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“OS SONS QUE VÊM DA COZINHA”: REFLEXÕES SOBRE A CANÇÃO “DEIXA ESSA VERGONHA DE LADO” NA OBRA DE ODAIR JOSÉ Cristiane Pereira Martins Durante a década de 1970 no Brasil, a música brega, um tipo de música romântica, foi relacionada com as camadas mais populares da sociedade. Esse gênero representou uma enorme parcela que nem sempre consumia as produções artísticas da classe média, dos estudantes universitários e das elites, ou seja, parcela que estava á margem desse panorama. Fundamentalmente por trazer a tona o cotidiano da sociedade brasileira em um momento de luta política, econômica, social e cultural. Este rótulo se deu ao fato de o segmento de classe média que os rotula ter contato mais próximo com a empregada doméstica e ouvir da sala os sons que vêm da cozinha, através do rádio ou na voz da própria empregada doméstica. Como observado, as empregadas domésticas não apenas gostam de ouvir música, mas de também costumam cantar e pelo duas delas deixaram a cozinha e tornaram-se nomes na nossa música popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a badadista Carmem Silva, destaque dessa geração de artistas tidos como “cafonas”. A palavra “brega”, só começou a ser utilizada no início dos anos de 1980, quando Eduardo Dusek lança sua música Brega e Chique. Conforme, o historiador Paulo César em seu livro Eu não sou cachorro não- música popular cafona e ditadura militar : Ao longo da década de 1970, a expressão utilizada é ainda “cafona”, palavra de origem italiana, cafóne, que significa individuo humilde, vilão, tolo. Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” subsiste hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, é um termo utilizado para designar “coisa barata, descuidada e malfeita” e a “musica mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários. (ARAÚJO, 2007: 20) O cantor/compositor Odair José evidenciou em suas canções um sujeito histórico outrora excluído. Nelas, ele retratava um universo feminino essencialmente discriminado pela sociedade, precisamente no auge da sua produção artística que coincidiu com o período em que vigorava o AI-5 (entre 1968 e 1978), tais como, mulheres que exerciam atividades Mestranda em História, PPGH-UDESC-Florianópolis-SC, Laboratório de Imagem e Som (LIS) E-mail: [[email protected]] Bolsista- Promop.

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Page 1: “OS SONS QUE VÊM DA COZINHA”: REFLEXÕES SOBRE A … · evidência representações do popular sobre o popular e as experiências dos artistas em suas canções. A música brega,

“OS SONS QUE VÊM DA COZINHA”: REFLEXÕES SOBRE A CANÇÃO “DEIXA

ESSA VERGONHA DE LADO” NA OBRA DE ODAIR JOSÉ

Cristiane Pereira Martins

Durante a década de 1970 no Brasil, a música brega, um tipo de música romântica,

foi relacionada com as camadas mais populares da sociedade. Esse gênero representou uma

enorme parcela que nem sempre consumia as produções artísticas da classe média, dos

estudantes universitários e das elites, ou seja, parcela que estava á margem desse panorama.

Fundamentalmente por trazer a tona o cotidiano da sociedade brasileira em um momento de

luta política, econômica, social e cultural. Este rótulo se deu ao fato de o segmento de classe

média que os rotula ter contato mais próximo com a empregada doméstica e ouvir da sala os

sons que vêm da cozinha, através do rádio ou na voz da própria empregada doméstica.

Como observado, as empregadas domésticas não apenas gostam de ouvir música,

mas de também costumam cantar e pelo duas delas deixaram a cozinha e tornaram-se nomes

na nossa música popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a badadista

Carmem Silva, destaque dessa geração de artistas tidos como “cafonas”.

A palavra “brega”, só começou a ser utilizada no início dos anos de 1980, quando

Eduardo Dusek lança sua música Brega e Chique. Conforme, o historiador Paulo César em

seu livro Eu não sou cachorro não- música popular cafona e ditadura militar :

Ao longo da década de 1970, a expressão utilizada é ainda “cafona”, palavra de

origem italiana, cafóne, que significa individuo humilde, vilão, tolo. Divulgada no

Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão “cafona” subsiste

hoje como sinônimo de “brega”, que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira,

é um termo utilizado para designar “coisa barata, descuidada e malfeita” e a “musica

mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem

criatividade de clichês musicais ou literários. (ARAÚJO, 2007: 20)

O cantor/compositor Odair José evidenciou em suas canções um sujeito histórico

outrora excluído. Nelas, ele retratava um universo feminino essencialmente discriminado pela

sociedade, precisamente no auge da sua produção artística que coincidiu com o período em

que vigorava o AI-5 (entre 1968 e 1978), tais como, mulheres que exerciam atividades

Mestranda em História, PPGH-UDESC-Florianópolis-SC, Laboratório de Imagem e Som (LIS) E-mail:

[[email protected]] Bolsista- Promop.

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domésticas e mulheres ligadas à prostituição. O trabalho visa problematizar por meio de sua

obra, sobre essa discriminação desses sujeitos e de suas experiências.

Segundo Paulo César de Araújo,

É o que se procurará observar em cada uma das faixas de discos analisados, já que

ali estão registrados sonhos, angústias, tragédias, protestos, dores, amores, além da

visão de mundo de amplos setores das camadas populares. E isso produzido em um

período da nossa história em que os direitos constitucionais estavam suspensos e os

canais de expressão da insatisfação popular, bloqueados. Entretanto, por entre as

brechas do sistema, representantes de setores populacionais mantidos à margem do

centro de decisão política conseguiram falar e ser ouvidos. (ARAÚJO, 2007:14)

Dessa forma, pesquisar a música brega no contexto da ditadura militar coloca em

evidência representações do popular sobre o popular e as experiências dos artistas em suas

canções. A música brega, portanto, representou uma forma de resistência popular perante um

regime que a oprime, se configurando como um meio fundamental pelo qual é possível

compreender as vivências de mulheres e homens, se opondo a um modelo de vida imposto.

Foi uma expressão artística que chegou às camadas mais pobres, nos subúrbios e em

lugares menos elogiados, os artistas cantavam a vida ordinária dessa sociedade: seus amores,

suas ocupações, seus dilemas e seu cotidiano. Podemos perceber canções que tratam de

cachaça, traição, trabalho, “mulher de vida fácil” e mulher ingrata, canções que faziam

denúncia ao autoritarismo e a segregação social existentes, sendo algumas censuradas, como

foi o caso de Pare de tomar a Pílula1, canção censurada por tratar de questões extremamente

proibidas num governo conservador. Para pensar sobre a categoria de cotidiano a autora,

Maria Odila Dias destaca:

O conceito de cotidiano parece implicar contradição com o próprio termo que indica,

para muitos, uma ideia de rotina, de lazer, de fatos encadeados num plano de

continuidade, campo da necessidade e da repetição, área reservada ao consumo, à

cultura dominante. Entretanto, para alguns pensadores de nossa contemporaneidade,

o conceito sugere, antes, mudança, dissolução de culturas, possibilidades de novos

modos de ser. (DIAS, 1998: 226)

O cotidiano antes do impacto da modernidade e da integração de nossa sociedade no

capitalismo contemporâneo foi visto como campo de praticas de tradição dos papéis

normativos e culturais transmitidos pela cultura tradicional. Área preferida pelos antropólogos

como campo de permanências e de atuação das categorias do inconsciente profundo de

1 Uma vida só (Pare de tomar a pílula) (Odair José – Ana Maria) Gravação de Odair José. LP “Odair José”.

Polydor. P. 1973

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culturas milenares e das estruturas familiares. Portanto, o cotidiano, em vez de fragmentar,

participa em busca de conhecimentos novos para os seres sociais, culturalmente diversos, em

diferenciadas temporalidades aparece como um dos principais trunfos da hermenêutica do

cotidiano na sociedade contemporânea.

Para se compreender o pensamento musical de uma época é consequentemente nos

aproximarmos dos sons produzidos no passado, assim é importante entender a construção, a

difusão e funcionamento da música nas sociedades. A música dessa forma trabalha com os

sons e ritmos nos seus diversos modos e gênero, e ás vezes permite realizar as mais variadas

atividades sem exigir atenção centrada do receptor, apresentando-se no nosso cotidiano de

modo permanente e imperceptível. A canção e a música popular podem ser pensadas como

uma fonte rica para compreender certas realidades da cultura popular, ou seja, a história de

setores da sociedade pouco lembrada pela historiografia.

Sons e músicas são elementos que se fazem e se manifestam no tempo: o seu

desaparecimento acontece quase no mesmo instante de sua aparição. Em primeiro momento,

seus registros imediatos invadem e se assentam em primeiro lugar na memória. Após, esses

registros na memória ganham a forma da linguagem e da notação, para não perderem-se.

Nesse sentido, podemos pensar em possibilidades de se escutar essas sonoridades do passado

e compreender como as sociedades criaram seus sistemas de produções de sons e regimes de

escuta.

Deste modo, a música não se constitui apenas como som, silêncio e ritmo, mas

também tudo aquilo que se escreve e se diz sobre ela, situando-se assim também no mundo

textual que aparece como parte indissociável da construção do mundo das ideias. A música

tornou-se para o pesquisador, um documento importante e instigante, contendo ali várias

possibilidades de análise do cotidiano, das mentalidades, das questões universais como das

questões quase invisíveis, de tão corriqueiras. (MORAES, 2011:160)

Devemos renunciar a uma postura de domínio do passado, e pensar sempre numa

interpretação do passado. Assim, toda interpretação histórica depende de um sistema de

referência e que por seguinte qualquer análise de um “dado” remete à subjetividade do

historiador. Os fatos originam-se de uma escolha, pois já estão por uma construção de sentido

na objetividade, promovendo materiais oriundos dos arquivos revelados pelo pesquisador. “O

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historiador é levado a explicitar de onde ele fala, ou seja, é importante tornar mais

transparente seu ofício, suas ferramentas, ou as mediações que lhe permitem a construção de

sua trama, pois a história é sempre um conhecimento feito de mediações.” (DOSSE, 2012:13)

Assim, inserimos a obra do artista popular Odair José e suas personagens femininas,

que não tem nome, pois são muitas, um tipo de música popular, que chega dentro dos lares

mais afastados, no seio das famílias, dentre as quais priorizo as mais humildes. Canções que

tratam de prostitutas, homossexuais e temas como noitadas de amor, essas entre outras eram

consideradas ofensivas pela sociedade conservadora, principalmente por retratarem o

cotidiano desses sujeitos. Para Paulo César de Araújo,

O que rolava na memória popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do

luar- diz ele- “e eu vim falando de cama, de pílula, de puta, de empregada doméstica

porque essa é a realidade do Brasil.”. E eu sou um cantor da realidade. Eu não sou

um cantor de sonhos. Eu sempre digo isto ás pessoas: não ouçam os meus discos

esperando ouvir sonhos, vocês vão ouvi a realidade. Então foi por isso que eu me

tornei um artista polêmico e a censura começou a me proibir. (ARAÚJO, 2007: 57)

Ao se pensar no universo popular, por exemplo, que é geralmente esquecido pela

historiografia da música, e quando se refere a ele, reforça apenas as perspectivas românticas,

nacionalistas ou folclóricas, podemos perceber que de modo geral, ela está fortemente

marcada por um paradigma historiográfico tradicional e eurocêntrico, normalmente associado

àquela concepção de tempo linear e ordenado, em que os artistas, gêneros, estilos e escolas

sucedem-se mecanicamente, refletindo e reproduzindo, assim, uma postura bastante

conservadora no quadro da historiografia contemporânea. Para os historiadores, a busca de

sentido se faz através da narrativa e da própria linguagem, evitando dessa maneira lançar

conceitos e fundamentações intelectualistas, portanto o objetivo da pesquisar será analisar

sujeitos esquecidos pela historiografia da música popular.

No ano de 1973, Odair José participava do programa de Luiz Aguiar quando ouviu o

mesmo falar sobre um texto que falava sobre as reivindicações das empregas domésticas, na

qual descrevia os preconceitos e dificuldades das trabalhadoras domésticas no seu cotidiano.

O cantor achou o texto interessante e se propôs que utilizar aquela temática nos versos de uma

canção. O sucesso da canção Deixa essa vergonha de lado, mostrava o estigma de trabalho

que envolvia o ofício das domésticas do Brasil e algumas barreiras que as impedia de se

relacionarem com um rapaz de classe média. “Deixa essa vergonha de lado / pois nada disso

tem valor / por você ser uma simples empregada / não vai modificar o meu amor...” Porém, a

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letra vai além da mera discrição do dilema amoroso dos personagens, na segunda estrofe da

canção faz referência ao quarto da empregada, apontava para o uso do espaço numa sociedade

de classes, na qual o quarto dos empregados era reservado aos fundos. “Eu sei que o seu

quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugia desse mundo / e nunca mais voltava”.

Segundo o cantor, essa canção falava de uma pessoa que convivia com a família, mas não era

da família, ou seja, representado pela emprega doméstica, aquela secretária de casa que leva

os filhos dos patrões a escola, servia para fazer a comida, mas não servia para casar com os

filhos dos patrões.

Para autora Tania Navarro Swain, a identidade não passa de uma prisão de limites

impostos aos corpos, de modos de ser que esculpem comportamentos, definem funções. A

mesma é entendida como a arma de poder, estratégia de dominação, identidades ilusórias e

fictícias. Segundo, Swain:

A identidade de fato, é feito de estereótipos, de generalizações. Ela não tem uma

essência, que se prolonga ao sabor do tempo e das intempéries sociais. Minha

identidade, se é que assim podemos denomina-la, é apenas meu presente, construído

na experiência vivida do agora, em assujeitamentos e resistências diversas, dentro de

uma representação social e fora dela, posto que a crítico e desconstruo. (SWAIN,

2010: 13)

Nesse sentido, podemos pensar na força de repetição de discursos, na canção Deixe

essa vergonha de lado, que se destilam discriminação contra o trabalho doméstico, ou seja,

contra tudo que ameaça o poder masculino. Uma das formas de dominação masculina é a

soberania do falo. O falo simbólico, instaurando o domínio da linguagem. O falo fala de

poder! O falo fala de dominação, de hierarquia de binarismo. Dessa forma, é necessário que

se problematize essas relações de poder sobre os femininos, pensado sempre no plural, pois

mulheres são impedidas de viveram sua condição de sujeitos, este é o resultado de seres

construídos no feminino, estas são as consequências da linguagem do falo. O atrelamento a

um corpo definido, a um destino biológico, ao útero são construções sociais, o biológico

binário é uma criação do poder patriarcal. Assim como o “falo falante” o é.

Embora na canção Deixe essa vergonha de lado, houvesse uma crítica predominante

política ao trabalho doméstico, a música também narra à história de um casal onde o homem,

com o seu discurso amoroso, diz que o fato dela ser empregada não ia fazer com que ela o

perdesse, ou modificasse o seu amor. Aqui, a imagem de um sujeito exercendo relações de

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poder fica evidente, pois a mulher deveria ser submetida a tal ação, é importante que reflita

sobre a construção de identidade da personagem da empregada doméstica para compreender

seu papel exercido naquele contexto.

Deixe essa vergonha de lado

Eu já sei que nessa casa onde você diz morar

Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar

Não é a sua casa

Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo

E se você pudesse fugia desse mundo

e nunca mais voltava

Eu já sei que esse garoto que você leva pra brincar

E que todo dia na escola você vai buscar

Não é o seu irmão

Ele é filho dessa gente importante

E às vezes também é seu por um instante

Apenas dentro do seu coração

Deixe essa vergonha de lado!

Pois nada disso tem valor

Por você ser uma simples empregada

Não vai modificar o meu amor (bis)

Eu já sei porque você não me convida pra entrar

E se falo nessas coisas, você procura disfarçar

Fingindo não entender

Eu já sei porque você não me apresenta aos seus pais

Eu entendo a razão de tudo isso que você faz:

É medo de me perder

Eu já sei que na verdade nada disso você quis

Você simplesmente pensou em ser feliz

Aí, não quis dizer

Mas você de uma coisa, pode ter certeza

O amor que você tem por mim é a maior riqueza

Que eu preciso ter

Deixe essa vergonha de lado!

Pois nada disso tem valor

Por você ser uma simples empregada

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Não vai modificar o meu amor2

No início dos anos 70 as domésticas se mobilizaram em busca destes direitos e o

disc-jóquei Luiz Aguiar, que tinha grande parte de sua audiência, se solidarizou com a causa e

apoiou suas reivindicações através do programa comandado por ele na Rádio Tupi de São

Paulo. Nesse mesmo ano, as empregadas domésticas alcançaram um primeiro resultado da sua

mobilização por direitos sociais: em março daquele período o presidente Médici assinou o

decreto determinando que a partir dali o trabalho doméstico devesse passar pelo CLT

(Consolidação das Leis do Trabalho). Em decorrência da canção Deixa essa vergonha de

lado, que foi lançado em meio a esse processo, Odair José nesse momento torna-se o principal

o referencial das domésticas no campo musical, foi denominado como o “terror das

empregadas domésticas”, termo utilizado pela cantora Rita Lee. Segundo a autora, Ângela

Figueiredo:

É importante ressaltar, passados 25 anos de publicação da Constituição, em 1988,

somente em abril de 2013 a sociedade brasileira voltou a discutir as questões

relativas à extensão dos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas. É

preciso entender, portanto, o impacto da aprovação dessa lei remete-nos a uma

reflexão muito mais aprofundada acerca do direito trabalhista, da cidadania tardia e

da humanidade das trabalhadoras domésticas. No ano de 2013, foi aprovada em 6 de

junho a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Nº 66/2012 objetiva ampliar os

direitos das trabalhadoras domésticas já assegurados a outras categorias

profissionais. (FIQUEIREDO, 2011: 290)

O trabalho doméstico segundo a autora pode ser compreendido não apenas como o

resquício das relações escravistas inserido na modernidade nem como uma relação de

contradição ao discurso moderno. Lugones (2012) demostrou como a colonialidade do poder,

resultante da experiência e da hierarquia racial da colonização, significou também uma

colonialidade de gênero, por isso mesmo a autora define o estado moderno colonial de gênero.

Dessa forma, o serviço doméstico só é visto quando não é realizado, e do ponto de

vista de quem efetua o trabalho, a condição de invisibilidade no espaço doméstico é a melhor

forma para ser considerada uma boa profissional. Essa categoria de “trabalhadora doméstica”

é, sem dúvida, o resultado do entrecruzamento de pelo menos três categorias sociais: gênero,

raça e classe que não naturalizados formando diferentes maneiras de subordinação, tornados

tão comuns que somos levados a crer que são imutáveis e, como tais, têm sido úteis para a

2 Deixe essa vergonha de lado (Odair José – Andreia Teixeira) Gravação de Odair José. LP “Odair José” – Polydor. P. 1973

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manutenção do discurso que normatiza as históricas desigualdades sociais e culturais. O

trabalho doméstico é na maioria das vezes executado por uma única trabalhadora na casa, e

esse excesso de atividade torna a rotina das trabalhadoras exaustiva.

É por meio da canção de Odair José que o trabalho visa problematizar as relações de

dominação masculina sobre o feminino presente no discurso da canção. Pierre Boudieu

destaca:

Sempre vi na dominação masculina e no modo como é imposta e vivenciada, o

exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo

de violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce

essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento,

ou mais precisamente do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última

instância do sentimento. (BOURDIEU, 2014: 12)

O antropólogo, sociólogo Pierre Boudier, analisa a dominação masculina que

sobrevive na sociedade atual e nos faz refletir sobre o tema com uma postura crítica. O autor

inverte a lógica da causa- efeito, afirmando dessa forma que essa dominação não é biológica,

mas uma construção arbitrária do biológico que fundamenta as divisões sexuais espontâneas.

O autor recorre à história das mulheres para mostrar que existem mecanismos que

podem contribuir para a exclusão feminina, mostrando como várias instituições, Igreja,

Escola, a Família e o Estado ratificam a ordem social preponderante. O livro traz o seguinte

questionamento: será possível neutralizar todos os mecanismos que fazem da dominação

masculina algo “natural” em nossa sociedade?

“Dar voz” a uma multiplicidade de sujeitos pressupôs todo um processo de

hermenêutica de desvendamento do omisso e oculto. Assim, a relação do sujeito com seu

objeto se fazem de maneira dialética e participante estabelecendo uma multiplicidade de

tempos, assim como uma pluralidade de sujeitos. As temáticas trazidas por essas canções

rompem com a lógica do silêncio, e assim possibilita a representação de um setor social que

foi ignorado por um regime altamente autoritário. Dessa forma, procurou esclarecer

justamente esse autoritarismo latente que a sociedade brasileira viveu durante a década de

1970 no Brasil, principalmente a partir do período do AI- 5, quando o ato de cantar e compor

tornou-se efetivamente caso de polícia, foram produzidos diversos textos, abordando a ação

da censura sobre a música popular que o repertório cafona abordava.

É importante pensar dessa forma, na canção Deixe essa vergonha de lado, no

“serviço doméstico” com um instrumento para problematizar as relações de poder existentes,

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uma vez que se trata de uma atividade massivamente feminina. Segundo a autora Jurema

Brites:

As mulheres parecem menos incomodadas com a subalternidade que lhes é exigida

no serviço, já que no interior de seu próprio grupo social desenvolveram táticas para

lidar com esta posição presumida da condição feminina. Tampouco guardam muito

apego por uma carreira com estabilidade no emprego. Quando as condições de

trabalho superam à medida que consideram possível de ser suportada, facilmente

abandonaram os empregos. Se por acaso entrar algum dinheiro extra na economia

doméstica (por exemplo, caso recebem algumas indenizações), este também será um

bom motivo para ficarem em casa, ocupadas com suas funções de donas de casa.

(BRITES, 2007: 296)

O trabalho doméstico nunca é o horizonte profissional das mulheres mais jovens,

mas com o passar do tempo, o pragmatismo de manter a família mostra as vantagens dessa

ocupação, um cenário que faz com que em outras profissões mais reconhecidas se torne mais

árdua ainda a sobrevivência. O que podemos perceber nesse contexto é que a condição da

subalternidade vai se construindo ao longo do tempo. (BRITES, 2007: 296)

Essa análise contribuiu para pensar sobre a hierarquia de gêneros em várias instâncias

da sociedade, nos fornecem instrumentos para constatar sobre a dominação masculina, as

formas como ela se impõe. É preciso pensar em vias específicas para a libertação de sujeitos

que vivem em uma sociedade que sofre com as relações de poder.

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Considerações finais

Nesse sentido, foi importante no trabalho considerar a canção Deixe essa vergonha

de lado para nortear a descrição e discussão do mesmo. Uma canção que é uma representação

de um imaginário feminino, que nos leva a problematizar a condição da empregada doméstica

na década de 1970 e na contemporaneidade também. Esse estudo visou recuperar a memória

de uma cultura popular, deixado pela historiografia, trazendo a tona lutas, embates e suas

formas de expressão e resistência.

São múltiplas as escutas e por consequência também são as interpretações, pois

partem das experiências individuais e coletivas, da percepção que os sujeitos têm de si e do

mundo no qual eles atuam. Odair José evidenciou também nas canções, Deixe essa vergonha

de lado (1973), Vou tirar você desse lugar (1972), Revista Proibida (1973), temáticas de

experiências românticas, colocando sempre a mulher como um sujeito que estaria em uma

posição de inferioridade. Em todas temáticas abordadas o feminino é altamente representado

de forma opressora.

Desta maneira compreendemos que o trabalho utilizou-se de linguagens e da

historiografia, tidas como essenciais para compreender esse trabalho, no sentido de abarcar os

discursos interligados na documentação, elucidando também as possíveis ambiguidades

presentes, portanto perceber as construções discursivas no bojo de seu tempo histórico. Ao

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propor a análise da canção como fonte, significa interrogá-las, tanto em seus aspectos

históricos, quanto no que tange aos problemas sociais, culturais e políticos que estão sendo

investigados.

Referências Bibliográficas

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Janeiro: BestBolso, 2014.

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Scheibe Cristina, FÁVERI, de Marlene, RAMOS, liveira Regina Tânia. In: Leituras em rede

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DOSSE, François. História do tempo presente e historiografia. Tempo e Argumento :

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Fontes discográficas

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PRETO, Marcos. Quatro tons de Odair José, Universal Music, 2013.