ouro preto de muitos caminhos

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Ouro Preto de Muitos Caminhos Coletivo Tacitistas

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Um jeito diferente de trabalhar com história através de textos independentes, conectados por uma proposta comum a criação de um Glossário histórico, lúdico e imagético. Produção coletiva relativa à disciplina Ensino de História: Teoria e Prática oferecida na FFLCH-USP pelo prof. Maurício Cardoso

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Ouro Pretode Muitos Caminhos

ColetivoTacitistas

Sumário

5 Uma “Quase” Introdução

6 Acesso

10 Conflito

14 Nostalgia

18 Olhares

22 Pedro

26 Religiosidade

28 Redenção

32 Resistência

36 Sino

O rio que fazia uma voltaatrás da nossa casa era a imagem de um vidro mole...

Passou um homem e disse:Essa volta que o rio faz...se chama enseada...

Não era mais a imagem de uma cobra de vidroque fazia uma volta atrás da casa.Era uma enseada.Acho que o nome empobreceu a imagem.

Manoel de BarrosLivro das Ignorãças

Uma “Quase” Introdução

Bem vindo você acaba de chegar a nós e somos muitos,

estudantes, papagaios, gatos e cachorros, ainda assim aqui há espaço.

Estamos no Morro do Querosene na rua Afonso Vaz, no começo

dela precisamente, sentido centro da paulicéia. Uma rua estreita e

inclinada, mal iluminada, repleta de fezes de animais e rachaduras.

Pássaros ruidosos acordam o céu nas manhãs. Há muitas árvores,

buracos de pica-paus nos troncos apodrecidos de quintais murados. No

começo dela, tem um buffet infantil cafona e desagradável do lado

direito para quem sobe a rua, muro alto cor rosa e azul claro que

acompanha a ladeira até um conjunto de cortiços, e do outro lado, uma

Igreja Evangélica de japoneses endinheirados e felizes, com seus carros

importados ou ônibus fretados que ocupam o espaço do ponto-de-

ônibus da avenida. Subam esta ladeira de paralelepípedos gastos e

escorregadios, cinzentos e brutos, depois passem por debaixo de um

chorão cujas sombras escorrem e escurecem o asfalto irregular da rua,

mais duas curvas, e estarão aqui.

Aqui temos palavras e imagens, há também textos, e eles são

livres, a receita é de um glossário, mas os ingredientes são todos os

históricos. Você tem em mãos um glossário, um glossário, sim, histórico,

imagético e lúdico, ainda assim glossário, mas não tão óbvio. Qualquer

dúvida ligue.

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Acesso

AcessoOutra hora eu estava lembrando o dia em que cheguei à cidade.

Não conhecia ninguém, nem eu mesmo. Estava confuso, não sabia como

ou por que fui parar ali. Mas logo percebi que a minha presença era

motivo de grande controversa. Uns me olhavam com indignação, outros

com grande satisfação.

Apesar de alto, forte e imponente, sempre fui muito tímido. Mas

parece que como por ironia do destino me colocaram no centro de

tudo. Sim, bem no topo da cidade, em frente à construção mais

suntuosa – acho que eu não poderia chamar mais atenção.

No entanto, havia a vista. A vista era linda! Eu enxergava a cidade

inteira: pessoas, ladeiras, casas, igrejas. Assim, logo tomei para mim o

papel de zelador, de guardião de tudo aquilo que meus olhos

alcançavam. Minha função era simples: abrir e fechar. Costumava abrir

às oito horas da manhã e fechar às sete horas da noite. E o tempo foi

passando...

Até a noite da crise. Eram duas horas da madrugada, chovia muito

e tive um sonho perturbador. Sonhei com um cadeado enorme, mesmo

gigante, que me cobria todo e impedia que as pessoas entrassem.

Acordei assustado. Uma epifania! Vi a imagem completa, ali estava o

real objetivo da minha existência no mundo: trancar! – Certa vez, ouvi

alguém dizer que “o óbvio era a verdade mais difícil de se enxergar”, só

esqueceram de acrescentar: também a mais dolorosa. Sim, trancar! Por

que se a minha função fosse abrir, a minha existência seria

completamente injustificável, beiraria o ridículo.- 7 -

Lembrei-me daqueles primeiros olhares de indignação, daquelas

pessoas que me olhavam como se eu fosse um criminoso. Lembrei da

construção de todo um mecanismo de defesa: limitava ao máximo a

passagem daquela gente, cuja presença destoava imenso do passado

glorioso do edifício que eu nobremente protegia – eu havia aceitado o

discurso daqueles que me colocaram ali com tanta satisfação.

Durante a vida inteira, pensei ser um “nobre zelador”, um

facilitador, que zelava dia e noite por esta antiga casa, quando, na

realidade, sou um simples instrumento de controle. Controlo quem

entra, quando entra, como entra. Não abro portas, encerro-as.

O que fazer? Eis a grande crise! Na minha condição de portão,

não posso me rebelar, sou fixo, preso, imóvel.

- 8 -

Conflito

ConflitoOuro Preto é uma pequena cidade, grande em tradições, media

em ação. Mais rica em satélites que em tecnologia. As cidades do

entorno formam uma rede complexa e orgânica de fluxos e refluxos,

vindas e voltas. Aquele senhor é de Belo Horizonte, mas seu silêncio se

volta a OP. O filho é parte do sistema penal que visa recorrer à violência

caso da violência recorramos. A consciência é da necessidade de

preservação do patrimônio. Esta, é claro, é devido ao tempo e espaço

sendo ambos de forma atemporal e universal. Católicos somos. Para

construir tal patrimônio, apenas ungido pelo espírito do santo.

Entretanto, para forçá-la na goela do povo, apenas esforçando com

armas em punho.

A criança via tudo. Sua altura era de relação com o coldre do

oficial. O cavalo do outro lado também estava lá. Passou da Rua Direita

com a espada em mãos. O menino estava cansado. Tanto subir! Mas,

lembrava da avó que sempre dizia: descer que é o pior, os joelhos não

agüentam!…

Aquele homem assoviava um sucesso. O para lamas daquele carro

enferrujava de tanta água. Do beco, explodiu a violência! Pelo coldre,

assistiu a tudo. Correu e, lembrando das palavras da avó, poupou os

joelhos, aproveitou a chuva e deslizou, ao infinito. Suas asas, feitas de

água e ódio, ensandeceram, incendiaram. Da água, fez-se vapor, do

ódio, amor. Do calor, vento, suave brisa...

Do coldre não se livrou, deus pai que estejas aqui para cuidar que

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decorra o estopim - da bomba atômica que está a explodir. Dos

indigentes, distantes e pouco tementes, não muito se esperava. Eram

cristãos, ao menos isso se considerava, Cristo. Construíram, em sua

homenagem, um carpete de lantejoulas e traquinagem. Fora de

vontade, fora de forma, fora de coragem. Esta fôra deixada. No Rio, que

já era de fevereiro, março, abril, as chuvas haviam passado e o

excremento limpo...

Não eram mais lembrados. Aqueles artistas, globais por

infortúnio, eram mais que tudo a todo o mundo. Ou apenas, a duras

penas, era justo o nosso Brasil...

- 12 -

NostalgiaHá 10 anos ele não voltava para Ouro Preto, mas a morte

repentina da mãe obrigou-o a retornar a sua cidade natal. A irmã estava

devastada – afinal, era ela quem cuidara da mãe idosa na última década.

Ele partira em busca de novas oportunidades, constituíra uma nova

família, tornara-se um empresário de sucesso. Ela ficara. Agora ele

estava de volta e talvez por culpa decidiu ficar mais uma semana para

ajudar sua irmã a retomar sua vida.

A cidade continuava a mesma. Sempre fora a mesma. Maldita

cidade parada no tempo. Em nada parecida com São Paulo, a cidade

mutante. Mesmo passadas mais de duas décadas que partira para São

Paulo, ainda lembrava-se de cada esquina, cada paralelepípedo, cada

subida de Ouro Preto. Por isso sempre dizia: maldita cidade parada no

tempo. Já podia imaginar as conversas que teria com aquele povo

provinciano, sobre a vida na cidade grande, sobre sua Mercedes, sobre

as viagens para a Europa. Maldito povo provinciano.

O enterro ocorrera no dia anterior, mas faltava organizar com o

padre a missa de sétimo dia. Seguiu seu caminho para a Igreja Matriz

Nossa Senhora do Pilar, onde sua mãe era devota, a fim de garantir que

tudo estivesse preparado. Sim, claro que a beata da sua irmã já havia

tratado com o padre na missa da manhã e já estava tudo certo. Havia

perdido sua tarde para fazer isso – se soubesse que não era mais preciso

ir até a igreja, teria de bom grado encontrado coisa melhor para

fazer. Tomou o caminho para casa, irritado com o tempo perdido,

. - 15 -

e nem percebeu quando gritaram por seu nome. Notou somente

quando encostaram em seu ombro. Virou-se e logo a reconheceu.

Continuava igual apesar dos 25 anos passados, com aquela beleza que

lhe era particular - o nariz largo e a boca fina criavam uma harmonia

estranha e sedutora. “Venha, sente-se aqui”, ela lhe disse – e, ainda

impressionado com esse encontro, aceitou sentar-se no banco da praça

para prosear. Lembrou-se que fora nessa mesma praça que ele havia

declarado a ela seu amor, onde deram seu primeiro beijo – o primeiro

de suas vidas.

A vida dela havia sido simples: casamento, filhos, o negócio que

ela – sim, ela – expandira e transformara em um respeitável restaurante

para turistas. Lembraram-se de seus antigos amigos. Das brincadeiras

de rua. Dos namoros nas praças. Dos professores do colégio. Pela

primeira vez em muitos anos ele sentia aquilo: saudades de Ouro Preto.

Da mãe. Da irmã. Do café com pão de queijo. Da missa aos domingos.

Do vento noturno gelado. Da vida sem pressa. Daquela cidade parada

no tempo.

Lembrou-se da excitação juvenil naquele dia na praça – acreditava

que o mundo lhe pertencia, que poderia ser feliz eternamente.

Lembrou-se das mãos se tocando levemente, apenas insinuando seu

desejo. Da frase, dita após tantas horas buscando coragem – “você é a

menina mais bonita que já vi”. Do beijo, no começo tímido, e que aos

poucos se tornou mais caloroso. Do medo de ser pego pelos pais,

naquele delito tão inocente. Lembrou-se de sentir a paixão tomá-lo pela

primeira vez. E lembrou-se também de

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como, dois meses depois, ela decidiu acabar com esse amor e o trocou

por outro rapaz, mais velho - um universitário vindo da capital.

Percebeu que foi nesse momento que decidiu aceitar a oferta de seu

pai e estudar em São Paulo: para se tornar um empresário de sucesso.

Lembrou-se com carinho da tristeza da mãe ao ver o primogênito partir

em busca dos sonhos nunca alcançados pelo pai – aquele ideal de

riqueza tão distante dos valores cristãos, que a mãe tanto se esforçara

para ensinar-lhe. No entanto, não dividiu com ela seus pensamentos.

Contou-lhe sobre a vida em São Paulo, sobre sua Mercedes, sobre as

viagens para a Europa. E assim, eles se despediram.

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Olhares

OlharesLonga caminhada vertical. O que esperávamos ver na chegada?

O que ouço é uma fala marcante: “Os turista, como vier tá bom!”.

Quem a diz o faz num sorriso, espontâneo ou não, e demonstra

simpatia e otimismo em relação a nós, os intrusos. Mas é fácil detectar

em sua exclamação um profundo conformismo, uma tentativa de ser

otimista não apenas em relação a nós, mas à sua própria situação, a

de ter que lidar conosco. Pelo menos ele tem a chance, e é besteira

achar que não percebe isso, de acompanhar tantos deslocamentos e

grupos itinerantes; a síntese do desejo de ver de perto o que se ouve

falar quando se está em casa, a necessidade das viagens.

Mas não apenas ver, o que queremos mesmo é absorver

intensamente todas as informações: o prédio, a casa, a arquitetura, a

igreja e o sino, o ritmo do sino, o pé direito e as cores da janela; há

também todas as figuras que destoam da nossa rotina e da nossa

percepção de mundo cotidiana; são os velhinhos violeiros, as senhoras

religiosas, a procissão, as crianças que brincam livres na rua de pedra.

Antes de voltar pra casa queremos nos encantar com algo, e ter acesso

a qualquer coisa que seja “folclórica”, assim legitimamos mais nosso

percurso. Viajar não deixa de ser uma tentativa de fazer a imaginação

trabalhar, mesmo enquanto estamos no momento próprio da viagem,

quando assumimos o papel de turistas (talvez soe melhor “viajantes”).

Na subida da ladeira não percebia o quanto era intrusa; dou-me conta

do papel que assumi quando o casalzinho de namorados sentado no

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banco da praça em frente à igreja, muitíssimo jovens, 12, 13 anos no

máximo, lança um olhar feio para meu grupo.

A menina usava roupa curta, o menino um boné pra trás; estão

muito a vontade, são visivelmente donos daquele espaço, sabem se

locomover por ali e qualquer um percebe que têm uma sintonia forte.

Por ainda serem crianças compartilham a intimidade como colegas,

amigos. A praça onde estão é um espaço estreito apesar de circular, o

banco é pequeno, só cabem os dois, o lugar tem poucas árvores ou

outros atrativos. Naturalmente o olhar volta-se para a força da

construção, para a igreja. Com uma intensidade diferente percebo os

morros ao fundo; formam uma mancha verde escura com pinguinhos

coloridos, as casas desprivilegiadas, que são boas de olhar e de longe

parecem bonitas. O céu contrasta com o morro, e olhando de relance

o verde escuro pode até parecer cinza, e a montanha pode parecer

céu fechado, chuva que vem vindo. Mas na verdade não é nada disso;

não identifico mais nada, pois não sei onde estou. Ali naquela cidade

parece que estamos sempre em um vale, por mais que tentemos

alcançar o topo.

De repente percebo uma aflição entre o jovem casal, começam

a lançar olhares ao entorno, à manada que após subir a ladeira se

senta nos degraus da igreja ou no chão da praça, de mochila e

garrafinha na mão. Até então eu mesma achava que podia olhá-los

como parte do cenário: a praça, o banco, a menina e o menino, juntos,

abraçados, chamando atenção pela pouca idade. Se estivesse na

minha cidade não os olharia assim, pois lá não há ânsia de absorção

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de identidade nenhuma. Não sei bem o que eles representam, mas

também por que devem representar algo? Eles se levantam e vão

embora. Soco no estômago! Destruímos tudo. Estou, talvez de

propósito, estrategicamente posicionada em relação ao banco e

consigo trocar uma idéia com o moleque: “Acabamos com o clima de

vocês! Desculpa.”

A resposta foi a tal fala marcante, e me surpreendeu. Até então

ele me parecia meio antipático e achei que sua reação seria

defensiva, pois me dei o direito de me envolver mais ainda em sua

privacidade, na tentativa de puxar um assunto, a partir de minha

próprias ambições, percebi o quanto ele e os locais são ativos em

relação à nossa recepção, e também em relação à maneira como

lidamos com o espaço onde eles vivem. Não poderiam jamais ser

como imaginei que fossem, passivos frente ao desenrolar da invasão

de turistas.

- 21 -

Pedro

PedroLadeira da sofreguidão, luz baixa que enuncia noite escura, como

quem olha lá para cima e não vê, mas faz dos braços, asas!

Chegar a Ouro Preto e nela andar com quem bordeja caminhos,

chegar, mais do que ir a ela, é caminhar num acúmulo de peças,

subtraídas num acidente pacífico, num tempo outro que o barulho

era tão mais ausente e o cansaço, tardio, só na alta noite vinha

sussurrar seus reclames.

Não há caminhos na Ouro Preto feita pelos pretos, há pedra,

variada pedra que nenhum de nós reconhece.

Pedra mais do que caminho, ladeira mais que declive de um

traçado do ouro.

Feita de pedra, sem caminho, feita de ladeira, caminho sem ouro.

Ouro Preto é patrimônio da pedra, que molda e se gesta na venda

de um desvalorizado anti-ouro.

Ali todos são de pedra: as crianças, o passado que brinca, a

memória, as mulheres, todas elas fugidias amantes de Ló[1].

Suas pedras clamam aos profetas [2], que por mãos de Francisco

aleijado ganharam outra forma.

Na Ouro Preto, sem caminho mas de pedra, é possível cantar

salmos e celebrar a vinda do deus de pedra que, por trabalho de

seus filhos pretos, foi presenteado de variadas casas.

- 23 -

Os anjos ali sibilam uma língua incompreensível, uma morta língua

que os pretos de outrora oravam a Ogum. Uma língua como pedra,

derramada como grãos de uma riqueza alheia, tornando a língua

pedrada, a voz calada, a mente quieta. E celebram os dias-festas e

colorem o traçado das gerações. As crianças, sendo o colorido

comum dessa cidade inexistente, perpetuam a fé de pais

descrentes diante do Agnus Dei.

Subir, todos assim querem, escalar a fissura da cidade pedra que

nua ficou. No consumir da pedraria o que resta é: sangue,

comércio da alma, cansaço do corpo.

1 Ló é uma personagem do Antigo Testamento, sobrinho do patriarca Abraão. Sua

história se relaciona ao episódio da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Na

narrativa bíblica, a mulher de Ló olha para trás, quando da fuga das cidades por

destruir, e por isso é transformada numa estátua de sal. Na região em que tal narrativa

é construída, na costa sul do mar Morto ainda existe um reservatório natural de sal,

onde se acumulam imensas pedras de sal.2 No evangelho de Lucas, 19: 40, diz Jesus aos fariseus: “Asseguro-vos que, se eles se

calarem, as próprias pedras clamarão”. Eu propus uma ridícula inversão.

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ReligiosidadeNão é necessário andar muito para encontrar, nesta cidade, um

dos vários locais onde aquele minério, que há séculos atrás fez tantos

homens se aventurarem por estas montanhas, está espalhado por toda

parte, através de obras que já resistem a séculos de história. Nesses

locais, que foram construídos por homens que vieram do outro lado do

mundo contra sua vontade, muitos se agarram à fé, acreditando em

uma vida posterior a essa, como forma de suportar as dores que vivem

nesta.

As igrejas de Ouro Preto, esses locais representativos da tradição e

da religiosidade de gerações de famílias que, junto com uma multidão

ao menos uma vez ao ano, andam em procissão pelos caminhos

tortuosos que, pelo menos por um dia, não são feitos apenas de pedras,

mas também decorados por um tapete de variadas imagens, composto

de vários materiais e desenhado por pessoas vindas de muitos longe.

Não em busca do ouro que era tirado da terra, como acontecera há

trezentos anos, mas que mesmo assim acabam se vislumbrando com

este ouro, que ainda permanece nas várias igrejas espalhadas pelas

ladeiras da cidade.

Ladeiras que assistiram ao Triunfo Eucarístico no século XVIII, festa

que simbolizou não só a exaltação do ouro no momento de sua maior

abundância, mas também a religiosidade que faz parte da cidade desde

os seus primórdios. Ladeiras que assistem agora a procissão do domingo

de Páscoa, continuando a tradição religiosa ouro-pretana.

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Redenção

RedençãoObservamos atentos, ressecamos ao sol matutino a embriaguez

da noite anterior que ainda adormecia o corpo. Á margem de uma

multidão de fiéis e beatos mais ou menos enternecidos com a

representação da suposta Ressurreição de Cristo, do seu sofrimento e

salvação. A cabeça de madeira de São João Batista na bandeja apoiada

nas mãos de uma mulher de vestido longo e olhar austero, vestido leve

e esvoaçante a arrastar as raspas de madeira tingidas que desenhavam

formas nos paralelepípedos, como pombas, cruzes, e que eram pisadas,

desmanchadas pelos passantes da procissão ,estremecia,

impressionava, no domingo de Páscoa, que significa em hebraico

“passagem”. Uma transformação ocorria em nossas vidas.

No calendário cristão, período como este para expurgar as dores

da alma e dos supostos pecados são necessários, para projetar um

futuro de esperanças antes que finde a existência na Terra, e sejam

assim glória e felicidade eternas. Tornar a existência humana

suportável, assim como as desigualdades sociais, o trabalho, a morte.

Desfilando a passos lentos, a encenação da lembrança do Sofrimento de

Cristo.

Éramos os investigadores profanos atrás dos gestos das pessoas

comuns que estavam na procissão; os semblantes contorcidos ou

estáticos indicavam o grau de envolvimento emotivo das pessoas com a

festa. Para entender o sentido daquela procissão, precisávamos nos

desprender momentaneamente de preconceitos, e aceitar o conteúdo

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religioso daqueles atos, simplesmente. O importante estava na emoção

compartilhada, de um projeto de sociedade, na empatia entre uns e

outros, a comoção que dava sentido aquele agrupamento de pessoas.

As ruas de Ouro Preto brilhavam com as resplandecentes cores de panos

pendurados nas janelas, e das vestimentas requintadas, o movimento da

multidão embalado pelo sopro dos metais se espalhava pelas ladeiras

empedradas. Os monumentos e patrimônios históricos, lugares de

memória, estavam ocupados pela multidão e davam sentido à existência

social, que se esquecia momentaneamente da reprodução da vida

material, do trabalho, aproximando um Deus dos homens, o tempo

divino e o tempo natural, biológico. Não queria apenas pensar na crítica

a essa sociedade, sua hipocrisia, a encenação social, a ideologia

religiosa, as desigualdades historicamente construídas e sua hierarquia,

das limitações impostas à política devido a uma lógica e racionalidade

absolutas, metafísicas.

Crianças brincando, beatas emocionadas, e os descrentes de

coração frio como eu, querendo alento impossível na insustentável fé

em Deus, criador e criatura, filho e pai, seguem a banda de metais na

procissão soprando o lodo dos musgos dos monumentos da cidade,

vento nas sacadas das fachadas brancas e panos roxos ou vermelhos

pendurados, dobrando. Um sorriso no rosto de senhoras, elevadas em

suas sacadas, olhando a rua e acenando aos que passam.

Já de noite, frio de Lua despontando no céu, as sombras pendem

sobre as paredes caiadas, e as janelas austeras, retangulares, sem

qualquer vulto, tem apenas a luz de dentro, fraca, expressão de

. - 30 -

recolhimento, ausência. Onde os inconfidentes conspiravam seus planos,

inspirados pelo exemplo que vinha de fora, como a Independência das Treze

Colônias inglesas na América, inspirados pelas idéias republicanas

iluministas, utopias políticas, é a literatura subversiva que no Brasil causa

repressão policial violenta, ou razão para punição com morte exemplar, pois

nem os inconfidentes eram abolicionistas, tampouco brasileiros, mas

mineiros, porque dependiam economicamente da escravidão e não existia

um sentimento de identidade nacional, apenas Joaquim da Silva Xavier

queria o fim da escravidão e tinha projetos políticos mais audaciosos, o

alferes Tiradentes, mártir, herói póstumo da República, infeliz, desgraçado.

Maldita a sua memória e da revolução que no Brasil nunca houve.

.

- 31 -

Resistência

ResistênciaMãos negras tocam o gélido metal dourado, enquanto

caminham sobre paralelepípedos gastos e irregulares, pedras pretas

e frias que se assentam nas ladeiras escorregadias de uma cidade de

vil metal dourado, que encheu de luz as casas e as idéias de alguns,

contrastando com o lamento de noites escuras de um céu negro, cujo

brilho celeste escondia-se atrás das galáxias nebulosas das nuvens.

Gente de pele escura que fez de seus lamentos monumento

resistente e sólido, como as pedras duras que alicerçam pelos cantos

uma cantoria choca, misturada à magnitude de sinos, torres, naves e

altares-mor. Madeira escarificada pelos negros que com suas mãos

quentes tocaram o frio metal dourado, também denominado como

preto, que encheu os veios dessas madeiras, hoje elevadas a

patrimônio e acrescidas de História com H maiúsculo, ou capital. Luz

sobre um passado que ainda hoje busca esclarecer-se e atingir a

maioridade.

Longe da maioridade aquelas mãos negras, ainda hoje, tocam

metais dourados sobre caminhos irregulares construídos em pedra

dura e escorregadia, que esconde veios, pequenas fissuras, declives,

dissonâncias e improvisos.

Instrumento de sopro, alto ou baixo, feito de metal frio, que em

sua origem foi tocado pelas mesmas mãos negras e quentes, mas que

outrora, feriram-se nos espinhos e mancharam de sangue a cor neve

do algodão dos brancos. Lamento que tornou-se resistência e que

- 34 -

hoje, assim como as escarificações da madeira transformaram-se em

espetáculo, para esses homens e mulheres, em sua maioria alvos como

algodão, outrora, branco, mas sujo de sangue, colhido pelos escravos

no delta de um rio longo, palco de disputas. Que em tempos e espaços

outros também existiram nas ladeiras de cá.

Hoje, celebração fúnebre de frio que pinta as pedras gastas e

irregulares com cores quentes que iluminam e esclarecem o retorno de

um deus distante, mas presente, que faz fiés, na manhã seguinte,

arrastarem-se que nem cobra pelo chão, depois de sujarem suas mãos,

quase brancas, do negro que envolve a serragem cheia de cor e de luz.

E as mãos negras que tocam esse metal frio se não mais resistem

ou lamentam, ao menos opõem e relembram as pedras gastas, frias e

irregulares que por debaixo dos tapetes mantém-se ali, pretas e sólidas.

Permitindo ainda sopros irregulares, dissonantes e livres que saltam

entre as fissuras dos paralelepípedos buscando, quem sabe ainda, sons

mais livres. um evento

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Sino

Sino

Instrumento MetálicoQue vibra e Produz Sons

Mais ou menos fortesQuando neles se

Percute com o Badalo

Sino som da infânciaDo passado, da igreja,Da cidade do interior,

Da casa da vó,Da noite de páscoa e

De natal

Sino anuncia, controla,Marca, aponta e dita.

Vibra.

Sino som que celebra o tempoE que do alto da torre, vigia,

Sem piscar, observa atentamente.Sino, som da lembrança.

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FotografiaMaurício Freitas

Textos e ProduçãoAriel Pires de Almeirda

Beatriz Lanna

Caio Forte

Guilherme Leite

Gustavo Sanchez

Flávia Lima

Julia Passos

Leandro Junqueira

Maurício Freitas

Priscila Nina

Vinicius dos Santos

AgradecimentosCauê Teles

Taís Araújo

Robinho

Paisagem-protagonista, tem vida, quase grita, chora, quais histórias conta, de mudança e revelia

Guilherme Leite