o Co-piloto; eu

posso ver... Posso ouvir.

PILOTO – Você tem medo de homem-bomba?

CO-PILOTO – Não. Não tenho medo de terrorista burro. (...) Você tem?

PILOTO – Não. (...) Tenho medo de Papai Noel. (Riem) E você tem medo de quê? De

quem?

CO-PILOTO – De arco e flecha. Sempre estão atrás de um “cara pálida”. (riem) Medo de

fantasma, você tem?

PILOTO – Só tenho medo do que vejo.

CO-PILOTO – Não tem medo de homem-varíola, então. (riem). Imagine, o homem

inocula o vírus. Toma banho, se perfuma, veste o seu melhor terno, pra não causar

nenhuma suspeita. Pega a bagagem, o passaporte e segue para o aeroporto. Ele passa

pelo detector de metais, tranquilamente. Atrás dele vem o homem-bomba. O detector

denuncia. O homem-bomba é descoberto, detido. Sai nos jornais, na TV. Milhões de

pessoas salvas pelo detector. O detector ganha status de deus e a sociedade respira

aliviada. (...) Enquanto isso, o homem-varíola espalha a epidemia. Quatorze dias

depois, quando o homem-bomba já foi esquecido pela mídia... ele vai ao teatro. A casa

está cheia, vê? Ele está na plateia. Bem ali, ó. Naquela fileira ali, tá vendo?

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PILOTO – Ali?

CO-PILOTO – Na outra, tem que ser um cara bem-apessoado. Ninguém desconfia de

homens bem-apessoados.

PILOTO –Aquele lá?

CO-PILOTO – Bingo! ... Imagina, ele ali pesteado e pesteando com o vírus da varíola

neste lugar fechado, ar condicionado, por duas horas.

PILOTO – Duas horas!

CO-PILOTO - ... Olha lá, olha! O igarapé! A aldeia tá logo atrás...

PILOTO – Se prepara então!

O som ensurdecedor de avião é seguido de dinamites. Há fumaça cinza. A sombra do

avião cresce. Escurece.

Canto Quatro - Do corpo e do sangue de cristo ou Do desenterramento do novo

enredo E Do encontro marcado entre as mulheres

EU estou repousando na rede. A avó chega. Está agitada. As outras duas estão com ela

e mantém certa distância.

AVÓ – Epu'ã katu!54 Vamos, acorda, minha neta! Você precisa trabalhar na minha

lavoura.

EU – Avó não me dê enxada, que meu instrumento é caneta.

AVÓ – Devia saber que é a mulher quem veste os espaços.

EU – Então por que me deu olhos de padre pra comer? Eram de padres, não eram?

AVÓ – Hum! (...) Cada um come é pra si mesmo.

EU – Mas eu não queria. A avó insistiu.

AVÓ – Remexe a terra, e não quer se deparar com a cobra?

EU – Quer que seja envenenada por uma?

AVÓ – Quero que me diga aonde está Carapiru?

EU – Então não sabe? A avó sabe muito bem!

AVÓ – O da sua cabeça sei bem. Mas falo do outro, o de carne e osso, cria de

Nhanderu. Esse desapareceu quando o outro foi a Pindorama. 54

Epu’ã katu – Ver Katu (adj. Partícula átona, indicando inyensidade ou até brusquidão: Levante-se!, pág. 57

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Paira silêncio pertubador entre nós. A avó, parece, espera de mim uma resposta, que

eu não tenho pra lhe dar.

EU – Está pensando que o primeiro foi com o segundo?

AVÓ – Diga que isso não é possível.

Eu nada digo. Eu não sei.

EU – Diga a senhora que isso não é possível.

O silêncio desconcertante está lá, reinando entre ela e eu. Aos poucos, dá lugar ao

sentimento comum de angústia, contagia nós quatro. As outras se aproximam mais.

AVÓ – Os Carapirus correm risco de vida, eu pressinto. Você precisa fazer alguma

coisa!

EU – Mas o quê?

VALDELICE VERÓN – Manda reforço pra lá. Nessa guerra, os guerreiros têm arco e

flecha, enquanto os saqueadores tem arma de fogo. Tem que ter igualdade tape yke

jovai re!55

EU – Você está sugerindo...

AVÓ – Mboka.56 Todos os dedos dos pés e das mãos: kuã mbyte rupigua, 57

kuã ra'y'i,58

kuã guaxu.59

VALDELICE VERÓN – Mboka, mboka! Arranja logo é... os AR-15! Assim, a gente acaba

com o problema da invasão é na raiz.

PARA POTY - Não. Melissinha, não!

EU – Melissinha! AR-15! Minha arma é a palavra... A pa-la-vra. Depois, quem as

levaria?

PARA POTY – Eu.

AVÓ – Minha neta, minha neta, parece que vai precisar repetir a lição.

EU – Que lição?

AVÓ – Pega a caneta. Escreve logo essa cena. Para Poty... ela leva as armas.

PARA POTY – Levo. Melissinha, não. Manda logo os M-16. Tem mais calibre, mais mira. 55

Tape yke jovai re – Ver Yke (s) – lado; tape yke jovai re - nos dois lados do caminho, pág. 118 56

Mboka (s) – espingarda, pág. 71 57

Kuã mbyte rupigua (s) – dedo médio, pág. 61 58

Kuã ra’y’i (s) – dedo mínimo, pág. 61 59

Kuã guaxu (s) - dedo polegar, pág. 61

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Para Poty sempre surpreendendo. Sempre. Eu não sei se sei o que seja Melissinha.

Pergunto a ela? Devo perguntar? Já sei...

AVÓ – O que é essa tal de Melissinha, minha neta?

PARA POTY – É um jeito torto, avó, de chamar os AR-15.

Então, minha dedução estava certa... A avó interrompe o meu pensamento.

AVÓ – Fiquei na mesma.

PARA POTY – Melissinha, sabe? Aquelas sandálias de plástico, coloridas?... Então, é o

nome que o PCC deu pros AR-15.

AVÓ – E... AR-15, o que é?

VALDELICE VERÓN – São fuzis.

AVÓ – Hum!!! Fuzis é muito melhor que mboka. Por que não quer levar as

melissinhas?

PARA POTY – AR-15 é, como branco fala, é... meia boca. Bom mesmo são os M-16.

EU – E, onde Para Poty aprendeu essas coisas?

PARA POTY – Na escola de jurua. Trabalho de História.

AVÓ (agora ela olha bem pra mim) – Ah, então, pega a caneta e escreve... Para Poty

leva os M-16.

EU – Avó? Não é assim que se faz uma revolução!

AVÓ – E quem te falou que eu quero fazer revolução?

Canto seis - Das imagens que revelam o não revelado Ou O desafio dos olhos

AVÓ – E quem te falou que eu quero fazer revolução?

Sou salva pelo fotógrafo, que chega apreensivo, agitado. Ele me chama de lado, mas as

três estão antenadas a tudo.

EU – Diga...

FOTÓGRAFO – Você precisa vir comigo... É sobre a exposição. (resolvo colocar aqui, o som

do avião, do trem e do navio se intergalando, sempre de modo crescente. Assim,

garanto certo sigilo em nossa conversa. Mas, algumas palavras como CRATERA, AVÓ,

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ORIENTADORA podem ser percebidas por elas e, também, pelo mar de olhos que nos

olham. Acho interessante que isso aconteça sempre no tempo do hiato entre um ruído

e outro. Por falar em tempo, o nosso é bem curto, que continuamos ali, tomando

decisões importantes ao projeto).

EU (para as três nativas, incluindo o público) – Gente, desculpa. Este é o fotógrafo do

projeto. (ele meio que se apresenta, mas muito timidamente, enquanto eu continuo)

Ele atravessou assim a cena porque tem questões pra decidir comigo, a respeito desse

enredo, das fotos que tirou...

AVÓ – O que tem as fotos?

FOTÓGRAFO – Elas revelaram imagens...

EU – É melhor que a gente veja com os próprios olhos, avó. Vamos até a sala da

exposição. Convido a todos. Venham, vamos.

O fotógrafo já foi à frente. Eu, minhas figuras femininas, o público saímos em seguida.

Evolução do Canto seis - Das imagens que revelam o não revelado Ou O desafio dos

olhos Para Enxergar o Invisível

A exposição. Passar pelas imagens. São elas que me capturam ou eu quem captura as

imagens? Estão todos lá e, agora, o que era público de teatro não é mais. Ou ainda é

teatro? E, agora, o que era não revelado se revela. Estou bem à frente de uma imagem

e depois de outra, mais outra. Eu passo por elas e todos passam comigo. As três nativas

circulam pelo ambiente. A avó bebe proseco. Eu tento impedir.

EU – Avó, quer que eu peça um chimarrão?

AVÓ - Xee ndaka'y'uxei.60 Quero beber desse aí.

(A avó, ela estala os beiços. Eu acho engraçado o jeito dela. Valdelice Verón se

aproxima e não permite minha intromissão com a avó. De certo modo, até acho bom,

assim, ela cuida da avó, durante a exposição).

Para Poty é agora o peixe fora d’água tal qual eu no encontro de jovens. O fotógrafo

está nervoso.

FOTÓGRAFO – Reparou naquela foto com a avó?

60

Xee ndaka’y’uxei – Ver ka’y’u (v.i) eu não quero tomar chimarrão, pág. 59

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EU – Por que fala baixo assim?

FOTÓGRAFO – Aquela foto lá... tem camadas... É ela, mas é outra. Reparou?

Deixo o fotógrafo ali mesmo e sigo em direção a imagem que ele me indicou. Eu sei

bem que a avó tem disso de vir–a-ser... Caixinha de suspresas! Esbarro em uma mulher

elegante. Minha orientadora. Conversamos.

ORIENTADORA – Ficou bem bonito tudo!

EU – Que bom que você gosta.

ORIENTADORA – Gosto mesmo é dela (aponta a imagem da avó, a mesma imagem

que o fotógrafo investiga... depois, ela quase sussurra) sendo atriz, gosto de fazer ela. Ela é...

sustanciosa.

EU – A avó? É... dá trabalho viu?

ORIENTADORA – Eu sei... eu sei.

Dito isso, ela desaparece. Aliás, todos aparecem - desaparecem e, depois, aparecem

novamente. As imagens são dúbias, têm verso. Qual é o verso que se revela na imagem

que me capta, me captura, me rapta? Quem viu, viu? E quem não viu, o que verá? Se o

meu teatro fosse aquele, agora seria a hora de ouvir o sinal. Três vezes. Mas o meu

sinal é só o grito profundo interrompendo essa vernissage de araque. Percebo que nem

a avó, nem Valdelice, nem Para Poty estão ali. Desapareceram outra vez? O grito eu

reconheço. Sim, é da avó. Ele vem de lá, do lugar da cena.

Passagem do Canto Quatro para o Canto dois – Do encontro marcado entre as mulheres

Enegrecendo o EU

Eu e o público voltamos ao lugar da cena interrompida. As três nativas estão lá. A avó

parece embriagada. Sim, ela está visivelmente alterada. Tem uma garrafa de proseco

na mão.

AVÓ – Minha neta, minha neta corre aqui.

EU – Que passa, avó?

AVÓ – Os Carapiru correm risco de vida. Toda Pindorama corre risco de vida. Eu vejo...

eu vejo.

PARA POTY – O que vê?

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AVÓ – Uma cratera enorme, com 3,6 km de diâmetro eu vejo. Vem do céu minha neta.

Do céu!

EU – Avó não fala coisa com coisa. Os Carapiru estão em Pindorama. O que vem de lá

não vem do céu, vem do mar.

AVÓ – Eu vejo mais longe. Muito mais longe. Bilhões de anos antes. Você precisa dar

um jeito nisso!

EU – Parar um meteoro?

AVÓ – Um monstro, eu vejo um polvo gigante, com muitas mil pernas, mil e oitocentas

bocas e seus bigodes rindo, falando! Eles vão atacar os meus; e você não faz nada!

Nada!

EU – São as naus...

ELA - Os nativos vão reagir, vão atacar?

AVÓ – Ah, eu vejo muita morte, muito sangue. De que vale atacar com arco e flecha os

que têm arma de fogo? Nem com três vezes mais arcos mais flechas, nem!

ELA – Você precisa fazer alguma coisa. Envia os M-16, logo!

EU – Não vai dar certo, isso.

Duplo dELA (aponta em minha direção um arco e flecha) – Escreva essa cena.

AVÓ – Sim, escreve. Escreve que o duplo de Valdelice Verón levará os fuzis, não vê?

PARA POTY – Eu.

EU – Tá, eu escrevo a cena. Para Poty leva, quer dizer o duplo dELA, de Valdelice leva,

mas não vai adiantar nada, nada! A gente não muda o passado.

AVÓ – Mas ressignifica.

EU – É nos livros de História que a gente começa a mudança.

ELA – Livro! Livro! A gente não é da letra!

Olho para Para Poty que me parece, agora, mais Valdelice Verón do que a própria.

PARA POTY (cada vez mais Valdelice) - História escrita com o sangue do índio, do

negro, do pobre, que a borracha do branco sempre apaga; sempre?

EU - Você não vai aguentar o peso. Um coisa é carregar arco e flecha. Outra coisa é

carregar fuzis. (olho para Valdelice, que agora, me parece mais e mais com PARA POTY)

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VALDELICE VERÓN – Isso é verdade. Escreve que meu duplo rasga o tempo e o espaço,

chegando em Pindorama de avião. E, ainda pode, de lá do alto dinamitar as naus. Não

é uma boa, avó?

EU – Não existia avião em 1500. Nem dinamite nem AR-15, M-16. ...Eles vão morrer.

Todos eles vão morrer nessa luta. Pensa que é fácil usar um fuzil?

DUPLO dELA – A gente sabe que não é fácil manejar arco e flecha. Tem que ter mira,

firmeza, precisão.

AVÓ – Avião não. Urubu-rei sim.

EU – Quê?

AVÓ – Escreve a cena. Escreve: “O duplo de Valdelice leva os fuzis e urubu-rei leva o

duplo de Valdelice”.

EU – Eu?

AVÓ – Tem outro urubu-rei por aqui?

EU – Mas avó...

AVÓ – Urubu-rei é forte, aguenta rasgar esse tempo, rasgar esse espaço, levando o

duplo de Valdelice e com ela os M-16.

EU – Mas avó não existia M-16...

AVÓ – Então inventa!

(Para Poty se aproxima mais de mim. Sinto a flecha roçar a minha nunca. De repente,

tudo se escurece, tudo. Eu me enegreço. Só é possível, agora, ouvir os sons das asas

negras que batem forte ecoando “Dukü Txïrïrï”, “Dukü Txïrïrï”, “Dukü Txïrïrï”.61 Aos

poucos o som do bater dá lugar ao ruído do avião).

Evolução do Canto dois – Enegrecendo o EU Para Abrir a Consciência doEU

Som de Avião. Menos som de avião mais som de asas de urubu-rei . “Dukü Txïrï” ela

faz. “Dukü Txïrïrï” ela faz. “Dukü Txïrï” ela continua fazendo. Entardecer que chega,

chega, chega de bater asas não quero quero agora descanso. Descanso das asas.

Urubu-rei quer topo mais alto de árvore. Hora de dormir urubu-rei. É.

Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

Noite escura. Urubu-rei fecha o olho nada mais pode ver. Não pode ver que a avó

chega aos pés da árvore grande. Árvore maior do mundo urubu-rei dorme não pode 61

Dukü Txïrïrï – som das asas do urubu (música de Marlui Miranda)

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ver. Não pode ver nem ouvir a avó conversando com Para Poty e Carapiru. Este canto

pra urubu-rei é sonho. Avó joga luz no alto da árvore, joga.

PARA POTY – Avó, avó, sou eu. Nhande Ka’aruju.

AVÓ – Nhande Ka’aruju Para Poty.

PARA POTY – Sim, avó. Eu estou aqui. Carapiru está aqui. Urubu-rei está aqui.

AVÓ – EU sei. Sinto ikaxī vaikue62 dele, daqui eu sinto! ...

PARA POTY - ...É a carniça dele tá insuportável.

AVÓ - Urubu-rei dorme?

PARA POTY – Sim, avó. Mas é muito alto aqui e está muito escuro pra gente descer.

AVÓ – O jeito é esperar o dia amanhecer. Urubu-rei acorda quando sol acorda. Urubu-

rei não vai mudar o seu jeito; não vai. Japytu'uju.63

PARA POTY – Japytu’uju, avó.

Canto sete – A História em que todo mundo morreu e quase ninguém sobrou pra

contar

O dia amanhece. Aos poucos, os corpos dos nativos ganham novos contornos.

PARA POTY – Foi uma carnificina dos dois lados, avó. Só a gente sobrou. Uma tristeza...

AVÓ – Tentaram rezar a missa? Erguer a cruz?

CARAPIRU (se acende na boca de sua urna e sua voz se expande) – Não deixamos.

Carapiru de carne e osso escondeu a cruz. Eles procuraram, procuraram. Depois

desistiram.

ELA – E cadê ele, o de carne e osso?

PARA POTY - Ele se feriu, mas urubu-rei o salvou.

CARAPIRU (de sua urna) - Urubu-rei trouxe o de carne e osso pra sua aldeia, yvyra'i ja

oipoano64. Depois, voltou pra Pindorama.

ELA – E os M-16?

PARA POTY – Um desastre. Estavam com defeito de fabricação. Acabamos desistindo

deles e usando os arcos e flechas.

CARAPIRU (sempre da urna) – Mas aí já era tarde demais.

AVÓ – Trouxe o coração do padre pra avó, trouxe?

62

Ikaxī va’ekue – Ver va’ekue - o que tinha cheiro forte, catinga, pág. 112 (?) 63

Japytu’uju – ao despedir-se (informação obtida por Jera Giselda do Tekoa Tenondé Porã) 64

Yvyra’i ja oipoano – o pajé o tratou

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PARA POTY – Que jeito! Urubu-rei comeu índio, comeu branco, comeu padre. Urubu-

rei fez a festa! O bicho ikaxæ vaikue!

CARAPIRU – É. Ele tem muito apetite!

AVÓ – E, cadê ele?

CARAPIRU – Do jeito que ele se banquetou, a essa hora deve estar passando mal.

AVÓ – Não, não. Urubu-rei não passa mal por comer carniça. Isso nunca!

ELA – E como foi que vocês se salvaram?

CARAPIRU – Graças ao tatu! Tinha um tatu...

PARA POTY – É. Um tatu que apareceu por lá, de repente.

CARAPIRU – Pra onde a gente ia, ele ia com a gente.

PARA POTY – É. Dava até nervoso! Mas, daí...

CARAPIRU - ... Bem na hora que a bala vinha voando em nossa direção...

PARA POTY – Foi bem nessa hora.

ELA – Foi o quê?

CARAPIRU – Ele se colocou na nossa frente. A bala veio e bateu no casco duro do tatu.

PARA POTY – Foi. A bala bateu primeiro nele, ricocheteiou e depois voltou em direção

ao branco.

CARAPIRU – Jurua caiu ali mesmo. Morto.

AVÓ (ri, ri tanto dessa situação, que se mija toda) – Jurua ojeapi mboka py65.

ELA - E o tatu?

AVÓ - Ah, o poju, o poju! O poju66 fugiu pra mata!

PARA POTY E CARAPIRU – Como sabe?

(A avó nada diz, nada. Só dá uma risadinha marota e vai, toda mijada, saindo de

manso).

ELA – Avó... Pra onde vai?

AVÓ – Cadê o urubu-rei? Urubu-rei, minha neta! Volta, volta, que a “vó” vai cuidar

dessa sua urucubaca.

65

Jurua ojeapi mboka py – Ver -api (v.t.d com ob.direto sempre prefixo) - boca com barba atirou-se a si mesmo com a espingarda, pág. 23 66

Poju – (s) tatu, pág. 92

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Ainda Canto dois - Eu sou o que não sei ou Da matéria fina dos sonhos e Da matéria

onírica do enredo Enegrecendo o EU Para abrir a Consciência doEU Exalando a Morte

do EU Em busca do Nós

EU – Não, não chore meu amor. Não vê? Eu sou a sua avó.

Mas ele chora. Chora mais e mais. Mais forte. Mais assustado.

EU – Teodoro, veja. É pele, é carne. Não tem pena, nem asas. São braços, mãos. Eu sou

como você. Você e eu somos feitos da mesma farinha, viu?

Mais que ele chora... então, eu resolvo brincar de pássaro. Imito um... Ele para de

chorar, ri, gargalha. Eu me descontraio. Tem coisas que não precisam ser ditas aos

pequenos. Não passa pela palavra, mas pelo corpo... A imagem do Teo desaparece. Eu

estou mais tranquila, estou aprendendo a lidar com as minhas transformações. Estou

pensando essas coisas, quando ela, a avó, vem ao meu encontro. Ela vem pitando o seu

petỹgua, impregnando todo o ambiente com a sua fumaça. Carrega um maço de ervas

que ela o embebe em uma bacia. Depois, chocoalha o maço embebido em mim. Faz

isso por várias vezes. E em todas as direções; Ela fala baixinho, canta baixinho. Acho

que é Guarani. Ela parece em transe até que vai se acalmando...

AVÓ – Minha neta, minha neta... Vem, deixa eu catar seus piolhos.

EU – Não tenho piolho, avó.

AVÓ – Todo urubu tem. Mas vai acabar, vai sim. Vem, deita aqui.

Eu deito minha cabeça em seu colo. Estou cansada.

EU – Eu tô cansada avó. Enjoada. (Ela cata meus piolhos. Ou seriam dele?) Avó, eu

preciso de sua ajuda. Depois dessa viagem a Pindorama, eu nunca mais serei a

mesma? Tenho medo.

AVÓ – *(...) Bobagem isso, minha neta! Você já era antes o urubu-rei que se tornou lá

em Pindorama...

EU – *(...) É isso, então, avó? Eu já era antes o que viria a ser depois?

AVÓ - Assim sendo, não é.

*(...) Ver rodapé pág. 43

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EU – Eu via o que ele via! O bico... o bico não era bico! Era outra coisa. *(...) Eu, urubu-

rei me sentia todo enfeitado. Aquele bico era um enfeite lindo, sabe? Tipo, o próprio

cocar da avó?

AVÓ – E, comer como urubu-rei come?

Sinto nojo, ânsia, vontade de vomitar. Ela solta fumaça em mim. Passa.

EU – Mas eu gostava! E o pior é que quanto eu mais comia, eu gostava! Não parecia

que eram vermes, avó!

AVÓ – Não eram! O verme que você urubu-rei comia era a batata frita que neta

come...

Sinto nojo, ânsia, vontade de vomitar. Ela solta fumaça em mim. Passa.

EU - Acho que nunca mais vou comer batata frita! Batata frita; nojento! Parece verme!

Rimos. Mas, esse é um riso sério. É perigoso descobrir as potências que animam nosso

ser...

AVÓ - Os olhos do urubu-rei agora te pertencem. Ou será que os seus olhos pertencem

a ele?

EU (assusto-me com essa possibilidade) – Será? Faz alguma coisa, avó! Eu não quero!

AVÓ – O Pajé fará...

Ela continua a catança. Cata, cata em silêncio. Eu quase durmo.

AVÓ – *(...) Ainda cheira sangue? Sente o cheiro e o gosto do sangue?

Eu nada digo, apenas, concordo com a cabeça.

AVÓ – *(...) Eu bem que te avisei... Não dá palavra pra urubu-rei, não dá. Se dá, ele dirá

“minha presa”!

Ela solta muita fumaça de seu petỹgua sobre a minha cabeça. Esfumaça todo o

ambiente. Tusso. Tusso muito)

(...) Precisa ter paciência, viu? Tudo isso vai passar... vai passar.

*(...) O diálogo acima, entre a Avó e EU, baseia-se na ideia do Perspectivismo, de Eduardo Viveiros de

Castro, em “Metafísicas Canibais” – Cosac Naify

** (...) Sobre dar a palavra ao animal – ver Tânia Stolze Lima, em “O dois e seu múltiplo: Reflexões sobre

o Perspectivismo em uma Cosmologia Tupi” – MANA 2 (2): 21-47, 1996

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Evolução do canto dois para o canto cinco – Para Poty quer ser atriz E o mundo

virtual invade a nossa cena Quando a língua Guarani se espalha feito fumaça de

petỹngua E impregna a língua oficial de nhen nhen nhen Em busca do Nós

Arrumo minha mala, pois é hora de partir. Entre meus pertences antigos trago outros,

novos - mmaraká mirim, a urna funerária e uma pena de urubu-rei . Para Poty se

aproxima. Ela fuma um petỹngua e segura um envelope.

EU – Você me surpreendeu lá em Pindorama. É jovem e corajosa. Mulher guerreira!

PARA POTY – Não era eu, mas o duplo dELA, de Valdelice. (...) Você sim é que fez tudo

direitinho. Até salvar Carapiru, você salvou!

EU – Não era eu, mas o urubu-rei.

PARA POTY – Xejukaa gui aa jepe!67 ... Agora sei o que é escapar da morte. Adquiri

força, mais coragem. ...Apareça lá na aldeia, quando der.

EU – Você, também, apareça em meu blog.

Para Poty entrega-me o petỹgua, um presente dela pra mim. Eu pito e tusso. Ela ri de

mim. Depois, me dá o envelope.

PARA POTY – É de Carapiru. O da sua akã68.

EU (abro o envelope) – Carapiru fez isso?

PARA POTY – Era um acerto de contas, lembra?

EU – Por que ele não me falou?

PARA POTY – Por que falaria? Pedir consentimento?

EU – Eu não quero ficar com isso. Não me pertence.

PARA POTY – Ah, pertence sim! Mas, pode queimar, se quiser; Carapiru falou.

EU – Carapiru não percebe que este roubo não muda a História? Mesmo que a carta

do escrivão desapareça, outra e outra e mais outra serão forjadas.

PARA POTY – Roubo? Então, você acha mesmo que foi um roubo?

EU – Se não foi roubo, foi o quê?

67

Xejukaa gui aa jepe – escapei daqueles que estavam para me matar 68

Akã – 1. Cabeça 2. Mente, pág. 20

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PARA POTY – Você também não é diferente. ... Branco sempre inverte a lógica. Palavra

escrita não vale nada. (...) Enterra a carta de Caminha como fez com o enredo anterior,

japy mba'emo yty. Carapiru falou.

EU (falo com a urna funerária) – Lixo? Carapiru, Carapiru... aparece!

PARA POTY – Não adianta, ele não vai parecer. Virou cinzas. E você... Erovia eme

apu.69 Carapiru é mboruvixa70, não é ladrão. Mesmo que vire cinzas, é mboruvixa.

EU – Mboruvixa não rouba. Mboruvixa enfrenta.

PARA POTY – Então, entregue a carta pra FUNAI.

EU – Nharymba!71 Penhevaãmba xea gui72 Nhenhandu vaikue73!

PARA POTY - Nhenhandu porã.74

Para Poty me olha surpresa. Eu também me surpreendo.

PARA POTY – Você falou! Está falando...

EU – Nhandeavyu.75

ÚLTIMO CANTO – Ou o que se chama epílogo

Não estou só... Tenho um mar de olhos que me olham e eu a eles. São cúmplices?

Testemunhas? Que olhos são esses que me olham? Tenho uma urna funerária cuja luz

de sua boca não se acenderá mais. Tenho uma mala, um mmaraká mirim, uma pena

preta de urubu-rei, um petỹgua. Novos pertences que se misturam com outros antigos:

fotos do Teo, dos filhos, meu net book, livros. Tenho também algumas palavras novas

em meu vocabulário. Volto pra casa com uma bagagem diferenciada, não fosse esse

maldito pergaminho datado de 1500. Ah, que vontade me dá de esquecê-lo na primeira

esquina. Mas, não posso. Afinal, ele me pertence ou sou eu que pertenço a ele?

69

Erovia eme apu – Ver –apu ( v. i.) não acredite na mentira, pág. 24 70

Mboruvixa – (s) grande líder, pág. 71 71

Nharymba – interjeição. Que pena!, pág 76 72

Penhevaãmba xea gui – Ver -nhevaẽ (v.t.indireto) – Afastar-se (de algo ou alguém) todos vocês se afastam de mim, pág. 80 73

Nhenhandu vaikue – (v. i.) ficar ressentido (ao ponto de sentir tensão no corpo), pág. 80 74 Nhenhandu porã

74 - (v.i.) sentir-se bem (de saúde), pág. 80 75

Nhandeavyu – Ver Nhande (pref.pron. 1ª pessoa do plural) - nossa língua (o guarani), pág. 79

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EU - Agora não tem avó que me diga o que fazer. Não tem. Tenho eu aqui. Tem vocês

aí. Eu fico bastante tentada em dividir com vocês essa batata quente. Essa carta que

não é só minha... Qual é a parte que me cabe? Qual é a parte que lhes cabem? Com

quantas letras se escreve carapuça?

Agora, não tem avó, não tem. Não tem Carapiru. Não tem Valdelice. Não tem Para

Poty. Só Eu. Eu.

Ler, tesourar, recortar, picotar... *(...) bricolage! Será? Não sei... talvez possa salvar

alguma coisa dela, como fiz com a dramaturgia anterior. Mas eu quero? Quero salvar

essa memória documental que só tem um ponto de vista? O que quero com ela? Eu

recorto, doidamente, recorto.

FILHO – Mãe!

Não o ouço, não o vejo, continuo cortando a carta em nanos pedaços.

FILHO - Ô mãe!

*(...) “...aquele que trabalha com as suas mãos, utilizando meios indiretos se comparado ao artista” – Claude Levi-Strauss em “O Pensamento Selvagem”

Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de u Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. m coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para levantar.

Um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e nrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos.

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EU – Precisava me chamar de mãe?

FILHO – Você não é?

EU – Sou. Só que aqui, até aqui você só era o fotógrafo. Agora... vou precisar criar mais

uma figura. Na quadragésima sétima página?

FILHO – Desculpa... Achei que ia gostar disso... Oh!

“DESAPARECE MISTERIOSAMENTE A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA

GUARDADA NO ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO” (Considerada a

certidão de nascimento do Brasil, o importante documento conservado à sete chaves...) (...)

Que carta é essa, mãe?

EU – Foi Carapiru... quando estava lá em Pindorama.

FILHO – Que merda é essa? Eu bem que falei pra não ir pro passado. Passado, a gente

não muda. ... Posso ver? *(...) Você cortou ela toda... que doida! (...) Você pode ir presa,

sabia?

EU – Não amola.

FILHO – Você e esse Carapiru.

EU – Ele é ficção.

FILHO – Mas você é de carne e osso. E, isso aí, é um documento oficial.

EU – E eu sou sua mãe e você é meu filho. Agora, dá licença? Que isto aqui é, ou pelo

menos, deveria ser o epílogo, que você está atravessando?

FILHO – Ah, não. Não vou deixar, não. Você é minha mãe.

EU – Puta que pariu! Desculpa, que fui eu que te pari, mas “caraleo”, já sei que eu sou

sua mãe. Há 28 anos, eu sei. E, gosto! ...Agora, me deixa. Eu tô nas últimas palavras dessa

dramaturgia... tá vendo isso aqui oh!

FILHO – Não mãe!

EU – Cagão! Ao invés de me ajudar a botar fogo nessa merda que só fodeu com o seu

país, fica aí dando uma de babaca.

FILHO - Eu só tô preocupado com você.

EU – Cadê o fotógrafo? Eu quero o fo-tó-gra-fo! Vai buscar ele pra mim. Não me aparece

sem ele. Aliás, não precisa vir. Só manda ele.

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76

Pira da Liberdade: Situa-se no Parque da Independência, intregada ao Monumento da Independência - Museu do Ipiranga. A pira e a manutenção constante de sua chama despertam a curiosidade das pessoas. Afinal, como e quando se acende e se apaga a pira? Como a chama simboliza o amor eterno pela Pátria, nunca deve se extinguir. Para tanto, o sistema de alimentação da chama é feito por gás encanado, mantido sob o acompanhamento da COMGÁS (Companhia de Gás de São Paulo), cujos técnicos devotam grande atenção e carinho à tarefa. O sistema utilizado é tão seguro que, nos últimos dez anos, a chama se apagou uma única vez, resistindo às mais adversas condições climáticas.

FILHO – Então promete que não bota fogo, que vai esperar...

EU – O fotógrafo...

Ele sai, eu respiro fundo. Não sei se espero, se não espero. Espero? Enquanto espero, leio

a matéria sobre o desaparecimento... tenho comichões. Que notícia maravilhosa...

EU - Carapiru, você é foda!

FOTÓGRAFO – Você me chamou?

EU – Faz umas fotos pra mim.

Eu recolho os recortes, acendo o isqueiro, convido o público para esse ato de libertação

de um passado mal contado, quase cozido e mal assado. Quem quiser que venha comigo

botar na fogueira o atestado de óbito deste país.

FOTÓGRAFO – Espera.

EU – Você também? Não! São mais de 500 anos de espera.

FOTÓGRAFO – Aqui não é o melhor lugar para isso. Aqui é teatro.

A tela mental do fotógrafo se abre para mim, para todos os olhos que nos olham. Vejo,

eu vejo uma pira acesa. É a Pira da Liberdade. 76

FOTÓGRAFO – Olha. Não reconhece o lugar? ... a pira que fica acesa 24 horas por dia

(ele encara o mar de olhos) pra que a gente, eu, você, você e, também você, pra que a

gente nunca se esqueça do nosso eterno amor à pátria, da forja que nos fez ser quem nós quem

somos... Mas nós somos?

A imagem cresce como fermento... toma conta do espaço todo. No chão, no teto, nas

parades, nos corpos, a chama acesa da pira se espalha rapidamente, se projeta em meu

corpo. Meu corpo aceso. Meu corpo pira... queima. É na chama de meu corpo pira que

eu queimo a carta de Caminha, a certidão de nascimento do Brasil, cujo verso está

averbado o seu atestado de óbito. Quero que tudo vire cinzas, que o passado se exploda!

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Há um apito de navio. Há o som de avião sobrevoando nossas cabeças. O som do trem

rasgando o espaço. Há o bater de asas de urubu-rei. Uma sirene de polícia que se

aproxima. A sombra do avião cresce, cresce tanto que, agora, tudo é breu... ou quase.

Há, embora fraca, uma chama acesa na boca de uma urna funerária e uma fumaça

crescendo, crescendo, crescendo, subindo até o céu da cidade de São Paulo. No mais,

naembyrei!77

77

- Naembyrei – nada sobrou

OBS: Todos os verbetes em Guarani foram retirados do livro Léxico Guarani, Dialeto Mbyá:

versão para fins acadêmicos. Porto Velho, RO: Sociedade Internacional de Linguística, 1998.

195 p., de Robert A. Dooley.

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TONACCI, Andrea. Serra das Desordens. Documentário. Disponível em:

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Relatórios e estatísticas:

CIMI. Violência contra os Povos Indíginas no Brasil – 2013. Brasília, 2013 – 128 p.

-apy v. t. direto (classe xer-). Queimar: japy mba'emo yty vamos queimar lixo. 24

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A N E X O S

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Envelope da carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao Dom João VI

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Página 16 da carta escrita por Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil