ouro preto de todos os tempos

24
Ouro Preto de todos os tempos: sentidos e efeitos do patrimônio na condição histórica da cidade Ouro Preto of all time: the meanings and effects on historic heritage city status Rosiane Ribeiro Bechler* Júnia Sales Pereira** * Mestre em Educação pela UFMG, doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UFSC). [email protected] ** Doutora em História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Ministério da Educação. [email protected] Resumo Dentre os demais estados, Minas Gerais é um dos que confere ao Brasil substân- cia de seu passado colonial, singulari- zando e eternizando-se através das polí- ticas de patrimônio e de um discurso fundador do Estado que faz coincidir o período aurífero ao passado requerido pela nação. A cidade de Ouro Preto con- solidou-se como o cenário histórico ideal conferindo conteúdo suntuoso ao passado histórico da ex-colônia, em um movimento pela história que a legitima como raiz e como memória. O artigo problematiza alguns dos efeitos da patri- monialização, em especial aqueles ad- vindos da singularização desse cenário do barroco mineiro como substrato do histórico, o que configura o silenciamen- to de outras tantas histórias e memórias que também compõem a história dessa cidade. Considerando, evidentemente, a importância das políticas públicas de Abstract Among the others states, Minas Gerais is the one that gives to Brazil purport of its colonial past, eternalizing and singling itself across heritage policies and a founder speech of State, making coincide of auriferous period with required past by the nation. The Ouro Preto City was consolidated as an ideal historical scen- ery conferring its sumptuous content of the historical past of former colony, in one movement by history which legiti- mates with memory and root. This arti- cle aims to discuss the problematization of some of the patrimonialization’s ef- fect, in special those arising effects of the singling. This mineiro baroque scenery as historical substrate, what in silencing of many others memories and histories, composes the history of this city. In con- cerning, obviously, of the importance of heritage public policies, we intend to re- flect about the result of the directions in Revista História Hoje, v. 3, nº 6, p. 67-90 - 2014

Upload: tainara-duarte-moreira

Post on 10-Nov-2015

13 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Dentre os demais estados, Minas Gerais é um dos que confere ao Brasil substância de seu passado colonial, singularizando e eternizando-se através das políticas de patrimônio e de um discurso fundador do Estado que faz coincidir o período aurífero ao passado requerido pela nação.

TRANSCRIPT

  • Ouro Preto de todos os tempos: sentidos e efeitos do patrimnio

    na condio histrica da cidadeOuro Preto of all time: the meanings

    and effects on historic heritage city status

    Rosiane Ribeiro Bechler* Jnia Sales Pereira**

    * Mestre em Educao pela UFMG, doutoranda em Educao pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UFSC). [email protected]** Doutora em Histria, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Ministrio da Educao. [email protected]

    Resumo

    Dentre os demais estados, Minas Gerais um dos que confere ao Brasil substn-cia de seu passado colonial, singulari-zando e eternizando-se atravs das pol-ticas de patrimnio e de um discurso fundador do Estado que faz coincidir o perodo aurfero ao passado requerido pela nao. A cidade de Ouro Preto con-solidou-se como o cenrio histrico ideal conferindo contedo suntuoso ao passado histrico da ex-colnia, em um movimento pela histria que a legitima como raiz e como memria. O artigo problematiza alguns dos efeitos da patri-monializao, em especial aqueles ad-vindos da singularizao desse cenrio do barroco mineiro como substrato do histrico, o que configura o silenciamen-to de outras tantas histrias e memrias que tambm compem a histria dessa cidade. Considerando, evidentemente, a importncia das polticas pblicas de

    Abstract

    Among the others states, Minas Gerais is the one that gives to Brazil purport of its colonial past, eternalizing and singling itself across heritage policies and a founder speech of State, making coincide of auriferous period with required past by the nation. The Ouro Preto City was consolidated as an ideal historical scen-ery conferring its sumptuous content of the historical past of former colony, in one movement by history which legiti-mates with memory and root. This arti-cle aims to discuss the problematization of some of the patrimonializations ef-fect, in special those arising effects of the singling. This mineiro baroque scenery as historical substrate, what in silencing of many others memories and histories, composes the history of this city. In con-cerning, obviously, of the importance of heritage public policies, we intend to re-flect about the result of the directions in

    Revista Histria Hoje, v. 3, n 6, p. 67-90 - 2014

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 668

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    Assim como os demais estados brasileiros, Minas Gerais formou-se em um processo histrico complexo e desencadeado por mltiplos fatores, no bojo das especificidades polticas, econmicas e socioculturais advindas de um pas-sado colonialista, dos quais ainda na atualidade sentimos os reflexos. No en-tanto, parece-nos que a elaborao de uma formao histrica assentada na descoberta do ouro e das pedras preciosas conferiria a Minas Gerais um carter singular, servindo de condio para tornar equivalentes essa histria regional e a histria brasileira no que se refere ao passado colonial ou, no mais tardar, para tornar indissociveis a histria colonial e a histria das Minas do Ouro.

    Por meio de operao simblica, Minas confere ao Brasil a substncia de seu passado colonial, singularizando e eternizando-se atravs das polticas de patrimnio e de um discurso fundador do Estado que faz coincidir o perodo aurfero ao passado requerido pela nao a partir de seu presente, do regime de historicidade no qual se inscreve (Hartog, 2006). Nesse sentido, a escolha da descoberta das riquezas minerais, sobretudo aurferas, como ponto de par-tida da formao histrica de Minas Gerais serve ainda hoje de substrato para justificar determinadas posturas e justificativas em relao s polticas de pa-trimonializao, orientando em especial a escolha de elementos culturais e de memrias datadas nesse perodo como referentes gente mineira e sua pres-suposta condio identitria historicamente demarcada.

    Conforme Hartog,

    O sculo XX o que mais invocou o futuro, o que mais construiu e massacrou em seu nome, o que levou mais longe a produo de uma histria escrita do ponto de

    patrimonializao, interessa-nos provo-car reflexes sobre os seus efeitos de sen-tido em aulas de histria, evidenciando escalas possveis para compreenso e alargamento dos horizontes de interpre-tao deste espao mltiplo que o de uma cidade histrica, patrimnio da humanidade e cone referencial do pas-sado histrico do Brasil.Palavras-chave: ensino de Histria; pa-trimnio histrico-cultural; jogos de es-calas; histria da cidade.

    the history classes, showing possible scales to comprehension and enlarge-ment of interpretation horizons about this multiple space that is of one histori-cal city, humanity heritage and referen-tial icon of historical past of Brazil.Keywords: History teaching; historical and cultural heritage; scales games; city history.

  • Dezembro de 2014 69

    Ouro Preto de todos os tempos

    vista do futuro, conforme aos postulados do regime moderno de historicidade. Mas, ele tambm o sculo que, sobretudo no seu ltimo tero, deu extenso maior categoria do presente: um presente massivo, invasor, onipresente, que no tem outro horizonte alm dele mesmo, fabricando o passado e o futuro do qual ele tem necessidade. Um presente j passado antes de ter completamente chegado. Mas desde o fim dos anos 1960, este presente se descobriu inquieto, em busca de razes, obcecado com a memria. (Hartog, 2006, p.270)

    Nessa perspectiva, podemos dizer que Ouro Preto consolidou-se como o cenrio histrico ideal conferindo contedo suntuoso ao passado histrico da ex-colnia, em um movimento pela histria que a legitima como raiz e como memria. A cidade histrica foi declarada em 1933 Patrimnio Nacional pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, no bojo das po-lticas estado-novistas em busca de definies por uma identidade nacional, e em 1980 declarada Patrimnio Cultural da Humanidade pela Unesco, no bojo de polticas internacionais que buscavam preservar alguns registros dos avanos desse fenmeno que se acentua no fim do sculo XX denominado por Franois Hartog de presentismo. Assim, o reclame ainda atual por uma memria da formao do estado de Minas Gerais assentada na descoberta do ouro em fins do sculo XVII e incio do XVIII, legitima a cidade de Ouro Preto eleita ante os demais 852 municpios do estado como o epicentro histrico e geogrfico da histria mineira e, em escala, como relquia brasileira e da humanidade.

    Propomo-nos neste artigo a variar as escalas de observao para proble-matizar em que medida a patrimonializao, ao promover a singularizao desse cenrio do barroco mineiro como substrato do histrico, acaba por evi-denciar o silenciamento de outras tantas histrias e memrias que tambm compem a histria de Ouro Preto, de Minas e do Brasil, a exemplo do distrito ouro-pretano de Miguel Burnier, conforme discutiremos mais adiante.

    O movimento que aqui se apresenta, portanto, diz respeito delicada confeco dos contornos e contedos que informam a condio histrica do registro patrimonial, supondo serem eles arbtrios dos processos sociais, dos interesses de cada momento e do agenciamento do passado por razes do presente.

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 670

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    Figura 1 Viso panormica do centro histrico de Ouro Preto

    Figura 2 Detalhe Centro Histrico de Ouro Preto

    Imagens disponveis em: http://turismo.culturamix.com/nacionais/sudeste/ouro-preto

  • Dezembro de 2014 71

    Ouro Preto de todos os tempos

    Minas Gerais, uma formao histrica em cenrio ideal

    A especificidade da formao histrica de Minas Gerais e o imaginrio social que se funda a partir dela foi discutido em profundidade por Maria Arminda Arruda em sua tese de doutorado, no final da dcada de 1980. Suas reflexes foram posteriormente publicadas no livro A mitologia da mineirida-de, em 1990, e ainda hoje se configuram como importantes substratos para discusso acerca da Histria Regional de Minas Gerais, por apresentar e pro-blematizar os componentes de um fenmeno que possuiu caractersticas de mito e de apalpar o rosto fugidio da identidade cultural (Arruda, 1990, p.22), no caso a mineiridade.

    A autora oferece-nos elementos importantes para compreender as tramas que colocam o tema da Minas Colonial em posio privilegiada tanto na Histria de Minas Gerais quanto na Histria do Brasil. Uma posio cons-truda e estabelecida a partir de uma mescla de gneros discursivos, manifesta em falas polticas, em livros de memrias, em obras literrias (Arruda, 1990, p.22), e que se reafirma e mediada tambm pelas polticas de patrimoniali-zao observadas no estado.

    Considerando a literatura produzida pelos viajantes europeus a Minas Gerais no decorrer do sculo XIX no contexto de redescoberta do Brasil inaugurado pela transferncia da Corte Portuguesa em 1808 como uma das fontes do mito (da mineiridade), Maria Arminda Arruda destaca que

    A caracterizao de Minas Gerais pelos viajantes desponta num quadro eivado por comparaes, construdo a partir de referncias Europa, como vimos, s outras regies brasileiras, ou inseridos no conjunto do pas. Nos dois primeiros aspectos, o procedimento utilizado para identificao baseia-se no realce das di-ferenas; j no ltimo sobreleva o critrio da integrao. Nas primeiras compara-es ganham contorno os aspectos regionais, desembocando na construo de um perfil definido dos mineiros. No caso derradeiro, so delineados os traos do carter nacional, de onde os mineiros so pensados. (Arruda, 1990, p.53)

    nessa perspectiva relacional que so elaboradas ainda no sculo XIX verses importantes sobre uma histria de Minas Gerais inaugurada pela des-coberta do ouro, afirmando desde ento sua formao particular e mtica:

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 672

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    No caso das Minas, a fantasia em torno da Terra assumiu a dimenso do sonho concretizado ... Foi o ouro das Minas Gerais que permitiu aos portugueses trans-formar uma criao mtica em realidade. Atravs dele puderam os lusitanos recu-perar um entre os fios que os conduziam ao paraso e que foram perdidos nos primeiros sculos do descobrimento. O achado, no obstante, d-se aps longa demora, encontrando j os portugueses conspurcados pelas imagens do inferno. A descoberta do ouro do sculo XVII, teve o condo de refazer em parte as vises ednicas. Nesses termos, as minas nasceram diferenciadas do conjunto da col-nia. Vieram ao mundo envolvidas pela mstica de Midas. Mesmo no futuro, quan-do o espao regional estava delimitado, elas continuaram a ser pensadas como o corao a emitir fluxos vitais para o corpo. (Arruda, 1990, p.54-55)

    Os viajantes estrangeiros iro considerar em seus relatos desde os traos da paisagem aos efeitos do ouro riqueza fcil e de pouco esforo como in-fluncias determinantes sobre a ndole dos mineiros, constituindo suas carac-tersticas fsicas e de carter, que mais adiante seriam remodeladas para dar origem aos privilegiados traos polticos das elites mineiras (Arruda, 1990). Ainda que no sculo XIX a atividade mineradora na capitania de Minas Gerais j houvesse entrado em declnio, foi com base nela que os viajantes estrangei-ros elaboraram seus relatos, reforando o papel atribudo aos aspectos econ-micos, polticos, sociais, culturais e simblicos desse evento na Histria de Minas Gerais e na Histria do Brasil. Inaugurando a fora de uma memria regional fundada e legitimada pela descoberta do ouro, acontecimento a partir do qual, nessa narrativa, todos os demais de desdobram ou a ele se ligam com a fora das narrativas.

    Fora essa que no decorrer do sculo XIX apropriada pelas polticas do Imprio, e no final desse perodo renovada pelas demandas republicanas, garantindo a Minas Gerais um lugar de permanncia no contexto nacional, com a legitimao mesmo dos reveses de sua Histria e a acentuao de traos ainda hoje associados identidade mineira compreendida sob essa gide: o carter poltico e o apego liberdade.

    A nfase no carter politizado da vida social de Minas, onde a liberdade vivia na boca de todos e transpirava pelos poros de seus habitantes, encontra-se presente j nas vises do sculo XIX. Os viajantes coloriram o vezo poltico dos mineiros e deram nfase sua revolta diante do jugo portugus... (Arruda, 1990, p.65)

  • Dezembro de 2014 73

    Ouro Preto de todos os tempos

    Assim, na histria de Minas Gerais, a distino do conjunto acompa-nhada pelo desejo de integrao a ele, sobrepondo-se aos demais contextos regionais na narrativa do nacional. E essa distino vincula-se singularidade de suas origens, sinalizando

    as transformaes que, no conjunto, respondem pela constituio de Minas e dos mineiros em personagens entremeadas numa teia complexa. Profundamente en-tretecido na sua histria, o esprito de Minas visita e hospeda a histria brasilei-ra ... O imaginrio mineiro pronto e elaborado a mineiridade que remanesce, por certo no manancial da Histria de Minas, superps ao tempo inerente vida o seu prprio tempo, esquadrinhando portas alheias. (Arruda, 1990, p.87)

    Nesse sentido, a Histria de Minas Gerais configura-se a partir de um regionalismo particular e distinto daqueles visualizados em outros estados da Federao. Por exemplo, o caso do Rio Grande do Sul, j discutido por Roberto da Matta,1 no qual o regionalismo perpassado de um carter separatista e isolacionista. J Minas est sempre mesclada ao conjunto, ao terreno comum, e as suas mos de escriv tentam urdir a Histria do Brasil (Arruda, 1990, p.102), num esforo de organizao tambm da prpria histria, em que

    No deixa de ser curioso que o estado de Minas, provavelmente o mais diferen-ciado do ponto de vista interno, produza uma viso regional to integrada. Ape-nas para exemplificar, a formao das sub-regies mineiras seguiu um processo de dentro para fora e vice-versa. Na poca do ouro imperou a constituio exter-na; aps a decadncia, a dispora mineira partiu do centro para a periferia; no perodo seguinte, ocorreu uma assimilao das regies perifricas aos estados contguos. (Arruda, 1990, p.102)

    Assim, a par de sua diversidade interna, o que sobressai ainda na atuali-dade do discurso sobre Minas e sobre a mineiridade um encadeamento his-trico que elege como marco fundador e de origem a descoberta do ouro, le-gitimando memrias que, de diferentes formas e por diferentes meios, so perpetuadas sobre a histria mineira ou sobre os mineiros. Uma histria cons-truda sobre a ideia de uma imagem unitria, revelando as necessidades de juno das disparidades internas (Arruda, 1990, p.103). Por isso que, diver-samente da identidade regional gacha que se introverte ... assistimos em Minas ao aparecimento do carter regional a partir da identificao no

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 674

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    nacional. A mineiridade diferencia-se ao integrar-se, particulariza-se quando se funde no todo (p.108).

    A mineiridade tem esse qu de impregnao cotidiana. Os traos com os quais delineia e particulariza diferentes manifestaes na culinria, na m-sica, nos falares, nos jeitos, no humor, nas artes cnicas e visuais renovam-se como temas de pesquisas sempre atuais2 e como convocaes diluio da pluralidade expressa pela vida social. Assim, identidade e histria se entrela-am por fora das narrativas, conquanto no se confirmem por fora das ex-perincias, em cenrios que se alteram num jogo de escalas, conforme deman-das advindas tanto da esfera nacional quanto das particularidades regionais. Particularidades em sua maioria fundadas no perodo histrico colonial, e, principalmente, no decorrer do sculo XVIII. Traos identitrios que se per-petuaram ao longo de memrias eleitas e legitimadas tambm pelas polticas de patrimonializao, que elegem o que devemos preservar e proteger das intempries do tempo e da memria, ao mesmo tempo que solapam, no de-curso do tempo, a multiplicidade de experincias no jogo irregular que dispe lembrana e esquecimento.

    Memrias subterrneas so colocadas assim ao dispor do marco colonial, mas mesmo sob o marco do julgo aurfero, haveria novas escolhas que privi-legiariam espaos sociais, histricos e geogrficos que se alinham a Ouro Preto (como Mariana, Diamantina e Tiradentes, entre outras) silenciando tantos outros que tambm lhes so contemporneos (como Antnio Dias, Pedro Leopoldo, Pitangui). Escolhas em cujas sombras revelam silenciamentos, in-dicando que a admisso contempornea de que a histria no se efetiva sob narrativa nica ou de queh memrias e histrias distorcidas, silenciadas ou negadas, no est ainda de fato acompanhada de uma reviso histrica dos marcos canonizados pela literatura didtica, pela historiografia, e mais recen-temente pelas polticas pblicas de patrimonializao, que fizeram costurar a histria de Minas Gerais da colonizao portuguesa no bojo da opulncia aurfera.

    Ouro Preto afirma-se como um cenrio histrico ideal, fundamentando a longevidade das marcas do ouro na histria de Minas e a configurao de uma suposta identidade mineira, conquanto no exclusiva, que remonta a modos e registros informados pela presena colonial. Esse movimento enseja

  • Dezembro de 2014 75

    Ouro Preto de todos os tempos

    memrias calcadas num passado congelado por meio do patrimnio barroco e dos vestgios de uma vida social orientada pela opulncia e pelo traado da sede da administrao em Minas. Trata-se da perpetuao de uma memria compreendida como via fundadora do marco colonial-mineiro, que ao mesmo tempo, em escala macro, concede substncia a um determinado projeto de nao e, numa escala micro, concede importncia ao passado convenientemen-te alado condio de tesouro da humanidade.

    Ouro Preto em escalas: memrias eleitas e espaos silenciados

    Ao pensarmos as relaes entre a narrativa histrica, as polticas de patri-monializao e o espao scio-histrico de Ouro Preto na perspectiva das es-calas nos aproximamos das reflexes propostas pelo historiador Jacques Revel, terico da Microanlise, acerca do conceito dos jogos de escalas .

    A Micro-histria aponta para uma nova configurao e dinmica do pro-cesso scio-histrico, em contraponto a outras perspectivas de estudos desen-volvidos at ento. Isso porque tanto a orientao positivista, pautada na ideia de uma possvel assepsia na conduta do historiador na produo do conheci-mento histrico este balizado em fatos e feitos polticos e econmicos, quanto ideia de uma histria totalizante divulgada pela Escola dos Annales no decor-rer de suas trs geraes de estudiosos, continuavam a relegar aos bastidores da trama histrica os personagens da vida cotidiana. A Micro-histria surge ento como um arcabouo terico e metodolgico a orientar investigaes por outros vieses.

    Apesar da grande heterogeneidade das produes neste campo, so pos-tulados como a variao das escalas de anlise, a problemtica do foco sobre os sujeitos que participam da trama histrica e o valor conferido narrativa e capacidade interpretativa do historiador, que definem a Micro-histria como campo de produo do saber (Levi, citado em Burke, 1992; Revel, 1998).

    J Microanlise, vertente francesa dessa escola historiogrfica, cujo ex-poente foi o historiador Jacques Revel, interessa tanto o ajuste do foco sobre uma escala especfica quanto um trabalho de contextualizao mltipla, com-preendendo que

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 676

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    cada ator histrico participa, de maneira prxima ou distante, de processos e, portanto, se inscreve em contextos de dimenses e de nveis variveis, do mais local ao mais global. No existe portanto hiato, menos ainda oposio, entre his-tria local e histria global. O que a experincia de um indivduo, de um grupo, de um espao permite perceber uma modulao particular da histria global. Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histrico oferece obser-vao no uma verso atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macros-sociais: ... uma verso diferente. (Revel, 1998, p.28, grifos nossos)

    Nesta anlise historiogrfica o contexto micro compreendido como uma nova forma de modulao que pressupe a reduo da escala de anlise como estratgia para apreenso de uma verso diferente da narrativa histrica, mas que carrega em si observaes elucidativas de um contexto que global. Nesse sentido, conforme prope Revel (1998), no a oposio entre as narrativas do local e do global que permite visualizar outros vieses do conhecimento histrico, mas o reconhecimento e a compreenso de ambas em uma perspec-tiva relacional. Perspectiva que se concretiza, no limite, pela atuao dos pr-prios sujeitos nos variados contextos em que se inserem e transitam.

    Por isso, a noo de escalas originria da Geografia apropriada pelo historiador Jacques Revel (1998) como fundamentao terica e metodolgica das pesquisas em Microanlise, perpassa reflexes propostas neste texto, que problematiza como as escolhas das polticas de patrimonializao implicam a visualizao e compreenso do espao scio-histrico a partir de uma escala determinada, num movimento que tanto favorece algumas memrias quanto silencia tantas outras. Revel (1998) afirma que

    a escolha de uma escala particular de observao produz efeitos de conhecimento, e pode ser posta a servio de estratgias de conhecimentos. Variar a objetiva no significa apenas aumentar (ou diminuir) o tamanho do objeto no visor, significa modificar sua forma e sua trama ... Notemos desde j que a dimenso do micro no goza, nesse sentido, de nenhum privilgio especial. o princpio da variao que conta, no a escolha de uma escala em particular. (Revel, 1998, p.20, grifos nossos)

    O registro de Ouro Preto como patrimnio em mltiplas escalas, de Minas humanidade, produz, certamente, efeitos de conhecimento, dispondo

  • Dezembro de 2014 77

    Ouro Preto de todos os tempos

    aos docentes narrativas compostas sob diferentes perspectivas. Essa condio patrimonial mxima certamente dispe a cidade como cone do passado bra-sileiro, conquanto tenha sido preterida como sede do governo de Minas, pro-vocando a enunciao de narrativas no acionadas antes do processo de tom-bamento e registro, mas com efeitos de longa durao. H certamente estratgias de conhecimento produzidas nessa operao histrica revelando condies de realizao da memria-relquia da humanidade. Uma dessas es-tratgias a evocao ou singularizao cada vez mais atual do centro histrico como epicentro da histria. Retomando Hartog, entendemos que

    Da vem este olhar museolgico lanado sobre o que nos cerca. Ns gostaramos de preparar, a partir de hoje, o museu de amanh e reunir os arquivos de hoje como se fosse j ontem, tomados que estamos entre a amnsia e a vontade de nada esquecer. Para quem? Para ns, j ... Se o patrimnio doravante o que de-fine o que ns somos hoje, o movimento de patrimonializao, este imperativo, tomado ele mesmo na aura do dever da memria permanecer um trao distin-tivo do momento que ns vivemos ou acabamos de viver: uma certa relao ao presente e uma manifestao do presentismo. (Hartog, 2006, p.271)

    O reclame presentista pela preservao de uma memria diz tambm da angstia dos sujeitos ante um tempo acelerado, que se esvai antes que possa ser apreendido, levando consigo registros de histrias passadas sem, contudo, legar ao presente outras formas de memria. na contramo dessa acelerao do tempo e de um risco eminente do apagamento de memrias que a patrimo-nializao tornou-se, em fins do sculo XX, uma poltica de alcance interna-cional, que j demanda debates em torno do que pode ou no ser considerado como patrimnio (Hartog, 2002).

    Nesse contexto, ao preservacionista configura-se como uma estratgia constante que se por um lado preserva o cenrio histrico da cidade eleita sob imperativo do passado histrico, por outro produz efeitos sobre os viventes em cada poca, com especial reverberao sobre a populao da cidade de Ouro Preto residente tanto no ncleo patrimonializado quanto fora dele, e, ademais, com efeitos de sentido e de experincia sobre as inmeras escolas (e seus sujeitos) que a Ouro Preto chegam semanalmente.

    Sejam essas narrativas veiculadas por livros didticos, por programas te-levisivos ou por materiais de divulgao e turismo sobre a regio, a tessitura

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 678

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    histrica traz como pano de fundo comum a opulncia aurfera que remonta ao sculo XVIII e a traos culturais e identitrios que a ela se vinculam, con-vocando narrativas s aulas de histria em que o passado dado a ver por meio do patrimnio define a cidade. Nesse sentido, as polticas de patrimoniali-zao que na dcada de 1980 tornaram at o cho da sede de Ouro Preto Patrimnio da Humanidade acabaram por configurar o cenrio histrico, orientando olhares sobre contornos previamente institudos, de uma cidade que, em escalas, revela-se mltipla e complexa.

    Veja-se o exemplo mais recente do interesse dos turistas da Copa do Mundo 2014 em conhecer Ouro Preto sua sede, no a cidade. Entretanto, esse mesmo movimento que considera e legitima apenas uma escala de me-mria, um cho e seus cones, reflete no silenciamento de outras histrias, desconsiderando a dimenso relacional na qual os processos histricos se constituem e os modos de viver, sentir e transformar essa mesma cidade, praticados por seus moradores e por sujeitos que para a cidade afluem. multiplicidade dos espaos scio-histricos e culturais de Ouro Preto, no tem-po, se contrape o imperativo de confirmao do dispositivo patrimonial, informando a alguns sujeitos que o retrato ideal de Ouro Preto dispensaria o comparecimento de ps descalos, crianas brincando, noivas em pose de lbum, guias tursticos e vendedores ambulantes, privilegiando, por isso, es-tratgias de conhecimento e experincia da cidade que dispem em primeiro plano sinhs-moas em passeio e charretes-relquia como signos da perma-nncia do passado.

    Nesse sentido, aponta Paul Ricoeur (2007) que

    A ideia chave ligada ideia de variao de escala que no so os mesmos enca-deamentos que so visveis quando mudamos de escala ... Ao mudar de escala, no vemos as mesmas coisas, maiores ou menores, em caracteres grandes ou pe-quenos ... Vemos coisas diferentes. (Ricoeur, 2007, p.221-222)

    Assim, quando propomos a variao de escalas para ver e pensar Ouro Preto, entendemos que o ajuste da objetiva, variando das imagens e memrias cannicas de uma cidade-passado a uma cidade-presente (e passados) traria no exatamente a excluso do passado (no se trata desta operao), mas os jogos de efeito que o devir histrico dispe ao usufruto dos viventes. Nessa

  • Dezembro de 2014 79

    Ouro Preto de todos os tempos

    Figura 3 Panormica do centro histrico de Ouro Preto Imagem disponvel em: http://turismo.culturamix.com/nacionais/sudeste/ouro-preto

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 680

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    perspectiva o presente inclui o passado, no o elimina. Mas enquanto o passa-do no coloniza o presente, o interroga.

    Pensemos, ento, Ouro Preto em uma perspectiva relacional, ajustando o foco sobre as dinmicas, modos de apropriao do patrimnio e memrias de um dos seus distritos: Miguel Burnier. Com esse exerccio desejamos proble-matizar os efeitos de sentido na relao educativa que podem ser provocados pela subsuno da condio histrica de toda a cidade, ou seja, das vrias ci-dades ouro-pretanas, sendo, por isso, convocadas pelo direito histria tanto quanto o centro patrimonial.

    O distrito de Miguel Burnier, com populao de 971 habitantes, localiza--se a 40 quilmetros da sede de Ouro Preto e a cerca de 20 quilmetros da sede de Congonhas. Congonhas e Ouro Preto ficaram conhecidas por suas riquezas minerais que remontam ao sculo XVIII e ao perodo colonial de maior opulncia na regio. Ainda hoje a explorao mineral uma das

    Figura 4 Centro e Cho Histrico de Ouro Preto ao fundo, o Museu da Inconfidncia

    Imagem disponvel em: http://turismo.culturamix.com/nacionais/sudeste/ouro-preto

  • Dezembro de 2014 81

    Ouro Preto de todos os tempos

    atividades de maior rentabilidade na rea, riqussima em minrio de ferro. Mas diferentemente do Ouro, que assegura aos centros histricos de Ouro Preto e Congonhas preservao e tutela sob a gide de uma histria legitima-da, a explorao do ferro na regio provocou no apenas alterao de paisa-gens naturais, mas tambm silenciamento de memrias em espaos scio--histricos e culturais: afinal, a permanncia do histrico exige contedos dignos de lembrana. O distrito de Miguel Burnier possivelmente a regio de Ouro Preto na qual a explorao de minrio de ferro tem interferido, no tempo, de forma mais incisiva, reconfigurando espaos e dinmicas sociais no decorrer de todo o sculo XX e de forma mais intensa nestas primeiras dcadas do sculo XXI, quando uma nova indstria siderrgica passou a ex-plorar e ocupar a regio. Para alcanar a parte central do distrito, passando pela rota alternativa a partir da BR-040, preciso atravessar a guarita da em-presa, que sinaliza os limites da explorao.

    A formao do atual distrito de Miguel Burnier remonta ao incio do s-culo XVIII, quando pequenos povoados foram se estabelecendo s margens do Caminho Novo, estrada sob controle da Coroa portuguesa que ligava a regio das minas ao Rio de Janeiro. De um desses povoados, inicialmente co-nhecido como Rodeio, depois como So Julio, formou-se o distrito de Miguel Burnier. Rodeio era no sculo XVIII um ponto de explorao mineral, mas tambm de passagem e pouso para os demais viajantes.

    Findas as reservas aurferas, outras riquezas minerais passaram a ser explo-radas na regio, dentre elas o minrio de ferro. No incio do sculo XIX foi fundada pelo alemo Baro Eschwege a Real Fbrica Patritica, um dos primei-ros empreendimentos siderrgicos da regio. J em 1887 o Engenheiro Miguel Burnier foi o responsvel pela construo da Ferrovia de Miguel Burnier, com-plexo tombado como patrimnio da cidade pelo Iphan/Ouro Preto pelo decreto n 2.468 de 18 de novembro de 2010. Vale registrar que o movimento em prol do tombamento desse conjunto arquitetnico foi realizado pelo coletivo do Projeto Estao Cultura,3 uma iniciativa que desde 2007 tem empreendido es-foros junto comunidade local e ao poder pblico para reconhecimento, pro-teo e preservao do patrimnio material e imaterial do distrito. Essa iniciativa foi responsvel tambm pela restaurao da Estao Ferroviria que sedia atual-mente os projetos culturais desenvolvidos no distrito.

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 682

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    A linha frrea que passava pelo ento povoado de Rodeio foi um importante ponto de conexo entre distritos e municpios de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, contribuindo para que as ltimas dcadas do sculo XIX e primeiras do XX fossem um perodo de grande efervescncia social e econmica na regio. Em 1893 mais uma usina siderrgica foi inaugurada na regio pelo empreendedor Carlos Wigg e pelos engenheiros J. Gerspacher e Amaro da Silveira. As atividades do alto forno da Usina Wigg na regio tinham por finalidade o abastecimento da ferrovia de Miguel Burnier e tambm de seu entorno. Foi atravs da linha frrea de Miguel Burnier que os trens alimentados pelo ferro da Usina Wigg transferi-ram mobilirios, documentos, funcionrios e histrias da ento capital colonial Ouro Preto para a moderna cidade de Belo Horizonte.

    A partir de meados do sculo XX o distrito de Miguel Burnier passou a sofrer os impactos da ampliao da malha viria no Brasil em detrimento da

    Figura 5 Estao Ferroviria de Miguel Burnier

    Foto de Leandro Menezes, out. 2011. Disponvel em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/ efcb_mg_linhacentro/burnier.htm

  • Dezembro de 2014 83

    Ouro Preto de todos os tempos

    ferroviria. Sem demandas significativas para transporte, a Ferrovia de Miguel Burnier foi desativada no decorrer das dcadas de 1980 e 1990, ficando paula-tinamente legada ao abandono. Por outro lado, a intensificao da explorao de minrio de ferro na regio sem os cuidados requeridos com a preservao do espao scio-histrico e cultural de seus bens materiais e imateriais, suas dinmicas, memrias e histrias, tem conferido a esse distrito de Ouro Preto traos de uma cidade fantasma, na qual persiste apenas um restrito nmero de moradores resistindo ou anuindo s condies que lhes so impostas. Do total de 971 habitantes registrados pelo Censo/IBGE de 2010, apenas 382 re-sidem atualmente na rea considerada urbana do distrito.

    Na contramo desse processo de esquecimento histrico-social do distrito de Miguel Burnier, iniciativas como o Projeto Estao Cultura, citado ante-riormente, idealizado e gerido por Marco Antnio de Almeida Costa desde 2007, tm empreendido esforos na tentativa de manter significativos os laos culturais, histricos e sociais dessa comunidade. Uma das principais aes do projeto foi a restaurao da Estao Ferroviria de Miguel Burnier, finalizada em 2012, a qual de marca do abandono passou a figurar como centro de ma-nifestaes culturais regionais, dentre elas a Festa dos Burnienses Ausentes,

    Figura 6 Estao Ferroviria de Miguel Burnier Foto de Marcel Freitas, jul. 2013, acervo particular

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 684

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    Figura 7 Distrito de Miguel Burnier. Em primeiro plano a estao da indstria siderrgica que atualmente explora a regio,

    e ao fundo a Igreja do Sagrado Corao

    Figura 8 O antigo Convento, anexo Igreja do Sagrado Corao, foi restaurado pela indstria siderrgica e serve como sede

    administrativa da empresa na regio

  • Dezembro de 2014 85

    Ouro Preto de todos os tempos

    Figura 10 Vista panormica do entorno da Estao FerroviriaFotos de Marcel Freitas, jul. 2013, acervo particular

    Figura 9 Entorno da linha frrea, prximo Estao de Miguel Burnier

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 686

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    realizada anualmente entre fim de junho e incio de julho. O mesmo projeto realiza anualmente o Festival Cultural de Ouro Preto (em 2013 ocorreu a 5 edio), em um movimento pelas memrias e manifestaes culturais do dis-trito. Iniciativas como estas indicam como os viventes histricos nos diferentes cenrios de Ouro Preto buscam de dentro para fora agitar memrias silencia-das pelas barreiras simblicas legitimadas neste contexto especfico.

    A considerao ao histrico no processo vivencial de uma cidade produz, assim, mirades de efeitos de sentido aos moradores e a quem as visita. Mas, sobretudo aos moradores, porque vivem dinmicas paradoxais, costurando memrias silenciadas quelas destacadas como condies da histria da hu-manidade, perfazendo a premncia da lembrana aos reclames patrimoniais. A experincia scio-histrica dos viventes de uma cidade dividida pelo patri-mnio no pode ser ignorada em aulas de histria, sob pena de priorizao de um efeito de sentido e no dos vrios tantos efeitos que a lembrana produz ao reclamar as suas permanncias. Uma cidade cindida pelas razes da histria, em que esto opostos ou at contrapostos o centro e os demais distritos, pro-porcionar certamente em abordagens educativas o despertar de sensibilidades para entendimento da costura da histria sob dispositivos das lutas com que se realizou a demarcao do esquecimento. Uma cidade multiplicada sob cho patrimonial ideal ou sob todos os solos da histria: eis o limiar da atuao docente, aquele que pode ser alargado fazendo ver os distritos fantasmas ou mesmo os fantasmas que parcimoniosamente passeiam pelo centro em noite de lua cheia.

    Sem desconsiderar a importncia das polticas pblicas de patrimoniali-zao principalmente para o reconhecimento, a preservao e a divulgao de bens culturais de natureza material e imaterial, o que nos interessa aqui pro-vocar reflexes sobre os seus efeitos de sentido em aulas de histria, eviden-ciando escalas possveis para compreenso e alargamento dos horizontes de interpretao deste espao mltiplo que o de uma cidade histrica. Enquanto nos preocupamos em demasiado com a preservao do reclame de uma identidade mineira em grande parte vinculada ao perodo colonial, sua opulncia aurfera e cultura barroca, desviamos a ateno e os cuidados para que outras histrias e suas memrias sejam conhecidas, fazendo habitar os solos nos quais aqueles que esto vivos produzem o real-histrico.

  • Dezembro de 2014 87

    Ouro Preto de todos os tempos

    Compreendemos que os caminhos histricos para o apreender da/na ci-dade so trilhados pelos sujeitos, guiados por suas vivncias e percepes. So, ademais, orientados por razes histricas. Interrogamo-nos acerca dos efeitos da patrimonializao, atentas tanto enunciao de sentidos quanto evoca-o de silenciamentos: afinal, com quantas histrias se faz a histria de uma cidade? Que efeitos de conhecimento se produzem quando em uma mesma cidade h marcos considerados mais histricos do que outros? Que horizontes de pertencimento se produzem em cenrios de patrimonializao? De que forma alargar as visadas interpretativas com vistas a proporcionar o conheci-mento e a experincia sensvel dos sujeitos em cenrios que opem presente e passado em jogos dissonantes? Em qual e por meio de qual escala o histrico definido?

    Ademais, os fundamentos que conferem legitimidade ao histrico em cidades como Ouro Preto se articulam queles gerados pela patrimonializao, fazendo aflorar o impensado do tempo: um centro histrico da humanidade, no qual do cho aos sons dos sinos tudo patrimnio, tudo afeto ao passado, tudo histrico. O limite fsico e simblico da autenticidade do histrico em cidades histricas como Ouro Preto coincide com o da demarcao do centro, tornando perifricas as zonas fronteirias, os distritos e os marcos simblicos que, pouco ou nada informados pelo marco colonial, se secundarizam em face da amplificao que o legtimo direito ao usufruto da cultura pela humanidade se impe diante da cidade-relquia mundial.

    Nessa operao de confeco do histrico esto presentes o contedo co-lonial marcado pela longevidade e pela opulncia e o contedo material evi-denciado pela arquitetura e estrutura fsica da cidade-sede. Esto da mesma forma operantes os contedos atribudos funo da cidade na histria de Minas e, por extenso histrica, de Minas como semiforo da nao. Alm disso, o contedo barroco como condio histrica em que materialidade e experincia inegavelmente se evidenciam materializa Ouro Preto como uma cidade para historiadores (Hartog, 2006), uma cidade-aula, constituindo a sub-suno da relevncia histria dos demais registros, no jogo do tempo, que realizaram essa mesma cidade. Os efeitos da cidade colonial se perpetuam nos tempos por meio de encenaes, aes preservacionistas com vistas perma-nncia dos registros e marcos arquitetnicos, e, mais, por meio dos modos de viver e de usufruto cultural.

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 688

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    As inquiries acerca dos limites de constituio da condio histrica dispem possibilidades interpretativas em aulas de histria capazes de pro-porcionar a elucidao dos jogos temporais que, em dados momentos, sin-gularizaram reas e temporalidades como mais histricas ou como autenti-camente histricas em oposio a outras. No refinado jogo que disps os tempos desenhando a face relquia do passado colonial brasileiro as peas do decurso histrico foram estrategicamente periferizadas, provocando a con-vivncia no harmnica entre vrios cenrios patrimonializados porque hierarquizados.

    Assim, na hierarquia patrimonial a disposio de primeira linha conferida ao barroco ouro-pretano suscita em aulas de histria a percepo das resso-nncias do patrimnio nos modos de vida, convocando a uma educao infor-mada por processos intersubjetivos em que mais do que a autenticidade do histrico objetiva-se a experincia sensvel da multiplicidade de relaes sim-blicas que delineiam o histrico de uma cidade. A univocidade do patrimnio colonial amplifica-se, assim, com a vida em curso num jogo de temporalidades e por meio da presena do sentido da histria fractalizada pelos variados re-gistros patrimoniais e significativos que concretizaram a Ouro Preto de todos os tempos.

    REFERNCIAS

    ABDALA, Mnica Chaves. Receita de mineiridade: a cozinha e a construo da ima-gem do mineiro. Uberlndia, MG: Ed. UFU, 1997.

    ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento.Mitologia da mineiridade:o imaginrio mineiro na vida poltica e cultural do Brasil.So Paulo: Brasiliense, 1990.

    _______. O mito da mineiridade. Tese (Doutorado) FFLCH, USP. So Paulo, 1987.

    BAETA, Alenice; PIL, Henrique. Marcas Histricas Miguel Burnier Ouro Preto. Belo Horizonte: Gerdau, 2012.

    BECHLER, Rosiane Ribeiro. Minas Gerais em jogos de escalas: variaes do conheci-mento histrico escolar em livros didticos regionais. Dissertao (Mestrado) FAE, UFMG: Belo Horizonte, 2014.

    CAMPOS, Fernando Rogrio de Lima. Miguel Burnier: o lugar da fragmentao. Mo-nografia (TCC) UFMG. Conselheiro Lafaiete, 2012.

    DA MATTA, Roberto. Nao e regio: sobre o significado cultural de uma permanen-

  • Dezembro de 2014 89

    Ouro Preto de todos os tempos

    te dualidade brasileira. In: SCHLEE, Aldyr Garcia; SCHLER, Fernando Luis; DA GLRIA BORDINI, Maria. Cultura e identidade regional. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2004.

    DULCI, Otvio Soares. As elites mineiras e a conciliao: a mineiridade como ideolo-gia. Cincias Sociais Hoje, p.7-32, 1984.

    FRIEIRO, Eduardo. Feijo, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. (v.72). Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

    HARTOG,Franois. Tempo e Patrimnio. Varia Historia, Belo Horizonte, v.22, n.36, p.261-273, jul.-dez. 2006.

    _______. Regimes de historicidade: presentismo e experincias do tempo. Belo Hori-zonte: Autntica, 2013.

    HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org.) A inveno das tradies. Rio de Janei-ro: Paz e Terra, 1984.

    MORAIS, Luciana Patrcia de. Culinria tpica e identidade regional: a expresso dos processos de construo, reproduo e reinveno da mineiridade em livros e res-taurantes de comida mineira. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, UFMG. Belo Horizonte, 2004.

    NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria. (Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados de Histria, So Paulo: PUC, v.10, 1993.

    OLIVEIRA, Rodrigo Francisco de. Mil tons de Minas: Milton Nascimento e o Clube da Esquina: cultura, resistncia e mineiridade na msica popular brasileira. Dis-sertao (Mestrado) Universidade Federal de Uberlndia. Uberlndia, MG, 2006.

    REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experincia da micro-anlise. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.

    RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Trad. Alain Franois. Campi-nas, SP: Ed. Unicamp, 2008.

    ROCHA, Simone Maria. Identidade regional, produo e recepo: A mineiridade na televiso. In: CONGRESSO NACIONAL DE PS-GRADUAO EM CO-MUNICAO COMPS, 12. Recife, PE, 2003.

    SILVA, Marcos A. da.Republica em migalhas:historia regional e local.So Paulo: Marco Zero; MCT/CNPq, 1990.

    VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas annimos da Histria.: micro-histria. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

  • Revista Histria Hoje, vol. 3, n 690

    Rosiane Ribeiro Bechler e Jnia Sales Pereira

    NOTAS

    1 Sobre a discusso ver: DA MATTA, 2004.2 Sobre o assunto ver: ABDALA, 1997; DULCI, 1984; FRIEIRO, 1982; MORAIS, 2004; OLIVEIRA, 2006; ROCHA, 2003, dentre outros.3 Sobre o projeto visitar a pgina http://projetoestacao.blogspot.com.br/.

    Artigo recebido em 24 de setembro de 2014. Aprovado em 23 de outubro de 2014.