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Monografia de especialização em Direito Público sobre o marco legal das OSCIPs no Estado do Rio Grande do Sul. Todos os direitos reservados.

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Universidade Anhanguera-UniderpRede de Ensino Luiz Flvio Gomes

O MARCO LEGAL DAS ORGANIZAES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PBLICO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

RENATA DA SILVA RODRIGUES

PORTO ALEGRE/RS 2011

RENATA DA SILVA RODRIGUES

O MARCO LEGAL DAS ORGANIZAES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PBLICO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Monografia apresentada ao Curso de PsGraduao Lato Sensu TeleVirtual como requisito parcial obteno do grau de especialista em Direito Pblico.Universidade Anhanguera-Uniderp Rede de Ensino Luiz Flvio Gomes

Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld

PORTO ALEGRE (RS) 2011

RESUMO O presente trabalho pretende examinar o contedo da Lei Estadual n. 12.901/2008, que criou o ttulo de Organizao da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP) no mbito da Administrao Pblica do Estado do Rio Grande do Sul. O exame do contedo do marco legal das OSCIPs no Rio Grande do Sul d-se a partir da contextualizao do fortalecimento do terceiro setor no Brasil, com a Reforma do Estado de 1995, bem como pelo estabelecimento de paralelos com o seu paradigma legislativo, qual seja, a Lei Federal n. 9.790/99. Palavras-chave: terceiro setor, organizaes da sociedade civil de interesse pblico, Lei Estadual 12.901

ABSTRACT The present work aims to analyze the content of the State Statute n. 12.901/1998, which created the title of Civil Society Organization of Public Interest (OSCIP) in the realm of state government administration in Rio Grande do Sul. Content exam of such statute includes the contextualization of third sector emergence in Brazil, materialized by the State Reform of 1995, as well as tracing parallels regarding its legislative paradigm, the Federal Statute n. 9.790/1999. Keywords: third sector, civil society organization of public interest, State Statute n. 12.901.

SUMRIO

1 O TERCEIRO SETOR\............................................................................................................. O PBLICO NO-ESTATAL.............................................................................................8 1.1 Conceito................................................................................................................................8 1.1.1 O desempenho de atividades de interesse pblico.............................................................9 1.1.2 O direito livre associao..............................................................................................12 1.1.3 A criao e o desenvolvimento da organizao fora do aparelho estatal.........................13 1.1.4 A finalidade no-lucrativa................................................................................................15 1.1.5 A submisso a regime jurdico peculiar...........................................................................16 1.2 A reforma do Estado brasileiro de 1995.............................................................................17 1.2.1 A participao do terceiro setor no processo de reforma do Estado................................19 1.2.2 Principio da subsidiariedade............................................................................................23 1.2.2.1 A atividade de fomento.................................................................................................27 1.3 A outorga de ttulos jurdicos a entidades do terceiro setor no Brasil................................34 2 AS ORGANIZAES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PBLICO NO MBITO DO PODER EXECUTIVO FEDERAL LEI N. 9790/99..................................36 2.1 A gnese e conceito das OSCIPs........................................................................................36 2.2. Requisitos para concesso do ttulo...................................................................................38 2.3 Da concesso do ttulo........................................................................................................41 2.4 Termo de parceria...............................................................................................................42 2.4.1 Clusulas essenciais.........................................................................................................44 2.4.1 Da inexigncia de procedimento licitatrio prvio..........................................................45 2.4.3 Da prestao de contas.....................................................................................................49 2.4.4 Do controle e avaliao....................................................................................................50 2.5 Da perda da qualificao.....................................................................................................50 3. MARCO LEGAL DAS OSCIPS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL...................51 3.1 Histrico..............................................................................................................................51 3.2 Requisitos para concesso do ttulo....................................................................................53 3.3 Da concesso do ttulo........................................................................................................55 3.4 Termo de parceria...............................................................................................................55 3.4.1 Clusulas essenciais.........................................................................................................57 3.4.2 Da obrigatoriedade da realizao de seleo pblica.......................................................58 3.4.3 Do controle e avaliao....................................................................................................60 3.4.4 Prestao de contas..........................................................................................................61 3.5 Perda da qualificao..........................................................................................................61 CONCLUSO..........................................................................................................................63 INTRODUO..........................................................................................................................7 REFERNCIAS........................................................................................................................65

INTRODUO As parcerias do Poder Pblico com o terceiro setor tm captado cada vez mais a ateno da sociedade civil, que observa a prestao de atividades de relevncia pblica serem realizadas por entidades privadas, fomentadas com recursos pblicos. Nesse contexto, observa-se a crescente preferncia do Poder Pblico pela celebrao de parcerias com Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIPs), entidades qualificadas com ttulo jurdico trazido ao ordenamento jurdico ptrio por meio da Lei Federal n. 9.790/99. Aps sua criao no mbito federal, passaram os Estados da Federao a regulamentar, por meio de leis prprias, a certificao das OSCIPs em mbito estadual. Esse foi o caso do Estado do Rio Grande do Sul, que em 2008 editou a Lei Estadual n. 12.901 sobre o assunto. Dada a popularizao da parcerias com OSCIPs no Estado do Rio Grande do Sul, bem como a escassez de artigos cientficos acerca do tema, pretende o presente trabalho examinar o contedo de tal instituto jurdico em mbito estadual a fim de compreender seus requisitos e finalidades, verificando-se tambm eventuais inovaes trazidas pela Lei Estadual n. 12.901/2008 em relao ao seu paradigma legislativo a Lei Federal n. 9.790/99. No primeiro captulo, realiza-se uma anlise do contexto do fortalecimento do terceiro setor no Brasil, por meio da reviso do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, elencando-se os principais conceitos derivados da reforma gerencial. Pretende-se a partir de tal anlise prover um arcabouo histrico capaz de explicar a deciso do Poder Executivo Federal de criar o ttulo jurdico de OSCIP. No segundo captulo procede-se uma reviso bibliogrfica relativa Lei Federal n. 9.790/99, com o estabelecimento de conceitos bsicos acerca das OSCIPs, a fim de fixar os atributos essenciais trazidos pelo paradigma legislativo em questo. Examina-se, aqui, institutos como o termo de parceria, o ato de qualificao como OSCIP e os requisitos legais para a qualificao. No ltimo captulo adentra-se na anlise da Lei Estadual n. 12.901/2008 propriamente dita, valendo-se de anlise comparativa tendo por paradigma a Lei Federal n. 9.790/99 e os conceitos a ela associados. So traados paralelos com a lei paradigmtica, apontando-se as similitudes e diferenas existentes entre os diplomas, dando-se nfase s inovaes trazidas pelo legislador estadual e o impacto que devem surtir no processo de qualificao de OSCIPs e de celebrao de termo de parceria no mbito do Estado do Rio Grande do Sul.

1 O TERCEIRO SETOR: O PBLICO NO-ESTATAL Para que se possa compreender no que consiste o terceiro setor ou setor pblico noestatal , gnero do qual so espcies todas as entidades sem fins lucrativos que se dedicam a atividades de interesse pblico, necessrio que sejam traados os elementos gerais presentes nas organizaes pertencentes a este setor e o contexto histrico em que se deu o seu despontar no ordenamento jurdico ptrio.

1.1 Conceito A doutrina convencionou nomear terceiro setor o conjunto de pessoas jurdicas privadas que, paralelamente ao Estado, desempenham atividades no-lucrativas e de interesse pblico, em oposio ao primeiro setor o Governo e ao segundo setor o conglomerado produtivo de um pas, orientado pela economia de mercado. Por vezes, referido como o setor situado em zona intermediria, inserido entre o pblico e o privado. Como sinnimo de terceiro setor, fala-se tambm no pblico no-estatal; entidades sem finalidade lucrativa que perseguem objetivos tidos como pblicos, no fazendo parte do aparelho estatal. Por ostentarem objetivos pblicos, de relevncia social, as entidades pblicas no-estatais desempenham as suas atividades em parceria com o Poder Pblico, em um vnculo de colaborao, uma vez que ostentam objetivos afins. Assim sustenta o ex-ministro do Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira:(...) alm da propriedade privada e da propriedade estatal existe uma terceira forma de propriedade relevante no capitalismo contemporneo: a propriedade pblica no estatal. Na linguagem vulgar comum a referncia a apenas duas formas de propriedade: a propriedade pblica, vista como sinnima de estatal, e a propriedade privada. Esta simplificao, que tem uma de suas origens no carter dual do Direito ou temos direito pblico ou privado - leva as pessoas a se referirem a entidades de carter essencialmente pblico, sem fins lucrativos, como privadas. Entretanto, se definirmos como pblico aquilo que est voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que voltado para o interesse dos indivduos e suas famlias, est claro que o pblico no pode ser limitado ao estatal, e que fundaes e associaes sem fins lucrativos e no voltadas para a defesa de interesses corporativos mas para o interesse geral no podem ser consideradas privadas. A Universidade de Harvard ou a Santa Casa de Misericrdia de So Paulo no so entidades privadas, mas pblicas. Como, entretanto, no fazem parte do aparelho do Estado, no esto subordinadas ao governo, no tm em seus quadros funcionrios pblicos, no so estatais. Na verdade so pblicas no-estatais (ou seja, usando-se os outros nomes com que so designadas, so entidades do terceiro setor, so entidades sem fins

lucrativos, so organizaes no-governamentais, organizaes voluntrias).1 (grifo meu)

Colacionamos aqui as conceituaes oferecidas por Boaventura de Sousa Santos e Paulo Modesto, que reforam a definio oferecida supra acerca do terceiro setor.Terceiro sector uma designao residual e vaga com que se pretende dar conta de um vastssimo conjunto de organizaes sociais que no so nem estatais nem mercantis, ou seja, organizaes sociais que, por um lado, sendo privadas, no visam fins lucrativos, e, por outro lado, sendo animadas por objectivos sociais, pblicos ou colectivos, no so estatais.2 Pessoas privadas de fins pblicos, sem finalidade lucrativa, constitudas voluntariamente por particulares, auxiliares do Estado na persecuo de atividade de contedo social relevante.3

O vnculo que se estabelece entre o Poder Pblico e os entes do terceiro setor comumente no se resume mera constatao da afinidade de objetivos. Passa a envolver o apoio financeiro, por parte do Estado, por meio da concesso de subvenes em favor da organizao pblica no-estatal, a permisso de uso de bens pblicos, a cesso de servidores pblicos, a celebrao de contratos e a outorga de um ttulo jurdico. Trata-se de uma atividade pblica de fomento que se prope a realizar objetivos que aproveitam coletividade. Desde j, cabe aprofundar o aludido conceito, desdobrando seu significado e aprofundando as caractersticas das organizaes que compem esse setor. Para isso, partiremos da anlise dos elementos gerais presentes nas entidades que compem o dito terceiro setor, tal qual apontados por Luis Eduardo Patrone Regules o desempenho de atividades de interesse pblico, o direito livre associao, a criao e o desenvolvimento da organizao fora do aparelho estatal, a finalidade no-lucrativa e a submisso a um regime jurdico atpico.4 1.1.1 O desempenho de atividades de interesse pblico Primeiramente, imperioso tecer consideraes acerca da possibilidade de definio do1

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lgica e mecanismos de controle. Braslia: Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 25-26. 2 SANTOS, Boaventura de Sousa. A reinveno solidria e participativa do estado. So Paulo, 1998. Disponvel em: Acesso em: 20 junho 2011. 3 MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Pblico, So Paulo, n. 24, p. 80, 1998. 4 REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 48 et seq.

que consiste o interesse pblico e da mutabilidade da noo em comento. No processo de transformao do Direito Administrativo, que acompanha as diversas tendncias de estruturao do Estado e da sociedade no decorrer da histria, a noo nuclear de interesse pblico tambm se alterou, diferindo daquela existente poca de sua criao, no sculo XIX. Ensina Odete Medauar que, poca da Revoluo Francesa, o zelo pelo interesse pblico era monoplio do Estado, cabendo ao particular o gerenciamento do interesse privado. Toda a atuao do Estado voltava-se ao atendimento do interesse pblico, que fundamentava qualquer prtica que findasse por suprimir direitos dos administrados. A Administrao Pblica era a executadora da vontade geral e intrprete do interesse pblico, realizando uma atividade de homogeneizao dos interesses: porquanto um interesse comum, de todos, afirmava-se a primazia do interesse zelado pelo Estado em relao ao interesse individual.5 Em um segundo momento, observa-se que a atuao estatal exorbita o que antes fora definido como de interesse pblico, passando a interferir em reas antes to-somente geridas pelos administrados. O fenmeno referido assim descrito por Odete Medauar:Depois, de modo mais intenso, o Estado, mediante a Administrao, passou a assumir, como seus, interesses que antes pertenciam ao setor privado; citam-se com freqncia, na doutrina, as prticas de subsdios de vrias atividades privadas, como em determinados setores agrcolas, e na implantao de indstrias, em notrio benefcio direto dos particulares, mas sob invocao do interesse pblico. (...) Tornou-se difcil estabelecer, de antemo, a matria concernente ao interesse pblico; qualquer assunto, desde que assumido pelo Poder Pblico, passava a qualificar-se como interesse pblico. Passou a vigorar, desse modo, a concepo nominalista: interesse pblico o que a lei ou a Administrao diz que , mesmo que se trate de algo muito especfico.6

Moreira Neto defende que a dicotomia clssica entre o pblico e o privado, que antes atribua to-somente ao Estado o monoplio do interesse pblico, prolongou-se, ao longo de um processo histrico, em um espao pblico no-estatal, fazendo surgir entidades privadas que se voltam consecuo de interesses gerais. Descreve esse fenmeno como um gerenciamento privado de interesses pblicos.7 Nesse mesmo contexto de intensa participao dos particulares em atividades consideradas de interesse pblico, Odete Medauar aponta o surgimento de um pluralismo dentro da prpria organizao e atividade administrativa, com

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MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 189. 6 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 189-190. 7 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Coordenao gerencial na administrao pblica. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 214, p. 38, out./dez. 1998.

uma pulverizao de interesses pblicos8. Setores distintos da sociedade civil associam-se com a finalidade de ver atendidos os interesses da coletividade que representam, demonstrando que no mais possvel reduzir todos os interesses de uma sociedade a um denominador comum, nico. Com a presena do espao pblico no-estatal, o interesse pblico passa a ser compartilhado entre o Estado e a sociedade, no mais subsistindo o monoplio da Administrao no que toca guarda desse interesse. Segundo Odete Medauar, o despontar do entendimento de que a Administrao Pblica deve compartilhar com a sociedade a atribuio de gesto do interesse pblico faz com que o Estado no mais assuma o controle e perfil do que se deva entender por interesse pblico; a sociedade, o conglomerado de associaes e de organizaes que indicam ao Estado a poltica a desenvolver e estabelecem ordem de prioridades.9 O aludido fim do monoplio estatal da consecuo de interesses gerais condenado por Ataliba Pinheiro Esprito Santo, que v a conservao do interesse pblico como um fim inexorvel do Estado. Afirma que as atividades de interesse pblico reclamam a funo estatal e so no-exclusivas da sociedade, uma vez que o Estado foi criado para, por dever de ofcio, tom-las como sua responsabilidade10. Paulo Modesto assume posio prxima a Medauar e Moreira Neto, salientando a necessidade de que o desempenho de atividade de interesse pblico seja objeto de devido controle e fiscalizao:No h, portanto, impedimento constitucional algum assuno por particulares de tarefas e misses de interesse social em colaborao com a administrao pblica. Desde que cumpridos requisitos de salvaguarda do interesse pblico, mais intensos e onerosos quanto mais ampla for a transferncia de encargos e recursos, a cooperao lcita e at mesmo estimulada pela Constituio da Repblica.11

Compreendida a mutabilidade da noo de interesse pblico, traz-se baila a definio provida, com clareza, por Agustn Gordillo:El inters pblico o bien comn no es el inters de un conjunto de habitantes tomados como masa; no es un bienestar general, omnipresente, una felicidad indefinible e imprecisable; es slo la suma de una mayora de concretos intereses8

MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 190. 9 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evoluo. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 191 10 ESPRITO SANTO, Ataliba Pinheiro. As organizaes sociais e a reforma administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 93, out./dez. 2002. 11 MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizaes sociais no Brasil: as dvidas dos juristas sobre o modelo das organizaes sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 208, out./dez. 1997.

individuales coincidentes actuales y/o futuros y por ello la contraposicin entre el inters pblico y el derecho individual es falsa si no redunda en mayores derechos y beneficios para los individuos de la comunidad. Por supuesto, hablamos de uns mayora de individuos, no de la totalidad de los miembros de la sociedad; debe tratarse de intereses coincidentes lato sensu, esto es, homogneos.12

Ao enfrentar a questo, Celso Bandeira de Mello tambm oferece sua conceituao:(...) o interesse pblico, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais que a dimenso pblica dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivduo enquanto partcipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto se abrigando tambm o depsito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, j agora, encarados eles em sua continuidade histrica, tendo em vista a sucessividade das geraes de seus nacionais.13

1.1.2 O direito livre associao O direito livre associao, consagrado na Constituio Federal, em seu art. 5, incisos XVII, XVIII, XIX e XX, garante a no-interferncia estatal na formao e no funcionamento das organizaes civis. Na lio de Jorge Miranda, o direito livre associao apresenta-se como um direito individual e um direito institucional. Enquanto direito individual, possui uma dimenso positiva o direito de constituir associaes para qualquer fim lcito e de aderir s associaes existentes e uma dimenso negativa o direito de no ser coagido a constituir, inscrever-se ou permanecer em uma associao, bem como o direito de deliberar a dissoluo de associao da qual faa parte. No que toca liberdade das associaes constitudas, h o direito de auto-organizao que garante a livre estruturao da instituio , o direito livre prossecuo dos seus fins, a susceptibilidade de personificao jurdica e a garantia de que no sofrer intervenes arbitrrias do Poder Pblico.14 Em aparente contraposio ao direito livre associao, h um dever de ingerncia por parte do Estado no que toca a organizaes que desenvolvam suas atividades em rea de singular interesse pblico. o caso, por exemplo, da atividade de ensino, que demanda a autorizao do Poder Pblico para que seja desenvolvida por ente privado (art. 209, inciso II,12

O interesse pblico ou bem comum no o interesse de um conjunto de habitantes tomados como massa; no um bem estar geral, onipresente, uma felicidade indefinvel e imprecisvel; somente a soma de uma maioria de concretos interesses individuais coincidentes - atuais e/ou futuros - e, em razo disso, a contraposio entre o interesse pblico e o direito individual falsa, se no redunda em maiores direitos e benefcios para os indivduos da comunidade. Por isso, falamos de uma maioria de indivduos, no da totalidade dos membros da sociedade; deve tratar-se de interesses coincidentes lato sensu, isto , homogneos. (traduo minha) GORDILLO, Agustn. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, v. 2, p. VI-30. 13 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p. 57. 14 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Lisboa: Coimbra, 2000, v. 4, p. 476-477.

da Constituio Federal), e da prestao de servios de sade pela iniciativa privada, que deve ser submetida ao pleno controle do Poder Pblico (art. 22 e 23, 1, da Lei n. 8.080/1990). Tal dever de ingerncia estatal no suprime o direito livre associao, tratando-se de um controle legitimado pelo ordenamento jurdico. Nas palavras de Regules:A autorizao para o exerccio da atividade de ensino convive com a liberdade de associao tpica das organizaes do terceiro setor. Portanto, o direito livre associao no prescinde, em certas circunstncias delimitadas pelo ordenamento jurdico, do controle administrativo s atividades decorrentes de seu exerccio.15

1.1.3 A criao e o desenvolvimento da organizao fora do aparelho estatal O segundo elemento caracterizador do terceiro setor a criao e o desenvolvimento da organizao fora do aparelho estatal, exigindo-se que a entidade detenha autonomia e administrao prpria, no se confundindo com entidade pertencente Administrao Pblica. Embora as organizaes do terceiro setor dediquem-se consecuo de fins de interesse pblico, compartilhando objetivos com o Estado, o vnculo mantido com o Poder Pblico to-somente aquele de colaborao. Andrea Nunes atenta para a corrente hibridez que por vezes caracteriza a constituio de tais entidades, uma vez que as parcerias entre o pblico e privado tendem ao aprofundamento, o que torna necessrio delimitar com preciso a autonomia e administrao prpria como um trao caracterstico e indelvel da existncia de uma pessoa jurdica distinta, ao invs de uma simples ramificao do aparelho estatal.16 Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a atividade dos entes que compem o terceiro setor como uma administrao privada associada de interesses privados, em que pessoas jurdicas de direito privado se associam ao Estado, por meio de um vnculo de direito pblico, para a persecuo dos interesses pblicos, no se confundindo com um ente pertencente Administrao indireta.17 Define tais pessoas jurdicas como entidades extraestatais, ao passo que Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Hely Lopes Meirelles optam por cham-las de entidades paraestatais, uma vez que compreendem como paraestatal toda e qualquer pessoa jurdica de direito privado que colabora com a Administrao e exerce funo

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REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 51. 16 NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalizao. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 27. 17 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 266.

tpica, no-exclusiva do Estado.18 Certo que as organizaes do terceiro setor no se encaixam na definio legal constante do Decreto-lei n. 200/1967, art. 4, que versa sobre Administrao direta e indireta, no mbito federal.19 Frise-se que a classificao legal da estrutura da Administrao Pblica em direta ou indireta alvo de crticas por doutrinadores como Celso Antnio Bandeira de Mello, a quem parece imprpria a diviso realizada pelo legislador.Em tese, tal diviso deveria coincidir com os conceitos (...) de centralizao e descentralizao administrativa, de tal sorte que Administrao centralizada seria sinnimo de Administrao direta, e Administrao descentralizada, sinnimo de Administrao indireta. 20

Esclarece Bandeira de Mello que o critrio classificador adotado pelo Decreto-lei n. 200/1967 no foi a natureza da atividade desempenhada pelo ente, nem o regime jurdico a que estes sujeitos se submetem, e sim um critrio meramente orgnico ao final, relacionouse como entidades componentes da Administrao indireta aquelas consideradas como unidades integrantes da Administrao.21 Nesse contexto, a descentralizao administrativa, assim nomeado o fenmeno em que o Estado transfere o exerccio de atividades tipicamente estatais para particulares ou para pessoa jurdica por ele criada, no coincide com o conceito legal de Administrao indireta, porquanto este no engloba os particulares prestadores de atividade administrativa. Em oposio centralizao administrativa, que conduz o Estado a desempenhar diretamente as suas atividades, por meio de suas unidades internamente estruturadas, a descentralizao envolve o gerenciamento de interesse pblicos por pessoas jurdicas criadas pelo Estado para esse fim classificadas pelo Decreto-lei n. 200/1967 como integrantes da18

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. So Paulo: Atlas, 2007, p. 455-458; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p. 67. 19 Art. 4 A Administrao Federal compreende: I - A Administrao Direta, que se constitui dos servios integrados na estrutura administrativa da Presidncia da Repblica e dos Ministrios. II - A Administrao Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurdica prpria: a) Autarquias; b) Emprsas Pblicas; c) Sociedades de Economia Mista. d) fundaes pblicas. 1 As entidades compreendidas na Administrao Indireta consideram-se vinculadas ao Ministrio em cuja rea de competncia estiver enquadrada sua principal atividade. Pargrafo nico. As entidades compreendidas na Administrao Indireta vinculam-se ao Ministrio em cuja rea de competncia estiver enquadrada sua principal atividade. 20 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p. 148. 21 MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p. 150-152.

Administrao indireta ou por particulares. Diz-se, portanto, que o setor pblico no-estatal, ao exercer atividades tipicamente estatais, manifestao da descentralizao administrativa.22 Srgio de Andra Ferreira cunha a terminologia descentralizao por colaborao para caracterizar o fenmeno relacionado s entidades do terceiro setor:Pela descentralizao por colaborao, conforme salientado, a pessoa poltica delega a terceiros (particulares, pessoas fsicas ou jurdicas, ou pessoas de outras administraes ou paradministraes pblicas) ou lhes permite o exerccio de encargo pblico, ou aproveita a atividade dos mesmos como auxiliares da atuao da administrao pblica. Os terceiros a que se refere este item passam a colaboradores da administrao pblica. A descentralizao por colaborao de ndole objetiva, funcional, eis que descentralizada somente a atividade, que passa a terceiros.23

Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, adota a terminologia descentralizao social para descrever o processo de participao dos particulares na atividade administrativa. Sustenta que a descentralizao social o fenmeno em que o Estado delega cometimentos pblicos a entidades intermdias, ditas entidades de colaborao.24

1.1.4 A finalidade no-lucrativa O desempenho de atividades no-lucrativas constitui elemento que caracteriza as organizaes do terceiro setor, na lio de Regules.25 Para Slvio Lus Ferreira da Rocha, a inexistncia de finalidade lucrativa consiste na no-distribuio, entre seus scios ou associados, de lucros possivelmente auferidos pela pessoa jurdica no desenvolvimento de suas atividades. O requisito de desempenho de atividades no-lucrativas tambm seria22

A noo de que as entidades pblicas no-estatais podem ser qualificadas como uma forma de descentralizao refutada por Paulo Modesto, a quem o fenmeno da descentralizao envolve, necessariamente, a atuao do particular em atividades reservadas ou exclusivas do Poder Pblico, e no em atividades que podem ser exercidas pelo particular de iure proprio. Dessa forma, a atuao nas reas em que a Constituio Federal autoriza a ao autnoma e em nome prprio dos particulares caso das entidades do terceiro setor no se trataria de descentralizao, mesmo que a atuao estatal nessas reas seja tpica. MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizaes sociais no Brasil: as dvidas dos juristas sobre o modelo das organizaes sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 203, out./dez. 1997. 23 FERREIRA, Srgio de Andra. Uma viso crtica das organizaes sociais. Revista Trimestral de Direito Pblico, Rio de Janeiro, n. 25, p. 39, 1999. 24 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Organizaes sociais de colaborao: descentralizao social e administrao pblica no-estatal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 187 et seq, out./dez. 1997. 25 REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 52-53.

complementado com a obrigatoriedade de reinvestir na prpria entidade qualquer ganho ou vantagem auferido, subtradas as despesas envolvidas na atividade.26 Para Andrea Nunes, o rol daqueles que no podem ter para si distribudos os ganhos da entidade deve ser compreendido como aquele constante do art. 2, 1, da Lei n. 9.790/199927, verbis:Art. 1o Podem qualificar-se como Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico as pessoas jurdicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutrias atendam aos requisitos institudos por esta Lei. 1o Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurdica de direito privado que no distribui, entre os seus scios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou lquidos, dividendos, bonificaes, participaes ou parcelas do seu patrimnio, auferidos mediante o exerccio de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecuo do respectivo objeto social. (grifo meu)

Em razo da finalidade no-lucrativa do terceiro setor, Gina Copola conclui que, tratando-se de pessoa jurdica de direito privado, o requisito de finalidade no-lucrativa exclui, de plano, a admissibilidade de uma sociedade civil como integrante do terceiro setor, porquanto entidade que desempenha atividade econmica, necessariamente.28 J Andrea Nunes defende que a prtica de atos de comrcio por sociedade civil no importa a sua determinao como comercial, devendo ser considerada, para fins de caracterizao da finalidade da entidade, a principal atividade por ela exercida.29

1.1.5 A submisso a regime jurdico peculiar Por fim, Luis Eduardo Patrone Regules menciona a existncia de um novo regime jurdico aplicvel aos entes que compem o terceiro setor, caracterstico destes. Trata-se de um regime jurdico situado em zona intermediria, que absorveria tanto elementos do direito privado quanto do direito pblico.30 Vislumbra-se a submisso das organizaes no-governamentais ao regime de direito privado no que toca a sua constituio e ao seu funcionamento, porquanto so pessoas jurdicas de direito privado, formadas por particulares com base nas previses constantes do Cdigo Civil ptrio.26 27

ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 117. NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalizao. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 25-26. 28 COPOLA, Gina. Desestatizao e terceirizao. So Paulo: NDJ, 2006, p. 11. 29 NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalizao. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 26. 30 REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 53

No entanto, como bem observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, embora haja uma predominncia do regime jurdico de direito privado, percebe-se que este parcialmente derrogado por normas de direito pblico.31 Isto porque as organizaes do terceiro setor desempenham atividades de interesse pblico e so comumente destinatrias de incentivos e tratamento diferenciado por parte do Estado, o que enseja o controle e a fiscalizao do Poder Pblico no que tange atuao de tais entidades e devida utilizao dos recursos pblicos a elas destinados. A peculiaridade do regime jurdico das organizaes no-governamentais tambm apontada por Juarez Freitas, ao enfrentar a questo no que concerne s organizaes sociais, espcie de entidade do terceiro setor. Pondera que tais entidades obedecem a regime sui generis, no-estatal, contudo, certamente dominado por regras de direito privado e princpios de direito pblico32 e prossegue, afirmando:(...) resta claro que o regime de tais pessoas jurdicas de direito privado mesmo atpico. Na tica prescrita, h uma dominncia de regras de direito privado e simultnea preponderncia de princpios de direito pblico, uma vez que se encontram imantadas pelas suas prprias e inescapveis finalidades de cogentes matizes sociais.33

1.2 A reforma do Estado brasileiro de 1995 Em 1995, primeiro ano do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado, capitaneado por Luiz Carlos Bresser Pereira, elaborou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que firmou as diretrizes e os princpios que deveriam nortear a reestruturao do Estado brasileiro. O referido Plano Diretor foi aprovado pela Cmara da Reforma do Estado em setembro daquele ano e constituiu-se em marco do incio da modernizao de gesto do aparelho estatal brasileiro. Amparado essencialmente pelo iderio social-democrata, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado pretendia atuar em duas frentes diferenciadas, porm complementares: a redefinio do papel do Estado, que deixa de ser o responsvel direto pelo desenvolvimento econmico e social pela via da produo de bens e servios, para fortalecer-

31 32

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. So Paulo: Atlas, 2007, p. 457. FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princpios fundamentais. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 1999, p. 182. 33 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princpios fundamentais. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 1999, p. 184.

se na funo de promotor e regulador desse desenvolvimento34 e a implantao do modelo de administrao pblica gerencial, voltada para a eficincia da gesto - a necessidade de reduzir custos e aumentar a qualidade dos servios, tendo o cidado como beneficirio35. A aludida reforma origina-se na constatao da chamada crise do welfare state: a incapacidade do Estado em lidar com as competncias sociais que, ao longo dos anos, lhe foram gradualmente atribudas, e que culminaram na edio da Constituio de 1988 a Constituio Cidad, que expandiu ainda mais as reas de atuao estatal. Para os socialdemocratas, como o ex-ministro do Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, a crise do Estado seria enfrentada com a observncia aos fundamentos macroeconmicos e a realizao de reformas orientadas para o mercado, nos moldes do que preconizados pelos liberais, asseverando que o enfrentamento da crise no deveria ali se esgotar.(...) a centro-esquerda social-liberal props a reconstruo do Estado, para que este possa em um novo ciclo voltar a complementar e corrigir efetivamente as falhas do mercado, ainda que mantendo um perfil de interveno mais modesto do que aquele prevalecente no ciclo anterior. Reconstruo do Estado que significa: recuperao da poupana pblica e superao da crise fiscal; redefinio das formas de interveno no econmico e no social atravs da contratao de organizaes pblicas no-estatais para executar os servios de educao, sade, e cultura; e reforma da administrao pblica com a implantao de uma administrao pblica gerencial. Reforma que significa transitar de um Estado que promove diretamente o desenvolvimento econmico e social para um Estado que atue como regulador e facilitador ou financiador a fundo perdido desse desenvolvimento.36

Conforme aponta Alvacir Correa dos Santos, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado intenta enfrentar um problema de governana, assim compreendida a capacidade estatal de implementar polticas pblicas. A rigidez e a ineficincia da mquina administrativa, abatida pela crise fiscal, suprimem a capacidade de governo do Estado, e s seriam combatidas por meio de um novo modelo de gesto da Administrao Pblica, voltado para o atendimento da cidadania.37 A partir do discurso de Bresser Pereira, que sustenta a reduo do aparelho estatal para viabilizar uma firme retomada da interveno estatal no domnio econmico, em sintonia com a cartilha keynesiana, cumpre desassociar, por completo, a reforma do Estado de 1995 de qualquer iniciativa de cunho (neo)liberal.34

BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 12. 35 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 16. 36 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lgica e mecanismos de controle. Braslia: Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 17. 37 SANTOS, Alvacir Correa dos. Princpio da eficincia da administrao pblica. So Paulo: LTr, 2003, p. 163-164.

Frente ineficincia e inoperncia do Estado em cumprir com o que lhe foi atribudo pelo constituinte, o diagnstico liberal majoritrio desponta diferenciado daquele constante do Plano Diretor de Reforma do Estado: o problema residiria no modelo de Estado que desastradamente se aventura a ir alm da mera preveno de interferncias nos direitos individuais. O Estado Social, tal qual delineado pela Constituio Federal de 1988, revestido na burocrtica e engessada estrutura estatal, estaria fadado recorrente ineficincia, ao intrometer-se em esferas que poderiam ser reguladas pelo mercado, compreendendo-se este ltimo como uma manifestao da cooperao dos indivduos na consecuo de seus objetivos. Aos liberais, interessa a implantao do Estado Mnimo, aquele em que a finalidade nica das normas legais e do aparato estatal assegurar que a cooperao social funcione de forma pacfica, protegendo-se os direitos reconhecidamente fundamentais: a vida, a liberdade e a propriedade.38 Assim, a reduo do aparelho estatal possui finalidades diferenciadas para liberais e para social-democratas; estes visam reconstruo do Estado, para que posteriormente possa despontar o chamado Estado Social-Liberal39, enquanto os primeiros desejam a implementao do Estado Mnimo, a partir de uma inovadora concepo de quais sejam as atividades de que o Estado deve se ocupar.

1.2.1 A participao do terceiro setor no processo de reforma do Estado Realizada a devida contextualizao da reforma do Estado iniciada em 1995, impende analisar a iniciativa de delimitao da rea de atuao do Estado, constante do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que previa a participao do terceiro setor no processo de reconstruo do Estado Social. Ao apreciar a atuao do Estado, o Plano Diretor apontava a existncia de quatro38

Robert Nozick assim sintetiza o iderio liberal: Nossas principais concluses acerca do Estado so que um Estado mnimo, limitado s restritas funes de proteo contra fora, roubo e fraude, de fiscalizao do cumprimento de contratos, e outras mais, justificado; que qualquer outro Estado mais amplo violar os direitos individuais de no ser forado a fazer certas coisas, e injustificado; e que um Estado mnimo tanto inspirador quanto certo. Duas implicaes que devem ser registradas so que um Estado no pode usar seu aparato coercitivo com o propsito de fazer com que alguns cidados ajudem os outros, ou com o fito de proibir atividades para o prprio bem ou proteo das pessoas. (traduo minha). NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell Publishing Limited, 2001, p. ix (prefcio). 39 Nossa previso a de que o Estado do sculo vinte-e-um ser um Estado Social-Liberal: social porque continuar a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econmico; liberal, porque o far usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizar seus servios sociais e cientficos principalmente atravs de organizaes pblicas no-estatais competitivas, porque tornar os mercados de trabalhos mais flexveis, porque promover a capacitao dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovao e a competio internacional. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lgica e mecanismos de controle. Braslia: Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 18.

setores no aparelho estatal moderno: o ncleo estratgico, as atividades exclusivas, a produo de bens e servios para o mercado e os servios no-exclusivos, consistindo estes ltimos em nosso interesse mximo no presente estudo. A cada um deles, encarregou-se o Plano Diretor de propor a forma de gesto e de propriedade que lhes seriam mais adequadas dentro do ideal de reconstruo do aparelho do Estado brasileiro. O ncleo estratgico resta assim definido no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado:Corresponde ao governo, em sentido lato. o setor que define as leis e as polticas pblicas, e cobra o seu cumprimento. portanto o setor onde as decises estratgicas so tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judicirio, ao Ministrio Pblico e, no poder executivo, ao Presidente da Repblica, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsveis pelo planejamento e formulao das polticas pblicas.40

Para Bresser Pereira, o ncleo estratgico consiste no nico setor estatal que no poderia ser plenamente gerido por meio do modelo de administrao pblica gerencial, cabendo, nesse caso especfico, a continuidade da adoo de algumas caractersticas da administrao pblica burocrtica.41 No ncleo estratgico, o fundamental que as decises sejam as melhores, e, em seguida, que sejam efetivamente cumpridas. A efetividade mais importante que a eficincia.42 A aludida efetividade , na redao do Plano Diretor, uma caracterstica marcante da administrao burocrtica, justificando a adoo de um misto de administrao pblica burocrtica e gerencial no que toca gesto do ncleo estratgico. Quanto forma de propriedade, resta indicada a propriedade estatal como aquela adequada ao ncleo estratgico. O segundo setor do aparelho estatal consiste nas atividades consideradas exclusivas do Estado - aquelas que envolvem o Poder do Estado. So as atividades que garantem diretamente que as leis e as polticas pblicas sejam cumpridas e financiadas.43 Seriam, na lio de Bresser Pereira, atividades que consistem na manifestao do poder extroverso do Estado, em sua forma clssica, somadas s atividades que se tornaram exclusivas do Estado por conta do advento do Estado Social, exemplificando estas:40

BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 41. 41 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratgia e estrutura para um novo Estado. Revista do Servio Pblico, Braslia, v. 48, n. 1, , p. 17-18, jan./abr. 1997. 42 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 42. 43 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratgia e estrutura para um novo Estado. Revista do Servio Pblico, Braslia, v. 48, n. 1, p. 17, jan./abr. 1997.

Em essncia so as atividades de formular polticas na rea econmica e social e, em seguida, de realizar transferncias para a educao, a sade, a assistncia social, a previdncia social, a garantia de uma renda mnima, o seguro desemprego, a defesa do meio ambiente, a proteo do patrimnio cultural, o estmulo s artes. Estas atividades no so todas intrinsecamente monopolistas ou exclusivas, mas na prtica, dado o volume das transferncias de recursos oramentrios que envolvem, so de fato atividades exclusivas de Estado. 44

Da mesma forma que no ncleo estratgico, nas atividades exclusivas tambm se vislumbra a propriedade estatal como necessria. A produo de bens e servios para o mercado corresponde atividade econmica, com finalidade lucrativa, exercida pelo Estado por meio de entidades integrantes da Administrao Pblica indireta. Na concepo dos redatores do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, a referida atuao do Estado d-se seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque so atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado no possvel.45 Independentemente das razes que movem o Estado a realizar tais atividades, certo que estas devem ser escassas, na esteira do que prev o caput do art. 173 da Constituio Federal46. No setor de produo de bens e servios para o mercado, sugere-se a propriedade privada, deixando a cargo do mercado regular a oferta de tais servios. At mesmo no caso em que haja um monoplio natural, a propriedade privada indicada como a mais adequada, desde que sofra regulamentao por parte do Estado. Por fim, fala-se na existncia de servios que no seriam exclusivos do Estado, embora venham a ser oferecidos por ele.SERVIOS NO EXCLUSIVOS. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizaes pblicas no-estatais e privadas. As instituies desse setor no possuem o poder de Estado. Este, entretanto, est presente porque os servios envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educao e da sade, ou porque possuem economias externas relevantes, na medida que produzem ganhos que no podem ser apropriados por esses servios atravs do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, no podendo ser transformadas em lucros. So exemplos deste setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus.47

No rol de servios no-exclusivos do Estado, estariam aquelas atividades na rea44

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lgica e mecanismos de controle. Braslia: Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 23. 45 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 42. 46 Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituio, a explorao direta de atividade econmica pelo Estado s ser permitida quando necessria aos imperativos da segurana nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. 47 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 41-42.

social e cientfica comumente financiadas com recursos pblicos, mas cuja execuo no de titularidade exclusiva do Estado. Bresser Pereira considera que o financiamento destas atividades constitui-se em atividade exclusiva do Estado, mas que sua execuo pode ser efetuada fora do aparelho estatal, em um espao pblico no-estatal.48 Como j referido anteriormente, identifica-se no pblico no-estatal a presena das organizaes privadas, sem finalidade lucrativa, de interesse pblico. A propriedade pblica no-estatal, sugerida pelo Plano Diretor para a execuo dos ditos servios no-exclusivos, caracterizada como uma subespcie de propriedade pblica, que surge como alternativa propriedade privada. O conceito de servio no-exclusivo aproxima-se significativamente daquele de servio de relevncia pblica, adotado por Paulo Modesto. Seriam justamente aquelas atividades que se encontram em uma dimenso coletiva e que podem ser administradas pelo terceiro setor, porquanto no h reserva de titularidade estatal. Por se tratarem de atividades de relevncia social, caberia ao Estado a fiscalizao, o controle e o fomento destas.49 Uma vez apontada a alternativa da propriedade pblica no-estatal para os servios no-exclusivos do Estado, encarrega-se o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de estabelecer como objetivo para este setor estatal a implantao de um processo de publicizao, assim compreendida a descentralizao para o setor pblico no-estatal da execuo de servios que no envolvem o exerccio do poder de Estado, mas devem ser subsidiados pelo Estado, como o caso dos servios de educao, sade, cultura e pesquisa cientfica.50 Embora a terminologia escolhida possa remeter to-somente ao aspecto pblico, tem-se que a publicizao visa a transferir a uma entidade privada a prestao de servios considerados no-exclusivos do Estado, subsidiando-a. Bresser Pereira sintetiza, com clareza, o fundamento da escolha pelo pblico noestatal na prestao de servios no-exclusivos por ocasio da reforma do Estado de 1995.Se assumirmos que [atividades no-exclusivas] devem ser financiadas ou fomentadas pelo Estado, seja porque envolvem direitos humanos bsicos (educao, sade), seja porque implicam externalidades envolvendo economias que o mercado no pode compensar na forma de preos e lucro (educao, sade, cultura, pesquisa cientfica), no h razo para que sejam privadas. Por outro lado, uma vez que no implicam o exerccio de poder do Estado, no h razo para que sejam controladas48

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratgia e estrutura para um novo Estado. Revista do Servio Pblico, Braslia, v. 48, n. 1, p. 18, jan./abr. 1997. 49 MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, formas de prestao de servios ao pblico e parcerias pblicoprivadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de servio pblico, servios de relevncia pblica e servios de explorao econmica para as parcerias pblico-privadas. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Parcerias pblico-privadas. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 456-465 passim. 50 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 12-13.

pelo Estado. Se no tm, necessariamente, de ser propriedade do Estado nem de ser propriedade privada, a alternativa adotar-se o regime da propriedade pblica noestatal ou usando a terminologia anglo-saxnica da propriedade pblica nogovernamental. Pblica, no sentido de que se deve dedicar ao interesse pblico, que deve ser de todos e para todos, que no visa ao lucro; no-estatal porque no parte do aparelho do Estado.51

Assim, por meio do processo da publicizao, o terceiro setor desponta como partcipe da reforma do Estado de 1995, oferecendo uma alternativa Administrao Pblica no que toca prestao de servios considerados essenciais, de interesse pblico, cuja execuo livre aos particulares. A participao da sociedade civil na gesto e nos mecanismos de controle dos servios prestados afigurar-se-ia produtiva e em sintonia com os preceitos de flexibilizao e eficincia trazidos pela reforma.

1.2.2 Principio da subsidiariedade Das diretrizes informadas pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado brasileiro, em especial a reduo das reas de atuao direta do Estado e a proviso de incentivos diversos ao terceiro setor para a prestao de servios considerados de relevncia social, possvel extrair a observncia ao dito princpio da subsidiariedade, que fundamenta a participao do terceiro setor no processo de reforma do Estado e a delimitao das reas de atuao estatal. O princpio da subsidiariedade tem sua origem na doutrina social da Igreja Catlica, tendo sido primeiramente delineado pela Encclica Quadragesimo Anno (1891), do Papa Pio XI:Verdade , e a histria o demonstra abundantemente, que, devido mudana de condies, s as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam at mesmo as pequenas; permanece contudo imutvel aquele solene princpio da filosofia social: assim como injusto subtrair aos indivduos o que eles podem efectuar com a prpria iniciativa e indstria, para o confiar colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, uma injustia, um grave dano e perturbao da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua aco coadjuvar os seus membros, no destru-los nem absorv-los. Deixe pois a autoridade pblica ao cuidado de associaes inferiores aqueles negcios de menor importncia, que a absorveriam demasiado; poder ento desempenhar mais livre, enrgica e eficazmente o que s a ela compete, porque s ela o pode fazer : dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem jerrquica reinar entre as varias agremiaes, segundo este princpio da funo supletiva dos poderes pblicos, tanto maior influncia e autoridade tero estes, tanto mais feliz e lisonjeiro ser o estado da nao.52 (grifo meu)51

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratgia e estrutura para um novo Estado. Revista do Servio Pblico, Braslia, v. 48, n. 1, p. 18, jan./abr. 1997.

Observa-se no trecho supra a primeira abordagem substancial pelo magistrio da Igreja Catlica no que concerne primazia da autonomia dos indivduos sobre as iniciativas de um ente superior. Atribui-se autoridade pblica uma funo subsidiria, supletiva, deixando a cargo dos particulares a realizao de aes que lhe cabem, porquanto improfcua e abusiva a atuao de um ente maior nas matrias que podem ser assumidas por entes menores.53 No mesmo sentido dispe a Encclica Mater et Magistra (1961), do Papa Joo XXIII, ao reproduzir, ipsis litteris, os ensinamentos previamente expostos na Quadragesimo Anno, e ao definir como fim do ente superior o fornecimento das condies que viabilizem a realizao do bem comum pelos indivduos:A ao desses poderes [poderes pblicos], que deve ter carter de orientao, de estmulo, de coordenao, de suplncia e de integrao, h de inspirar-se no "princpio de subsidiariedade", formulado por Pio XI na encclica Quadragesimo Anno (...) Para o conseguir [a socializao e suas vantagens], requer-se, porm, que as autoridades pblicas se tenham formado, e realizem praticamente, uma concepo exata do bem comum; este compreende o conjunto das condies sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade. E cremos necessrio, alm disso, que os corpos intermedirios e as diversas iniciativas sociais, em que sobretudo procura exprimir-se e realizar-se a socializao, gozem de uma autonomia efetiva relativamente aos poderes pblicos, e vo no sentido dos seus interesses especficos, com esprito de leal colaborao mtua e de subordinao s exigncias do bem comum. Nem menos necessrio que os ditos corpos apresentem forma e substncia de verdadeiras comunidades; isto , que os seus membros sejam considerados e tratados como pessoas, e estimulados a participar ativamente na vida associativa. 54 (grifo meu)

O princpio da subsidiariedade tambm constou, de forma expressa, da Encclica Pacem in Terris (1963), tambm do Papa Joo XXIII, que o estendeu esfera internacional:Como as relaes entre os indivduos, famlias, organizaes intermdias e os poderes pblicos das respectivas comunidades polticas devem estar reguladas e moderadas, no plano nacional, segundo o princpio de subsidiariedade, assim tambm, luz do mesmo princpio, devem disciplinar-se as relaes dos poderes pblicos de cada comunidade poltica com os poderes pblicos da comunidade mundial. Isto significa que os problemas de contedo econmico, social, poltico ou cultural, a serem enfrentados e resolvidos pelos poderes pblicos da comunidade mundial ho de ser da alada do bem comum universal, isto sero problemas que pela sua amplido, complexidade e urgncia os poderes pblicos de cada comunidade poltica no estejam em condies de afrontar com esperana de soluo positiva.52

IGREJA CATLICA. Papa (1922-1939: Pio XI). Encclica Quadragesimo Anno. Disponvel em: Acesso em: 02 de junho 2011. 53 TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3. 54 IGREJA CATLICA. Papa (1958-1963: Joo XXIII). Encclica Mater et Magistra. Disponvel em: < http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater_po.html> Acesso em: 02 junho 2011.

Os poderes pblicos da comunidade mundial no tm como fim limitar a esfera de ao dos poderes pblicos de cada comunidade poltica e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invs, devem procurar contribuir para a criao, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os poderes pblicos de cada comunidade poltica, como os respectivos cidados e grupos intermdios, com maior segurana, possam desempenhar as prprias funes, cumprir os seus deveres e fazer valer os seus direitos.55 (grifo meu)

Mais recentemente, a Encclica Centesimus Annus (1991), redigida pelo Papa Joo Paulo II, voltou a reafirmar a necessidade de observncia ao princpio da subsidiariedade na atuao do ente maior, citando supostos abusos intervencionistas ocorridos por ocasio da implantao do Welfare State. Para Joo Paulo II, a criao do Estado Social, fundada na necessidade de responder s carncias sociais experimentadas por grande parcela da populao, desencadeou uma srie de excessos no que toca ao assistencialismo provido pelo Estado, que expandiu demasiadamente o campo de atuao do Poder Pblico.Assistiu-se, nos ltimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de interveno, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o Estado do bemestar. Esta alterao deu-se em alguns Pases, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carncias, dando remdio a formas de pobreza e privao indignas da pessoa humana. No faltaram, porm, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes crticas ao Estado do bemestar, qualificado como Estado assistencial. As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreenso das suas prprias tarefas. Tambm neste mbito, se deve respeitar o princpio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior no deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competncias, mas deve antes apoi-la em caso de necessidade e ajud-la a coordenar a sua aco com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum. Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lgicas burocrticas do que pela preocupao de servir os usurios com um acrscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfaz-la quem a ela est mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. (...) 56 (grifo meu)

Prossegue Joo Paulo II, expondo que, no campo da economia, cabe ao Estado assegurar as garantias da liberdade individual e da propriedade, alm de uma moeda estvel e servios pblicos eficientes57. Dentro do setor produtivo, tambm deteria o Estado a competncia no-privativa de fiscalizar a observncia aos direitos humanos dos indivduos, a ser compartilhada com os cidados e com os diversos entes privados em que se articula a sociedade civil, e o direito de intervir em monoplios que se mostrassem prejudiciais para o55

IGREJA CATLICA. Papa (1958-1963: Joo XXIII). Encclica Pacem in Terris. Disponvel em: Acesso em: 02 junho 2011. 56 IGREJA CATLICA. Papa (1978-2005: Joo Paulo II). Encclica Centesimus Annus. Disponvel em: Acesso em: 02 junho 2011. 57 IGREJA CATLICA. Papa (1978-2005: Joo Paulo II). Encclica Centesimus Annus. Disponvel em: Acesso em: 02 junho 2011.

progresso de uma nao. Outrossim, reserva ao Estado funes de suplncia em situaes excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado dbeis ou em vias de formao, se mostram inadequados sua misso. 58 A partir das disposies impressas nas encclicas aqui mencionadas, possvel notar um slido conjunto doutrinrio concernente ao princpio da subsidiariedade no mbito do magistrio da Igreja Catlica. A leitura dos textos aludidos viabiliza a compreenso do princpio da subsidiariedade como aquele destinado a assegurar que a atuao do ente maior no interfira na autonomia individual e coletiva de forma injustificada, ao passo que prev a ingerncia do ente maior sobre o ente menor, na forma de estmulos, auxlios e orientao ou at mesmo de suplncia, quando as necessidades dos entes inferiores no puderem ser por eles mesmos providas. Conforme expe Silvia Faber Torres, a doutrina catlica a respeito do tema expe uma dupla perspectiva do princpio, negativa e positiva, pelas quais a subsidiariedade se manifesta, respectivamente, como limite interveno do ente maior e como justificao quela interveno.59 O princpio da subsidiariedade, extrado essencialmente da doutrina social da Igreja Catlica, foi transportado para o direito pblico a partir de um enfoque especializado, em que o Estado figura como o ente maior e a sociedade civil como o ente menor. Passa-se, ento, a conceber limites atuao do Estado, descentralizando-se a atividade tipicamente estatal, com a previso de que os indivduos e as entidades intermdias englobadas a as organizaes pertencentes ao terceiro setor dediquem-se a buscar a realizao de seus interesses. Remetese, aqui, ao fim do monoplio estatal da consecuo de interesses gerais, j abordado nesse estudo.60 No mbito do direito pblico, a princpio da subsidiariedade encontra dois planos possveis para a sua aplicao. O plano vertical traduz-se no princpio federalista de diviso de atribuies entre o ente central e os entes locais, com a finalidade de manter a gesto administrativa o mais prximo possvel do cidado. Implica, pois, em definir que tarefas cumprem s instncias menores e quais, por deduo, devem ser realizadas pelos entes maiores e central.61 O plano horizontal, por sua vez, diz respeito s relaes entre grupos58

IGREJA CATLICA. Papa (1978-2005: Joo Paulo II). Encclica Centesimus Annus. Disponvel em: Acesso em: 02 junho 2011. 59 TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 33. 60 Ver 1.1.1. 61 TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 35-36.

sociais ou entre o pblico e o privado.62 Assevera Silvia Faber Torres que a aplicao do princpio da subsidiariedade no mbito do direito pblico, em especial do Direito Administrativo, serviu consolidao das transformaes sociais ocorridas por ocasio da crise do Estado Social, que findou por remodelar o papel da sociedade civil na gesto da demanda social. Diante da ineficincia estatal em prover as prestaes constitucionalmente previstas, a comunidade passa a buscar o aumento de sua participao no processo de decises, o que enseja a criao e o fortalecimento das entidades intermdias como instrumento de representao da sociedade organizada. O princpio da subsidiariedade legitima essa nova organizao social, que visa a uma sociedade civil mais participativa e autnoma.63 A delimitao da atuao estatal trazida pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado reflete a tentativa de adequar a estrutura do Estado ao princpio em comento, redistribuindo a responsabilidade de prestao dos servios ditos no-exclusivos e do desempenho da atividade de produo de bens e servios. Nos casos em que os particulares podem prover, por si, sua necessidade, desfaz-se a atuao direta do Estado, limitando-se ele to-somente ao incentivo, fomento, fiscalizao e coordenao das atividades, quando necessrio. Observa-se, assim, no plano das relaes entre o Poder Pblico e a sociedade civil, o j aludido enfoque negativo-positivo do princpio da subsidiariedade: o aspecto negativo, como aquele em que a autoridade e o Estado no devem impedir as pessoas ou os grupos sociais de conduzir suas prprias aes64, traduzido na limitao da atividade estatal, no respeito das liberdades, dos indivduos e dos grupos65; o aspecto positivo, em que cada autoridade tem por misso incitar, sustentar e, finalmente suprir, quando necessrio, os atores insuficientes.66 1.2.2.1 A atividade de fomento O dito aspecto positivo do princpio da subsidiariedade a ao persuasiva e62

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administrao pblica: concesso, permisso, franquia, terceirizao e outras formas. 5. ed. So Paulo: Atlas, 2006, p. 35. 63 TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 122-123. 64 BARACHO apud REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 67. 65 BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. O princpio da subsidiariedade: conceito e evoluo. CAMARGO, Ricardo Antnio Lucas (Coord.). Desenvolvimento econmico e interveno do Estado na ordem constitucional: estudos jurdicos em homenagem ao professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Srgio Antonio Fabris, 1995, p. 120. 66 BARACHO apud REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurdico das OSCIPs. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 67.

incentivadora do Estado, direcionada aos entes intermdios concretiza-se na atividade administrativa denominada atividade de fomento pblico. um instrumento do Estado subsidirio, servindo-se a estimular certos entes a desenvolverem atividades de interesse pblico. Consiste em ajuda, provida pelo Estado, operacionalizada de forma variada, com o fito de prover as condies ideais para que os agentes fomentados realizem atividades que aproveitem coletividade. Nas palavras de Silvia Faber Torres, a atividade de fomento, manifestada sob a forma de ajuda alcanada pelo Poder Pblico queles que desempenham atividade de interesse pblico, uma das formas de interveno estatal legtima do Estado subsidirio.67 Fernando Garrido Falla assim a define:(...) aquella actividad administrativa que se dirige a satisfacer indirectamente ciertas necessidades consideradas de carcter pblico protegiendo o promoviendo, sin emplear la coaccon, las actividades de los particulares o de otros entes pblicos que directamente las satisfacen.68

A partir da definio oferecida por Garrido Falla, possvel extrair os caracteres que compem a atividade de fomento do Estado. Consistindo em atividade exercida pelo Estado, cuja finalidade deve ser o atendimento ao interesse pblico, o fomento caracterizar-se-ia como uma funo administrativa. Como tal, a atividade de fomento submete-se incidncia dos vetores principiolgicos da ao administrativa, sendo impossvel dissociar a atividade de fomento da observncia aos princpios da legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade, eficincia e outros consagrados na Constituio Federal, sob pena de nulidade.69 Na lio de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ser objeto de fomento estatal a atividade que tenha sido considerada, por lei, de interesse pblico para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.70 A obrigatoriedade da prvia configurao legal da atividade de fomento tambm sustentada por Slvio Lus Ferreira da Rocha, que afasta a possibilidade de estipulao por regulamento ou por ato administrativo.71 Ainda sobre a necessidade de observncia ao princpio da legalidade na atividade67

TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 154-155. 68 (...) aquela atividade administrativa que se dirige a satisfazer indiretamente certas necessidades consideradas de carter pblico, protegendo ou promovendo, sem empregar a coao, as atividades dos particulares ou de outros entes pblico que diretamente as satisfazem. (traduo minha) FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306. 69 OLIVEIRA, Jos Roberto Pimenta. Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 518. 70 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 524. 71 ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 31.

administrativa de fomento, acrescenta Clia Cunha Mello:Cumpre ainda salientar que a finalidade perseguida pelo Estado no exerccio da funo pblica deve ser extrada do ordenamento jurdico, e no exclusivamente da lei, em sentido material. Isso porque o regime de estrita legalidade apresenta uma fragilidade estrutural acentuada. O princpio da legalidade, hodiernamente, significa conformidade com o ordenamento jurdico.72

A atividade de fomento caracteriza-se, tambm, pela ausncia de coao. A ajuda alcanada pelo Estado ao agente fomentado para a consecuo de atividades de carter pblico no imposta, constituindo-se em instrumento facultativo. Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a relao que se estabelece entre fomentador e fomentado est no campo da administrao consensual, revestida, portanto, de facultatividade. Atos punitivos ou de coao apenas podero ser exercidos pelo Estado quando a relao j restar estabelecida, a partir da adeso do particular.73 Assim, ao aderir percepo de auxlio estatal, o administrado voluntariamente compromete-se em cooperar para o alcance de finalidades de interesse pblico. Ningum obrigado a submeter-se a tais instrumentos de estmulo, inexistindo compulsoriedade. A relao jurdico-administrativa de fomento pblico constituda fundamentalmente pelo consentimento do fomentado, que demonstra sua disposio em adotar o comportamento desejado pelo Estado.74 A partir do momento que adere aos propsitos do Estado, o agente fomentado obrigase a persegu-los, ficando inteiramente vinculado aos fins pretendidos pelo Poder Pblico afinal, os privilgios e incentivos outorgados ao agente fomentado decorrem justamente do comprometimento em atender s condies impostas pelo Estado no momento da constituio da relao jurdica de fomento. Nas palavras de Jos Roberto Pimenta de Oliveira:(...) sem a nota de compulsoriedade, a relao de fomento depende, em derradeira instncia, do consentimento e engajamento dos particulares na busca das finalidades pretendidas, no moldes legais. Entretanto, travada a relao de fomento, seus termos publicsticos passam a veicular entidade fomentadora e agente fomentado, em termos de prerrogativas de autoridade, direitos, deveres, obrigaes e nus, at a extino do vnculo-jurdico administrativo.75

Outrossim, tem-se que a atividade de fomento serve a promover ou proteger o desempenho de atividades de carter pblico. O objetivo da atividade de fomento ser,72 73

MELLO, Clia Cunha. O fomento da administrao pblica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 28. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 524. 74 MELLO, Clia Cunha. O fomento da administrao pblica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 29. 75 OLIVEIRA, Jos Roberto Pimenta. Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 516.

sempre, incentivar ou preservar uma atuao privada que satisfaa interesse pblico, traduzida, portanto, em favorecimento do bem-estar geral.76 O fundamento que embasa a justificativa da interferncia estatal por meio da atividade de fomento, quando presente uma atividade privada que aproveita coletividade, exposta, com clareza, por Silvia Faber Torres:Quando determinado interesse realizado por um indivduo ou grupo intermdio excede os limites estritamente privados, ele adquire uma relevncia social que o ordenamento no pode desprezar, cumprindo-lhe, assim, incentivar a iniciativa do particular e estimular o desempenho da atividade por outros entes sociais. O Estado, nesse diapaso, no intervm apenas para limitar ou restringir os direitos dos administrados, mas especialmente para ampli-los, com vista a lograr o interesse geral.77

A atividade de fomento desempenhada pelo Estado que no se encarrega de promover ou proteger atividade de interesse geral afigura-se ilegtima, injustificvel e discriminatria, nas palavras de Slvio Lus Ferreira da Rocha. Da mesma forma, assevera Jos Roberto Pimenta de Oliveira que, inexistindo um vnculo lgico-jurdico entre a compostura das medidas promocionais e realizao dos interesses pblicos objeto de sua destinao jurdica, a medida fomentadora inconstitucional, por manifestado desacerto axiolgico78. Ao prover sua definio de atividade de fomento, Fernando Garrido Falla salienta a possibilidade de que a atividade fomentada possa ser exercida por sujeitos pblicos, e no somente por particulares. Amplia, assim, a definio anteriormente oferecida por Luis Jordana de Pozas, que apenas admitia o fomento direcionado a atividades exclusivamente privadas.79 Para Garrido Falla, possvel que um ente pblico possa fomentar atividades desempenhadas por outro ente pblico, outorgando-lhe incentivos e vantagens para que este adote um determinado comportamento. Cita o exemplo das escolas pblicas primrias, estabelecidas pelo Estado, que satisfazem concretamente as necessidades de uma comunidade municipal e, por isso, percebem subvenes, para que sintam estimuladas o desempenho da atividade de ensino.80 As tcnicas de que se vale o Poder Pblico para o desempenho da atividade de fomento podem ser classificadas sob dois aspectos distintos: a forma de atuao sobre a76 77

ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 31. TORRES, Silvia Faber. O princpio da subsidiariedade no direito pblico contemporneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 166. 78 OLIVEIRA, Jos Roberto Pimenta. Os princpios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 526. 79 POZAS apud FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306. 80 FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306.

vontade dos sujeitos fomentados e o tipo de vantagens que so outorgadas. Esta a classificao da qual se ocupa a doutrina majoritria, a partir de critrios inicialmente oferecidos por Jordana de Pozas.81 No que concerne forma de atuao sobre a vontade do agente fomentado, fala-se em fomento positivo aquele que outorga prestaes, bens ou vantagens em favor do titular da atividade ou empresa que se trata de estimular82 e fomento negativo aquele que constitui obstculos ou cargas para dificultar, por meios indiretos, o desempenho de atividades ou estabelecimentos contrrios queles que a Administrao deseja fomentar83. Acerca deste ltimo, Clia Cunha Mello reprisa crtica tecida por Garrido Falla, ao identificar na tcnica utilizada pelo dito fomento negativo um carter coativo, que desnaturaria a sua qualidade de atividade de fomento. Ao utilizar meios coativos, tratar-se-ia de exerccio de poder de polcia, e no de atividade de fomento, uma vez que o desempenho desta est atrelado, necessariamente, ao emprego de meios persuasivos.84 Quanto aos tipos de vantagens concedidas, vislumbra-se a utilizao de meios honorficos, econmicos e jurdicos, assim sintetizados por Garrido Falla:Los medios de fomento honorficos comprenden las distinciones y recompensas que se otorgan como pblico reconecimiento a un acto o a una conducta ejemplar. Deben incluirse aqu las condecoraciones, ttulos, tratamientos, trofeos, diplomas, etc., sin que las consecuencias econmicas que a veces aparejan algunas de estas concesiones sirvan a desvirtuar su naturaleza. Son medios de fomento econmico todos aquellos que directa o indirectamente determinam uma ventaja pecuniaria para el sujeto fomentado. Se incluyen aqu las subvenciones, primas, premios, anticipos y prstamos y, en general, las exenciones fiscales. Por ltimo, son medios jurdicos aquellos que se caracterizan por el otorgamiento de uma situacin de privilegio que determina que el sujeto fomentado se beneficie de la utilizacin de medios jurdicos excepcionales.85

Cumpre registrar que a mencionada classificao dos tipos de vantagens concedidas81

POZAS apud FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312. 82 FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312. 83 FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312. 84 MELLO, Clia Cunha. O fomento da administrao pblica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 89. 85 Os meios de fomento honorficos compreendem as distines e recompensas que se outorgam como pblico reconhecimento a um ato ou a uma conduta exemplar. Deve ser includas, aqui, as condecoraes, ttulos, tratamentos, trofus, diplomas, etc., sem que as conseqncias econmicas que s vezes acompanham algumas destas concesses sirvam a desvirtuar sua natureza. So meios de fomento econmico todos aqueles que direta ou indiretamente determinam uma vantagem pecuniria para o sujeito fomentado. Incluem-se, aqui, as subvenes, bnus, prmios, adiantamentos e emprstimos e, geralmente, as isenes fiscais. Por ltimo, so meios jurdicos aqueles que se caracterizam pela outorga de uma situao de privilgio que determina que o sujeito fomentado se beneficie da utilizao de meios jurdicos excepcionais. (traduo minha) FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 313.

encontra resistncia por parte de Slvio Lus Ferreira de Rocha, que infere impreciso no termos l utilizados. Afirma que as vantagens honorficas e econmicas, uma vez previstas em normas, tambm poderiam ser classificadas como uma espcie jurdica de fomento, raciocnio este que colocaria em xeque a supramencionada classificao.86 Interessam-nos, particularmente, os meios econmicos e jurdicos de fomento, em virtude do escopo do presente estudo. Tais meios de fomentos passam a figurar na Administrao Pblica brasileira por ocasio do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que empreendeu introduzir uma nova forma de gerir os servios pblicos. O Estado, ao repassar a prestao dos servios no-exclusivos a organizaes do terceiro setor, encarrega-se de foment-los, financiando as atividades desempenhadas pelos particulares. Portanto, no que se refere aos servios considerados no-exclusivos, pretende-se que o Estado brasileiro passe a assumir uma posio de mero financiador, no mais os prestando diretamente. O processo de transferncia do setor estatal para o pblico no-estatal dos servios no-exclusivo chamado de publicizao87 e os instrumentos de fomento adotados para a concretizao desse fim so essencialmente trs: a outorga de ttulos jurdicos, a celebrao de contratos de gesto e a destinao de subveno social. Ao elencar os objetivos a serem perseguidos em relao aos servios no-exclusivos do Estado, o Plano Diretor explicita o fomento s atividades desempenhadas pelo setor pblico no-estatal, por meio de dotao oramentria, mantendo o encargo estatal de financiar tais atividades, ainda que no venha a prest-las diretamente. Assim dispe:Transferir para o setor publico no-estatal estes servios, atravs de um programa de publicizao, transformando as atuais fundaes pblicas em organizaes sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorizao especfica do poder legislativo para celebrar contrato de gesto com o poder executivo e assim ter direito a dotao oramentria.88 (grifo meu)

Introduz-se a idia da outorga de um ttulo jurdico a determinadas entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que as qualifica como organizaes sociais, autorizadas a celebrar um contrato de gesto com o Poder Pblico e, assim, obter o direito ao repasse de recursos pblicos, para financiamento de suas atividades. A concesso de ttulo jurdico produz, por conseguinte, uma condio privilegiada aos outorgados, da qual decorre um efeito jurdico mediato: a possibilidade de celebrar um contrato de gesto com a Administrao Pblica, capaz de ensejar o repasse de recursos86 87

ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, p. 35. BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 46. 88 BRASIL. Cmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Braslia: 1995, p. 46-47.

oramentrios. Trata-se, claramente, de um meio de fomento encontrado pela Administrao Pblica para estimular os particulares que se dedicam ao desempenho de uma atividade tida por no-exclusiva do Estado, mas de significativa relevncia social. Tambm haveria, no contexto das organizaes sociais, a previso de que estas sejam destinatrias de subvenes sociais. Slvio Lus Ferreira da Rocha, a partir de uma leitura da Lei n. 4.320/1964 e do Decreto n. 93.872/1986, identifica na subveno um instrumento para a atividade de fomento. Define a subveno como a transferncia financeira que se destina a cobrir despesas de custeio de entidades pblicas ou privadas, compreendidas como despesas de custeio aquelas que garantem a manuteno e a operao dos servios prestados pela entidade subvencionada.89 Invocando o art. 16 da Lei n. 4.320/1964, Slvio Lus Ferreira da Rocha refere que a subveno do tipo social aquela destinada a instituies de carter assistencial ou cultural, conforme prev o art. 60 do Decreto n. 93.872/1986 deve ser outorgada sempre que o repasse de recursos iniciativa privada para a execuo de um determinado servio, ao invs da prestao direta deste, mostrar-se mais econmico para o Poder Pblico.90 A previso de que as organizaes sociais possam se tornar destinatrias de subvenes sociais consta, inclusive, da minuta de estatuto-padro editada pelo Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado.91 Passemos, ento, classificao dos meios de fomentos direcionados a promover a prestao de servios no-exclusivos. Embora a concesso do ttulo jurdico de organizao social possa, em uma anlise inicial, ser apontada como um meio de fomento honorfico, uma vez que outorga um ttulo a um determinado ente privado, parece-nos que o fomento honorfico se vale to-somente de um estmulo honra do fomentado, no intento de persuadi-lo a realizar determinado propsito. Conforme salienta Clia Cunha Mello, os meios honorficos no apresentam um proveito econmico, nem alguma forma de remunerao direta pelo desempenho da atividade.92 A concesso do ttulo jurdico de organizao social, previsto no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, afigura-se como meio de fomento disposto a possibilitar a89 90

ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 46. ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 46. 91 Art. 8 - Os recursos financeiros necessrios manuteno da ENTIDADE sero obtidos: I - por CONTRATO DE GESTO firmado com a UNIO atravs do MINISTRIO [COMPETENTE]; (...) VII - por subvenes sociais que lhe forem transferidas pelo Poder Pblico. BRASIL. Ministrio da Administrao Federal e Reforma do Estado. Organizaes sociais. 5. ed. Braslia: 1997, p. 64. 92 MELLO, Clia Cunha. O fomento da administrao pblica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 89.

remunerao dos outorgados, a partir de um segundo instrumento o contrato de gesto. No pretende apenas despertar um sentimento de honra e reconhecimento pblico naqueles que demonstram interesse em exercer atividades de interesse pblico, mas sim autoriz-los a celebrar um contrato capaz de garantir o repasse de recursos pblicos para o financiamento de suas operaes. Ao nosso ver, tanto o ttulo jurdico outorgado quanto o seu efeito mediato a celebrao do contrato de gesto podem ser classificados como meios jurdicos de fomento. o que se extrai da definio provida por Slvio Lus Ferreira da Rocha, a partir das lies de Roberto Dromi e Hctor Jorge Escola, acerca dos mencionados meios:Os meios jurdicos de fomento configuram a outorga de uma condio privilegiada a determinadas pessoas, o qu, indiretamente, cria para elas diversas vantagens econmicas. Os meios jurdicos de fomento atuam sobre a condio jurdica dos particulares fomentados e consistem em situaes de vantagens ou privilgios desse carter, que do lugar a que o particular chegue a beneficiar-se pela utilizao ou emprego de meios jurdicos excepcionais.93 (grifo meu)

As subvenes sociais que eventualmente sejam percebidas pelas organizaes, por sua vez, afiguram-se como meios econmicos de fomento, porque se constituem em um auxlio direto provido pelo Poder Pblico, implicando um desembolso efetivo de dinheiro do errio pblico em favor de um particular.94 1.3 A outorga de ttulos jurdicos a entidades do terceiro setor no Brasil O vnculo de colaborao/parceria que se estabelece entre as entidades do terceiro setor e o Poder Pblico visa a promover a execuo de atividades de relevncia social por parte de particulares, afastando um cenrio em que somente o Estado encarregar-se-ia de prestar, direta ou indiretamente, servios que sejam notoriamente de interesse pblico. A busca pelo assentamento de tais vnculos encontra seu fundamento no iderio do Estado subsidirio, que preceitua a participao dos administrados na gesto dos interesses gerais, atribuindo ao Estado um papel supletivo de auxlio e estmulo aos particulares, quando estes no puderem realizar as suas prprias necessidades, ou quando o desempenho de determinada atividade afigurar-se insatisfatrio ou ineficaz para a coletividade. A outorga de ttulo jurdico consiste em meio utilizado pela Administrao para a concretizao do vnculo de colaborao/parceria com entidades no-governamentais. Trata93 94

ROCHA, Slvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 37. FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. Vol. II. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, p. 319.

se de um ato de reconhecimento estatal direcionado a certificar que determinadas iniciativas particulares so de interesse pblico. O ato administrativo que se presta a tal reconhecimento no cria ou altera a estrutura organizacional da outorgada, nem informa uma qualidade inata da entidade; apenas reconhece uma situao ftica preexistente que se subsuma s categorias previstas em lei.95 Paulo Modesto aponta trs propsitos da concesso de ttulos jurdicos especiais a entidades do setor pblico no-estatal.Em primeiro lugar, diferenciar as entidades qualificadas, beneficiadas com o ttulo jurdico, relativamente s entidades comuns, destitudas dessa especial qualidade jurdica. Essa diferenciao permite inserir as entidades qualificadas em um regime jurdico especfico. Em segundo lugar, a concesso do ttulo permite padronizar o tratamento normativo de entidades que apresentem caractersticas comuns relevantes, evitando o tratamento legal casustico dessas entidades. Em terceiro lugar, a outorga de ttulos permite o estabelecimento de um mecanismo de controle de aspectos da atividade das entidades qualificadas, flexvel por excelncia, entre outras razes, porque o ttulo funciona como um instrumento que admite no apenas concesso, mas tambm suspenso e cancelamento.96 (grifo meu)

O estabelecimento de um regime jurdico diverso do regime ordinrio apontado por Slvio Lus Ferreira da Rocha como o propsito mais importante do sistema de outorga de ttulos jurdicos. Por meio da concesso de um ttulo jurdico, a Administrao atribui pessoa jurdica pertencente ao setor pblico no-estatal uma qualidade que permite diferencila das demais, submetendo-a a um regime jurdico distinto, em razo das atividades as quais se dedica. A funo padronizadora, por sua vez, implica a existncia de requisitos objetivos, fixados em lei, para a concesso e manuteno do ttulo outorgado, afastando a possibilidade de uma anlise casustica acerca de quais entidades devero receber o ttulo jurdico. Por fim, a outorga de ttulo jurdico viabiliza o controle das entidades qualificadas, uma vez que estas esto submetidas a um regime jurdico