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Departamento de Matemática 1 OS TRÊS PROBLEMAS GREGOS: UMA INTRODUÇÃO AOS TEOREMAS DE IMPOSSIBILIDADE Aluna: Ana Luiza Maksoud Elias Orientador: Sérgio Volchan 1 - Introdução Os séculos V e IV a.C. constituíram um período extremamente ativo da matemática no mundo grego. Aproximadamente neste período, têm início os três problemas clássicos da matemática grega, os quais iremos abordar como tema principal. Esses problemas ficaram conhecidos como duplicação do cubo, trissecção do ângulo e quadratura do círculo. Aparentemente de enunciados simples, são problemas geométricos que envolvem construções utilizando unicamente régua não graduada e compasso. Não se sabe precisamente quando e por quem o problema da duplicação do cubo, que consiste em construir um cubo com o dobro do volume inicial, foi formulado pela primeira vez, pois existem vários relatos a respeito. O que se sabe é que já era conhecido pelos pitagóricos que dado um quadrado era possível construir, por régua e compasso, um novo quadrado com o dobro de sua área. Ver apêndice A. Talvez, já com o conhecimento desta construção simples, os gregos tenham começado a buscar soluções para o problema de duplicação do cubo. Veremos ao longo deste problema os conceitos de irracionalidade de números reais, pois teremos que usar o fato de não ser um número racional ao longo da demonstração de impossibilidade. Sobre o problema de trisseção do ângulo, é importante realçar que se trata de, dado um ângulo, analisar a construtibilidade de outro com amplitude três vezes menor. Entenderemos um ângulo ser construtível no problema como ele poder ser construído a partir do comprimento de uma unidade e do comprimento de cosseno do ângulo dado. Se simplesmente quiséssemos saber se um ângulo arbitrário é construtível, devemos estudar se ele pode ser construído com régua e compasso a partir do comprimento de uma unidade somente. A noção de construtibilidade será abordada ao longo do texto. Não é conhecida a origem do problema da trissecção do ângulo, mas é muito provável que tenha surgido no seguimento da construção de polígonos regulares. Por

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Departamento de Matemática

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OS TRÊS PROBLEMAS GREGOS: UMA INTRODUÇÃO AOS

TEOREMAS DE IMPOSSIBILIDADE

Aluna: Ana Luiza Maksoud Elias

Orientador: Sérgio Volchan

1 - Introdução

Os séculos V e IV a.C. constituíram um período extremamente ativo da

matemática no mundo grego. Aproximadamente neste período, têm início os três

problemas clássicos da matemática grega, os quais iremos abordar como tema principal.

Esses problemas ficaram conhecidos como duplicação do cubo, trissecção do

ângulo e quadratura do círculo. Aparentemente de enunciados simples, são problemas

geométricos que envolvem construções utilizando unicamente régua não graduada e

compasso.

Não se sabe precisamente quando e

por quem o problema da duplicação do cubo,

que consiste em construir um cubo com o

dobro do volume inicial, foi formulado pela

primeira vez, pois existem vários relatos a

respeito.

O que se sabe é que já era conhecido

pelos pitagóricos que dado um quadrado era possível construir, por régua e compasso,

um novo quadrado com o dobro de sua área. Ver apêndice A. Talvez, já com o

conhecimento desta construção simples, os gregos tenham começado a buscar soluções

para o problema de duplicação do cubo.

Veremos ao longo deste problema os conceitos de irracionalidade de números

reais, pois teremos que usar o fato de não ser um número racional ao longo da

demonstração de impossibilidade.

Sobre o problema de trisseção do ângulo, é importante realçar que se trata de,

dado um ângulo, analisar a construtibilidade

de outro com amplitude três vezes menor.

Entenderemos um ângulo ser construtível no

problema como ele poder ser construído a

partir do comprimento de uma unidade e do

comprimento de cosseno do ângulo dado. Se

simplesmente quiséssemos saber se um

ângulo arbitrário é construtível, devemos

estudar se ele pode ser construído com régua

e compasso a partir do comprimento de uma unidade somente. A noção de

construtibilidade será abordada ao longo do texto.

Não é conhecida a origem do problema da trissecção do ângulo, mas é muito

provável que tenha surgido no seguimento da construção de polígonos regulares. Por

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exemplo, para construir um polígono regular de nove lados é necessário trissectar um

ângulo de 120º.

A impossibilidade da quadratura do círculo, ou

seja, de se construir um quadrado com a mesma área de

um círculo dado, é bem mais difícil de ser provada que

os dois outros problemas gregos mencionados, pois

envolve a prova da transcendência de , provada em

1882, por Ferdinand Lindemann. Porém, por se tratar se

um assunto de tamanha complexidade, este não será

abordado no texto.

Em um primeiro momento, as resoluções desses

três problemas parecem ser fáceis, porém, como veremos ao longo do texto, cada

problema se utiliza de diversas premissas, que iremos abordar, levando à conclusão da

impossibilidade de resolução pelos métodos euclidianos adotados. Isso só foi

comprovado e demonstrado no século XIX, fruto do desenvolvimento da álgebra, após

quase dois milênios de estudos sobre os problemas pelos próprios gregos.

Veremos que, desta teoria, concluiu-se que, com uma régua graduada apenas, se

podem construir segmentos de reta cujas equações são lineares (1º grau). Com um

compasso, podem-se construir circunferências e arcos de equações do 2º grau.

Utilizando os dois instrumentos, chega-se sempre a equações do 2º grau no máximo. No

entanto, para resolver qualquer um dos três problemas de modo algébrico são

necessárias equações cúbicas (3º grau) ou que envolvem números transcendentes (no

caso da quadratura do círculo). Por conseguinte, tanto a régua não graduada como o

compasso são insuficientes para obter a solução dos problemas.

Há pelo menos dois aspectos em que o problema da trissecção do ângulo difere

dos outros dois clássicos problemas da geometria grega - a duplicação do cubo e a

quadratura do círculo. Primeiramente, não há a ele nenhuma lenda associada à sua

origem; em segundo lugar, enquanto que não é possível duplicar um cubo ou quadrar

um círculo, com régua não graduada e compasso, por mais especiais que sejam os

valores da aresta do cubo ou do raio do círculo é, no entanto, possível trissectar ângulos

de determinadas amplitudes (como o ângulo reto).

A importância destes problemas reside no fato de terem constituído ao longo dos

tempos uma fonte muito rica de ideias e processos matemáticos, que foram sendo

inventados nas sucessivas tentativas de resolução. Assim, o estudo da matemática grega

e de sua herança é importante, pois foram elementos decisivos na formação do

pensamento matemático ocidental.

2 - Formulação dos Problemas

- Primeiro Problema Grego: Duplicação do Cubo

Dado um cubo, cuja aresta é dada por um segmento de reta, queremos construir

outro cujo volume é o dobro do volume do primeiro. Para isso precisamos construir sua

aresta, tendo apenas o segmento da aresta do cubo inicial e o segmento de comprimento

igual a uma unidade. Ou seja, queremos saber se a aresta do cubo que terá o dobro do

volume do primeiro é construtível a partir da informação que já temos. Lembrando

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sempre que, quando tratamos de construções, em todos os problemas gregos, estamos

questionando a construção com a utilização apenas de régua não graduada e compasso.

- Segundo Problema Grego: Trissecção do Ângulo

Este também é um problema de construção. Novamente se utilizando apenas de

régua não graduada e compasso, queremos trissectar um ângulo dado. Ou seja, na

verdade é preciso saber se é construtível o ângulo que possui a terça parte da amplitude

do ângulo que nos é fornecido. Para isso, vamos utilizar o conceito de construtibilidade

de ângulo a partir do segmento de uma unidade e do comprimento que vale o cosseno

do ângulo maior.

- Terceiro Problema Grego: Quadratura do Círculo

Trata-se de mais um problema de construção. Dado um círculo de raio de

determinada área , queremos construir um quadrado com a mesma área desse

círculo. Ou seja, queremos saber se o comprimento do segmento do lado desse quadrado

é construtível de acordo com as regras pré-estabelecidas de construção por régua e

compasso que veremos adiante.

3 - Construções com Régua e Compasso

Primeiramente, é bom notarmos que consideraremos sempre comprimentos

como não negativos. Construir um segmento de determinado tamanho significa possuir

uma sequência finita de operações, a partir de um segmento já dado de comprimento

unitário, com um compasso (deve ter pernas tão compridas quanto necessárias e suas

construções devem possuir centro em um dado ponto e passar por outro determinado

ponto) e uma régua não graduada (aquela que não pode ser usada para medir, porém

pode ser utilizada para criar um segmento tão grande quanto for necessário que

contenha dois pontos dados).

É bom notar que utilizaremos compasso não colapsante (aquele que transfere

medidas) para facilitar a construção das figuras, porém todas as construções feitas com

compasso não colapsante poderiam ser feitas com o colapsante (aquele que não

transfere medidas), só daria um trabalho maior.

Operações individuais feitas com régua e compasso são chamadas de

construções fundamentais e são:

- Dado dois pontos, traçar uma reta indefinidamente grande que passe por eles.

- Dado dois pontos, traçar o segmento de linha que os conecta.

- Dado um ponto e um segmento de linha, traçar a circunferência que tem centro

no ponto e raio igual ao comprimento do segmento de linha.

Somente essas são construções fundamentais. Por exemplo, fazer uma

circunferência de centro em um ponto dado e raio maior ou menor que determinado

comprimento (ou seja, limitado por uma inequação) delimitado por outro segmento de

reta é desnecessário, pois já está incluído na terceira construção fundamental. Isso é

possível porque dado um segmento de comprimento igual à unidade, todos os

segmentos de comprimentos racionais são construtíveis, como veremos a seguir.

3.1 - Algumas Construções

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É possível construir com régua e compasso:

-Um triângulo equilátero dado um lado dele.

É dado o segmento AB. Com centro em A e raio AB, fazer uma circunferência

C1. Com centro em B e raio BA, fazer uma circunferência C2. O ponto de encontro

entre C1 e C2 é X. O triângulo ABX é equilátero, ou seja, possui os três lados com

mesma medida: AB.

-Uma reta perpendicular a uma dada passando por certo ponto contido ou não

contido ou na reta dada.

Para passar por um ponto P uma reta perpendicular a uma reta r, com P não

contido em r, fazemos o seguinte: traçamos uma circunferência com centro em P e raio

grande o suficiente para cortar a reta r em dois pontos: A e B. Com o mesmo raio PA,

fazer uma circunferência com centro em A e outra com centro em B. O ponto de

encontro das duas circunferências determina o ponto Q, que é eqüidistante de A e B,

assim como P. Liga-se com uma reta P a Q e encontra-se a reta perpendicular

procurada.

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Se P estivesse contido em r, bastaria fazer uma circunferência ao redor de P,

marcando pontos A e B em r. Com um mesmo raio e este maior que AP, fazer uma

circunferência com centro em A e centro em B. Os pontos de encontro dessas

circunferências determinariam uma reta que seria a perpendicular procurada.

-Uma reta paralela à outra dada, passando por um ponto dado.

Para traçar por um ponto P, uma reta paralela a uma reta dada r, devemos

construir, com o mesmo raio, três círculos: o primeiro com centro em P, determinando

um ponto A na reta r. O segundo com centro em A, determinando B na reta r. O terceiro

com centro em B, determinando Q no primeiro círculo. PQ formam a reta paralela à reta

r.

-A mediatriz de um segmento de reta.

A mediatriz de um segmento de reta AB é a reta perpendicular à AB que

passa pelo ponto médio de AB. Para construir a mediatriz usando régua e

compasso, trace dois círculos de mesmo raio, com centros em A e B e abertura maior do

que m(AB)/2, que se cruzam nos pontos P e Q. A reta PQ é a mediatriz de AB.

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-A bissetriz de um ângulo.

A bissetriz de um ângulo AOB é a semi-reta OC tal que m(AOC) =m(COB), isto

é, a semi-reta que “divide” o ˆangulo AOB em dois outros iguais. Para construir a

bissetriz usando régua e compasso, trace um círculo de centro em O que determina os

pontos X e Y nos lados do ângulo AOC. Em seguida, trace dois círculos de mesmo raio

com centros em X e Y de tal forma que eles se cruzem em ponto C. A semi-reta OC é a

bissetriz do ângulo AOB.

3.2 - Lemas

3.2.1 - Dados segmentos de comprimentos 1, a e b, é possível construir segmentos

de comprimentos a+b, a-b (quando a>b), ab e a/b (quando b≠0).

- Os segmentos a+b e a-b são operações fáceis, pensando num compasso não colapsante

(mas é possível com o colapsante também).

- O segmento ab pode ser construído a partir de uma semelhança de triângulos:

traçamos duas retas x e y não colineares e a partir do ponto de encontro delas, traçamos

a unidade na reta x, e o comprimento a na reta y. Do ponto de partida, na reta x,

traçamos o comprimento b. Ligamos o fim do comprimento de a ao fim do

comprimento da unidade, criando uma reta z que liga a reta x à reta y. Criamos então

uma paralela à reta z, passando pelo fim de b na reta x. Assim, a interseção dessa nova

reta com a reta y determinará um ponto. A reta y, até esse ponto, terá o comprimento ab.

Podemos ver isso por semelhança de triângulos, já que 1 está para b, como a está para

ab. Serve tanto para a>b como para b<=a.

- O segmento a/b também é construído por semelhança de triângulos, de forma similar

ao segmento ab. A partir de certo ponto, construímos o segmento de comprimento uma

unidade numa reta x. A partir desse ponto inicial marcamos o comprimento a em uma

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reta y não-colinear com a reta x. Na reta x marcamos o comprimento b. Ligamos o fim

do comprimento b ao fim do comprimento a, unindo as retas x e y por uma reta z.

Traçamos uma reta paralela à z, passando pelo fim do comprimento da unidade na reta

x. Achamos assim, desde o ponto inicial até o novo ponto formado pela reta paralela

construída e a reta y, o comprimento a/b, que pode ser verificado por semelhança de

triângulos.

3.2.2 - Um número a é considerado construtível se, dado um segmento de

comprimento um, é possível construir um segmento de comprimento |a|.

Assim, podemos afirmar que dados os número a e b construtíveis, com certeza os

números a+b, a-b, ab e a/b (quando b≠0) também o são.

Logo, temos que todos os números racionais são construtíveis: números

racionais sempre podem ser escritos na forma de frações – assim, adicionando ou

subtraindo uma unidade, tanto do numerador como do denominador, podemos, a partir

do segmento de comprimento um, construir qualquer número racional (Q).

Existem conjuntos especiais de números que chamamos de corpos (“fields”).

Características de um corpo:

- É fechado sob as operações racionais (adição, subtração, multiplicação, e divisão,

exceto por zero) – ou seja, quaisquer operações racionais que sejam feitas com os

elementos desse conjunto, resultam em elementos do próprio conjunto.

- O número 1 deve ser elemento do conjunto – isso exclui os casos triviais, do conjunto

vazio e daquele que só contém o zero como elemento.

Os números racionais formam um corpo. Os números reais e os construtíveis

também. Porém, os números inteiros não formam um corpo (não é fechado sob a

operação da divisão).

Devemos ressaltar que, apesar dos números construtíveis serem fechados para

todas as operações racionais e, portanto formarem um corpo, esse corpo não é fechado

para a radiciação, logo podemos construir, a partir de um corpo de números

construtíveis F, um número construtível que não faz parte de F.

3.2.3 - Dados segmentos de comprimento 1 e a, um segmento de comprimento

pode ser construído.

Isso pode ser provado por semelhança de triângulos, em que AB mede .

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Logo, agora podemos afirmar que se todos os números de um corpo F são

construtíveis, então todos os números da forma a+b√k também são, com a, b e k

pertencendo ao corpo F e k>0.

Para um fixo k pertencente a um corpo F e k>0, temos que todo o conjunto de

números da forma a+b√k com a e b pertencentes a F formam um corpo. Esse corpo é

chamado de uma extensão de F: F(√k). Para os valores de k que fazem com que √k seja

um próprio número de F, a extensão F(√k) é, de fato, o próprio F. Porém, se √k não

pertence a F, F se torna um subconjunto de F(√k) e F(√k) se torna uma extensão

quadrática de F.

3.2.4 - Se F é um corpo e se k pertence a F e k>0 então F(√k) também é um corpo.

Sabemos que:

Logo,

Também.

Agora precisamos provar que a soma, a diferença, o produto e o quociente de números

que pertençam a também pertencem a , ou seja, que é um corpo.

Para pertencer a , os números devem ter a forma , em que

.

Soma:

Diferença:

Produto:

Quociente:

Assim, chegamos a uma conclusão muito importante que vai ser usada durante as

provas dos problemas de construção apresentados:

Todo número racional é construtível e todo número que pode ser calculado a partir dos

racionais por operações racionais ou por radiciação também é construtível.

3.2.5 - Para um número ser construtível, ele deve pertencer a um corpo tal que

Em que para cada com , é uma extensão quadrática de ;

A prova se dá por indução sobre n. Se n=0, , logo o número é racional e,

portanto construtível. Agora, assumimos que o teorema é verdadeiro para n=R e

provamos que é verdadeiro também para n=R+1. Seja um número , então

pode ser expresso como em que , e pertencem a . Pela

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hipótese indutiva, , e são todos construtíveis. Assim, por 3.2.1 e 3.2.3,

também é construtível, como queríamos demonstrar.

Isso prova que, se há uma sequência, então o número é construtível. Porém, a recíproca

também é verdadeira: só existem números construtíveis se for possível fazer a seqüência

de corpos mencionada acima. Não há outros números construtíveis. Para provar isso

precisaríamos entrar um pouco na geometria analítica elementar.

Logo, sabemos que um número é construtível se, e somente se, ele está presente em um

corpo Fn tal que esse corpo contém Fn-1 e esse contém Fn-2 e assim sucessivamente até

conter F0, sendo F0 o corpo dos números construtíveis racionais e sendo F1, F2, ... , Fn-

1, Fn corpos em que cada Fj+1 é uma extensão quadrática de Fj, com j variando de zero

até n-1.

É uma conversão do problema geométrico para algébrico e vice-versa: Se o número é

construtível, então há uma sequencia dessas mencionadas. Se há uma sequência então o

número é construtível. A afirmação vale para ambos os lados.

4 - Problemas Gregos

4.1 - Duplicação do Cubo

O problema de duplicação do cubo consiste em, a

partir de um cubo de certo volume, construir outro cubo

cujo volume seja o dobro do primeiro. Dessa forma, o

segmento de reta que representa a aresta do primeiro cubo

já é fornecido e queremos, a partir dele, e utilizando as

regras de construção por régua e compasso já explicadas,

construir o segmento de reta que representa a aresta do

cubo de volume dobrado.

Se considerarmos um cubo inicial com aresta de comprimento igual a uma unidade, temos um

cubo de volume:

V=1*1*1=1 u.v.

Queremos um cubo de volume:

V’=2*V=2*1=2 u.v.

Assim, procuramos construir uma aresta de comprimento igual a .

Generalizando, para qualquer cubo de aresta igual a , volume , queremos construir a aresta

do cubo de volume 2 , ou seja, a aresta de comprimento igual a .

Assim, sabemos que o comprimento já é construtível, pois ele é o comprimento da aresta do

cubo já dado. Dessa forma, nos resta saber se o número é construtível (porque, pelo lema

3.2.1 então será construtível também). Assim, simplificamos o problema para a questão:

O número é construtível?

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Pelo teorema já mencionado anteriormente, se um número é construtível, ele deve estar

necessariamente associado a uma sequência de extensões quadráticas partindo do corpo de

números racionais construtíveis .

Vamos então supor que o número é construtível. Logo, esse número deve estar contido em

alguma extensão quadrática do corpo , de acordo com o lema 3.2.5.

Assim, temos:

=

Em que , e pertencem ao corpo . Porém, pode ou não pertencer a .

Vamos, por enquanto, supor que só pertença a e não pertença a . Assim,

Elevamos ao cubo a expressão = e obtemos:

Como

Necessariamente, temos que

Porém, além de como raiz cúbica de 2, também temos :

Assim, encontramos duas raízes cúbicas para o número 2. Porém, analisando o gráfico da

função , temos que a função é estritamente crescente e só há, no máximo, uma raiz

cúbica real para o número 2.

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Desse modo, temos:

Ou:

- =0

Mas aí, , ou seja, uma contradição já que F é um corpo que ou é racional

(contém 0) ou é uma extensão quadrática do corpo racional (também contém 0).

Logo, só é viável que:

-

Assim,

=

=

=

=

E,

Logo,

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O que contraria a hipótese que tínhamos de que pertencia somente a e não pertencia

a . Sendo assim, vemos, que se pertence a uma extensão quadrática ,

necessariamente também pertence ao corpo .

Juntando as informações:

-Lema 3.2.5: Para ser construtível, ele deve pertencer a um corpo tal que

Em que para cada com , é uma extensão quadrática de .

-Se ( ), então , sendo o corpo que deu origem à extensão quadrática ( ).

Temos que, por lógica, se é um número construtível, então pertence ao conjunto dos

números racionais .

Porém, já sabemos que não é um número racional, ou seja, não pode ser escrito sob forma

de fração.

Logo, temos que , portanto, não é um número construtível, ou seja, havíamos suposto

erradamente.

Dessa forma, chegamos à conclusão de que é impossível duplicar o cubo utilizando apenas

regras de construção por régua e compasso.

Ver Apêndice B para aspectos notáveis sobre o problema de duplicação do cubo.

4.2 - Trisecção do Ângulo

Também é um problema de construção utilizando apenas uma régua não

graduada e um compasso. O problema proposto é: dado um ângulo arbitrário, é possível

trissectá-lo, ou seja, dividí-lo em três ângulos iguais (construir um ângulo, a partir do

primeiro, com um terço de sua amplitude)? Deixemos claro que estamos querendo saber

se é possível trissectar um ângulo qualquer. Não estamos tratando de casos particulares.

Assim, se existe algum ângulo para o qual a trissecção não é possível (existindo ou não

algum outro para a qual ela é possível), estaremos provando a impossibilidade da

trissecção de um ângulo arbitrário.

Sabemos que a trissecção de 90o é possível, por exemplo. Construímos um

triângulo equilátero sobre a aresta BG, formando BDG. Dividindo o ângulo formado

por BD e BG em duas partes iguais, teremos dividido o ângulo entre AB e BG em três

partes iguais.

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Vamos tentar trissectar o ângulo de 60o, por exemplo. Se isso for possível, o

ângulo de 20o será construtível. Partindo de um segmento de comprimento igual a uma

unidade, o segmento o deverá ser construtível para que o ângulo 20

o o seja

também.

Sabendo já as fórmulas trigonométricas abaixo:

Temos:

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Consideremos , logo

Fazendo , se acharmos a solução da equação de terceiro grau abaixo e se

esse for um número construtível, comprovaremos a construtibilidade do ângulo de

.

Simplificando, fazemos :

(1)

Se for construtível, logo também o será. Assim, o problema se reduz a saber se a

raiz da equação acima é ou não é construtível.

Para isso, vamos supor que seja construtível, ou seja, ele deve pertencer a um corpo

tal que

Em que para cada com , é uma extensão quadrática de ;

Suporemos que pertence a , mas não pertence a :

(2)

Com , , e .

Substituindo (2) em (1), temos:

Como , necessariamente:

(3)

e

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(4)

Como podemos dividir a equação (4) por :

(5)

Substituindo (5) em (3), temos:

Logo, a solução de (1) é e, como , também. Desse modo, se

estabelece uma contradição ao que foi pressuposto anteriormente e deduzimos, assim,

que se pertence a uma extensão quadrática de , então também pertence ao

corpo .

Desse modo, se for de fato construtível, ele pertencerá a uma extensão quadrática

, e assim, também pertencerá ao corpo que deu origem a essa extensão.

Aplicando essa idéia sucessivamente, chegamos na idéia de que, se for construtível,

ele pertencerá ao conjunto dos números racionais da sequência já mencionada:

Vamos então agora saber se é um número racional.

Supomos primeiramente que é racional, ou seja, pode ser escrito sobre a forma de

fração:

Logo, é raiz da equação .

Consideremos um número racional já reduzido, ou seja, os maiores fatores em

comum entre e são +1 ou -1.

Assim, temos:

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Se possui um fator primo , então divide e, consequentemente, .

Se possui um fator primo , então divide e, consequentemente, .

Ver Apêndice C.

Dessa forma, concluímos que os únicos valores possíveis para são ou

.

É falso. Essa opção é desacartada.

Também é falso. Descartamos essa opção.

Concluímos, assim, que não há número racional que seja raiz da equação

, nos permitindo afirmar que não é número construtível, logo

também não o é. Assim, sendo o não construtível (a partir do

segmento de uma unidade e do segmento de comprimento igual ao cosseno de

60 ), o ângulo também não o é. Dessa forma, demonstramos que não é

possível trissectar um ângulo qualquer, visto que no nosso exemplo não foi

possível trissectar o ângulo de .

4.3 - Quadratura do Círculo

Novamente, estamos tratando de mais um problema de

construção que envolve apenas meios euclidianos, ou

seja, compasso e régua não graduada. O problema

consiste na possibilidade de construir um quadrado de

mesma área de um círculo dado.

Consideremos um círculo de raio . Sua área é dada por

. Logo, se queremos um quadrado de mesma

área, sua área será . Assim, o lado do quadrado

deverá medir . O círculo foi dado, logo

já sabemos que é construtível. Queremos então saber se é construtível. Como já

vimos, é construtível se, e somente se, é construtível.

Desse modo, o problema se transforma em descobrir a construtibilidade de .

Primeira parte:

Para um número ser construtível, ele deve pertencer a um corpo tal que

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Em que para cada com , é uma extensão quadrática de .

Suponha um número construtível que pertence a um corpo , extensão quadrática de

. Então, necessariamente, é raiz de uma equação de grau 1 de coeficientes em .

Logo, podemos supor raiz de uma equação de coeficientes em :

Com . Para todo , e pertencem a

Reajeitando os termos, temos:

Se elevarmos os dois lados da equação ao quadrado, teremos que ainda será raiz da

equação e não haverá mais o termo , mas sim o termo . Logo todos os coeficientes

da equação pertencerão ao corpo .

Assim, se essa idéia for aplicada sucessivamente para um número construtível,

concluímos então que todo número construtível é raiz de alguma equação polinomial

com coeficientes racionais.

Segunda parte:

Precisaríamos agora ver que não é raiz de nenhuma equação polinomial com

coeficientes racionais, ou seja, que é um número transcendente e portanto, não

construtível, tornando o problema de quadratura do círculo por meios euclidianos

impossível.

Porém, aqui nos restringiremos a admitir a transcendência de , devido à grande

dificuldade de sua demonstração.

5 - Apêndices

5.1 – Apêndice A

Dado um quadrado ABCD de lado a, traçamos a sua diagonal BD e construímos

um quadrado de lado BD. É fácil perceber que BDEF (lado b) tem o dobro da área de

ABCD (lado a). Note que b é a diagonal do quadrado de lado a.

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5.2 – Apêndice B

Hipócrates de Chios (470a.C.-410a.C.) fez uma das primeiras tentativas de

resposta ao problema da duplicação do cubo. Considerando um cubo de aresta e

volume . Queremos outro de aresta e volume , em que .

Para isso, era preciso encontrar valores para e que satisfaçam à igualdade

para qualquer real:

Temos

(1)

(2)

De (1), temos:

(3)

(3) em (2):

Porém, não há solução geométrica para essa dupla proporção.

-Esse problema possui solução tridimensional (solução na geometria tridimensional e

não na geometria plana – ou seja, não pode ser resolvido por régua e compasso),

desenvolvida por Arquitas de Tarento (428a.C.-347a.C.). Essa solução pode ser descrita

em linguagem de geometria analítica.

Page 19: os três problemas gregos: uma introdução aos teoremas de

Departamento de Matemática

19

"A solução de Arquitas é a mais notável de todas, especialmente quando sua data é

considerada (primeira metade do séc IV a.C.) porque não é nenhuma construção plana

mas uma corajosa construção em três dimensões, determinando um certo ponto como a

intersecção de três superfícies de revolução..." (Heath, 1931)

-Atualmente, conseguiu-se descobrir soluções que atendem às restrições de régua e

compasso e geram erros associados muito pequenos. Podemos notar o trabalho dos

italianos Gaetano Buonafalce, Giuseppe Vargiù e Gaetano Boccali.

-Gaetano Buonfalce: “Se tirarmos da aresta de um cubo a sexta parte da diagonal da

face, o segmento desta face que liga o vértice oposto a esse ponto é a aresta do cubo de

volume duplo com erro inferior a 0,002”.

5.3 – Apêndice C

Prova de que se é um número primo e divide , então ou divide ou

divide .

Tomemos como condições:

Se é um número primo, então seus únicos divisores são 1 e .

Se divide , então existe um inteiro, tal que:

MDC ( ,0) = .

Vamos usar o conceito de MDC (Máximo Divisor Comum) entre dois números. Sejam

dois inteiros e , não ambos nulos. Considerando o conjunto de inteiros positivos que

dividem e , vemos que esse conjunto é finito e o maior de seus elementos é o MDC

entre e .

- Se divide e , então e :

Logo, divide .

- Se divide e , então e :

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Departamento de Matemática

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Logo, divide .

Assim, se um número divide e , então ele divide e, se ele divide e , então ele

divide .

Se

Então

Pois todo divisor comum de e também será divisor comum de e , tornando os

MDC’s os mesmos.

Usando o Algoritmo de Euclides para encontrar o MDC entre dois inteiros e (não

ambos nulos), suponha , aplica-se sucessivamente o Lema de Euclides:

Continua assim enquanto

Como é pelo menos uma unidade menor que , em no máximo iterações, teremos

um .

Logo, o MDC entre e é .

Se então existem inteiros e tais que .

Usando essas informações, suponha um número primo que divide :

a) Se não divide , então . Existem, então, inteiros e tais que:

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Departamento de Matemática

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E assim, se não divide , então necessariamente divide .

7 - Referências

HADLOCK, Charles Robert, Field Theory and its Classical Problems, The

Mathematical Association of America, 340 p.

STILLWELL, John, Yearning for the impossible, AK Peters (2006)

COURANT, Richard & ROBBINS, Herbert, What is mathematics?, Oxford

University Press (2006)