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OS10 ANOS DO ENSINO RELIGIOSO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E AS
DIFERENÇAS DE GÊNERO
Cristiano Sant’Anna de Medeiros1
Luciana Helena Monsores2
RESUMO
Este trabalho busca discutir a hegemonia do ensino religioso cristão nas escolas estaduais do estado do Rio de Janeiro ao longo de sua existência, proliferando abordagens machistas, sexistas e homofóbicas utilizadas pela igreja católica. A Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC) realizou em seu auditório, no dia 27/3/2014, o X Fórum de Ensino Religioso (ER). A atividade, que acontece anualmente e reúne professores de religião, teve um caráter especial para seus organizadores pois comemorou os 10 anos de Ensino Religioso no Rio. Durante o X Fórum, foram distribuídos a todos os participantes um material chamado “Keys toBioethics” (Chaves para a Bioética), também denominado “Manual de Bioética”. São 80 páginas de puro conservadorismo em diversos aspectos, mas será no seu conteúdo homofóbico e machista que este trabalho pretende focar. Com ilustrações perversas e debochadas diz, por exemplo, que “a teoria do gênero supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-se à natureza, gerando um novo modelo familiar e uma nova organização da sociedade. Além disso, afirma que “apesar de tudo, a união entre um homem e uma mulher é a única possível para gerar um filho e inscrevê-lo na continuidade das gerações”. O texto condena além da homossexualidade, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a transexualidade, baseando-se em supostos estudos científicos e na bíblia.
Palavras Chave: Ensino religioso, Diferenças de Gênero, Discriminação
1 Doutorando do PROPED/UERJ, professor do Governo do Estado do Rio de Janeiro, e-mail: cs-
[email protected] 2 Mestranda do PROPED/UERJ, professora do Colégio PedroII, e-mail: [email protected]
Todo Preconceito impede a autonomia do [ser humano], ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de
escolha, ao deformar e, consequentemente, estreitar a margem real de alternativa do individuo.
Agnes Heller
X Fórum de Ensino Religioso: “Fraternidade – Um grito por Dignidade”?
No dia 27 de março de 2014 foi realizado o X Fórum de Ensino Religioso do Estado do Rio de
Janeiro, no auditório da Secretaria de Estado de Educação, no bairro de Santo Cristo, na cidade do Rio de
Janeiro, onde estávamos presentes como participantes e pesquisadores.
O Fórum reflete um momento de exaltação para um ensino considerado necessário a crianças,
jovens e adultos do nosso estado, mesmo num país e numa educação também considerados laicos.
O destaque inicial deste Fórum,que completa dez anos de sua criação como tambémdo primeiro
concurso para professores do referido ensino no estado, através da Lei nº 3.459 de 14 de setembro de
2000, foi a apresentação,segundo a fala da Secretaria de Educação, como sendo o único estado da
federação onde o ensino religioso, embora confessional, “respeita” todos os credos e todas as crenças
diferentes e existentes na nossa sociedade.
Daí, observamos que mesmo “respeitando” todas as crenças, como assim queriam passar nas suas
mensagens iniciais, o tema do Fórum se resumiu ao tema da Campanha da Fraternidade de 2014, da Igreja
Católica – “Fraternidade um grito por dignidade”.
A pesquisadora ProfªDrªStela Caputo3, vem pesquisando e denunciando o Ensino Religioso nas
escolas públicas do estado e a discriminação que crianças,principalmente as praticantes de religiões de
matriz africana, vem sofrendo ao longo dos anos nas aulas de ensino religioso e nas escolas públicas de
forma geral.
No livro “Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças de candomblé“ a
pesquisadora corrobora: “É esse modo perverso de espacialização que considero ter sido reforçado pela
Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro ao estabelecer o Ensino Religioso no estado, sendo
que a maioria dos professores contratados é católica, seguida de evangélicos” (CAPUTO, 2012, p.218)
A pesquisadora também vem denunciando os gastos com os Fóruns do Ensino Religioso, o que não
acontece com as disciplinas da base comum, como também da temática dos Fóruns estar sempre ligada ao
lançamento da Campanha da Fraternidade, da Igreja Católica, e assim demonstrando e ratificando o
proselitismo, o que vai de encontro com a LDB.
O Fórum reuniu os professores de Ensino Religioso da rede estadual, visitantes e convidados.
3 Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós Graduação em Educação da UERJ (PROPED),
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Ilé Obá Òyó, da Linha Redes Educativas e Processos Culturais
Todos os presentes receberam uma “bolsa-kit” com um folder com a programação do evento, a
declaração de comparecimento, um certificado, um cartão postal do Centro Cultural da Bíblia, um bloco
de notas, o Currículo Mínimo de Ensino Religioso, uma revista da sociedade bíblica do Brasil, um
caderno da Campanha da Fraternidade 2014 e um exemplar do Manual de Bioética católico que foi
entregue na Jornada Mundial da Juventude, ocorrida no Brasil, em 2013 e que iremos falar mais adiante.
Já na entrada, através do material entregue na “bolsa-kit”, já é possível notar o caráter cristão do evento e,
portanto, do Ensino Religioso.
Figura 1: Material entregue no Fórum aos professores presentes
FOTO: Cristiano Sant’Anna
O folder do evento apresenta uma prévia do que ocorrerá no Fórum. Nele constam o objetivo, a
justificativa e a programação do evento.
Desta forma, o material apresenta como justificativa para a temática e para o Fórum, a importância
das discussões a respeito do tráfico humano e o quanto ele pode ser prejudicial à dignidade humana.
Como objetivo, o material expõe a finalidade de “promover reflexões e diálogo sobre a temática da
Campanha da Fraternidade” e “mostrar a importância do educador estar inserido em temas atuais como o
tráfico humano, buscando desta forma contribuir para a conscientização das pessoas que fazem parte da
comunidade escolar sobre a necessidade de identificar todas as práticas que atingem a dignidade humana
em suas várias formas e denunciá-las, contribuindo para a construção de uma sociedade fraterna e sem
preconceitos”. (Folder do X Fórum de Ensino Religioso)
Além disso, o material expõe textos de autoria de Dom Filippo Santoro e de Dom Eurico dos
Santos Veloso, o que já indica uma forte participação, quiçá organização, da Igreja Católica no evento e
na disciplina de Ensino Religioso.
No primeiro momento, a Coordenadora de Ensino Religioso, Beatriz, abriu o X Fórum de Ensino
Religioso com um discurso a respeito da temática principal: “Fraternidade e Tráfico Humano”.
A coordenadora menciona a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, cujo artigo 1º diz: “Todos as pessoas nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir com relação as outras
com espírito de fraternidade”. De acordo com Beatriz, “não podemos ficar indiferentes a esses temas que
entram em nossas casas e nossas escolas. Na escola, o preconceito, a intolerância e o racismo surgem na
falta de respeito ao próximo e nas transgressões das normas pré-estabelecidas”.
A coordenadora Beatriz, então, menciona a “necessidade de desenvolver atividades que mostrem a
importância de termos uma escola e uma sociedade mais fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e sob a proteção de Deus, conforme dita o preâmbulo da Constituição Federal de
1988”.
De fato, o trecho citado, incluindo “sob a proteção de Deus” consta no preâmbulo da Constituição
Federal de 1988, o que, de certa forma, fere a laicidade do Estado, uma vez que desconsidera cidadãos
brasileiros ateus e agnósticos ou aqueles adeptos de religiões politeístas:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (CF, 1988)
A coordenadora de Ensino Religioso da SEEDUC-RJ finaliza a abertura citando Martin Luther
King: “O que me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos
sem-caráter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons”, acredita que “não
podemos nos silenciar diante de tais desafios” e espera que o fórum contribua para uma escola mais digna
e fraterna.
Logo em seguida houve a composição da mesa com representantes do governo e de alguns credos,
com líderes religiosos: (1) representante da Sociedade Internacional para Consciência de Krishna,
RagaBhumi; (2) representante a Secretaria de Estado de Educação, o subsecretário de Gestão da Rede de
Ensino, Antônio José Vieira de Paiva. (3) representante a Secretaria de Estado da Casa Civil e o gabinete
do governador Sérgio Cabral, o assessor especial Luiz Carlos Pugialli (presidente da comissão da JMJ);
(4) o diretor do Departamento de Ensino Religioso da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro,
Padre Paulo Romão; (5) assessor de comunicação da Sociedade Beneficente Muçulmana do estado,
Fernando Celino, cada um com sua respectiva fala e mais uma vez a observação da hegemonia cristã na
mesa, bem como da inexistência da representação das religiões de matriz africana.
O subsecretário de Gestão da Rede de Ensino, Antônio José Vieira de Paiva, inicia a apresentação
enaltecendo o 10º Fórum de Ensino Religioso e considera a disciplina como uma “política pública já
consolidada na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro”, também ressalta os grandes desafios
enfrentados para que se chegasse ao 10º Fórum de Ensino Religioso, elogia o fórum e a disciplina e
enaltece o Rio de Janeiro pelo caráter do Ensino Religioso neste estado.
Nota-se na fala do subsecretário que o Ensino Religioso é visto como forma de combater às agruras
cotidianas da escola como indisciplina, violência e conflitos entre alunos e professores e entre os próprios
alunos. Em suas palavras:
O tema desse fórum é muito atual, do ponto de vista das nossas escolas. Hoje
discutimos muito dentro das Unidades Escolares como fazer com que os alunos e toda
aquela comunidade vivam se respeitando. Há uma dificuldade muito grande no processo
educativo dos professores com os alunos, alunos com próprios alunos. Existe uma grande
dificuldade devido à violência E o exercício da fraternidade é o exercício que faz com que
essas pessoas estejam cada vez mais juntas. Isso é muito complicado para nós, precisamos
investir muito nesse tipo de habilidade, uma habilidade difícil de ser desenvolvida no
mundo atual, mas muito necessária. Então, o instrumento que é o professor de Ensino
Religioso é valioso neste momento para cada Unidade Escolar.
É importante destacar que de acordo com as falas, fica claro que desde os primeiros fóruns de
Ensino Religioso da Rede Estadual, como apontamos inicialmente,há uma relação bastante estreita entre
os membros da Secretaria Estadual de Educação e da Coordenação de Ensino Religioso com o arcebispo
Dom Filippo Santoro, o que reafirma a forte ligação entre a Igreja Católica e a disciplina de Ensino
Religioso. O subsecretário alega que no 5º fórum já tinha conversado com Dom Felippo sobre o Currículo
Mínimo. “Na época, conversamos que o ideal é que tivéssemos um currículo mínimo de Ensino
Religioso”. Essa relação vai aparecer também em outras falas durante o fórum, além do espaço destinado
ao arcebispo no folder do evento.
No segundo momento do Fórum, há uma discussão sobre os 10 anos de Ensino Religioso na Rede
Estadual, os desafios e conquistas. A coordenadora de Ensino Religioso, Beatriz, discorreu sobre o
Currículo Mínimo de Ensino Religioso, que acabara de ficar pronto e em breve estaria disponível do site
da SEEDUC-RJ. Fez elogios ao documento e apresentou os professores de Ensino Religioso responsáveis
pela elaboração do material, que também trouxeram relatos das suas práticas na sala de aula.
Portanto, apesar do discurso e de algumas tentativas de pluralizar o Ensino Religioso, nota-se que
ele é fundamentalmente cristão. Relatos de professores sobre suas aulas, mencionam frequentemente o
uso da Bíblia e de valores cristãos. O próprio fórum quase se torna um evento católico ou protestante. É
nítida a presença hegemônica das religiões cristãs e a ausência de outras expressões religiosas. A
Umbanda, que também utiliza fundamentos cristãos na sua doutrina,tem espaço muito reduzido de
atuação, a não ser no que se refere a sua interseção com o catolicismo e o protestantismo.
Além disso, a presença do Manual de Bioética e do caderno da Campanha da Fraternidade 2014
deixa clara a função do Ensino Religioso nas escolas públicas do Rio de Janeiro: difundir a fé católica-
cristã. Um discurso conservador e dogmático que entra na escola.
O Manual de Bioética, o conservadorismo e a escola.
O Manual de Bioética é uma cartilha explicativa com orientações sobre diversos assuntos, sob a
ótica da Igreja Católica, destinado aos seus fiéis. O manual traz discussões acerca do aborto, estupro, da
utilização de métodos contraceptivos, homossexualidade, entre outros, e foi distribuído juntamente com
um kit aos participantes da Jornada Mundial da Juventude (JMJ)4, que ocorreu no Brasil, em 2013.
O Manual de Bioética da Igreja Católica, Keys toBioethics ou "Chaves para a Bioética", foi
realizado pela Fundação JérômeLejeune, em parceria com a Comissão Nacional da Pastoral Familiar,
organismo vinculado àCNBB5, com o Centro de Estudos Biosanitários (Espanha) e com a Fundação
JéromeLejeune (Estados Unidos). Segundo o que consta no próprio manual, “trata-se de uma
apresentação objetiva das grandes questões de bioética com as quais somos todos confrontados, que nos
deixam frequentemente desamparados”. Além disso, “permite ao leitor apreendê-las simplesmente graças
a uma informação precisa e rigorosa, à qual a fé da Igreja vem dar todo o seu sentido”.
O documento, distribuído na JMJ, tornam claras as posições que cristãs e cristãos devem tomar:
ser contra a homossexualidade, ser contra o aborto, mesmo em casos de estupro, ser contra famílias não-
tradicionais, eutanásia, a inseminação artificial e pesquisas com células-tronco embrionárias.
Mas o que esse folheto explicativo tem a ver com a escola pública?
Inicialmente, parece claro que o Manual de Bioética da Igreja Católica entra, direta ou
4 Evento organizado pela Igreja Católica para seus jovens fiéis, que em 2013 foi realizado no Brasil com a
presença do Papa. 5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
indiretamente (por meio do discurso), na escola e nas aulas de Ensino Religioso através,
principalmente, dos professores do credo católico. Lembremos, inclusive, que a Coordenação de
Ensino Religioso do Estado do Rio de Janeiro é católica.
Isso deixa de ser uma suposição quando neste fórum, um exemplar do manual é entregue a cada
participante (maioria composta por professores de Ensino Religioso da rede), dentro da "Bolsa Kit" do
evento e além disso, no final do evento foi aberta uma caixa com 100 exemplares do manual, ficando
disponível a quem interessar e foi informado ao público, por um representante da igreja, que existia
centenas de caixas na Paróquia Nossa Senhora da Conceição, no bairro de Realengo6 (RJ) disponível a
quem tivesse interesse em ir buscar.
Assim, diante dos discursos que fundamentaram o fórum, da Campanha da Fraternidade 2014
como base da disciplina de Ensino Religioso deste ano e da entrega dos Manuais de Bioética a todos os
participantes, dentro da "Bolsa Kit", bem como a divulgação de distribuição em massado documento,
não deixam dúvidas com relação ao caráter católico do Ensino Religioso dentro do Estado do Rio de
Janeiro.
As questões de Gênero
Ao analisar o Manual de Bioética, discutiremos aqui apenas as questões de gênero presentes no
manual e como a visão conservadora da Igreja Católica pode influenciar os estudantes, desqualificar o
conhecimento científico escolar e trazer mais discriminação, preconceito e intolerância para dentro da
escola. Além disso, continua em voga a discussão sobre a laicidade da escola pública, laicidade esta
desrespeitada pela disciplina de Ensino Religioso e pela própria Secretaria Estadual de Educação.
Meyer e El-Hani (2013), acreditam que não pode haver um debate entre ciência e fé, pois, em
primeiro lugar, um debate produtivo requer que ambas as partes tenham conhecimento em comum
sobre um tema, para que diferentes pontos de vistas possam ser contrapostos. Isso implica que
cientistas que debatem religião devem ter compreensão do conteúdo das doutrinas, assim como
religiosos que debatem ciência precisam saber seus conteúdos. Em segundo lugar, para que haja um
debate produtivo e verdadeiro, os interlocutores devem estar todos dispostos a mudar de ideia caso os
argumentos da outra parte os convençam. Para os autores, essas características estão ausentes na maior
parte dos debates entre ciência e religião.
Maurício Vieira Martins (2013) faz uma reflexão acerca dessa relação e aproximação entre
ciência e religião:
6 Localizada na Avenida Santa Cruz, 1.125, Praça Padre Miguel. Realengo. Rio de Janeiro.
Ansiando ingressar nos currículos escolares para fazer sua defesa do ‘coração
inviolável da fé cristã’, declara serem heréticos todos aqueles que pensam de forma
diferente dele. Se no campo da ciência controvérsias são bem-vindas quando se
credenciam como tais e estimulam seus praticantes a avançar num debate, já no âmbito
religioso diferenças de pensamento são sumariamente taxadas de heresias. (MARTINS,
2013, p.297)
Além disso, o aparente debate pode dar ao religioso um fórum que é, de modo geral,
desproporcional ao conhecimento que ele possui sobre o tema. Quando religiosos são convidados para
debates científicos ou utilizam a ciência em seus discursos religiosos podem, de alguma forma, ganhar
legitimidade científica, o que seria um equívoco. (MEYER; EL-HANI, 2013)
O Manual ratifica ainda que “nada deve se opor ao valor positivo da pesquisa científica, desde
que esta vise o conhecimento mais profundo do mistério do homem que só se desvela no mistério do
Verbo encarnado7. O espírito do homem, sua inteligência, sua razão devem trabalhar nisso sem
cessar”. Segundo o manual, essa tensão da inteligência ao serviço da Sabedoria é indispensável, pois o
crescimento do poder técnico da humanidade pede uma consciência viva e renovada dos valores
últimos. (Encíclica Fé e Razão, n. 116 apud MANUAL DE BIOÉTICA, 2013)
Ou seja, para a Igreja Católica, a ciência é muito importante desde que assuma os valores e
compromissos cristãos, servindo aos interesses religiosos católicos. Ao imaginarmos o contexto
escolar, seria a função das outras disciplinas como Ciências ou História, por exemplo, embasar e
ratificar discursos religiosos? O manual faz referências diretas à educação escolar, e afirma:
Contrariamente ao que talvez se leia em certos manuais escolares, a gravidez não
começa somente quando o embrião se fixa à parede do útero (nidação), mas sim na
fecundação (mesmo que a mulher só perceba esse fato depois da nidação). A vida do
novo ser humano começa no momento da fecundação. (MANUAL DE BIOÉTICA,
2013, p. 6)
Esse embate entre ciência e religião não é recente, mas o preocupante é esse discurso, que
deslegitima o conhecimento científico escolar, entrar na escola através das aulas de Ensino Religioso,
uma disciplina da grade curricular, sendo o manual utilizado ou não.
A problemática não está nas reflexões através dos dogmas religiosos, mas nesses dogmas dentro
do espaço escolar. A escola é responsável pela informação e pela promoção do diálogo. Mas como isso
7 Expressão utilizada para se referir à palavra de Deus em um corpo físico, assumindo um corpo humano em Jesus Cristo.
é possível com a presença dos dogmas religiosos na escola pública dentro de uma disciplina de
religião?
O capítulo “Teoria de gênero” traz polêmica e importantes reflexões, questionamentos e
desconfiança acerca da presença da religião na escola, formalizada através da disciplina de Ensino
Religioso.
O manual de bioética critica, então, no capítulo 8, a Teoria de Gênero defendida por muitos
cientistas e pesquisadores. A teoria afirma que a identidade sexual de um ser humano depende de seu
ambiente sócio-cultural e não somente da sua determinação genética, o sexo biológico. Ou seja, a
nossa identidade como homem ou mulher não teria a ver com a nossa realidade genética, mas é algo
que se aprende dentro do nosso ambiente social.
Na página 68, com ilustrações extremamente debochadas, afirma-se que “a teoria do gênero
supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-se à natureza, gerando um novo
modelo familiar e uma nova organização da sociedade”. Além disso, o texto condena, além da
homossexualidade, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a transexualidade. Tudo baseado
em supostos estudos científicos e na bíblia. A página 69 diz: “Apesar de tudo, a união entre um homem
e uma mulher é a única possível para gerar um filho e inscrevê-lo na continuidade das gerações”. Um
retrocesso.
Figura 2: Ilustração debochada do Manual de Bioética com relação à Teoria de Gênero
FONTE: MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p. 68
Figura 3: Ilustração debochada do Manual de Bioética com relação à Teoria de Gênero afirmando a supremacia
biológica em detrimento das construções sociais e históricas.
FONTE: MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p. 69
Além disso, o manual diferencia identidade de gênero e orientação sexual e afirma que os
teóricos de gênero e ativistas homossexuais subestimam a realidade biológica e social dos seres
humanos e ignoram o conflito psicológico criado quando a auto-percepção está em desacordo com sua
realidade anatômica. O termo "transtorno de identidade de gênero" tem sido utilizado por psicólogos
para descrever aqueles que acreditam ser algo diferente de seu sexo biológico. Segundo a Igreja
Católica, os teóricos e ativistas homossexuais assumem uma visão reducionista da pessoa humana,
opondo-se ao poder da nossa genética e, portanto, negando a verdadeira esperança para aqueles que
sofrem de qualquer doença.
Como menciona a professora Stela Guedes Caputo, na entrevista ao Jornal O Dia8, esses
argumentos vão de encontro a estudos desenvolvidos, por exemplo, pela professora Berenice Bento, da
UFRN, autora de “A (re) invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” (2006) e
“O que é transexualidade?” (2008).
Bento (2006 e 2008) defende que os estudos transviados não perguntam “o que é um homem?”
ou “o que é uma mulher?”, tampouco “Qual é a diferença entre um homem e uma mulher?”, mas sim
“para que serve esse lugar de homem e de mulher na nossa sociedade?”. Além disso, questiona:
8http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-04-26/mp-cartilha-polemica-na-mira.html
“Quem disse que a prerrogativa da feminilidade está na presença do útero?” Exatamente porque gênero
e estrutura biológica não definem o que é um ser humano é que os estudos transviados sugerem a
desconstrução de gêneros na perspectiva de uma sociedade e de uma educação mais inclusiva em todos
os seus níveis.
Assim, o discurso sobre a questão do gênero e da orientação sexual proferido pela Igreja no
manual de bioética afirma que a homossexualidade é uma doença que pode ser tratada e é ignorada por
pesquisadores e ativistas que defendem a “teoria do gênero”.
Esse tipo de pensamento é incompatível com a pedagogia crítica e com as concepções de
educação atuais, que vêem a escola como um espaço de pluralidade cultural e interculturalidade. A
escola é um espaço de respeito e valorização das diferenças e, nela, qualquer tipo de expressão sexual
ou de gênero deve ser respeitada.
Inclusive, “Orientação sexual” é tema transversal proposto pelos documentos dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), organizado pelo MEC, no sentido de orientar a comunidade escolar.
Assim, segundo a proposta, as abordagens estarão vinculadas a métodos contraceptivos, doenças
sexualmente transmissíveis, a descoberta do próprio corpo e da sexualidade, que poderão ser
aprofundadas, a partir de evidências objetivas. O trabalho de Orientação Sexual também contribui para
a prevenção de problemas graves como o abuso sexual e a gravidez indesejada Cabe, então, à escola
desenvolver ação crítica, reflexiva e educativa. (PCN, 1997)
Os PCNs abordam o papel do educador, enfatizando que não deve haver juízo de valor, mas
informações esclarecedoras do ponto de vista científico:
Para um bom trabalho de Orientação Sexual, é necessário que se estabeleça uma
relação de confiança entre alunos e professor. Para isso, o professor deve se mostrar
disponível para conversar a respeito das questões apresentadas, não emitir juízo de valor
sobre as colocações feitas pelos alunos e responder às perguntas de forma direta e
esclarecedora. Informações corretas do ponto de vista científico ou esclarecimentos
sobre as questões trazidas pelos alunos são fundamentais para seu bem-estar e
tranqüilidade, para uma maior consciência de seu próprio corpo e melhores condições
de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e abuso
sexual. (PCN, 1997, p.84)
O Manual de Bioética aborda o “novo modelo de família” e uma “nova organização social”
como as conseqüências negativas da teoria de gênero para a sociedade. Segundo o documento, critica
os diferentes arranjos familiares, afirmando que a “confusão de papéis sexuais mina a família e leva a
alegações de que outras formas de família têm igual dignidade”. Criticam também o reconhecimento
legal do casamento homossexual e aqueles que afirmam que o direito de ter filhos deve estar aberto a
casais homossexuais, quer através de aprovação ou o uso de reprodução assistida, impondo à sociedade
um sistema social infundado e contrário a sua real estrutura. O manual destaca ainda, em um quadro
explicativo, que “há realmente apenas uma maneira para criar uma criança: a união de um homem e
uma mulher”. (MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p.69)
A partir daí, o documento católico, partirá para um discurso científico para explicar a formação
de uma criança e a definição do sexo. Neste contexto, utiliza-se de informações sobre fecundação,
formação celular, cromossomos, entre outras, se apropriando as ciência para, de alguma forma,
legitimar o discurso religioso e conservador acerca das questões sexuais e de gênero.
Figura 4: Ilustração presente no Manual de Bioética sobre as questões sexuais e de gênero.
FONTE: MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p. 71
O manual é claro também quando alega também que a formação familiar com pai e mãe, dos
sexos masculino e feminino, respectivamente, é fundamental para o desenvolvimento de uma saudável
compreensão da personalidade, relacionamento e personalidade dos filhos. Assim, se coloca contra a
adoção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, alegando que uma criança precisa de um pai
e uma mãe para se desenvolver e que ter um filho não é um “direito” e que o desejo dos casais
homossexuais para substituir a restrição biológica na sua capacidade para ter filhos não é razão
suficiente para colocar crianças em uma casa com casal do mesmo sexo. Segundo o documento, a
adoção é para as crianças, não para adultos e toda criança merece ser nutrida pelo amor complementar
de um mãe e um pai.
Naturalmente, é essencial ser amado pelos pais, mas não basta. Criar um filho ultrapassa
o lado afetivo, embora todos os componentes se misturem. Sabemos muito bem que pai
e mãe não são intercambiáveis. Cada qual contribui para o filho de modo diferente,
permitindo que este construa a própria identidade, notadamente sexual.Sejamos
realistas: nascemos menino ou menina. A procriação precisa de pai e mãe. A criança
precisa de pai e mãe para se desenvolver. Observamos que em casos de dificuldade os
psicólogos apelam para pai e mãe para solucionar o problema relacional do filho. As
respostas do pai e da mãe enriquecem umas às outras, complementam-se e permitem
resolver problemas. (MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p.73)
Nesse sentido, além de desconsiderar as inúmeras crianças adotadas por casais homossexuais que
tem um desenvolvimento saudável, utiliza-se, mais uma vez, a ciência para tentar legitimar sua
concepção religiosa.
Com relação à recusar a adoção dos homossexuais representar a homofobia, a Igreja Católica se
defende, alegando que ter um filho não é uma questão de “direito”:
Ter um filho não é um direito! O filho não é um bem de consumo, que viria ao mundo
em função das necessidades ou dos desejos dos pais. Embora o fato de alguém não
poder ter filhos seja fonte de sofrimento, essa reivindicação dos lobbies homossexuais
não é legítima. É preciso um homem e uma mulher para gerar um filho. Querer ignorar
essa exigência biológica é um forte indício de que a reivindicação não é justa. E se
houver algum direito a alegar, seria o ‘direito da criança’ a ter pai e mãe para poder
construir sua personalidade. (MANUAL DE BIOÉTICA, 2013, p.73)
Será que casais heterossexuais não tem filhos para satisfazer seus próprios desejos? O manual
afirma que casais homossexuais querem criar uma criança para atender seu desejo particular, sem
pensar nas crianças. Entretanto, muitos casais heterossexuais o fazem pelo mesmo motivo.
Ou seja, as concepções da Igreja Católica consideram, apenas, a formação genética com relação
ao sexo masculino ou feminino, desconsiderando a vivência e a cultura do indivíduo. O que foge ao
padrão imposto é doença ou desvio e pode ser modificado. Além disso, se posiciona contra o
casamento homossexual e a adoção de filhos por esses casais através de argumentos preconceituosos.
O Manual de Bioética da Igreja Católica é um retrocesso. Dentro da escola pode resultar em
intolerância, discriminação e humilhação. Alunos e alunas homossexuais ou que possuem pais ou
familiares homossexuais, alunas que utilizam métodos contraceptivos, que estão grávidas ou que
fizeram abortos encontram na escola, através da disciplina de Ensino Religioso, essencialmente
católica, e do Manual de Bioética, seu algoz mais perverso.
Esta visão conservadora, perversa e debochada entra na escola legitimada pelo Estado através da
disciplina de Ensino Religioso, principalmente após a distribuição do Manual de Bioética no X Fórum
de Ensino Religioso da Rede Estadual, promovido pela Secretaria de Educação. Como já dito, os
professores não foram claramente orientados a utilizar esse material. E também não precisava, pois ao
receber o manual neste evento e ter a possibilidade de adquiri-lo em quantidade, parece óbvio.
Assim, esse discurso entra na escola, principalmente quando a maioria dos professores de Ensino
Religioso é católica ou evangélica e quando a própria Secretaria de Educação do Estado do Rio de
Janeiro está inclinada a promover nas escolas públicas estaduais os ensinamentos católicos,
deslocando-se de uma educação inclusiva e plural.
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