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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP FACULDADE DE ECONOMIA ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE DE RIBEIRÃO PRETO - FEARP DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO Os sentidos do trabalho e a produção artesanal: os casos do luthier e do mestre vidreiro Ribeirão Preto 2016

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - USP FACULDADE DE ECONOMIA ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE DE RIBEIRÃO

PRETO - FEARP DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO

Os sentidos do trabalho e a produção artesanal: os casos do luthier e do mestre vidreiro

Ribeirão Preto 2016

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Os sentidos do trabalho e a produção artesanal: os casos do luthier e do mestre vidreiro

The meanings of work and the artisanal production: the luthier’s and the glassmaker’s cases

RESUMO O mundo do trabalho tem se caracterizado como um cenário de incertezas e instabilidades, em que muitos assalariados realizam trabalhos com pouco sentido. Quais alternativas seriam possíveis aos trabalhadores? Seria o trabalho artesanal uma opção de vida laboral dotada de sentido? Essa pesquisa teve a intenção de quais são as características peculiares do trabalho artesanal e em que medida elas podem ser consideradas como indicadores de um trabalho com sentido, não alienado - ainda que na ordem capitalista. Partimos da premissa de que a precarização do mundo do trabalho se dá, como evidenciam inúmeras estudos, pelo fato de o trabalhador assalariado estar imerso num universo de gestão cujos valores e princípios levam ao esgotamento físico e mental, sendo a produção artesanal uma das possíveis alternativas que propiciam condições de trabalho mais saudáveis e autônomas. Para confirmar essa suposição, analisamos as experiências de duas categorias de artesãos existentes no Brasil - o luthier e o vidreiro. A partir do contato com esses mestres de ofício, por meio de uma pesquisa etnográfica que usou observação não-participante e entrevistas aprofundadas, concluímos que os mestres artesãos, apoiados pelas peculiaridades do savoir-faire artesanal, estão parcialmente isentos da precarização presente no cotidiano laboral dos trabalhadores assalariados.

Palavras-chave: Trabalho; Trabalho precarizado; Sentidos do trabalho; Trabalho artesanal;

ABSTRACT The labor’s world has been characterized as a scenario marked by uncertainties and instabilities, where most of the wage earners perform meaningless functions. Which alternatives would be possible for the workers? Would the craftsmanship be an option for a meaningful working life? The present research aimed to investigated the peculiar characteristics of the craftsman work and to what extent they can be considered as indicators of a meaningful and not alienated work - even in the capitalist order. We started from the premise that, as numerous studies point out, the precariousness of the labor’s world in the capitalism takes place due to the fact the wage earners are immersed in a management universe whose values and principles lead to physical and mental exhaustion, being the artisanal production one of the possible alternatives that provide healthier and autonomous working conditions. In order to confirm this assumption, we have analyzed the experiences of two categories of artisans existing in Brazil - the luthier and the glassmaker. As from the contact with these master craftsmen, by means of an ethnographic research that made use of non-participating observation and in-depth interviews, we have come to the conclusion that the master craftsmen are partially exempt from the precariousness present in the wage earners’ everyday labor.

Keywords: Work; Precarious work; Meanings of work; Craftsmanship.

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SUMÁRIO

1. Introdução..............................................................................................................03

2. O trabalho..............................................................................................................04

2.1. A evolução dos sistemas da organização do trabalho no século XX............14

2.2. A precarização no trabalho e a saúde do trabalhador....................................15

2.3. Os efeitos da precarização na saúde física e mental do trabalhador.............20

2.4. Organização do trabalho e sofrimento..........................................................23

2.5. Assédio Moral no Trabalho...........................................................................30

2.6. Os sentidos do trabalho.................................................................................32

3. História do trabalho artesanal.............................................................................35

3.1. O relacionamento do mestre de ofício com o aprendiz..................................37

3.2. As Corporações de Ofício..............................................................................39

3.3. As características do trabalho artesanal..........................................................41

3.4. A relação do artesão com a sua obra...............................................................44

4. Os caminhos percorridos na pesquisa empírica................................................48

4.1. Pesquisa etnográfica.......................................................................................48

4.2. Observação......................................................................................................50

4.3. Fazendo anotações da observação...................................................................51

4.4. Diário de Campo.............................................................................................52

4.5. Entrevista em profundidade............................................................................53

4.6. Análise dos resultados....................................................................................55

4.7. Quadros comparativos e explicativos.............................................................56

4.8. Roteiro de Observação e Entrevista................................................................60

5. Os achados da pesquisa. .....................................................................................63

5.1. Primeiro contato com o luthier........................................................................63

5.1.1. Primeira Visita ao luthier............................................................................63

5.2. Análise dos achados de pesquisa com luthier.................................................64

5.3. Análise dos achados de pesquisa com o mestre vidreiro.................................80

6. Considerações Finais...........................................................................................97

7. Referências........................................................................................................104

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1. Introdução

Essa pesquisa teve a intenção de analisar o trabalho artesanal, especialmente o de

mestres de ofício, inseridos no atual contexto capitalista, como uma das alternativas possíveis

à precarização no mundo do trabalho, que tem se caracterizado como um cenário de

incertezas, instabilidades e deterioração da qualidade de vida dos assalariados dentro e fora do

ambiente laboral. Para isso, foi realizado um levantamento bibliográfico que nos permitiu

conhecer os conceitos de trabalho, as características do trabalho na sociedade capitalista, as

formas de organização do trabalho, as consequências para a saúde física e psíquica do

trabalhador e os sentidos do trabalho – tudo isso, à luz das teorias sociológicas, da psicologia

social do trabalho e da psicodinâmica do trabalho. Além disso, buscamos definir, descrever e

analisar o trabalho artesanal e as funções do artesão ou artífice.

Em seguida, apresentamos o método etnográfico e as técnicas de observação e

entrevista aprofundada, bem como as instruções para a elaboração do roteiro de observação e

de entrevista. Em seguida foram elaborados dois quadros, a partir do levantamento

bibliográfico realizado, a fim de sintetizar e elencar os indicadores de precarização e de

sentido do trabalho, além de confrontar as características do trabalho industrial com as do

trabalho artesanal. Ao final, após a elaboração do roteiro de observação e de entrevista,

relatamos os achados a partir de dois encontros realizados com um luthier, especializado em

violão clássico e viola caipira, na cidade de Ribeirão Preto e de uma visita à fábrica de vidros

murano em Poços de Caldas (MG).

As perguntas norteadoras dessa pesquisa são: Existem alternativas reais, na ordem do

capital, para os trabalhadores desfrutarem de uma vida laboral dotada de sentido? No contexto

capitalista atual, em que o mundo do trabalho tem se caracterizado como um cenário de

precarização, incertezas e instabilidades, onde a maioria dos assalariados realiza trabalhos

alienados e com pouco sentido, que alternativas seriam possíveis aos trabalhadores? Seria o

trabalho artesanal uma opção de vida laboral dotada de sentido, ainda que inserido na lógica

capitalista? Que particularidades esse tipo de trabalho possui? Seriam elas suficientes para

propiciar aos trabalhadores/artesãos o que os empregos tradicionais da sociedade industrial

não propiciam?

Essa pesquisa parte da premissa de que a precarização do mundo do trabalho se dá,

como evidenciam inúmeros estudos, tanto pelo fato de o trabalhador assalariado estar

submetido a uma lógica em que produz para auferir lucro ao capitalista quanto pelo fato de

esses trabalhadores estarem imersos num universo de gestão cujos valores e princípios levam

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ao esgotamento físico e mental. Acreditamos que há alternativas que propiciam condições de

trabalho mais saudáveis, como é o caso da produção artesanal, já que o artesão tem mais

autonomia e participação no processo do trabalho, além de não estar submetido aos modelos

de gestão industrial.

O objetivo principal dessa pesquisa foi investigar quais são as características

peculiares do trabalho artesanal a partir das experiências de duas categorias de artesãos

existentes no Brasil - o luthier e o vidreiro - procurando identificar os indicadores que

diferenciam o trabalho artesanal do trabalho do tipo industrial. A pergunta central que se quis

responder é: estariam os artesãos, pelas peculiaridades do savoir-faire artesanal, blindados

(totalmente ou parcialmente) contra o que está presente no cotidiano laboral dos trabalhadores

assalariados tipicamente industriais, na ordem do capital?

Além disso, a pesquisa descreve o processo do trabalho artesanal dos artesãos

estudados, buscando evidências da autonomia e da participação do artífice em todas as etapas

da cadeia produtiva – o que, teoricamente, afastam-no da alienação e da falta de sentido no

trabalho.

Para atingir os objetivos propostos, foram utilizadas as seguintes técnicas, no âmbito

de uma metodologia qualitativa de pesquisa:

1. Levantamento bibliográfico sobre trabalho, precarização do trabalho, sentidos do

trabalho, trabalho artesanal.

2. Pesquisa de campo e análise das entrevistas, baseada na metodologia etnográfica.

Embora tenhamos obtidos dados que confirmem que as atividades laborais do luthier e

do vidreiro possuem características que de fato propiciam condições de trabalhos mais

saudáveis e dotadas de sentido, observamos também sinais de precarização em ambas as

categorias, como trabalho em local insalubre, exposição a ruídos, inalação de agentes

prejudiciais à saúde, altas temperaturas e riscos de acidentes – no caso dos mestres-vidreiros,

e baixa remuneração, sinais de estresse e ambiente de trabalho insalubre – no caso do luthier.

Entretanto, não conseguimos obter evidências contundentes para inferir que ambas as

categorias cheguem a um nível de precarização que leva ao esgotamento físico ou mental.

2. O trabalho

Muito além de uma atividade econômica, o trabalho pode ser definido como “a

atividade existencial do homem, sua atividade livre, consciente – não um meio de

conservação da sua vida, mas um meio de desenvolvimento da sua natureza universal”.

(MARCUSE, 2004, p. 238). Marx descreve o processo do trabalho da seguinte forma:

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[...] é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais. (MARX, 1996, p. 303).

Por ser inerente à condição humana, o trabalho passa a ser uma atividade essencial na

vida, que confere ao sujeito a oportunidade de se sentir inserido em uma sociedade. De acordo

com Pinto (2010), o trabalho tem se firmado como a base da sobrevivência humana,

consolidando a cultura dos povos e a diferenciação política interna de suas comunidades. É na

atividade laboral que se encontra a base da formação da identidade dos indivíduos. Por isso,

relações de trabalho danificadas, precarizadas ou mesmo a privação do trabalho pode resultar

na ausência de reconhecimento da própria identidade e, assim, pode trazer frustração e

sofrimento. Entretanto, a relação do trabalho com a identidade e sobrevivência humana nem

sempre foi aceita por determinados segmentos da sociedade:

Muitos já associaram a origem da palavra trabalho ao tripalium, um antigo instrumento de tortura. A eficácia dessa explicação está na verificação do fato de que nem sempre o trabalho, como atividade laboral, foi considerado desejável por homens e mulheres em todas as épocas históricas. (PINTO, 2010, p. 13. Grifos no original).

Marcuse (2004) afirma que o trabalho deveria ser um dos meios para a auto-realização

do homem e para o desenvolvimento pleno de suas potencialidades e, se exercida de forma

consciente, pode resultar em um sentimento de prazer e satisfação. O desenvolvimento

industrial acabou trazendo para o centro das discussões uma forma de trabalho que deixa de

lado a satisfação do trabalhador e dá espaço a uma atividade cuja índole é puramente

econômica e objetiva, onde as classes dominantes e ociosas exploram o trabalho excedente da

classe trabalhadora. Essa forma de trabalho é a essência de um sistema moderno chamado

capitalismo, conforme sugeriu Dobb (1986).

Para o autor, capitalismo é:

[...] um sistema de empresa individual sem obstáculos: um sistema em que as relações econômicas e sociais são governadas por contrato, em que os homens são agentes livres na busca de sua subsistência, e em que estão ausentes quaisquer compulsões e restrições legais. Assim, o capitalismo torna-se virtualmente [...] um regime de livre concorrência. (DOBB, 1986, p. 5).

Já Huberman (1962) definiu capitalismo como um sistema social, introduzido pela

burguesia, que surgiu durante o declínio do feudalismo e que é baseado na livre troca de

mercadorias, com o objetivo primordial de obter lucro. O autor ainda afirma que a expansão

do mercado industrial (do sistema familiar de produção até o sistema fabril) tem importância

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fundamental para a compreensão das forças que produziram a indústria capitalista, e para uma

melhor compreensão dessa expansão, Huberman (1962, p. 133) acredita ser útil traçar um

sumário com cada uma das quatro fases que compõem a evolução das organizações

produtivas, descritas a seguir:

a) Sistema familiar: Ocorreu no princípio da Idade Média, onde os membros de uma

família produziam artigos para seu próprio consumo e não para a venda.

b) Sistema de Corporações: Perdurou durante toda a Idade Média, é um sistema em

que não se vendia o trabalho, mas o produto resultante do trabalho. Os

responsáveis pela produção eram os mestres artesãos independentes, que contavam

com o suporte de dois ou três empregados. Além disso, essa mão-de-obra era

considerada proprietária da matéria-prima e das ferramentas utilizadas no processo

produtivo. Seus artigos eram comercializados em um mercado pequeno e estável.

c) Sistema doméstico: Do século XVI ao XVIII, a produção era realizada em casa,

pelo mestre artesão e seus ajudantes, e o comércio era feito com um mercado

crescente. A diferença para o sistema de corporações é que o mestre já não era

independente, ainda eram proprietários dos seus instrumentos de trabalho, porém

dependiam de um empreendedor para obter a matéria-prima. Sua figura, pouco a

pouco, foi se convertendo para um trabalhador assalariado.

d) Sistema fabril: Do século XIX até os dias de hoje, a produção era feita para um

mercado cada vez maior e não acontecia mais nas casas dos mestres artesãos, mas

sim nos edifícios do empregador, onde a organização do trabalho era submetida a

uma rigorosa supervisão. Os trabalhadores perderam sua independência, não eram

donos da matéria-prima, como no sistema de corporações, nem dos instrumentos

de trabalho, tal como ocorria no sistema doméstico. O uso de maquinarias passou a

ser recorrente, fazendo com que a habilidade da mão-de-obra perdesse parte da sua

importância no processo produtivo. Nesse sistema, o capital se tornou mais

necessário do que nunca.

Dessa forma, Huberman (1962) sugere que a partir do sistema doméstico o capital

passou a ter papel fundamental na economia de mercado:

Era necessário muito dinheiro para comprar a matéria-prima para muitos trabalhadores. Era necessário muito dinheiro para organizar a distribuição dessa matéria-prima e sua venda como produto acabado, mais tarde. Era o

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homem do dinheiro, o capitalista, que se tornava o orientador, o diretor do sistema de produção doméstica. (HUBERMAN,1962, p. 132).

A ênfase de Dobb (1986) na abordagem do capitalismo está na modificação que esse

sistema causou na produção e nas relações sociais que giram em torno dela. Segundo o autor:

[...] a alteração na estrutura da indústria afetou as relações sociais dentro do modo de produção capitalista, influenciando radicalmente a divisão do trabalho, diminuindo as fileiras do pequeno trabalhador-proprietário subempreiteiro, artesão intermediário entre capitalista e assalariado, e transformando a relação entre o trabalhador e o próprio processo produtivo. (DOBB, 1986, p.18).

Dessa forma, torna-se claro que é estabelecida uma nova relação entre capital e

trabalho, em que esse último é subordinado ao primeiro, uma nova ordem econômica que

respinga, inclusive, na relação entre empregado e empregador. De acordo com Dobb (1986),

essa relação capital/trabalho deu ênfase ao aparecimento de um novo tipo de diferenciação de

classes entre capitalista e proletário, o que dá respaldo para uma seqüência de medidas

organizacionais que promovem a exploração da força de trabalho, que inclui condições

precárias nas fábricas, jornadas cada vez menos flexíveis, bem como o pagamento de baixos

salários.

Pode ser simultaneamente verdade que a existência de uma oferta de trabalho proletário a um preço baixo de certo nível crítico seja a condição necessária para o crescimento da indústria capitalista, e que a presença desse elemento necessário, trabalho barato, num grau desproporcional aos outros ingredientes essenciais da situação, sirva para retardar a modificação na técnica que se destina a precipitar a nova ordem econômica. (DOBB, 1986, p. 198).

Para manter em desenvolvimento sua expansão, bem como a exploração da mão de

obra, Dobb (1986) também ressalta o caráter liberal dos capitalistas e a necessidade desse

sistema lutar constantemente pela liberdade econômica e pela ausência de regulamentação e

controle, pois só assim o detentor do capital poderá encontrar condições favoráveis para sua

expansão. Dessa forma, o autor ainda questiona a incoerência do posicionamento do capital ao

se colocar como “inimigo” histórico das restrições legais e do monopólio:

No entanto, vemos aí poucas semelhanças com o quadro real; mais adiante o papel do monopólio nos diversos estágios do capitalismo – ajudando, num primeiro momento, o aparecimento da burguesia e o progresso de acumulação de capital, e, de outras vezes, detendo o desenvolvimento técnico – será acentuado com freqüência. (DOBB, 1986, p. 20).

No que se relaciona ao acúmulo de capital, Dobb (1986) aponta que essa é a etapa

essencial dessa nova relação entre capital e trabalho ressaltada durante o processo de evolução

do capitalismo, sendo essa acumulação de capital um dos fatores que promovem não apenas a

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expansão econômica e o aumento do lucro, objetivo primordial do sistema, como também a

divisão de classes e a exploração dos proletários. De acordo com Dobb (1986), a necessidade

de ter o capital reunido nas mãos de uma classe capitalista é a condição preliminar para a

economia industrial, que se vê inserida nesse sistema: “[...] o florescimento industrial exige

não só uma transferência de títulos de riqueza para as mãos da classe burguesa, mas uma

concentração da possa da riqueza em mãos muito menos numerosas.” (DOBB, 1986, p. 128).

Dobb (1986) ainda afirma que para reproduzir as relações capitalistas de produção era

mais do que necessária a restrição da propriedade a uma minoria e a exclusão da maioria

quanto a qualquer participação, além disso, a lógica do capital pressupunha a existência de um

proletariado para que o sistema pudesse permanecer em constante expansão e proporcionar ao

mercado circunstâncias especialmente favoráveis a uma sociedade capitalista. De acordo com

o autor, os avanços na indústria no século XIX, bem como a acumulação de capital,

resultaram em uma transformação técnica que aumentou com bastante rapidez a produtividade

do trabalho e como consequência fez crescer a fila de proletários nas fábricas e influenciou no

aumento do campo de investimento e no crescimento do mercado de bens de consumo.

[...] nos séculos anteriores, o crescimento da indústria capitalista, foi dificultado pela estreiteza do mercado e sua expansão ameaçada pela baixa produtividade imposta pelos métodos de produção do período, sendo esses obstáculos reforçados de quando em vez pela escassez de trabalho. Na Revolução Industrial, essas barreiras foram simultaneamente banidas e, em vez disso, a acumulação e o investimento do capital se viram, a cada ponto do quadrante econômico, diante de horizontes cada vez mais amplos para incitá-los. (DOBB, 1986, p. 184).

O aumento da produtividade e o processo de produção nas indústrias do século XIX

foram marcados, de acordo com Dobb (1986), pela passagem da ferramenta da mão humana

para um mecanismo respaldado em novas fontes de energia. Essa transformação, segundo

Dobb (1986) reforçou a relação do trabalho subordinado ao capital e impôs, não só a

concentração dos trabalhadores em um único lugar de trabalho (a fábrica), como também

estabeleceu ao processo produtivo um caráter coletivo, como a atividade de uma equipe

metade humana, metade mecânica.

Uma característica desse processo foi a extensão da divisão do trabalho a um

grau de complexidade jamais testemunhado, e sua extensão, além disso, a

um grau inimaginável dentro do que constituía, tanto funcional quanto

geograficamente, uma única unidade ou equipe de produção. Outra

característica foi a necessidade crescente no sentido de que as atividades do

produtor humano se conformassem aos ritmos e movimentos do processo

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mecânico: uma mudança técnica de equilíbrio que teve o seu reflexo sócio-

econômico na crescente dependência do trabalho em relação ao capital e no

papel cada vez maior desempenhado pelo capitalista como força

disciplinadora e coatora do produtor humano em suas operações detalhadas.

(DOBB, 1986, p. 162)

Marx (1989) afirmou que os trabalhadores ficam mais pobres conforme vão

produzindo mais riqueza e quanto mais mercadoria essa classe produz, mais barata (como

produto) essa força de trabalho se torna, “[...] a valorização do mundo das coisas aumenta em

proporção direta a desvalorização do mundo dos homens.” (MARX, 1989, p. 148. Grifos no

original), dessa forma o trabalho não só produz mercadoria, ele torna a classe trabalhadora

alienada e a transforma em mercadoria:

Este fato nada mais expressa senão: o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser alheio, como um poder independentedo produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, se fez coisal, é a objetivação do trabalho. A realização efetiva do trabalho é a sua objetivação. No estado econômico-político esta realização efetiva do trabalho aparece como desefetivação do trabalhador, a objetivação como perda e servidão do objeto, a apropriação como alienação. (MARX, 1989, p. 149. Grifos no original).

Marx (1989) conclui, então, que o trabalhador se torna um servo do objeto que ele

mesmo produz, ou seja, ele precisa desse objeto, tanto para realizar suas atividades laborais e

existir como trabalhador, quanto para receber meios de subsistência. O autor ainda observa

que o trabalho se torna um objeto que a classe operária pode se apoderar apenas com os

maiores dos esforços e com as mais irregulares interrupções capitalistas. A apropriação do

objeto, segundo Marx (1989), surge nesse caso como a alienação do trabalhador, quanto mais

ele produz, menos domínio ele tem sobre o produto do seu trabalho e sobre o que ele executa.

Marx (1989) considera o ato de alienação das atividades laborais sob dois aspectos:

1: A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto alheio tendo poder sobre este – esta relação é simultaneamente a relação com o mundo exterior sensorial, com os objetos da natureza como um mundo alheio que lhe defronta hostilmente. 2: A relação do trabalho com o ato da produção dentro do trabalho – esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade alheia não pertencente a ele, a atividade como sofrimento, a força como impotência. (MARX, 1989, p. 154. Grifos no original).

Dessa, forma, Marx (1989) conclui que o trabalho alienado aliena o homem à natureza

e a si mesmo. A natureza é o próprio corpo do homem, com o qual ele tem que permanecer em

constante processo para não morrer. O trabalho, ao colocar o homem como um servo do

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objeto que produz, o faz perder sua essência humana, alheio inclusive ao seu próprio corpo e à

sua própria natureza.

Segundo Marcuse (2004), o trabalho em sua forma atual, deforma as faculdades

humanas e inibe a satisfação, tornando o trabalhador um indivíduo alienado não só do produto

que produz, mas também alienado de si mesmo, a partir do momento em que o detentor dos

meios de produção (capitalista) passa a ser o proprietário da força de trabalho.

Força de trabalho ou capacidade de trabalho pode ser definida como “o conjunto das

faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um

homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer

espécie”. (MARX, 1996, p. 285). Segundo Braverman (1987), a força de trabalho adquiriu

status de mercadoria no universo gerencialista e esse processo de mercantilização teve seu

início quando o detentor do capital começou a desconsiderar a diferença entra a força de

trabalho e o trabalho que pode ser obtido dela, passando a comprar trabalho do mesmo modo

que adquiria suas matérias-primas.

Antes de Braverman, Marx (1996) já sustentava a tese de que a força de trabalho se

transformou em mercadoria, e como toda mercadoria, ela tem o seu valor calculado. Nesse

caso, o cálculo leva em conta o tempo de trabalho necessário à produção, ou seja, “o tempo de

trabalho requerido para a produção de outra espécime da mesma mercadoria sob as mesmas

condições gerais de produção”. (MARCUSE, 2004, p. 257). Além disso, Marx também

afirma que a força de trabalho tende a ser realizada mediante a sua exteriorização e só é

ativada no ambiente laboral. Por meio dessa ativação, o trabalho é gasto, porém, precisa ser

reposto: “Esse gasto acrescido condiciona uma receita acrescida. Se o proprietário da força de

trabalho trabalhou hoje, ele deve poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas

condições de força e saúde”. (MARX, 1996, p. 288). Toda essa disposição exigida da mão-de-

obra tem como uma das finalidades essenciais gerar valor para as organizações sociais:

[...] o trabalho “vivo”, a força de trabalho, é ó único fator que aumenta o valor do produto do trabalho para além do valor dos meios de produção. Esse crescimento do valor transforma os produtos do trabalho em componentes do capital. O trabalho, por isso, não só produz sua própria exploração como também o meio que possibilita esta exploração, a saber, o capital. (MARCUSE,2004, p.288).

O trabalhador pauta as suas atividades de acordo com a vontade do capitalista a

quem pertence o seu trabalho. É necessário entender que a capacidade de trabalho é colocada

como uma mercadoria no contexto do capitalismo, em que o capitalista compra essa

capacidade e se apodera dela para atingir seus objetivos empresariais. De acordo com Marx, o

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capitalista entende o processo de trabalho como uma forma de consumir a mercadoria (força

de trabalho comprada por ele) e isso só acontece se essa mercadoria humana agir como um

meio de produção. Cabe ao trabalhador, nesse caso, arcar com as consequências dessa relação

de comercialização da sua própria força de trabalho, enquanto se vê obrigado a atuar sob um

rígido controle daquele que tem total poder sobre suas mãos e sua mente.

A respeito da força de trabalho, Harvey (2011) ressalta a diversidade social, cultural

e religiosa que existe dentro dessa classe:

A força de trabalho potencial tem gênero, raça, etnia e tribo ou se divide pela

língua, política, orientação sexual e crença religiosa, e tais diferenças

emergem como fundamentais para o funcionamento do mercado de trabalho.

Tornam-se ferramentas por meio das quais os capitalistas administram a

oferta de trabalho em conjunto com os setores privilegiados da força de

trabalho que usam o racismo e o machismo para minimizar a competição.

(HARVEY, 2011, p. 57).

Além disso, Harvey (2011) afirma que a lógica da acumulação perpétua do capital

depende da disponibilidade permanente de reservas de acesso à força da mão de obra, uma

condição que Marx denominou “exército industrial de reserva”. “Esse exército deve ser

acessível, socializado e disciplinado, além de ter as qualidades necessárias (isto é, ser flexível,

dócil, manipulável e qualificado quando preciso).” (HARVEY, 2011, p. 55). Caso essas

condições não sejam seguidas, os objetivos de acumulo do capitalista acabam sendo

comprometidos, de acordo com a visão gestionária.

Outra forma da organização social garantir o acúmulo de capital, relacionada à mão-

de-obra, é aderindo ao progresso tecnológico e investindo na compra de máquinas que passam

a substituir, progressivamente, o trabalho humano. De acordo com Marx (1985), o uso de

maquinaria como capital não tem o objetivo de aliviar a labuta do ser humano, muito pelo

contrário, assim como o desenvolvimento da força produtiva de trabalho, ela se destina a

baratear as mercadorias produzidas e a reduzir a jornada de trabalho que o operário precisa

para si mesmo, estendendo, dessa forma, a outra parte da jornada que ele oferecerá de graça

ao detentor do capital. Esse processo em que o trabalhador executa suas atividades em um

tempo maior do que o necessário e que gera ao capitalista um valor excedente muito maior do

que aquele proporcionado sua força de trabalho (salário) é chamado por Marx (1996) de

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produção da mais-valia. O autor diferenciou dois tipos de mais-valia: mais-valia absoluta e

mais-valia relativa.

A mais-valia absoluta, de acordo com Marx (1996) é aquela produzida pelo

prolongamento da jornada de trabalho e que gera, portanto, o aumento da quantidade de mais-

valia por operário ocupado. Ou seja, para Marx (1996) só era possível a criação da mais-valia

absoluta mediante o:

[...] prolongamento da jornada de trabalho ou intensificação das tarefas, de tal maneira que o tempo de sobretrabalho (criador de mais-valia) aumentasse, enquanto se conservava igual o tempo de trabalho necessário (criador do valor do salário). (MARX, 1996, p. 41).

No entanto, para Marx (1996), a característica fundamental do modo de produção

capitalista não é a criação de mais-valia absoluta, mas sim a de mais-valia relativa. A mais-

valia relativa, ao contrário da absoluta que prolonga a jornada de trabalho, acaba decorrendo

da redução do tempo de trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois

componentes da jornada de trabalho: o trabalho necessário e o sobretrabalho. Isto é, a mais-

valia relativa:

[...] resulta do acúmulo de inovações técnicas, que elevam a produtividade social do trabalho e acabam por diminuir o valor dos bens de consumo nos quais se traduz o valor da força de trabalho, exigindo menor tempo de trabalho para a reprodução desta última. Por isso, sem que se alterem o tempo e a intensidade da jornada de trabalho, cuja grandeza permanece a mesma, altera-se a relação entre seus componentes: se diminui o tempo de trabalho necessário, deve crescer, em contrapartida, o tempo de sobretrabalho. (MARX, 1996, p. 41) .

Outra característica marcante desse progresso tecnológico é o inevitável

“enxugamento de quadros” devido a automatização e robotização do trabalho. A redução de

quadros em detrimento das máquinas, no ambiente laboral é explicada por Marx: “A máquina

(...) substitui o trabalhador, que maneja uma única ferramenta por um mecanismo que opera

como uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez (...) movimentada por

uma única força motriz”. (MARX, 1985, p. 10). Segundo Dejours:

Enquanto se “enxugam os quadros”, os que continuam a trabalhar o fazem cada vez mais intensamente, e a duração real de seu trabalho não pára de aumentar; não só entre gerentes, mas também entre os técnicos, os empregados e todos os “executores”, em particular, os terceirizados. (DEJOURS, 2000, p. 42).

Dejours discorda do discurso gerencialista, apoiado pela lógica capitalista, de que a

precarização e o sofrimento do trabalhador foi amenizado com o advento das máquinas na

produção industrial:

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Querem nos fazer acreditar, ou tendemos a acreditar espontaneamente, que o sofrimento no trabalho foi bastante atenuado ou mesmo eliminado completamente pela mecanização e a robotização, que teriam abolido as obrigações mecânicas, as tarefas de manutenção e a relação direta com a matéria que caracterizam as atividades industriais. Além de transformar braçais “cheirando a suor” em operadores de mãos limpas (...), só o que as empresas nos mostram são suas fachadas e vitrines (...), por trás das vitrines, há o sofrimento dos que trabalham. Dos que, aliás, pretensamente não mais existem, embora na verdade sejam legião, e que assumem inúmeras tarefas arriscadas para a saúde, em condições pouco diferentes daquelas de antigamente e por vezes mesmo agravadas por freqüentes infrações das leis trabalhistas. (DEJOURS, 2000, pp. 27-8)

Seguindo a discussão sobre os avanços tecnológicos nas organizações e seu impacto

na produtividade da força de trabalho, vamos colocar em pauta a questão do trabalho material

e imaterial, que Dal Rosso (2008) discutiu com base na literatura marxista. De acordo com o

autor, o trabalho contemporâneo tem sido marcado pela transição da materialidade para a

imaterialidade, característica que tem transformado sobremaneira o trabalho industrial.

Enquanto a atividade material repercutia sobre o operário exercitando seus músculos, seus

cérebros e suas relações sociais como um todo para a produção de bens materiais, a atividade

imaterial incorporava cada vez mais tecnologias de informática, comunicação e automação e

ocupava ainda mais a inteligência prática e emocional do trabalhador para produção de

informação, conhecimento e relacionamentos.

Essa substituição do trabalho material para o imaterial corresponde, então, à

passagem das atividades industriais para as de prestação de serviços. Entretanto, Dal Rosso

(2008) nos atenta ao fato de que é necessário distinguir as atividades dos serviços baseados na

materialidade (como bares e restaurantes, por exemplo) dos serviços em que a imaterialidade

se fundamenta quase que integralmente. Nas atividades imateriais baseadas na materialidade,

os detentores da força de trabalho se pautam no trabalho físico e corporal tanto quanto nas

organizações industriais:

[...] as atividades vinculadas à prestação de serviços pessoais como em bares, restaurantes e os serviços que o viabilizam, entre eles, a cozinha e a produção de alimentos e bebidas, equiparam-se ao trabalho industrial no sentido de sua materialidade. O mesmo refere-se a inúmeros outros serviços que são simples extensões do trabalho industrial, entre os quais a reparação de motores, máquinas, equipamentos, aparelhos e outros itens assemelháveis. Os serviços com base na imaterialidade marcam diferenças significativas em relação ao trabalho industrial pelo fato de demandarem mais intensamente as capacidades intelectuais, afetivas, os aprendizados culturais herdados e transmitidos, os cuidado individual e coletivo. (DAL ROSSO, 2008, p. 33).

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De acordo com Pinto (2010), todas as áreas do conhecimento científico concordam

que o trabalho, enquanto atividade dotada de “planejamento” e “execução", material ou

imaterial, é o que diferencia os seres humanos de todos os outros seres vivos. Muito embora o

trabalho seja colocado como a base de sobrevivência do homem ou como uma experiência

que confere um sentido maior a sua vida, o autor levanta questões que contradizem essa

lógica, visto que a origem da degradação das condições do trabalhador estaria na gestão do

trabalho, que se fundamenta em estratégias cada vez mais agressivas visando o acúmulo de

capital.

2.1. A “evolução” dos sistemas da organização do trabalho no século XX

O século XX certamente foi marcado pela gestão da força de trabalho no espaço das

fábricas, começando com a chamada “gerência científica” do taylorismo, passando pelo

fordismo e chegando ao modelo japonês da Toyota. Esses modelos hegemônicos de gestão do

trabalho nas organizações são emblemáticos da precarização do mundo do trabalho.

A gerência científica “significa um empenho no sentido de ampliar os métodos da

ciência aos problemas complexos e crescentes no controle do trabalho nas empresas

capitalistas em rápida expansão” (BRAVERMAN, 1987, p. 82). Segundo Braverman (1987),

esse modelo taylorista alienou a mão-de-obra porque foi marcado pela forma rigorosa com

que os gerentes das indústrias controlavam as atividades fabris executadas pela força de

trabalho. O controle era feito através da cronometragem e do estudo de movimento e

desencadeou naquilo que o autor chama de “destruição do ofício” dos operários, quando estes

passam a ser destituídos do conhecimento do ofício e do controle autônomo. (BRAVERMAN,

1987).

Em seguida, surge a figura de Henry Ford, empreendedor estadunidense que ampliou

inúmeras novidades industriais que já estavam em curso na época, dentre as quais a taylorista.

O fordismo mantinha intacta a lógica de que o controle da força de trabalho pertencia aos

gerentes, mas acrescentou ao universo industrial a linha de produção em massa baseada na

esteira, o que aumentou consideravelmente o ritmo de trabalho do assalariado, que agora

operava de acordo com o ritmo das máquinas: “no lugar dos homens responsáveis pelo

deslocamento dos materiais e objetos de trabalho, máquinas automáticas passaram a se

encarregar por tal, suprindo o trabalho humano (...)” (PINTO, 2010, p. 32). Ao longo de

praticamente todo o século XX, o binômio taylorismo/fordismo dominou o sistema produtivo

industrial e empresarial e reduziu toda a atividade de trabalho a ações mecânicas e repetitivas:

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[...] Uma linha rígida de produção articulava os diferentes trabalhos tecendo vínculos entre as ações individuais das quais a esteira fazia as interligações, dando ritmo e o tempo necessários para a realização das tarefas. Esse processo produtivo caracterizou-se, portanto, pela mescla de produção em série fordista com o cronômetro taylorista, além da vigência de uma separação nítida entre elaboração e execução. Para o capital, tratava-se de apropriar-se do savoir-faire do trabalho, “suprimindo” a dimensão intelectual do trabalho operário, que era transferida para as esferas da gerência científica. (ANTUNES,1999, p.37).

O equilíbrio dessa ordem taylorista/fordista perdurou até meados dos anos 1980,

quando perdeu forças devido ao seu rígido processo de produção, que consequentemente já

não conseguia mais acompanhar as variações de um mercado industrial cada vez mais

globalizado. É a partir desse questionamento do atual sistema taylorista/fordista que surge, no

ambiente industrial, um interesse em substituir a produção em escala por um sistema enxuto

conhecido como “just in time”, que prioriza a produção e a entrega cada vez mais rápidas e

precisas de mercadorias, resultando na rápida difusão do toyotismo ou modelo japonês nas

fábricas. Esse regime, segundo Harvey (1993), acaba evidenciando a flexibilização dos

mercados de trabalho, das relações de trabalho, do mercado consumidor, das barreiras

comerciais e do controle do Estado na iniciativa privada. Enquanto o padrão taylorista-

fordista se desenvolvia num contexto de welfare-state, o modelo japonês encontra terreno

fértil no neoliberalismo.

Os modelos de administração citados acima, que foram amplamente adotados pelas

indústrias, reforçaram ainda mais a ideia de que trabalho é sinônimo de sofrimento e este é

causado por medidas que vão desde o controle rígido da força de trabalho até a sua

automação. Seja no ambiente industrial ou no de serviços, o trabalhador está imerso num

universo de gestão cada vez mais estressante. A partir de agora vamos conferir pesquisas e

estudos que evidenciam a precarização no ambiente de trabalho nos diversos setores do

mercado econômico e como isso tem levado o sujeito proprietário da força de trabalho ao

esgotamento físico e mental e à perda do sentido das atividades que realiza no campo laboral.

2.2. A precarização no trabalho e a saúde do trabalhador

O progresso tecnológico e automação nas fábricas e indústrias aliado aos novos

modelos de gestão do século XX, além de “enxugar quadros”, diminuem as funções

operacionais do trabalhador, que passam a ser desempenhadas por máquinas e robôs,

enquanto a jornada de trabalho da mão-de-obra permanece a mesma. Diante desse quadro, a

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força de trabalho acaba gerando mais valor do que custo para o empregador, embora o

discurso gerencial e as práticas contábeis das empresas considerem a força de trabalho como

custo.

Conforme foi constatado por Alves (2000), a ordem do capitalismo é introduzir cada

vez mais tecnologia e padrões organizacionais vinculados ao toyotismo, não só no setor

industrial, mas também no de serviços, sendo essa uma forma de redução do trabalho vivo que

culmina no aumento da rentabilidade acionária. Sobre o progresso tecnológico no ambiente

de trabalho, De Decca (1995) afirma que as fábricas se aproveitaram disso para tornar

ilimitadas as dimensões da produtividade humana. Além do mais, os gerentes também se

aproveitaram do poder controlador que tinham sobre os operários para induzi-los a pensar

dentro de uma lógica pré-definida, impossibilitando-os de refletir além das regras e

submetendo-os ''a um regime de trabalho ditado pelas normas dos mestres e contramestres, o

que representou em última instância, o domínio do capitalista sobre o processo do trabalho''.

(DE DECCA, 1995, p. 24).

No que se relaciona ao Brasil, Druck (2013) afirma que a precarização do trabalho

sempre esteve fortemente presente no país, desde a escravidão até a transição para o trabalho

assalariado. Antes dos direitos incorporados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em

1944, era possível notar que o grau de informalidade nos vínculos empregatícios era uma

forma, dentre tantas outras, de precarizar o trabalho do assalariado, principalmente nas

regiões, que até então, tinham um fraco desempenho industrial, como o Norte e Nordeste.

Porém, a autora sublinha a existência de uma forma mais ampla de precarização social do

trabalho no país que leva a sociedade a um retrocesso em todas as suas dimensões, já que: a)

atinge todas as regiões do Brasil, da mais desenvolvida a menos desenvolvida; b) está

presente tanto nos setores modernos das indústrias de ponta quanto nas formas mais

tradicionais e informais de trabalho; c) atinge tanto a mão de obra qualificada quanto a menos

qualificada.

[...] essa precarização se estabelece e se institucionaliza como um processo social que instabiliza e cria uma permanente insegurança e volatilidade no trabalho, fragiliza os vínculos e impõe perdas dos mais variados tipos (direitos, emprego, saúde e vida) para todos os que vivem do trabalho. (DRUCK, 2013, p. 61)

A precarização das relações de trabalho no Brasil está intimamente ligada às medidas

de flexibilização. Vasapollo (2006) entende essa medida como uma imposição ao trabalhador

para que ele aceite salários reais mais baixos e piores condições, refutando o discurso

gerencialista de que o trabalho flexível surge nas organizações como uma das alternativas

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para combater o desemprego. A flexibilização, então, pode ser caracterizada como: a)

liberdade da empresa para despedir parte dos seus funcionários, sem penalidades, quando este

é julgado pouco produtivo; b) liberdade da empresa para reduzir, aumentar ou alterar o

horário de trabalho sem aviso prévio; c) cabe à empresa decidir o quanto vale o trabalho do

assalariado para que ela possa se manter competitiva no mercado perante os concorrentes; d)

liberdade para a empresa terceirizar parte das suas atividades; e) possibilidade de diminuir o

pessoal efetivo investindo em contratos informais, ou trabalhadores subcontratados, que são

privados de qualquer tipo de direito social ou trabalhista. (VASAPOLLO, 2006, pp. 45-6,).

A flexibilidade acaba, também, sendo reforçada por estratégias empresariais que

visam terceirizar as atividades da força de trabalho através de redes de subcontratação que

degradam a mão-de-obra. A terceirização pode ser entendida como o “processo de repasse

para a realização de complexo de atividades por empresa especializada, sendo que estas

atividades poderiam ser desenvolvidas pela própria empresa” (CARELLI, 2003, pp. 75-6).

Diante disso, Marcelino (2006) enfatiza que a empresa principal deixa de ser a representante

legal por esses trabalhadores e transforma em custo variável aquilo que antes representava um

custo fixo para a organização, eliminando, dessa forma, gastos que são vistos como

desnecessários na lógica capitalista:

Com o fim da contratação direta da força de trabalho diminuem os chamados encargos trabalhistas (fundos de garantia, aviso prévio, contribuição previdenciária, décimo terceiro, férias, etc.) e o valor da remuneração do trabalho paga em forma de salários; além de deixar de ser onerosa para a empresa a contratação ou demissão de trabalhadores variando de acordo com as demandas de mercado. Isso tudo com amparo legal para terceirizar e enquadrar esses trabalhadores em outras categorias profissionais que não aquelas das indústrias contratantes. (MARCELINO, 2006, p. 98).

Para exemplificar o processo de terceirização nas empresas, tomaremos como base a

indústria automobilística, que é um dos principais setores industriais do capitalismo mundial e

é onde surge, com maior força, a natureza da crise da acumulação de capital na era da

globalização, conforme afirmou Alves (2000). De acordo com Marcelino (2006), as

estratégias de terceirização em uma importante indústria do ramo automobilístico, instalada

no Brasil, não se restringem apenas à atividade-fim como limpeza, segurança ou cozinha1,

mas atinge também partes do processo produtivo que são considerados fundamentais para que

os objetivos e metas da montadora sejam alcançados, sendo a área de logística a principal

���������������������������������������� �������������������1 A Súmula nº 331 do TST diz que III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

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delas. “Além das atividades de abastecimento, transporte e armazenagem de suprimentos e de

matéria-prima [...] as empresas tem delegado de maneira crescente tarefas aos chamados

‘operadores logísticos’”. (MARCELINO, 2006, p. 97). Segundo a autora, isso se deve ao fato

da reestruturação produtiva trazer consigo uma nova forma de organização logística do

trabalho, de modo que responda prontamente às necessidades impostas pela crise de

acumulação do capital. A logística nesse setor passou a ser considerada atividade-meio e

deixou de ser compreendida como aquela atividade integrada ao sistema produtivo para a

produção de carros.

É nesse quadro de desregulamentação das relações trabalhistas que os trabalhadores das indústrias automobilísticas da área de logística, onde essa atividade foi terceirizada, são considerados trabalhadores de assessoramento, e não metalúrgicos. Como só é possível extrair mais-valia de trabalho-vivo, rebaixar salários por meio da terceirização de atividades é uma forma de exploração renovada no capitalismo. Além do prolongamento da jornada de trabalho e do aumento da produtividade por meio da automação e da inserção de maquinaria, o capitalismo reduz ainda mais a remuneração em salário, destinada à subsistência e reprodução da força de trabalho. (MARCELINO, 2006, p. 98).

De acordo com Vasapollo (2006), a atual situação do mercado de trabalho, cada vez

mais guiado pelas diretrizes da lógica capitalista, tem empurrado o “trabalho padrão” para o

campo da precariedade, subvertendo-o para um status de “trabalho atípico”. Para

compreender melhor esse fenômeno, Vasapollo (2006) estabelece que o “trabalho atípico” se

caracteriza pela sua informalidade, pela diminuição dos postos de trabalho efetivos e estáveis

e pela inclusão de todas as formas de prestação de serviços por tempo indeterminado e full-

time, submetendo o trabalhador a ofertar sua disponibilidade temporal de maneira exclusiva

ao empregador. Dessa forma, Vasapollo (2006) propõe que o atual mercado de trabalho tem

operado cada vez mais a favor de práticas organizacionais flexíveis, bem como a terceirização

e as novas formas de gestão da mão de obra, tendo a precarização do assalariado como o seu

principal sintoma, dentro e fora das empresas:

É o mal estar do trabalho, o medo de perder o próprio posto, de não poder mais ter uma vida social e de viver apenas do trabalho e para o trabalho, com a angústia vinculada à conseqüência de um avanço tecnológico que não resolve as necessidades sociais. É o processo que precariza a totalidade do viver social. (VASAPOLLO, 2006, p.45).

Diante de toda essa problemática estrutural no ambiente de trabalho que precariza a

mão de obra assalariada, as relações interpessoais acabam também sendo afetadas e o que se

observa é um modelo de negócio em que a figura do gerente exige de seus subordinados

resultados e desempenhos humanamente inalcançáveis, “Daí uma pressão pelo tempo, pelos

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resultados, mas também pelo medo, que tem consequências terríveis. Ele gera comportamento

de adição, estresse cultural e sentimento de invasão.” (GAULEJAC, 2007, p. 214). Segundo

Gaulejac, esse modelo de gestão também gera conflito, engessamento e competição nas

organizações:

O sistema gerencialista suscita um modelo de personalidade narcísica, agressivo, pragmático, sem estados de alma, centrado sobre a ação e não tanto sobre a reflexão, pronto a tudo para ter sucesso. O empregado projeta sobre a empresa seu próprio ideal de onipotência e de excelência e, ao mesmo tempo, introjeta o ideal de expansão e de conquista, proposto pela empresa. (GAULEJAC, 2007, p. 217).

Um dos setores que se tornou vítima da reestruturação do trabalho e tem causado um

sofrimento generalizado no trabalhador, de acordo com Jinkings (2006), é o sistema bancário,

em que sua remodelação se deu com maior profundidade após a implementação do programa

de estabilização monetária, o Plano Real. Submetido à lógica expansiva do capital, esse setor

intensificou ainda mais a exploração das condições de trabalho, principalmente a partir da

transição do trabalho vivo para o trabalho morto, quando as máquinas passaram a operar no

lugar da força de trabalho humana. Essas mudanças não só repercutiram nas condições de

trabalho, como também na exigência de novos perfis de bancários enquanto categoria

profissional.

Dessa forma, Jinkings (2006) explica que bancários, com responsabilidades de apoio

ou simplificadas, vão sendo descartados para dar lugar a máquinas ou trabalhadores

terceirizados, ao mesmo tempo em que também se valoriza um “novo perfil” de profissional,

mais adequado a lógica capitalista, com habilidades em gerenciamento e em vendas, com uma

noção mais apurada sobre o mercado financeiro e que saibam atender de forma diferenciada

clientes distintos com potencial para oferecer altos rendimentos para o banco.

Diante desse quadro, a identidade profissional do bancário é redefinida e este passa a

ser cobrado na organização como bancário-vendedor, empurrado para vender os “produtos”

oferecidos pelo sistema, como títulos, seguros e aplicações. Tudo isso é realizado mediante a

opressão e a uma rígida disciplina organizacional que impõe metas que levam não só ao

estresse e a loucura, como também à precarização dos trabalhadores desse setor: “As metas,

por exemplo, configuram-se enquanto fontes de pressão à medida que o bancário possa ser

mandando embora caso não as cumpra”. (VELOSO, PIMENTA, 2005, p. 119). Além da

pressão, a reestruturação do sistema bancário no Brasil resultou na perda de milhares de

empregos. Segundo dados da Pesquisa de Emprego Bancário (PEB) divulgados pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT, 2015), o setor

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bancário cortou aproximadamente 5 mil empregos em 2014, ostentando os maiores índices de

rentabilidade no ano em questão.

2.3. Os efeitos da precarização na saúde física e mental do trabalhador

A partir do final da década de 1990, Bernardo (2009) constatou que ao invés de uma

maior satisfação com a suposta humanização dos processos flexíveis de trabalho, os

trabalhadores têm apresentado cada vez mais reclamações a respeito do sofrimento psíquico e

doenças psicossomáticas causadas pelas duras normas organizacionais de trabalho. Segundo

Dejours (2007), a indústria é uma das grandes causadoras de certas descompensações

(desequilíbrio entre as pressões e suas defesas) nos trabalhadores, pois impõe a eles um

aumento de ritmo de trabalho intolerável. O autor mostra que o aumento de atividades

repetitivas, a aceleração dos tempos e a exigência de um desempenho altamente rentável

conduzem à rápida descompensação, que se desencadeia como se fosse uma epidemia: “(...) o

pessoal, principalmente feminino, descompensa em crises de choro, dos nervos e desmaio,

que atingem, como uma doença contagiosa, toda uma seção de trabalho”. (DEJOURS, 2007,

p. 120).

O autor dá o exemplo de uma funcionária, que ao se sentir pressionada com a

imposição de um ritmo de trabalho muito acima daquilo que é tolerável, tem uma crise

nervosa e começa a tremer e gritar, e minutos depois outra funcionária do posto também

apresenta uma crise de choro, ou seja, é possível notar nas organizações uma “série de

descompensações” que se segue em forma de cadeia.

Para Dejours (2000), a precarização no campo laboral gera quatro efeitos principais

sobre o trabalhador, quais sejam:

a) a intensificação do trabalho que gera sofrimento subjetivo;

b) a neutralização do pensamento e da mobilização coletiva contra o sofrimento,

contra a dominação e contra a alienação pelas quais os trabalhadores estão sujeitos;

c) o efeito do individualismo, agora é cada um por si só e,

d) a estratégia defensiva do silêncio, da cegueira e da surdez.

Para um melhor entendimento sobre os quatro efeitos da precarização que impactam

diretamente a força de trabalho, vamos analisar todos os itens citados por Dejours,

separadamente.

No que diz respeito a intensificação do trabalho, Dal Rosso (2008) afirma que a

intensidade está diretamente relacionada com a forma como é realizado o ato de trabalhar,

pois este ato demanda dos operários um gasto maior de energias físicas e psíquicas, “A idéia

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de que todo ato de trabalho envolve gasto de energia e, portanto, exige esforço do trabalhador,

está na raiz da noção de intensidade. O trabalhador pode gastar mais ou menos de suas

energias, mas sempre gasta alguma coisa”. (DAL ROSSO, 2008, p. 20). Para o autor, os

capitalistas exigem da mão-de-obra um empenho maior, seja física, intelectual ou

psiquicamente. A intensidade é, portanto, mais do que um conjunto de esforços físicos, pois

engloba também a inteligência, a afetividade despendida e os saberes adquiridos

historicamente pelo trabalhador.

Dal Rosso afirma que a análise de intensidade, no capitalismo contemporâneo, está

voltada para resultados, por isso a intensificação de trabalho é manipulada para elevar os

índices de produção:

Falamos de intensificação quando os resultados são quantitativa ou qualitativamente superiores, razão pela qual se exige um consumo maior de energias do trabalhador. Há intensificação do trabalho quando se verifica maior gasto de energias do trabalhador no exercício de suas atividades cotidianas. Quando se trata de trabalho físico, os resultados aparecem em medidas tais como o maior número de veículos montados por dia, por pessoa etc. Quando o trabalho não é físico, mas de tipo (...) emocional, como o que ocorre com o educador e a enfermeira, os resultados podem ser encontrados na melhoria da qualidade mais do que na quantidade de pessoas atendidas. (DAL ROSSO, 2008, p. 21).

Dessa forma, o autor conclui que essa intensificação laboral, que supõe um esforço e,

portanto, um gasto maior de energia, acaba resultando em desgaste, fadiga, sofrimento, além

de afetar o sujeito nos campos fisiológico, mental e emocional. Muitos desses problemas

físicos e mentais são causados pela imposição e pressão de metas cada vez mais

enlouquecedoras no ambiente de trabalho e que enclausuram o trabalhador diante do poder

disciplinador do empregador. No contexto de um sistema econômico cada vez mais acirrado e

competitivo, a cobrança por metas impossíveis de serem cumpridas é recorrente do sistema

para a acumulação de capital:

O modo de produção capitalista traz à cena uma nova forma de gerir recursos humanos no interior das empresas. Essa nova gestão se compõe por uma série de exigências, fundamentadas pelos gestores como “exigências de um mercado cada vez mais competitivo”, significadas no cotidiano por uma maior pressão por metas e cobranças personificadas em resultados quantitativos. (FREIRE, 2008, p. 367).

Já para Dejours, Dessors e Desriaux (1993), esse tipo de pressão ataca e destrói o

desejo dos trabalhadores e pode provocar doenças físicas e mentais:

Assim, num trabalho repetitivo sob pressão de tempos ou no trabalho por peças, não há, absolutamente, lugar para a atividade fantasiosa; ou as aptidões fantasiosas não são utilizadas e a via de descarga psíquica está

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fechada. A energia psíquica se acumula, se transformando em fonte de tensão e desprazer, até que aparecem a fadiga, depois a astenia e, a seguir, a patologia. (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX, 1993, p. 104).

Os outros dois efeitos da precarização, segundo Dejours (2000), são a neutralização

das mobilizações coletivas e o individualismo do ser humano tendo em vista que o

“enxugamento de quadros” e as incertezas do cargo acabam sugerindo o isolamento social do

indivíduo. De acordo com Gaulejac (2007), os trabalhadores do capitalismo contemporâneo,

submetidos à pressão por desempenho e a incentivos para rivalizar com colegas de profissão,

minimizaram a essência do coletivo e o significado das lutas sociais. Se antes a força de

trabalho compartilhava as mesmas condições sociais, a mesma identidade de classe e as

mesmas aspirações para defender o ‘trabalho’, hoje eles manifestam um desencantamento

com a causa e um fechamento sobre si mesmo, se distanciando cada vez mais da

representação marxista de sociedade.

Gaulejac (2007) afirma que a força do poder do capitalista repousa sobre diferentes

mecanismos de poder, sendo uma delas a individualização e a dissolução dos coletivos. Esses

mecanismos, segundo o autor, poderiam defender rumos diferentes daqueles que são impostos

pelas direções gerais.

O enfraquecimento dos coletivos é favorecido por uma estrutura de organização reticular, pela colocação em concorrência interna dos diferentes serviços, filiais e departamentos, por meio de uma mobilização importante, por uma reorganização permanente de todos os setores e por uma política de neutralização das reivindicações coletivas. Nesse contexto os agentes estão mais preocupados com sua carreira individual do que por uma reflexão de conjunto e das ações comuns para defender os interesses do pessoal. Diante da organização, o indivíduo isolado pode apenas se dobrar às exigências do sistema. (GAULEJAC, 2007, p. 139-140).

Dejours (2000) também listou a estratégia defensiva do silêncio, da cegueira e da

surdez como um dos efeitos do trabalho precário, sendo este o ato de abdicar do direito de se

manifestar diante da pressão que a lógica gestionária submete o trabalhador. Enriquez (1997)

afirma que o indivíduo enclausurado nas malhas das organizações, acaba perdendo

gradativamente a liberdade em relação ao seu corpo, à sua forma de pensar e à sua psique.

Segundo Dejours (2000), esse método gestionário de alienar a força de trabalho e torná-lo um

corpo dócil, de modo que não seja um empecilho para a produtividade, estimula o trabalhador

a “resistir” e não questionar. Essa negação da precarização e do sofrimento é justamente um

dos efeitos causados pela própria precarização. Para o autor, a negação do trabalho real

supervaloriza a concepção gerencialista e dá a entender que os fracassos do trabalho usual são

resultados da incompetência, da displicência, da falta de preparo, da má vontade e da

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incapacidade do trabalhador. Essa visão depreciativa das condutas humanas acaba

repercutindo na vivência do trabalho, onde a mão-de-obra se vê privada de reconhecimento e

forçada a dissimular as dificuldades que enfrenta no ambiente laboral.

Quanto ao sofrimento alheio, não só “não se pode fazer nada”, como também sua própria percepção constitui um constrangimento ou uma dificuldade subjetiva suplementar, que prejudica os esforços de resistência. Para resistir, portanto, convém fechar os olhos e os ouvidos ao sofrimento e à injustiça infligidos a outrem. Nossa pesquisa mostra que todos, dos operadores aos gerentes, se defendem da mesma maneira: negando o sofrimento alheio e calando o seu. (DEJOURS, 2000, p. 51).

2.4. Organização do trabalho e sofrimento

Mendes (2007) utiliza a psicodinâmica para apontar a relação estreita que há entre o

sofrimento e a organização do trabalho:

Inicialmente, para a psicodinâmica, o sofrimento no trabalho surge quando a relação do trabalhador com a organização do trabalho é bloqueada em virtude das dificuldades de negociação das diferentes forças que envolvem o desenho da produção e o desejo do trabalhador. (MENDES, 2007, p. 36)

A psicodinâmica do trabalho, de acordo com Seligman-Silva (1994) é uma escola da

Psicologia do Trabalho que se edificou a partir das ideias e das pesquisas do psiquiatra francês

Christophe Dejours e que se empenha no estudo das relações entre saúde mental e trabalho:

“[...] centrada no estudo das dinâmicas que, em situações de trabalho, conduziam ora prazer,

ora ao sofrimento, e o modo que este podia seguir diferentes desdobramentos, inclusive

aqueles que culminavam em patologia mental”. (Seligmann-Silva, 1994, p. 13).

Para Bouyer (2010), a psicodinâmica do trabalho:

[...] amplia o conhecimento dos limites entre normalidade e patologias, tomando como objeto as defesas e as estratégias defensivas que, na Psicanálise convencional, não se entrelaçaram com o contexto da atividade de trabalho. As estratégias coletivas de defesa vieram preencher um espaço antes enigmático das articulações entre o singular e o coletivo no contexto pautado pelo trabalho enquanto mediador essencial. (BOUYER, 2010, p. 251).

A questão central da psicodinâmica do trabalho é: quais são os processos psíquicos

que o sujeito mobiliza quando ele se confronta com a realidade do trabalho? É a partir da

compreensão dessa realidade do trabalho que será possível entender os processos psíquicos

aos quais os trabalhadores são submetidos no ambiente organizacional. De acordo com

Dejours e Abdoucheli (1994), essa realidade do trabalho se divide em: a) condições de

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trabalho, b) relações de trabalho e c) organizações de trabalho. Para os autores, muitas das

pressões que desestabilizam a saúde mental dos trabalhadores são decorrentes da organização

do trabalho.

Dejours, Dessors e Desriaux (1993, p.104) entendem como organização do trabalho:

[...] a divisão das tarefas, que conduz alguns indivíduos a definir por outros, o trabalho a ser executado, o modo operatório e os ritmos a seguir. Por outro lado, é a divisão dos homens, isto é, o dispositivo de hierarquia, de supervisão, de comando, que define e codifica todas as relações de trabalho. Quando se coloca face a face o funcionamento psíquico e a organização do trabalho, descobre-se que certas organizações são perigosas para o equilíbrio psíquico e que outras não o são.

Dessa forma, é possível associar a organização do trabalho (pautada na divisão de

trabalho entre os homens), com as relações de trabalho, que se baseiam no relacionamento

organizacional entre trabalhadores e patrões. Essas relações podem desencadear em conflitos

causados por hierarquia, comando, controle e repartições de responsabilidade, como observam

Dejours e Abdoucheli (1994). Em contrapartida, os autores conceituam organização de

trabalho em contraste com as condições de trabalho:

Por condições de trabalho deve-se entender as pressões físicas, mecânicas, químicas e biológicas do posto de trabalho. As pressões ligadas às condições de trabalho têm por alvo principal o corpo dos trabalhadores, onde elas podem ocasionar desgaste, envelhecimento e doenças somáticas. (DEJOURS e ABDOUCHELI, 1994, p. 125).

Dejours e Abdoucheli (1994) observam que, se por um lado as condições de trabalho

apresentam como alvo o corpo, a organização do trabalho atua em nível do funcionamento

psíquico. A divisão de tarefas induz o sentido e o interesse do trabalho para o homem, ao

passo que a divisão de homens força a relação interpessoal na organização e mobiliza laços

afetivos, o amor, o ódio, a amizade, a confiança e etc. Dessa forma, fica claro que os

processos psíquicos resultantes da realidade do trabalho, ao afetar o corpo e o funcionamento

psicológico dos indivíduos, acabam colocando o trabalhador à mercê de neuroses, psicoses,

dor, doenças, alcoolismo, sofrimento e até ao suicídio.

Ainda no que diz respeito ao sofrimento do trabalhador no campo laboral, Brant e

Minayo (2004) constataram que, tanto na psicopatologia do trabalho quanto na psicodinâmica,

há a existência da transformação do sofrimento em adoecimento. De acordo com os autores,

dor e sofrimento não se distinguem com facilidade no ponto de vista conceitual. Entretanto,

há um limite tênue que diferencia os dois termos: “Fruto de uma visão dicotômica, a palavra

sofrimento tem sido associada ao psíquico, ao mental ou à alma, enquanto a palavra dor,

geralmente, é remetida a algo localizado no corpo”. (BRANT, MINAYO, 2004, p. 215).

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Para Gaulejac (2007), a angústia e o adoecimento do assalariado se devem à sua

exposição a situações de humilhação e constrangimento, unidas à precarização da sua

condição de trabalho, o que tem trazido consequências psicopatológicas como estresse, mal-

estar, repulsa, esgotamento profissional e emocional. Esses sintomas podem tornar-se

crônicos, evoluindo para sofrimentos psicoemocionais como depressão, insônia, problemas

sexuais, além de perturbações somáticas mais graves, como hipertensão, alteração das defesas

imunológicas, úlceras e doenças cardiovasculares.

Os trabalhadores podem adoecer ou morrer por causas relacionadas à organização

precária do trabalho, como consequência das condições adversas em que são sujeitados nesse

ambiente. Dessa forma, parece correto afirmar que a organização do trabalho expõe seus

trabalhadores a diversos fatores de risco que comprometem tanto a sua saúde quanto a sua

segurança. Esses fatores podem ser classificados em cinco grandes grupos, conforme mostra o

Quadro 1:

Quadro 1: Fatores de risco à saúde e segurança do trabalhador

Grupos Fatores de Risco ao Trabalhador

Físicos Ruído, vibração, radiação ionizante e não-ionizante, temperaturas extremas (frio e calor), pressão atmosférica anormal, entre outros; (BRASIL, 2001, p. 28)

Químicos Agentes e substâncias químicas, sob a forma líquida, gasosa ou de partículas e poeiras minerais e vegetais, comuns nos processos de trabalho; (BRASIL, 2001, p. 28)

Biológicos Vírus, bactérias, parasitas, geralmente associados ao trabalho em hospitais, laboratórios e na agricultura e pecuária; (BRASIL, 2001, p. 28)

Ergonômicos e Psicossociais Decorrem da organização e gestão do trabalho, como, por exemplo: da utilização de equipamentos, máquinas e mobiliário inadequados, levando a posturas e posições incorretas; locais adaptados com más condições de iluminação, ventilação e de conforto para os trabalhadores; trabalho em turnos e noturno; monotonia ou ritmo de trabalho

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excessivo, exigências de produtividade, relações de trabalho autoritárias, falhas no treinamento e supervisão dos trabalhadores, entre outros; (BRASIL, 2001, p. 29)

Mecânicos e de Acidentes Ligados à proteção das máquinas, arranjo físico, ordem e limpeza do ambiente de trabalho, sinalização, rotulagem de produtos e outros que podem levar a acidentes do trabalho. (BRASIL, 2001, p. 29)�

Fonte: Brasil, Ministério da Saúde, (2001)

De acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS),

aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros ocupados já manifestou algum tipo de

transtorno mental menor, e os transtornos mentais mais graves chegam a acometer cerca de 5

a 10% da população. Os transtornos mentais e de comportamento que mais se manifestam em

decorrência das adversidades vividas no ambiente de trabalho, em conformidade com a

Portaria/MS n.º 1.339/1999 e mostrados no Quadro 2 são:

Quadro 2: Os transtornos mentais que se manifestam em decorrência das adversidades vividas no ambiente de trabalho

Transtorno Mental Definição

Demência É conceituada como uma síndrome, geralmente crônica e progressiva em que se verificam diversas deficiências que afetam a memória, pensamento, orientação, compreensão, cálculo, capacidade de aprender, linguagem e julgamento. (BRASIL, 2001, p. 164)

Delirium Síndrome caracterizada por rebaixamento do nível de consciência, com distúrbio da orientação (no tempo e no espaço) e daatenção. Acaba comprometendo as funções cognitivas, desencadeando em alterações do humor (irritabilidade), da percepção (alucinações), do pensamento (ideação delirante) e do comportamento (reações de

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medo e agitação psicomotora). (BRASIL, 2001, p. 166)

Transtorno cognitivo leve Caracteriza-se por alterações da memória, da orientação, da capacidade de aprendizado e redução da capacidade de concentração em tarefas prolongadas. O paciente se queixa de intensa sensação de fadiga mental ao executar tarefas mentais e um aprendizado novo é percebido subjetivamente como difícil, ainda que objetivamente consiga realizá-lo bem. (BRASIL, 2001, p. 169)

Transtorno orgânico de personalidade É caracterizado como uma alteração significativa dos padrões habituais de comportamento pré-mórbido, particularmente no que se refere à expressão das emoções, necessidades e impulsos. (BRASIL, 2001, p. 171)

Transtorno mental orgânico São doenças cerebrais de etiologia demonstrável, que levam a lesões ou danos que afetam direta e seletivamente o cérebro. Faz parte desse grupo a demência na doença de Alzheimer. (BRASIL, 2001, p. 173)

Alcoolismo crônico Segundo a OMS, a síndrome de dependência do álcool é um dos problemas relacionados ao trabalho e refere-se a um modo crônico e continuado de usar bebidas alcoólicas, caracterizado pelo descontrole periódico da ingestão ou por um padrão de consumo de álcool com episódios freqüentes de intoxicação e preocupação com o álcool e o seu uso. (BRASIL, 2001, p. 175)

Depressão Caracteriza-se por humor triste, perda do interesse e prazer nas atividades cotidianas, sendo comum uma sensação de fadiga aumentada, dificuldade de concentração, insônia, baixa auto-estima e autoconfiança, desesperança, idéias de culpa e inutilidade, além de visões desoladas e pessimistas do futuro, idéias ou atos suicidas. (BRASIL, 2001, p. 178)

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Estado de estresse pós-traumático Definida como uma resposta tardia a um evento ou situação estressante (de curta ou longa duração) de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica. E, reconhecidamente, causa extrema angústia em qualquer pessoa. Esse estresse pode ser causado tanto fora quanto dentro das organizações. (BRASIL, 2001, p. 181)

Síndrome da Fadiga Presença de fadiga constante, acumulada ao longo de meses ou anos em situações de trabalho em que não há oportunidade de se obter descanso necessário e suficiente. A fadiga é referida como sendo constante, como acordar cansado, simultaneamente física e mentalmente, má qualidade do sono, irritabilidade ou falta de paciência e desânimo. (BRASIL, 2001, p. 184)

Sensação de estar acabado (Síndrome de Burn-out)

É o esgotamento profissional resultante da vivência profissional em um contexto de relações sociais complexas, envolvendo a representação que a pessoa tem de si e dos outros. O trabalhador que antes era muito envolvido afetivamente com os seus clientes, com os seus pacientes ou com o trabalho em si, desgasta-se e, em um dado momento, desiste, perde a energia, perde o sentido de sua relação com o trabalho, desinteressa-se e qualquer esforço lhe parece inútil. (BRASIL, 2001, p. 191)�

Fonte: Brasil, Ministério da Saúde, (2001)

Um dos setores responsáveis por comprometer a saúde do trabalhador e colocá-lo em

riscos de natureza tanto física quanto biológica, psicossocial e mecânica, é o da agroindústria

avícola no Brasil2. O aumento da pressão generalizada no setor avícola e que

���������������������������������������� �������������������2 O documentário “Carne Osso” (2011), dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, retrata bem a realidade dos trabalhadores de frigoríficos no Brasil. O filme traz relatos de funcionários que sofreram danos físicos (mutilações, tendinites, músculos atrofiados) ou psicológicos (depressão) ao serem submetidos a um ritmo frenético de trabalho que degrada a mão de obra e precariza o ambiente. Valdirene, uma das entrevistadas do documentário, contou que teve seus músculos e tendões atrofiados devido os esforços repetitivos em um

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consequentemente adoece os trabalhadores se dá, conforme constatou Rizzi (1993), devido ao

progresso tecnológico que permitiu a consolidação da indústria de aves no Brasil, a redução

do preço da carne de frango e o aumento considerável no consumo, interno e externo, da

proteína. Para seguir o crescimento dessa demanda, as indústrias passaram a priorizar um

processo de trabalho baseado no aumento da capacidade produtiva e em um ritmo de

produção cada vez mais frenético, resultando na precarização do trabalhador, e

consequentemente no seu adoecimento.

Segundo Neli e Navarro (2006), as tarefas da indústria avícola compreendem tanto

atividades manuais quando automáticas, e para a realização dessas atividades a mão-de-obra

trabalha em esteiras, um do lado do outro, com dezenas de funcionários munidos de faca para

o corte da ave. Tudo isso é feito sob um rígido controle do tempo de trabalho e com o

estabelecimento de metas mirabolantes e distantes da real capacidade humana a serem

cumpridas. Além disso, os autores afirmam que o controle do tempo de trabalho ultrapassa os

limites da indústria e se estende à vida cotidiana dos trabalhadores, colocando-os em uma

situação de degradação generalizada que potencializa o sofrimento e o processo de

adoecimento, que muitas vezes são vistos pela empresa como um sinal de fraqueza pessoal e

não decorrentes da precarização no ambiente laboral:

(...) no espaço da fábrica pós-industrial, não parece haver lugar para o sofrimento. A tristeza e o medo, ao não serem reconhecidos como dimensões próprias do ato de viver, são transformados em depressão e fobia. Numa cultura marcada pela imediaticidade, o sofrimento é visto como um sinal de fraqueza. Entendemos que não é tanto a doença, mas sim o processo do adoecimento que abre maiores possibilidades de afastamento do trabalho. (BRANT, MINAYO, 2004, p. 222)���

Segundo Neli e Navarro (2006), a submissão dos trabalhadores a um ambiente de

trabalho degradante e a imposição de um intenso ritmo de atividades manuais, acaba causando

um grande número de casos de lesão por esforço repetitivo (LER). Isso explica o fato das

queixas de dores e mal-estar serem constantes nesse universo, bem como o alto número de

absenteísmo:

(...) esse segmento específico da indústria de alimentos é caracterizado pelo trabalho parcelado, fragmentado, estruturado segundo uma decomposição crescente das tarefas, reduzido a ações mecânicas e repetitivas, nos moldes do trabalho fundado no taylorismo-fordismo. O ambiente de trabalho, altamente insalubre, é realizado em temperatura em torno de 10 ºC, ruído ensurdecedor, muita umidade, odor desagradável, trabalho penoso (realizado em pé, em turnos e noturnos) etc. A exigência de cumprimento de metas

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trabalho que chegava a durar catorze horas diárias. Segundo ela, mesmo debilitada e sem conseguir mexer as mãos, o seu gerente a incentivava a continuar na esteira cortando frango.

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diárias de produção (fruto da reestruturação produtiva) intensifica o trabalho e colabora para tornar o trabalhador ainda mais vulnerável a acidentes e doenças de trabalho. A grande incidência de LER entre os trabalhadores dessa indústria é reveladora dessa situação. (NELI, NAVARRO, 2006, p. 304).

2.5. Assédio Moral no Trabalho

Esse sistema de pressão generalizada, que busca extrair dos trabalhadores o seu

melhor desempenho, somado as diferenças de classe dentro da própria organização, são

alguns pontos responsáveis pela presença do assédio moral no universo laboral. De acordo

com Heloani (2004), a discussão sobre assédio moral é recente. Porém, esse fenômeno,

infelizmente, é tão velho quanto o trabalho e o homem. No Brasil colônia, índios e negros

sofreram com o assédio e a humilhação de colonizadores que, de certa forma, julgavam-se

superiores tanto pelo ponto de vista étnico quando pelo militar, cultural, religioso e

comportamental.

[...] a humilhação no trabalho, ou o assédio moral, sempre existiu, historicamente falando, nas mais diferentes formas. Humilhação esta embasada no próprio sistema macroeconômico, que, em seu processo disciplinar, favorece o aparecimento dessa forma de violência, em que o superior hierárquico detém um certo poder sobre seu subordinado. (HELOANI, 2004, p. 2).

Diante de uma lógica voltada para os interesses do capital, Heloani (2004) afirma que

o ambiente de trabalho, ao ser legitimado pela reestruturação produtiva, tem se tornado cada

vez mais precário. O autor sublinha que essa ordem tem contribuído para a diminuição dos

benefícios e dos direitos do trabalhador, modificando, dessa forma, a relação capital-trabalho,

como o contrato de trabalho por tempo determinado, a terceirização, o subemprego e o

trabalho informal. Esse ambiente ameaçador em que o trabalhador se vê inserido acaba sendo

endossado por um discurso organizacional que se contradiz ao prever a conciliação de

elementos claramente antagônicos como o incentivo ao trabalho em equipe e o estímulo à

individualidade para que o posto de trabalho seja mantido, tendo em vista a competitividade

do mercado.

Para Heloani (2004), essa motivação para a hipercompetitividade, em que o

comportamento ético é deixado de lado na busca por resultados, pode ser caracterizada como

uma forma de violência dentro das empresas. “Em um sistema em que a ‘racionalidade

instrumental’ se sobrepõe à ‘racionalidade comunicativa’ (...) a violência torna-se uma

resposta a um sistema desumano e não pode ser considerada um mero mecanismo individual”.

(HELOANI, 2004, p. 3). Segundo o autor, a violência acaba refletindo as formas de poder

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constituídas socialmente através de fenômenos como o assédio moral, seja ele dentro ou fora

das organizações.

Constitui-se assédio moral nas empresas:

[...] conduta abusiva, intencional, frequente e repetida, que ocorre no ambiente de trabalho e que visa diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou um grupo, degradando as suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e colocando em risco a sua integridade pessoal e profissional. (HELOANI, FREITAS, BARRETO, 2008, p. 37).

De acordo com Freitas (2001), o assédio moral geralmente se inicia pelo abuso de um

poder e é acompanhado pelo abuso narcísico, que visa inferiorizar e acabar com a autoestima

do subordinado e pode, em alguns casos, avançar para o abuso sexual, ou seja, aquilo começa

com um leve flagrante de falta de respeito acaba se tornando um jogo frio de manipulação por

parte do indivíduo perverso, que muitas vezes se sente engrandecido pelos seus atos:

O assédio moral nas organizações, geralmente, nasce de forma insignificante e propaga-se pelo fato de as pessoas envolvidas (vítimas) não quererem formalizar a denúncia e encararem-na de maneira superficial, deixando passar as insinuações e as chacotas; em seguida, os ataques multiplicam- se, e a vítima é regularmente acuada, colocada em estado de inferioridade, submetida a manobras hostis e degradantes por longo período. Essas agressões, não infligidas diretamente, provocam uma queda de auto-estima, e, cada vez mais, a pessoa sente-se humilhada (FREITAS, 2001, p. 10).

No que diz respeito à vítima da agressão, Freitas (2001) afirma que ela não traz

nenhuma patologia ou fraqueza psíquica. Muitas vezes, é o assédio que desencadeia a reação,

já que a vítima geralmente se torna alvo do agressor quando reage de alguma forma ao

autoritarismo que lhe é imposto. Sendo o assédio moral um ato de abuso intencional,

frequente e repetido, ele só se torna possível, segundo a autora, porque ele é precedido de uma

desqualificação da vítima, que aceita a agressão calada e se vê desprotegida diante de colegas

de trabalho omissos. O agressor, muitas vezes, conduz de forma cruel a sua vítima para que

ela tenha um sentimento de culpa e de merecimento por tudo o que lhe acontece:

Assim que o processo é detonado, a vítima passa a ser estigmatizada: diz-se que ela é difícil de conviver, tem mau-caráter ou é louca (temperamental, desvairada, irresponsável). Na verdade, o que ocorre é um deslocamento, que debita da personalidade da vítima aquilo que é conseqüência do conflito e se esquece o que a pessoa era antes dessa situação e o que é em outro contexto. Pressionada ao limite, não raro a vítima se torna aquilo que se diz dela e faz o que dela se espera. (FREITAS, 2001, p. 11).

Para Nascimento e Silva (2012), além da vítima que sofre o assédio e se culpa por

isso, há também alguns casos de trabalhadores que se calam diante do abuso moral e acabam

se submetendo à agressão, pois precisam muito do emprego. Já com a autoestima abalada, o

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agredido passa a acreditar que dificilmente arranjará outro trabalho caso perca o atual. “Isso

porque o assédio sofrido já está de certa forma degradando a sua autoconfiança, os seus

conceitos morais e o abalando psicologicamente”. (NASCIMENTO, SILVA, 2012, p. 114).

Além disso, o sujeito que assedia subordinados nas organizações cria mecanismos perversos

que impedem o assediado de reagir, colocando-o em uma armadilha que provavelmente o

levará ao adoecimento e em alguns casos, até ao suicídio.

Os mecanismos listados por Freitas (2001) são: a) recusar a comunicação direta com o

assediado; b) desqualificá-lo repetidas vezes; c) fazê-lo desacreditar de si mesmo; d) isolar o

assediado; e) colocá-lo numa situação vexatória e constrangedora; f) empurrar o outro a

cometer erros e faltas; g) assediá-lo sexualmente.

Pensando em todas essas problemáticas do ambiente de trabalho, resta perguntar: será

que existe algum sentido para o trabalhador quando este se vê subordinado a um modelo de

gestão que o submete ao assédio moral, promove o seu esgotamento físico e mental e o sujeita

a um processo de produção pré-definido que o impede de pensar e de ter controle sobre o

próprio corpo?

2.6. Os sentidos do trabalho

De acordo com Hackman e Oldhan (apud Tolfo e Piccini, 2007), o sentido e

significado do trabalho estão intimamente relacionados à qualidade de vida no mesmo. Um

ofício que tenha sentido é importante, útil e legítimo para o agente que o realiza e está

fundamentado em três características essenciais:

(i) a diversidade de funções que possibilita a utilização de competências diversas, de

modo que o trabalhador se identifique com a sua tarefa;

(ii) um trabalho não alienante, onde o trabalhador consiga identificar todo o processo,

desde sua concepção até sua finalização, percebendo assim o significado da sua função e se

sentindo amplamente responsável pelo seu feito;

(iii) o feedback sobre seu desempenho nas atividades realizadas, o que acaba

permitindo que o indivíduo faça os ajustes necessários e melhore a sua performance.

Morin, Tonelli e Pliopas (2007) constataram, a partir da análise de dados qualitativos

sobre os sentidos do trabalho para jovens executivos brasileiros, que uma atividade laboral

que faz sentido é aquela que proporciona ao trabalhador prazer e satisfação pessoal, que dê a

ele autonomia para realizar suas atividades de forma saudável, que a remuneração lhe confira

independência e sobrevivência, que ele tenha oportunidade de crescer e aprender na

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organização, que tenha o seu potencial devidamente valorizado, e por fim, que o sujeito se

identifique com aquilo que faz e também com a organização que lhe emprega.

As autoras ainda apresentaram uma síntese de aspectos que o sentido do trabalho pode

assumir para o indivíduo (dimensão individual), para a relação do indivíduo com a

organização (dimensão organizacional) e para a relação do indivíduo com a sociedade

(dimensão social) através de dados coletados, conforme mostraremos no Quadro 3:

Quadro 3: Os aspectos que o sentido do trabalho pode assumir para o indivíduo

Dimensões O trabalho tem sentido se:

Dimensão Individual

• Quem exerce o trabalho sente prazer, gosta do que faz;

• O trabalhador o vê como um desafio que ele pode superar;

• A pessoa percebe sua contribuição como única e criativa;

• É remunerado de forma justa pelas suas funções;

• Permite que algum dia o indivíduo alcance qualidade de vida melhor;

• Dá a sensação de independência financeira e psicológica;

• Confere crescimento pessoal e valoriza potencial do trabalhador:

• Fornece identidade a quem exerce

Dimensão Organizacional

• Quem exerce percebe o processo do início ao fim;

• Tem utilidade para a organização; • A pessoa tem oportunidade de

relacionar-se com outros; • Alguém da organização dá o

reconhecimento • Permite Inserção Social;

Dimensão Social

• Contribui para a sociedade; • É considerado ético e moralmente

aceitável;

Fonte: Adaptado de Morin, Tonelli e Pliopas (2007, p. 51).

Morin, Tonelli e Pliopas (2007) ainda sublinharam os aspectos negativos decorrentes

da relação do trabalhador com a sua organização, ou seja, o trabalho perde o seu sentido

quando: a) é enfadonho; b) quem o exerce não tem responsabilidade sobre suas próprias

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funções; c) quem o exerce não participa de sua criação e concepção; d) não explora o real

potencial do trabalhador; e) impede o crescimento do trabalhador na organização; f)

funcionário é levado a pensar que sua função é inútil para a empresa.

Para Tolfo e Piccinini (2007), o trabalhador acaba se limitando a um simples produtor

e consumidor de capital quando percebe seu emprego apenas como uma atividade obrigatória

que vai lhe render aquisições monetárias, ao invés de enxergá-lo como fator de integração

pela qual pode ser criativo e se reconhecer como indivíduo e ser social. Dessa forma, o

trabalhador deixa de buscar sua identidade nas tarefas que executa e se priva da atribuição de

significados e sentidos positivos ao seu fazer.

Sendo o sofrimento um sentimento inegável do trabalho precário e o prazer um dos

principais aspectos que confere sentido ao trabalhador, Mendes (2007) acaba recorrendo à

psicodinâmica, um conceito já abordado anteriormente, para afirmar que a relação sofrimento-

prazer é inerente à todo o contexto da organização de trabalho. A autora observa que a

psicodinâmica, nesse contexto, tem o objetivo de definir ações sensíveis para transformar e

diminuir o sentimento de sofrimento do trabalhador. Se o sofrimento pode ser transformado

em criatividade, por exemplo, ele passa a conferir ao indivíduo uma identificação maior com

o seu emprego e as suas atividades, aumenta sua resistência aos riscos de desestabilização

psíquica e somática. Dessa forma:

[...] para transformar um trabalho que faz sofrer em um trabalho prazeroso, é necessário que a organização do trabalho propicie maior liberdade ao trabalhador para rearranjar seu modo operatório, usar sua inteligência pratica, engajar-se no coletivo, identificando ações capazes de promover vivências de prazer. (MENDES, 2007, p. 34).

Segundo Tolfo e Piccinini (2007), um trabalho que tenha sentido pode sofrer

influência de quatro variáveis subjetivas:

(a) o significado do trabalho, entendido como a concepção do que é trabalho para o indivíduo; (b) o valor (grau de importância, centralidade) que o sujeito atribui ao trabalho; (c) os valores éticos individuais; e (d) o motivo (a razão) pelo qual ele trabalha. E esses fatores, por sua vez, são altamente influenciados pelo meio no qual o indivíduo está inserido (culturais e sociais). Além disso, seu contexto social e cultural influencia sua posição a respeito do tema. (TOLFO, PICCININI, 2007, p. 42).

Dessa forma, podemos concluir que o trabalho que tem sentido é aquele que, além de

conferir realização e satisfação para o sujeito, seja no âmbito individual, organizacional ou

social, também o estimula a executar suas tarefas da melhor maneira possível e o livra dos

sintomas de sofrimento e adoecimento causados pela precarização do trabalho, cada vez mais

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reforçada pela lógica capitalista. Seria o trabalho artesanal fonte de satisfação e não de

precarização?

3. História do trabalho artesanal

No campo teórico, o trabalho artesanal é definido como um conjunto de

conhecimentos e habilidades que podem ser empregados para produzir objetos ou

desempenhar funções, de acordo com um propósito prático previamente especificado

(COLLINGHOOD, 2007; ADAMSON, 2010 apud OLIVEIRA; CAVEDON; FIGUEIREDO,

2012, p. 143). Complementando essa definição, o Conselho Mundial do Artesanato3

conceituou artesanato como qualquer “[...] atividade produtiva que resulte em objetos e

artefatos acabados, feitos manualmente ou com a utilização de meios tradicionais ou

rudimentares, com habilidade, destreza, qualidade e criatividade.” (SEBRAE, 2004, p. 21)

Ainda sobre a produção artesanal, Grande et al. (2012, p. 31) definem essa atividade

como a união entre cabeça e mão e é nesse processo de concepção e execução que o artífice se

desenvolve e se especializa, refinando assim a arte do fazer, corrigindo erros, desenvolvendo

habilidades e ferramentas. Além disso, o passo a passo da atividade artesanal é descrita da

seguinte forma:

[...] processo de fazer (o que inclui a não separação entre concepção e produção; aprendizado do artesão se dá principalmente pelo próprio fazer), o produto (é único, ou seja, um lote de produtos nunca vai ser igual ao outro) e a comercialização (que é fundamentalmente local e regional). (GRANDE et al., 2012, p. 29).

Já para Mills (1951), muitas vezes a definição de artesanato tem sido banalizada como

um hobbie ou como uma atividade de arte e lazer e não de trabalho propriamente dito.

Segundo o autor, ainda que possa ser visto como uma atividade comercializável, o artesanato

também é enxergado pelo senso comum como um processo de trabalho em que seus

profissionais, privilegiados e intelectuais, conseguem permanecer livres e autônomos durante

todo o processo de produção.

A respeito da história do artesanato, Chiti (apud VERGARA; SILVA, 2007, p. 33)

afirma que esta se confunde com a história da própria humanidade, desde que o ser humano

passou a criar e a desenvolver artefatos com as suas próprias mãos para garantir sua

���������������������������������������� �������������������3 O Conselho Mundial de Artesanato (World Crafts Council- WCC), fundado em 1964, é uma organização não-governamental e sem fins lucrativos que busca promover a união da classe artesã, o desenvolvimento econômico da mesma através de atividades artesanais que geram renda e a organização de oficinas, conferências, seminários e exposições. O objetivo é oferecer incentivo, ajuda e conselhos para os artesãos de todo o mundo.

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sobrevivência e bem-estar. Essa atividade está, portanto, intimamente vinculada ao mundo do

trabalho.

Lucie-Smith (1981) divide a história do artesanato em três estágios: O primeiro é o

momento em que tudo é artesanato, quando todo o processo de fabricação consiste em um

processo manual e os objetos têm utilidade; o segundo é quando há uma divisão intelectual

entre artesanato e arte erudita e, o último momento é quando, no período da Revolução

Industrial, o modo de produção vai deixando de ser manufatureiro e passa a ser

industrializado, com o uso de máquinas.

A atividade artesanal típica da Idade Média, de acordo com Huberman (1962),

começou como um sistema de produção familiar e agrário para a subsistência, onde o trabalho

era realizado na casa do próprio camponês. De acordo com o autor, quando a família

precisava de móveis, eles não recorriam a um carpinteiro. A própria família do camponês

extraía a madeira de sua árvore, limpava e então trabalhava no material até ter o móvel que

precisava. Para Huberman (1962), os artesãos da Idade Média enxergaram no progresso das

cidades e no crescimento do mercado uma oportunidade de abandonar a agricultura e viver de

seu oficio, já que muitos deles já eram especialistas de sua própria arte e com isso se tornaram

muito hábeis em suas tarefas, que iam desde a tecelagem até o manuseio da madeira ou do

ferro. O foco também era outro, e conforme afirmou Huberman (1962), os artesãos passaram

a vender seus produtos para um mercado, pequeno e em desenvolvimento, ao invés de atender

apenas às necessidades da família.

Sobre a configuração do sistema artesanal na Idade Média:

Não era necessário muito capital. Uma sala da casa em que morava servia ao artesão como oficina de trabalho. Tudo de que precisava era habilidade em sua arte e fregueses que lhe comprassem a produção. Se fosse bom trabalhador e se tornasse conhecido entre os moradores da cidade, seus produtos seriam procurados, e poderia aumentar a produção contratando um ou dois ajudantes. (HUBERMAN, 1962, p. 62-3).

O trabalho caseiro do mestre artesão e do aprendiz da Idade Média incluía, além da

simplicidade do processo de fabricação, o envolvimento sentimental e o culto às habilidades

artísticas que essa atividade exigia e ainda exige. Tais características, que sobreviveram ao

tempo e prevalecem até hoje, tiveram também o suporte da literatura de Marx e Engels

(2001):

[...] encontra-se ainda entre os artesãos da Idade Média um interesse por seu trabalho particular e pela habilidade nesse trabalho que pode elevar-se até a um certo sentido artístico. E é também por isso que cada artesão da Idade Média se entregava inteiramente a seu trabalho; tinha para com ele uma relação de sujeição sentimental e a ele estava muito mais subordinado do que

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o trabalhador moderno, que é indiferente para com o seu trabalho. (MARX & ENGELS, 2001, p. 59).

3.1. O relacionamento do mestre de ofício com o aprendiz

A estrutura organizacional do trabalho artesanal é composta, geralmente, por três

diferentes ocupações: a) mestre-artesão ou mestre de ofício, que segundo o SEBRAE (2004)

são indivíduos que conquistam, através do seu ofício, notoriedade, além de admiração e

respeito, não somente de seus aprendizes e auxiliares artesãos, como também dos seus

clientes, “[...] sua maior contribuição é repassar, para as novas gerações, técnicas artesanais e

experiências fundamentais de sua atividade.” (SEBRAE, 2004, p. 26); b) artesão, que é a

figura que detém o conhecimento técnico sobre os materiais, ferramentas e processos de sua

especialidade e por isso, domina quase todo o processo produtivo (SEBRAE, 2004), e por fim

o c) aprendiz, ou seja, aquele que de acordo com o SEBRAE (2004), encontra-se em processo

de aprendizado e capacitação enquanto presta serviços auxiliares nas oficinas de produção

artesanal e se encarrega por partes do processo produtivo.

A relação do mestre com o aprendiz, em que o ofício do artífice é geralmente passado

de pai para filho, é uma das principais características do trabalho artesanal e coloca esse

modelo diante de uma tradição que dá continuidade ao savoir-faire do mestre de ofício,

geração após geração, pois este está intimamente ligada à herança familiar. É possível, então,

notar contradições desse modelo artesanal com o industrial. Enquanto que no primeiro, o

saber do artífice é mantido de acordo com ensinamentos repassados por familiares, no

segundo o saber técnico do trabalhador lhe é retirado e transferido a mando do capitalista (DE

DECCA, 1995).

Os aprendizes que atuavam nas organizações artesanais da Idade Média, por exemplo,

foram definidos por Huberman (1962) da seguinte forma:

[...] eram jovens que viviam e trabalhavam com o artesão principal, e aprendiam o ofício. A extensão do aprendizado variava de acordo com o ramo. Podia durar um ano, ou prolongar-se por 12 anos. O período habitual de aprendizado variava entre dois e sete anos. Tornar-se aprendiz era um passo sério. Representava um acordo entre a criança e seus pais e o mestre artesão, segundo o qual em troca de um pequeno pagamento (em alimento ou dinheiro) e a promessa de ser trabalhador e obediente, o aprendiz era iniciado nos segredos da arte, morando com o mestre durante o aprendizado. (HUBERMAN, 1962, p. 62).

Grande et al (2012, p. 30) ressaltaram o caráter familiar da organização artesanal e

consideraram o trabalho realizado em casas de famílias como uma das principais

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características da produção artesanal antes da Revolução Industrial. Participavam da produção

o mestre artesão, seus familiares e servos domésticos que o ajudavam, os trabalhadores diários

e os aprendizes. Todos esses agentes se articulavam em uma estrutura organizada da seguinte

forma:

A produção caseira deu aos filhos dos mestres artesãos o direito de sucederem seus pais sem a necessidade do certificado de mestre. Os aprendizes eram considerados parte da família: o mestre os alimentava e os acolhia em sua casa. O mestre tinha ainda a obrigação de lhe transmitir o conhecimento e o aprendiz de trabalhar para o mestre. Para pertencer a uma corporação de ofício o aprendiz era avaliado e tinha que demonstrar sua competência. (GRANDE et al., 2012, p. 30-31).

Ainda no que diz respeito ao trabalho e vivência dos aprendizes no ambiente de

trabalho, bem com o seu provável progresso para artífice e mestre de ofício, Borges (2011)

afirmou:

Os aprendizes, e em alguns casos os artífices, viviam na casa de seus mestres; partilhavam sua mesa e seus hábitos de vida. Não raro, artífices se uniam em matrimônio com filhas de mestres ou mesmo com suas viúvas, garantindo, assim, sua mobilidade horizontal antes de completarem os tempos institucionais de ascensão sócio-profissional. Vale lembrar: a mobilidade de aprendiz para artífice dependia da palavra do mestre, mas a passagem de artífice para mestre era definida externamente; só ocorria após sua aprovação no exame feito por um mestre-juiz e chancelado pelo poder público local. (BORGES, 2011, p. 490).

Se formos levar em conta o vínculo dos mestres com os aprendizes na Europa, é

necessário considerar, conforme mencionado anteriormente por Rugiu (1998), as diferentes

dinâmicas presentes na organização artesanal de diferentes países ou culturas. Na Alemanha,

na França e na Grã-Bretanha, as relações mestre-aprendiz eram essencialmente patriarcais,

diferente daquilo que era notada na Itália, mais precisamente nas Corporações toscanas.

Nestes três primeiros países, geralmente, se pagava uma mensalidade para a formação dos

aprendizes e estes tinham com o mestre uma ligação de ordem pedagógica, ou escolar. Esse

quadro na Itália, no entanto, era diferente:

Na Itália, ao contrário, e na Toscana, mais evidentemente, tal relação de tipo escolar, (o aluno que paga para aproveitar o ensino de um determinado mestre) seria só implícita na redação e nunca implicitada na redação dos contratos; além disso, é mais considerada a contribuição de trabalho e de serviço que o aprendiz se empenha em dar, seja na oficina ou na vida doméstica do mestre. Exatamente este último aspecto evita ao pai de pagar uma pensão em dinheiro, salvo casos particulares nos quais o rapaz se isenta dos serviços habituais, ou mesmo se hospede em casa própria. (RUGIU, 1998, p. 46).

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A respeito da divisão de trabalho, Marx e Engels (2001) afirmam que além do mestre e

aprendiz, ainda havia a figura do companheiro (ou ajudante) na organização artesanal, e este,

por sua vez também podia aspirar a se tornar um mestre, mesmo que a sua posição de trabalho

fosse bem diferente, e contratualmente inferior a do aprendiz:

Companheiros e aprendizes eram organizados em cada profissão de modo a servir melhor aos interesses dos mestres. As relações patriarcais que existiam entre eles e seus mestres conferiam a estes um duplo poder. Tinham, por um lado, uma influência direta sobre toda a vida dos companheiros; por outro lado, como as relações representavam um verdadeiro vínculo para os companheiros que trabalhavam para um mesmo mestre, eles constituíam um bloco em face dos companheiros dos outros mestres, e isso os separava deles; finalmente os companheiros já estavam ligados ao regime existente só pelo fato de terem interesse de se tornar eles próprios mestres. (MARX & ENGELS, 2001, p. 58).

3.2. As Corporações de Ofício

Conforme a indústria e o capitalismo evoluíam, a atividade artesanal também teve a

sua configuração moldada para poder atender melhor a expectativa do mercado ainda em

crescimento na Idade Média. Segundo Huberman (1962), artesãos seguiram o exemplo dado

pelos comerciantes da época, e formaram corporações próprias. Essas corporações artesanais,

de acordo com o autor, surgiram no século XII para interligar os trabalhadores (mestres e

artesãos) de uma mesma cidade e que se dedicavam a um mesmo oficio.

Ainda sobre o relacionamento mantido entre mestre e aprendiz, Huberman (1962)

listou algumas regras que eram impostas pelo estatuto das corporações artesanais do século

XVI: a) um mestre não podia tomar o aprendiz de outro durante o processo de aprendizado, a

menos que houvesse permissão do mesmo; b) ninguém que tenha sido aprendiz ou passado

pelo processo de aprendizagem poderia se tornar um mestre artesão; c) o aprendiz deveria

sempre agir de forma respeitosa perante o seu mestre e o seu ofício. Sendo assim, Huberman

(1962) notou que as regulamentações das corporações artesanais tentavam estabelecer um

espírito de fraternidade, e não de concorrência, entre seus membros artesãos, além de se

esforçarem para impedir o trabalho inferior ou inapropriado a fim de garantir um padrão

mínimo de qualidade. A fiscalização era marcante:

Supervisores das corporações faziam viagens regulares de inspeção, nas quais examinavam os pesos e medidas usados pelos membros, os tipos de matérias-primas e o caráter do produto acabado. Todo artigo era cuidadosamente inspecionado e selado. Essa fiscalização rigorosa era considerada necessária para que a honra da corporação não fosse manchada, prejudicando com isso os negócios de todos os seus membros. (HUBERMAN, 1962, p. 68).

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De acordo com Borges (2011) as instituições de corporações de ofícios tiveram grande

amplitude social, política e econômica na Europa e respondiam por grande parte da produção,

dos serviços, do comércio e da rede de sociabilidade que conformavam o savoir-faire da

fração subalterna urbana das sociedades pré-industriais. Dessa forma, mestres e aprendizes;

representantes do poder local e mediadores dos interesses das corporações e do regime; e os

comerciantes licenciados para o controle da circulação dos artefatos produzidos no interior

dos ateliês formavam, juntos, uma cadeia produtiva reconhecida e chancelada pelo Estado.

Segundo Borges (2011), estes certamente foram os pilares do Ancien Régime.4

Durante esse período, foi possível notar que os estatutos jurídicos das corporações de

ofício, asseguravam proteção econômica a seus membros ao mesmo tempo em que garantiam

privilégios e distinção social aos seus afiliados, conforme constatou Borges (2011). Segundo a

autora, essas corporações demarcavam quem seria membro do Ancien Régime, “os de dentro”

contra os estrangeiros, andarilhos e vagabundos, “os de fora”. Borges (2011) ainda afirma que

as corporações também foram meios condutores do controle social, que conferiu

solidariedade, laços identitários entre os seus integrantes, além de legitimar a mobilidade

horizontal – e em alguns casos, vertical dos artesãos.

No longo prazo tais componentes – muitas vezes mais ilusórios que reais – criaram e reproduziram, dentro e fora da Europa, uma parte do que aqui chamamos Cultura dos Ofícios. Isto é, um conjunto de modos artesanais de produzir, pautados por regras, saberes, gestos, valores, crenças, comportamentos e rede de sociabilidades específicas. Em meio a variações, ambigüidades, tensões e oposições, ela engendrou um mundo social próprio e crucial para o funcionamento longevo das sociedades pré-industriais no Ocidente e no Oriente. Assim concebida, a Cultura dos Ofícios não se limita ao universo das corporações e confrarias/irmandades. Também incluiu os artesãos que atuavam autonomamente dentro e fora das fronteiras dos Impérios Europeus. (BORGES, 2011, p. 486).

A dinâmica da organização das Culturas de Ofícios e a relação dos seus membros com

o saber e o fazer foi compreendida por Borges (2011) da seguinte forma:

Esta breve reflexão sugere considerar o conceito de Cultura dos Ofícios tanto por seus atributos recorrentes, quanto por aqueles que quebram suas regularidades. Dentre os atributos que dão identidade à Cultura dos Ofícios destaca-se seu ethos. Fundada numa rígida hierarquia social, constituída por mestres, artífices e aprendizes, ela pressupunha um longo aprendizado (que podia variar de 2 a 10 anos, dependendo do ofício) de saberes que requeriam

���������������������������������������� �������������������4 Segundo Tocqueville (1997), Ancien Régime, ou Antigo Regime, refere-se a um sistema político e social que teve sua origem na França no final da Idade Média e que se consolidou na Idade Moderna, com o estabelecimento do absolutismo e com a divisão do Estado em clero, nobreza e terceiro estado (camponeses e burguesia). Embora muito característico da história francesa, o Antigo Regime também se espalhou por vários reinos da Europa Ocidental, e teve seu fim durante a Revolução Francesa (1789-1799). Referência: TOCQUEVILLE, A. O Antigo Regime e a Revolução. 4ª edição. Brasília: Editora UnB, 1997.

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habilidades específicas, inclusive com a domesticação do corpo para lidar com os instrumentos de trabalho. Estes saberes eram segredos (mistérios) transmitidos oralmente e na prática cotidiana, de geração em geração. As atividades dos ateliês eram coletivas; a confecção dos artigos de uso era pautada por sua qualidade técnica e sua durabilidade. Nas sociedades ocidentais, o tempo de trabalho era regulado pelo calendário cristão; nas demais, seguia os calendários das crenças locais. Em alguns casos, os ciclos da natureza também propunham calendários produtivos para os ateliês urbanos que dependiam da mão-de-obra rural e, portanto, não funcionavam no período de plantio e colheita. (BORGES, 2011, pp. 489-490).

Ainda que o trabalho artesanal tenha sobrevivido na história, mesmo que em

proporções bastante reduzidas, as corporações artesanais não conseguiram manter forças para

continuar a reproduzir seus indiscutíveis parâmetros de ordem e qualidade. Dessa forma não

sobreviveram nem ao tempo e nem ao avanço econômico, como sugere Rugiu (1998):

[...] as corporações de ofício tiveram um forte desenvolvimento a partir do século XII, atingiram seu apogeu no século XIV, entrando a partir daí, num lento, mas contínuo enfraquecimento até serem formalmente extintas em fins do século XVIII, e inícios do século XIX. (RUGIU, 1998, p. 1).

O choque com a irresistível Revolução Industrial foi, segundo Rugiu (1998), o golpe

final para as corporações de ofício, mas o trabalho artesanal em si não foi abalado com a

mesma intensidade:

Naturalmente, como os artesãos associados existiam bem antes que se afirmassem as Corporações, assim continuarão a existir, mesmo depois da supressão definitiva do ordenamento corporativo. Também hoje os artesãos existem individualmente ou como normais associações sindicais ou profissionais, mas aquilo que importa é que, há dois séculos aproximadamente, eles não constituem mais um corpo dotado de prerrogativas especiais. (RUGIU, 1998, p. 24).

3.3. As características do trabalho artesanal

Borges (2011) identificou três diferentes categorias de organização e atuação artesanal:

a) a primeira, sãos as corporações artesanais, que responderam pela dimensão institucional da

Cultura dos Ofícios, “[...] estruturada entre os séculos X e XVIII no mundo ocidental, seus

estatutos variaram no interior de uma mesma categoria de artesãos, tanto nas áreas

metropolitanas quanto nas coloniais.” (BORGES, 2011, p. 488); b) a segunda categoria,

embora tenha se aproximado das corporações, obtinha certas especificidades como a

importação de mestres artesãos e matérias-primas, e isso acontecia porque estavam

diretamente subordinados ao Estado, “seus artesãos produziam artigos para exportação e

ligados à manutenção da máquina estatal, tais como cunhagem de moedas, armamentos,

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embarcações para o comércio transatlântico etc.” (BORGES, 2011, p. 488); e por fim c) essa

última categoria pode ser classificada como a mais variada e numerosa, pois se refere a

artesãos autônomos. Incluía desde ofícios desprestigiados até novos ofícios, que surgiram

conforme a sociedade se urbanizada e a demanda se sofisticava. Há também os ofícios que

saíram do ramo de artes mecânicas5 e que integraram o universo das artes liberais6, como por

exemplo, escultores, pintores e organistas, conforme constatou Borges (2011). Essa categoria

também compreende artífices que antes pertenciam às corporações, e com o declínio da

mesma, passaram a atuar por conta própria. Foi a partir daí que o mestre artesão passou a

adquirir plena autonomia do processo artesanal, sua atividade envolvia não só a fabricação,

como também a precificação e a venda dos artefatos.

Depois do surgimento do dinheiro como um intermediário de troca de mercadorias, os

critérios para a precificação dos artefatos eram levados em conta pelo artesão com base na

ideia de “preço justo” proposta por Santo Tomás de Aquino7. Esse processo de dar valor ao

produto, segundo Huberman (1962), era feito pelo artesão da seguinte forma:

O artesão sabia o que lhe custavam o material e o trabalho, e estes determinavam o preço pelo qual era vendido o produto acabado. Os artigos feitos e vendidos pelo artesão tinham seu preço justo, calculado honestamente à base do custo real, e eram vendidos exatamente por essa soma, sem qualquer aumento. (HUBERMAN, 1962, p. 69).

A autonomia do mestre artesão de escolher o preço mais justo para a venda dos seus

produtos confirmava ainda mais o seu domínio pelo processo como um todo. Suas funções

compreendem atividades que envolvem desde a produção até comercialização, como sugere

Huberman (1962). Para o autor, o mestre artesão é muito mais do que um simples fabricante

de produtos, ele tem também quatro outras funções. O artesão tradicional pode ser

considerado “cinco pessoas em uma só”:

a) responsável pela fabricação do artefato;

b) é responsável pela procura e negociação da matéria-prima;

c) ao ter aprendizes sob seu mando, é também empregador;

���������������������������������������� �������������������5 Artes Mecânicas relacionam-se a esforços técnicos voltados exclusivamente para produção de mercadorias. (RUGIU, 1998, p. 34) 6 Artes Liberais referem-se a habilidades intelectuais para a produção do pensamento. De acordo com Rugiu (1998, p. 34) essa arte era reservada aos doutos e estes reservavam certo desprezo pela relação arte-artesanato. 7 “A noção de são Tomás de Aquino de ‘preço justo’ [...] tratar-se-ia de preço suficiente para remunerar o serviço prestado pelo empreendedor. O lucro não é necessariamente imoral no pensamento tomista. É lícito que alguém revenda uma mercadoria por um preço superior ao seu custo de produção ou de compra, desde que a diferença não exceda aquilo que poderia ser considerado justo.” FOLHA DE SÃO PAULO (2005), disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/>. Acesso em: 20 jan 2015.

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d) é sua função também supervisionar o trabalho dos seus aprendizes; e

e)� é também um comerciante e lojista, que vende seu produto diretamente para o

consumidor.

Para Vergara e Silva (2007), uma das principais características do trabalho artesanal,

individual ou coletivo, é a atividade manual e esta deve ser predominante no processo de

fabricação dos artefatos:

O uso de ferramentas deve ser restrito, admitindo-se a utilização eventual de soldadoras, polidoras, teares ou tornos, desde que não se impeçam o contato direto do artesão com a matéria prima, pois tal contato humaniza o objeto e dá identidade ao produto. (VERGARA & SILVA, 2007, p. 34).

Além de citarem a manualidade como uma característica essencial para o artesanato,

Vergara e Silva (2007) também colocam a arte artesanal como um objeto de uso prático,

utilitário, acessível e tangível, ou seja, muito mais do que uma obra de arte a ser admirada, o

artesanato carrega consigo a vantagem de ser palpável e para uso doméstico:

Desde a Antiguidade, quando o ser humano passou a produzir suas peças e ferramentas para o trabalho agrícola, deu ao artesanato uma função. Ele não pode ser confundido com objetos de contemplação e de estímulo à emoção, como poemas, obras de arte, monumentos ou esculturas de grande porte. Estas são peças únicas e somente admitem réplicas para a redução do volume ou tamanho. (VERGARA & SILVA, 2007, p. 34).

É importante, também, postular que esses objetos artesanais, de caráter utilitário,

podem ser classificados em diferentes categorias, e estas são definidas de acordo com sua

origem, uso e destino. Segundo o SEBRAE (2004), as categorias são: artesanato, arte popular

e trabalhos manuais.

O artesanato, como visto, é a atividade produtiva, com forte apelo sócio-cultural, que

resulta em objetos e artefatos acabados, feitos manualmente ou com a utilização de

ferramentas, seja tradicional ou rudimentar, com um toque hábil, destro e criativo do artesão

para conferir qualidade ao objeto.

A arte popular pode ser um conjunto de produtos que remetem a “atividades poéticas,

musicais, plásticas e expressivas que configuram o modo de ser e de viver do povo de um

lugar.” (SEBRAE, 2004, p. 21).

Por fim, o trabalho manual é definido como uma atividade que, assim como o

artesanato, exige destreza e habilidade do profissional artesão e seu diferencial está no uso de

moldes e padrões pré-estabelecidos que resultem em produtos de estética pouco elaborada,

“[...] não são resultantes de processo criativo efetivo. É, na maioria das vezes, uma ocupação

secundária que utiliza o tempo disponível das tarefas domésticas ou um passatempo.”

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(SEBRAE, 2004, p. 21). As três categorias do produto artesanal podem ser exemplificadas

conforme mostra o Quadro 4:

Quadro 4: As três categorias do produto artesanal segundo o SEBRAE

Artesanato Arte Popular Trabalhos Manuais

Produção de pequenas séries com regularidade.

Produção de peças únicas Produção assistemática

Produtos semelhantes, porém diferenciados entre si

Arquétipo Reprodução ou cópia

Compromisso com o mercado

Compromisso consigo mesmo

Ocupação secundária

Fruto da necessidade Fruto da criação individual Fruto da destreza

Confecciona objetos acessórios, decorativos, educativos, lúdicos, religiosos, utilitários e exclusivos.

Confecciona objetos decorativos, educativos, lúdicos e/ou religiosos

Confecciona objetos acessórios, decorativos, educativos, lúdicos, religiosos, utilitários e padronizados.�

Fonte: SEBRAE, Termo de Referência - Artesanato, (2004)

3.4. A relação do artesão com a sua obra

Mills (1951) coloca o artesanato como um modelo idealizado e que confere

significado e satisfação ao sujeito que exerce essa atividade. Segundo o autor, esse modelo

tem cinco características principais: a) os detalhes do trabalho diário são significativos

porque, na mente do trabalhador, eles não são separados do produto final; b) o trabalhador é

livre para controlar sua própria ação de trabalho; c) o artesão é, portanto, capaz de aprender

com a sua obra, além de usar e desenvolver suas capacidades e habilidades na sua criação; d)

não há divisão entre trabalho e diversão, ou de trabalho e cultura; e) o caminho do artesão de

trabalhar para a sua subsistência, mesmo que espiritual, determina e influência também todo

seu modo de viver.

De acordo com Borges (2011), outra característica desse modelo artesanal é a busca do

artífice por um padrão produtivo, que muitas vezes é responsável por orientar o

funcionamento do mercado de artesanato, fazendo com que o trabalhador autônomo tenha

uma preocupação mais apurada pela qualidade e pela durabilidade dos objetos que

confecciona. Dessa forma, o artesão também preza bastante pela preservação de alguns

segredos que dizem respeito ao processo de fabricação dos seus produtos:

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Os segredos dos ofícios iniciavam-se com a compra de matéria-prima, atividade que pressupunha viagens às vezes por regiões distantes. As trocas daí advindas criavam e mantinham redes comerciais imprescindíveis ao sucesso dos ateliês. Modos tradicionais de produzir iam, muitas vezes, sendo alterados em função da utilização de novos materiais. As inovações técnicas, daí advindas, geravam novos produtos, re-criavam os saberes tradicionais. Em torno das viagens, o convívio entre pares selava e ampliava seu capital social; nutria cumplicidades e reproduzia os valores da Cultura dos Ofícios que se dizia pautar na confiança mútua, na solidariedade inter-pares e no mistério em torno de seus modos de fazer. (BORGES, 2011, p. 490).

O trabalho autônomo e a participação de praticamente todos os processos de produção

de um bem fazem como que o artífice se identifique ainda mais com o seu trabalho. Essa

identificação faz com que o sujeito atribua à sua obra seus sentimentos, suas impressões e os

seus valores. É um modelo de produção totalmente contrário ao sistema industrial, que

controla a atividade do trabalhador com funções pré-definidas e padronizadas:

A organização do trabalho como forma de atividade artesanal permite o domínio integral do processo de produção, fato inexistente no caso de um operário de fábrica que é obrigado a se especializar numa operação tão simples a ponto de causar demência. O artesão é dono do saber e centro do processo de produção e não um simples apêndice de uma máquina. Só ele pode iniciar e concluir o processo e ainda detém o conhecimento sobre a compra, os tipos e qualidade das matérias-primas, além de comumente comercializar o produto final gerado. (SANTOS et al., 2010, p. 4).

Esse processo da atividade artesanal requer a participação efetiva do mestre de ofício

em todas as suas etapas e esse esforço acaba lhe rendendo uma intimidade maior, não apenas

com a atividade, mas também com o material a ser transformado e comercializado. O artífice

dialoga com a sua matéria-prima, torna possível a associação entre práticas concretas e ideias,

evidenciando, assim, o significado e a satisfação que a atividade artesanal confere ao

trabalhador. Mills (1951, pp.220-223) salienta que: a) há uma profunda relação entre o artesão

e o que ele produz, desde a imagem completa do produto que ele forma em sua cabeça até a

realização do produto final; b) o seu ofício compreende um conjunto de imaginação, criação e

operacionalização da produção em si, sendo o domínio desse processo (“o todo”) a fonte de

satisfação do artesão, c) o artesão é livre para começar o trabalho da maneira como ele desejar

e para fazer as alterações que ele julgar necessárias no decorrer do processo de produção

(assim, ele se torna responsável pelos problemas e dificuldades que surgem e pela solução

deles).

Sennett (2009) define artífice como o sujeito que se dedica à arte pela arte ao invés de

apenas desempenhar uma atividade de caráter prático em busca de resultados rápidos. A

estratégia de acelerar o processo artesanal para produzir mais em menos tempo é descartada

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pelos artífices e dá lugar a reflexões sobre a melhor forma de desempenhar a sua função.

Existe, então, um engajamento e uma aproximação maior do artesão com o seu ofício: “(...) as

pessoas são capazes de sentir plenamente e pensar profundamente o que estão fazendo quando

o fazem bem.” (SENNETT, 2009, p. 30).

De acordo com Sennett (2009), o artesão expande as suas habilidades práticas através

da experiência e do aprimoramento de sua técnica. Isso se dá através da combinação entre a

ideia e a prática, entre o conhecimento do material que será transformado em objeto e a

atividade a ser executada. Cada produto confeccionado nessa ordem é único, o processo acaba

sendo demorado e exigindo do artesão uma dedicação maior ao seu ofício:

Os artífices orgulham-se, sobretudo, das habilidades que evoluem. Por isso é que a simples imitação não gera satisfação duradoura; a habilidade precisa amadurecer. A lentidão do tempo artesanal é fonte de satisfação; a prática se consolida, permitindo que o artesão se aposse da habilidade. A lentidão do tempo artesanal também permite o trabalho de reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade. (SENNETT, 2009, p. 328).

Para Sennett (2009), o artesanato é apoiado por três habilidades básicas e estas são: a

capacidade de se localizar, de questionar e de se abrir. Segundo o autor, a primeira

característica leva o artesão a fazer escolhas concretas, a segunda o leva a refletir sobre a

qualidade da decisão e a última o faz expandir os seus sentidos:

a) a habilidade de localizar dá ao artesão o poder de especificar e resgatar o que há de

mais relevante para o seu trabalho, dessa forma pode decidir desde o melhor material para a

fabricação do seu produto até a melhor forma de desenvolver o seu trabalho manual.

b) a capacidade de questionar permite ao artesão investigar o campo em ele está

situado. O artesão é capaz de ponderar as suas opções ao mesmo tempo em que a sua

curiosidade é despertada. O ato de questionar muitas vezes resulta em um trabalho mais

apurado e sofisticado.

c) a capacidade de se abrir estimula que o artesão reflita sobre os seus problemas e que

esteja sempre aberto para aceitar mudanças positivas e enriquecedoras, sem que isso

signifique a perda dos seus conhecimentos tácitos.

O ofício do artífice, muito além de uma atividade manual, também se revela como um

importante fator que constitui a identidade cultural para o mesmo. Segundo o SEBRAE

(2004), a identidade pode ser constituída partir de dois elementos principais: i) as

características do território que um determinado grupo social ocupa; ii) e o conjunto de

símbolos, códigos, normas, objetos, costumes, ritos e mitos (como religião, folclore,

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culinária), que são aceitos e praticados pelo coletivo, e que os distingue de outros grupos

sociais. Dessa forma, é possível compreender a importância do trabalho artesanal para essa

identificação cultural dos diversos grupos sociais, sendo essa identidade o elemento que dá

sentido ao artesanato e que indica para o artífice o seu lugar no mundo. “Conhecer suas

origens, seu passado e sua história é o ponto de partida para a construção desta desejada

identidade.” (SEBRAE, 2004, p. 19):

Desenvolver produtos artesanais de referência cultural significa valer-se de elementos que reportem o produto ao seu lugar de origem, seja através do uso de certos materiais e insumos ou técnicas de produção típicas da região, seja pelo uso de elementos simbólicos que façam menção às origens de seus produtores ou de seus antepassados. Deve-se utilizar as cores de sua paisagem, suas imagens prediletas, sua fauna e flora, retratar os tipos humanos e seus costumes mais singulares, utilizar as matérias-primas disponíveis na região e as técnicas que foram passadas de geração em geração. (SEBRAE, 2004, p. 18).

Davel, Cavedon e Fischer (2012) também ressaltam a forte ligação que há entre o

trabalho artesanal e as relações sócio-culturais em que o artífice está inserido. Dessa forma,

acaba sendo firmada no artesanato uma grande afinidade entre o profissional artesão, seu

ofício e o produto resultante do seu trabalho:

Os fazeres artesanais são práticas culturais, sendo configurados por e configurando símbolos, representações, rituais, valores, etc. A cultura é o ponto de partida e o resultado da materialização das obras artesanais. Por conseguinte, essas ganham valor simbólico pela sua originalidade cultural, seu enraizamento em um cotidiano cultural específico. (DAVEL, CAVEDON, FISCHER, 2012, p. 14).

A produção manual do mestre artesão, além de ser um instrumento que representa o sentimento e a identidade cultural do indivíduo, é também responsável por gerar um grande impacto no seu comportamento econômico, educacional e social: “abordando o artesanato numa visão de economia social, voltamo-nos para a geração de trabalho e renda, para as relações focadas na produção, distribuição e comercialização, nas relações de trocas e numa nova dimensão de cidadania.” (GERIR, 2005, p.22). Ainda no contexto da economia social, Santos et al (2010) afirmam que a atividade artesanal possui um elevado potencial de ocupação e geração de renda no Brasil e a crescente procura por objetos feitos à mão acaba posicionando esse setor como um dos principais eixos estratégicos de valorização e desenvolvimento cultural e territorial:

Num cenário no qual a busca crescente, por parte dos consumidores, de produtos diferenciados e originais, o artesanato emerge como uma contrapartida à massificação e uniformização de produtos globalizados, promovendo o resgate cultural e a identidade regional. (SANTOS et al., 2010, p. 2)���

Essa diferença entre a padronização dos produtos industriais e a peculiaridade dos

artefatos se dá, principalmente, pela forma como a produção artesanal é desenvolvida em

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detrimento do processo industrial, que aliena e degrada a mão-de-obra humana ao forçá-la a

separar a mão da mente. Segundo Sennett (2009), “quando a cabeça e a mão estão separadas,

é a cabeça que sofre” (SENNETT, 2009, p.56). Na contramão desse sistema de produção, a

atividade artesanal surge como uma possível alternativa ao trabalho precarizado. Para Davel,

Cavedon e Fischer (2012), o fazer artesanal traduz valores culturais em bens materiais,

técnicas, sentimentos e habilidades. A figura do artífice não simplesmente reproduz, mas vai

criando à medida que o seu trabalho vai avançando, aproximando ainda mais a obra do seu

idealizador.

Mas, nos dias atuais, será que é possível idealizar o mundo do trabalho artesanal como

se fosse uma parte fora da lógica industrial capitalista ou temos que olhá-lo considerando as

contradições do trabalho artesanal que, nos dias atuais, mesclam tradição e modernidade

(Grande et al., 2012)?

4. Os caminhos percorridos na pesquisa empírica

4.1. Pesquisa etnográfica

A pesquisa de campo baseou-se no método etnográfico com realização de observação

do trabalho dos mestres artesãos e entrevistas individuais aprofundadas, tal como sugerem

Beaud e Weber (1997). Assim, (a) foi realizada observação sistemática destes artesãos durante

sua jornada de trabalho com registros em diário de campo; (b) foi elaborado o roteiro das

entrevistas; (c) foram realizadas entrevistas individuais em profundidade com estes artesãos

observados; (d) foi realizada uma segunda observação de campo.

Segundo Brewer (2000), método é um dos fatores centrais de uma pesquisa, pois

estabelece as regras processuais a serem seguidas pelo pesquisador, para que o mesmo possa

comprovar seus objetivos e obter conhecimento com um alto grau de confiabilidade. Brewer

(2000) ainda diz que a etnografia é um dos principais métodos na área das ciências sociais e,

acima de tudo, no âmbito das pesquisas qualitativas. O autor define etnografia como:

O estudo de pessoas em ambientes ou “campos”, e que ocorre naturalmente através de métodos de coletas de dados que capturam a significância social e as atividades habituais desse grupo, envolvendo a participação direta do pesquisador no local e também nas atividades realizadas, com a finalidade de reunir dados de uma forma sistemática. (BREWER, 2000, p. 6).

Já para Emerson, Fretz e Shaw (1995), a pesquisa etnográfica é:

[...] o estudo sobre a vida cotidiana de grupos e pessoas. A realização da pesquisa etnográfica envolve duas atividades distintas. Em primeiro lugar, o etnógrafo entra em um ambiente social e passa a conhecer as pessoas que

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nele participam; Normalmente, a configuração desse grupo não é previamente conhecida de uma maneira aprofundada. O etnógrafo participa nas rotinas diárias desse grupo, desenvolve relações permanentes com as pessoas do grupo, e observa o tempo todo o que está acontecendo. (EMERSON, FRETZ & SHAW, 1995, p. 1).

De acordo com Brewer (2000), o conhecimento sobre a sociedade só pode ser

adquirido se houver um envolvimento íntimo de familiaridade com a mesma e, nesse caso, a

etnografia passa a ser um importante método de pesquisa qualitativa, pois envolve essa

familiaridade e uma maior proximidade do etnógrafo nas práticas diárias e nas ações sociais

do grupo estudado. O autor ainda enquadra a etnografia no modelo de pesquisas humanistas,

que se diferem das pesquisas de ciências naturais (quantitativas, que promovem a elaboração

de questionários e análises baseadas em números), ao adquirir, além do estilo qualitativo, uma

metodologia de caráter naturalista.

Naturalismo é uma orientação voltada para o estudo da vida social em contextos reais que ocorrem naturalmente através de experiência, observação, descrição, compreensão e análise das características da vida social em situações concretas e que ocorrem de forma independente da manipulação científica. (BREWER, 2000, p. 33).

Para Brewer (2000), metodologia naturalista leva o etnógrafo a prestar atenção naquilo

que o ser humano sente, percebe, pensa e faz em situações naturais que não são controladas

pela ciência, e a sua eficiência na pesquisa etnográfica se dá através de três princípios, que são

colocados pelo autor como essenciais:

a) O mundo social não é redutível ao que pode ser observado externamente, mas é

algo criado ou recriado, percebidos e interpretados pelas próprias pessoas.

b) É necessário, como ponto de partida, documentar, observar, descrever e analisar o

propósito das pessoas inseridas no grupo de estudo antes de entrevistá-las.

c) As pessoas vivem em um contexto social limitada e são melhores estudadas

quando estão no seu ambiente usual e natural.

Ainda para Brewer (2000), os quatro requisitos para as pesquisas desse modelo

humanista são:

a) Perguntar às pessoas sobre seu ponto de vista e seu propósito,

b) Fazer perguntas de modo que a pessoa entrevistada possa respondê-la com suas

próprias palavras,

c) Fazer perguntas em profundidade e,

d) Abordar o contexto social de modo que dê sentido e substância aos seus pontos de

vista e construções.

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As implicações destes quatro requisitos na pesquisa, de acordo com Brewer (2000),

são extremamente significativas e ajudam a definir a atitude e a abordagem do etnógrafo.

Primeiramente, esses requisitos predispõem o pesquisador a estudar determinados tipos de

tópicos em detrimento de outros, ressaltando aqueles que possam abordar da melhor forma as

visões, crenças e propósitos do entrevistado. Em segundo lugar, embora seja verdade que a

maioria dos tópicos pode ser abordada de várias maneiras, pesquisadores com preferência

para o modelo humanista estão predispostos a fazerem certos tipos de perguntas que sejam

capazes de revelar significados, atitudes, crenças e interpretações das pessoas. Por fim, esses

requisitos também predispõem uma preferência por determinadas técnicas de coleta de dados.

Para Brewer (2000), os métodos de coleta de dados no modelo humanístico de

investigação devem abordar os significados das pessoas e seus pontos de vista, é necessário

fazê-los em profundidade, sem impor pontos de vista pessoais do etnógrafo sobre o grupo

estudado. Devem permitir que as pessoas usem seus próprios termos e palavras, dentro do

contexto do ambiente em que vive. Segundo o autor, os métodos mais populares de coleta de

dados em pesquisa qualitativa são, portanto, entrevistas aprofundadas, documentos pessoais

(como diários, cartas e autobiografias), observação participativa e métodos de estudo de

análise da linguagem natural (como a análise de conversação). Para esse estudo, utilizaremos

a entrevista em profundidade e a observação não participativa.

4.2. Observação

Segundo Brewer (2000), a observação é fundamental em diversas atividades, desde a

inspeção de um exército até no controle do tráfico aéreo. Esse método também é uma parte

inerente de vários tipos de pesquisa, desde a análise do comportamento de camundongos em

estudos de ciências naturais até a observação do dia-a-dia de pessoas em seu ambiente natural

na pesquisa humanista. Antes de nos aprofundarmos na definição de observação participativa,

é importante sublinhar que o método de observação na pesquisa qualitativa também pode ser

dividido entre participante e não-participante. Godoy (1995) os distingue da seguinte forma:

A observação tem um papel essencial no estudo de caso. Quando observamos, estamos procurando apreender aparências, eventos e/ ou comportamentos. A observação pode ser de caráter participante ou não-participante. Quando o pesquisador atua apenas como espectador atento, temos o que se convencionou chamar de observação não-participante. Baseado nos objetivos da pesquisa e num roteiro de observação, o investigador procura ver e registrar o máximo de ocorrências que interessam ao seu trabalho. (GODOY, 1995, p. 27).

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Para Jorgensen (1989, p. 13-4) o processo de observação consiste em princípios,

estratégias, procedimentos, métodos e técnicas de pesquisa, e pode ser caracterizada através

de seis características básicas propostas pelo autor:

a) Deve haver um interesse especial no sentido humano e na interação, levando

em consideração a perspectiva de pessoas que estão inseridas no contexto a ser

estudado.

b) Localização no aqui e agora, no cotidiano e nas configurações do grupo como

alicerce para a investigação.

c) Uma forma de teoria e teorização salientando interpretação e compreensão da

existência humana.

d) Uma lógica e um processo de investigação que é aberta, flexível, e requer

constante redefinição do que é problemático, com base em dados coletados no que diz

respeito a contextos concretos da existência humana.

e) Um estudo de caso qualitativo, aprofundado e que aproxime o pesquisador do

grupo pesquisado.

f) O uso da observação direta, juntamente com outros métodos de coleta de

informações.

Ainda sobre o método de observação, Brewer (2000) afirma que a intenção desse

método, que exige um envolvimento mais próximo do pesquisador com o grupo estudado,

para obter dados gerados a partir da observação do que as pessoas fazem e dizem em seu

ambiente natural de convivência, mas também adicionar à vida do pesquisador a experiência

pessoal de partilhar o seu cotidiano com o grupo social observado.

4.3. Fazendo anotações da observação

Emerson, Fretz e Shaw (1995) trazem à tona as interconexões entre a escrita e o

método de observação na pesquisa como um meio de entender melhor outras formas de vida e

outros ambientes sociais. Dessa forma, os autores sublinham a importância do etnógrafo em

transformar suas experiências de campo em relatos, escrevendo notas, mais ou menos

simultaneamente, com a observação dos eventos mais interessantes, e isso pode ser feito no

próprio momento da observação ou ser adiada por horas ou até mesmo dias. Para Emerson,

Fretz e Shaw (1995), o importante é que a atividade de tomar notas não comprometa o ato de

observar do pesquisador, tirando o seu foco.

Os pesquisadores de campo, de acordo com Emerson, Fretz e Shaw (1995), devem

decidir quando, onde e como escrever anotações, e tais decisões podem ser de extrema

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importância para as relações com o grupo envolvido na pesquisa. Em meio a atividade de

observar um grupo, o pesquisador se depara com uma possível ambivalência: por um lado, o

ele pode querer preservar o imediatismo do momento anotando palavras como elas são faladas

e detalhes de cenas como elas são vistas; por outro lado, o indivíduo pode julgar que o ato de

tomar um bloco de notas e fazer anotações pode estragar o momento, e em muitos casos

causar a desconfiança do grupo pesquisado, conforme constataram Emerson, Fretz e Shaw

(1995). Para os autores, esse grupo pode se sentir desconfortável ao se deparar com um

pesquisador fazendo anotações sobre sua vida e isso muitas vezes acontece porque essas

pessoas têm poucas experiências com a escrita no seu cotidiano, principalmente quando a

pesquisa tem foco em grupos cuja cultura oral prevalece. Nesse caso, observar e escrever

pode parecer algo realmente estranho e é extremamente necessário que o pesquisador tenha a

permissão para escrever abertamente sobre as atividades e o dia-a-dia dessas pessoas.

Além disso, também é preciso considerar uma série de procedimentos úteis no

momento de tomar um bloco de notas e escrever aquilo que é resultante da observação. Para

Emerson, Fretz e Show (1995), o primeiro passo é tomar nota das suas impressões iniciais

obtidas no processo de observação. Essas impressões podem incluir informações relacionadas

aos sentidos como gostos, cheiro, sons do ambiente físico, a aparência do local e as pessoas.

Tais impressões podem, ainda, incluir detalhes sobre o ambiente físico, incluindo o tamanho,

espaço, ruído, cores, equipamentos e movimento, ou sobre as pessoas que convivem nesse

ambiente, como o gênero, etnia, aparência, vestimentas, comportamento e expressão corporal.

O segundo passo é se concentrar na observação dos principais eventos ou incidentes do

campo. O pesquisador pode olhar atentamente para algo que o surpreenda ou que contrarie as

suas expectativas, reforçando sempre a atenção nos incidentes e nas e interações, tanto verbais

quanto não verbais.

4.4. Diário de Campo

Esse conjunto de notas disseminadas configura aquilo que Weber (2009) chama de

diário de campo. Sobre o diário de campo na pesquisa qualitativa, a autora explica:

Uma parte expressiva do ofício do etnógrafo reside na construção do diário de campo. Esse é um instrumento que o pesquisador se dedica a produzir dia após dia ao longo de toda a experiência etnográfica. É uma técnica que tem por base o exercício da observação direta dos comportamentos culturais. (WEBER, 2009, p. 157).

Segundo Weber (2009), o diário de campo exerce completamente a “disciplina”

etnográfica, já que é uma parte expressiva do ofício do etnógrafo:

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[...] deve-se aí relacionar os eventos observados ou compartilhados e acumular assim os materiais para analisar as práticas, os discursos e as posições dos entrevistados, e também para colocar em dia as relações que foram nutridas entre o etnógrafo e os pesquisados e para objetivar a posição de observador. É, pois, o diário de pesquisa de campo que permitirá não somente descrever e analisar os fenômenos estudados, mas também compreender os lugares que serão relacionados pelos observados ao observador e esclarecer a atitude deste nas interações com aqueles. (WEBER, 2009, p. 158-9).

Além disso, Weber (2009) afirma que é bastante comum que o pesquisador de campo

carregue consigo mais de um caderno, sendo um para anotar eventos da observação cotidiana

e detalhes das entrevistas e, pelo menos outro para reflexões anotações sobre as entrevistas e

observações no desenrolar do cotidiano, outro para as impressões e reflexões geradas pela

experiência no campo, o que a autora chama de diário íntimo. Segundo a autora, escrever um

diário de campo requer que o pesquisador produza textos de diferentes naturezas, e é muito

raro que esses textos não se misturem em algum momento da pesquisa, o que leva à desordem

de fragmentos do diário. Nesse caso, o diário de campo ainda é definido como “[...] um

conjunto sem coerência prevista em cadernos ou em folhas, mais ou menos estruturadas, mais

ou menos ordenadas, segundo os momentos da pesquisa e as fases da investigação.”

(WEBER, 2009, p. 59). É importante também que os eventos escritos no diário sejam datados

e que respeite uma ordem cronológica lógica em relação ao que foi observado: “[...] as datas

são capitais para a inteligibilidade do desenrolar da investigação e das entrevistas.” (WEBER,

2009, p. 163).

Por fim, a construção do diário de campo se dá através de técnicas de observação e

autoanálise, sendo as três principais funcionalidades do diário de campo, segundo Weber

(2009):

a) Permite um distanciamento indispensável na pesquisa de campo, que leva em

seguida, a análise do desenvolvimento da pesquisa.

b) Mostra a ligação entre as diversas hipóteses que o pesquisador levantou durante os

estudos e o momento da pesquisa em que essas hipóteses foram reformuladas.

c) Permite, na medida do possível, que a autoanálise seja efetuada.

4.5. Entrevista em profundidade

De acordo com Godoy (1995) a técnica da observação geralmente é combinada com a

entrevista. Como uma técnica de coletas de dados na pesquisa etnográfica, a entrevista,

conforme constatou Brewer (2000), usa estímulos verbais – as perguntas – para elucidar uma

resposta verbal de um respondente. A entrevista pode ter questões fechadas, em que os

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entrevistados devem selecionar uma resposta dentre múltiplas alternativas previamente

selecionadas pelo pesquisador, ou pode ter questões abertas, técnica que será usada nessa

pesquisa e que apresenta perguntas que dão a liberdade para o entrevistado respondê-las ao

seu modo e com suas próprias palavras.

Segundo Brewer (2000), o primeiro passo seria a elaboração de um roteiro de

entrevistas com as perguntas que deverão ser feitas ao respondente. A entrevista, de acordo

com o autor, precisa ser feita pessoalmente e o pesquisador deve utilizar o roteiro como uma

forma de guia. As respostas dadas pelo respondente deverão ser gravadas ou anotadas para

uma futura análise. Brewer (2000, p. 63) afirma que é raro que a resposta do entrevistado seja

o principal objeto da pesquisa, na verdade a resposta é um indicador de outras coisas

implícitas na entrevista e para o autor esse é, na verdade, o grande propósito do estudo

etnográfico.

Entrevistas coletam relatos verbais de comportamento, significados, atitudes e sentimentos que nunca são diretamente observados no encontro cara a cara e que só seriam reveladas e identificadas com os dados obtidos nas questões. Isto significa que a entrevista é baseada em dois pressupostos que são fundamentais para a técnica, ou seja, que as descrições verbais dos entrevistados são um indicador confiável do seu comportamento, significados, atitudes e sentimentos, e que os estímulos (as questões) são um indicador confiável do objeto da investigação. (BREWER, 2000, p. 63).

Além disso, para que a pesquisa seja bem sucedida que é preciso tomar alguns cuidados

em relação á preparação do roteiro e na formulação das perguntas a serem feitas aos

entrevistados:

Perguntas ambíguas podem fazer com que os respondentes interpretem a questão de formas diferentes umas das outras, de modo que as respostas não sejam mais comparáveis, de modo que eles não revelam ao pesquisador aquilo que eles estão procurando estudar (o que significa que muitas vezes acaba sendo benéfico procurar a mesma informação através de outras maneiras de fazer perguntas diferentes sobre a mesma coisa). Conceitos ambíguos e idéias teóricas são itens mais difíceis de sempre operacionalizados em questões, na dúvida, testar varias formulações acaba sendo muito importante. (BREWER, 2000, p. 65).

Brewer (2000) também afirmou que é necessário ficar atento às respostas dadas pelos

entrevistados, já que o respondente às vezes pode mentir ou, então, ser contraditório ao dizer

que faz coisas que na verdade não faz, ou podem até procurar a aceitação social e dizer nas

entrevistas apenas fatos e impressões que são socialmente aceitos, mas que na verdade não

representam a realidade daquilo que ele pensa, faz ou vê. Segundo o autor, uma das formas de

evitar isso seria tornando a entrevista o mais informal possível para que pareça ao máximo

com um bate-papo natural.

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A pesquisa qualitativa, conforme afirmou Brewer (2000), valoriza a técnica de

entrevista, respaldada por um roteiro previamente elaborado, porque ela nos dá acesso ao

sentido e a capacidade das pessoas e produz dados ricos, profundos, que vêm na forma de

extratos de linguagem natural. Este técnica depende de uma boa relação entre entrevistador e

entrevistado, especialmente quando a informação solicitada é controversa, sensível e

emocional. Essa relação pode ficar estreita, muitas vezes, nos momentos de observação

participativa do pesquisador no campo.

É recomendado prefaciar a entrevista com um período de quebra de gelo, alem de extensas reuniões preparatórias antes da realização da entrevista; é por isso que muitas vezes a entrevista é feita em conjunto com a observação participante. Perguntas não ameaçadora também são a melhor pedida em primeiro lugar e temas sensíveis só devem ser abordados após o estabelecimento de um relacionamento entre pesquisador e respondente. (BREWER, 2000, p. 66).

4.6. Análise dos resultados

Há diversas questões que cercam a análise, interpretação de dados em uma pesquisa

etnográfica. De acordo com Brewer (2000), quando se trata de pesquisa qualitativa, os dados

analisados tendem a ser pessoais para o pesquisador, diferentemente do que aconteceria em

uma pesquisa quantitativa que é basicamente baseada em dados numéricos. Isso acontece por

três motivos: o pesquisador participa e se envolve com ambiente em que o grupo analisado

está inserido; o aprendizado desenvolvido pelo etnógrafo, a partir da análise e observação das

suas próprias experiências, mudanças e atitudes no campo, acaba se tornando também objeto

para o seu estudo; dentre uma série de eventos observados o pesquisador escolhe aqueles que

ele considera mais significantes. Dessa forma, Brewer (2000, p. 105) define análise como

“[...] processo de ordenar dados, organizando o que está lá em padrões, categorias e unidades

descritivas, e procurando relações entre eles”.

Para Brewer (2000) os principais pontos que devem ser focados durante a análise são:

a) a pergunta original formulada na fase de planejamento da pesquisa deve ficar

sempre em primeiro lugar;

b) considerar insights que ocorrem durante a coleta de dados;

c) gestão e organização dos dados;

d) ordenar os dados em categorias e temas;

e) focar nas descrições qualitativas, como a identificação de eventos mais

significantes, pessoas e seus comportamentos)

f) estabelecer uma padronização dos dados (procura de temas recorrentes e as

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relações entre os dados).

Além disso, é preciso atribuir sentido e significado para a análise, ou seja, é necessário

também interpretar os dados. Segundo Brewer (2000) não há muita coisa a ser dita a respeito

do conceito de interpretação, que é bem simplista. Interpretar é:

Um processo criativo que depende da percepção e da imaginação do etnógrafo. Não é mecânico, mas requer habilidade, imaginação e criatividade. A interpretação não ocorre separadamente da análise, mas sim simultaneamente, com a pós-ordenação de estágios no processo analítico. (BREWER, 2000, p. 122).

Por fim, Brewer (2000) lista os cinco requisitos que devem ser considerados para que

o pesquisador possa interpretar os dados coletados:

a) verificar a sua interpretação com o grupo pesquisado, para garantir que ela se

aproxima da realidade;

b) durante o desenvolvimento desta interpretação, etnógrafos adotam uma atitude

crítica em relação ao que os membros dizem, já que as pessoas podem

deliberadamente tentar enganá-lo;

c) procurar por explicações alternativas, mesmo que seja para anulá-las, uma vez que

isso mostra o quão profundamente o material foi pensado e pesquisado;

d) manter os métodos e os dados no mesmo contexto, já que interpretações estão

vinculados aos métodos utilizados;

e) representar a polifonia de vozes no campo.

4.7. Quadros comparativos e explicativos

� Para a elaboração do roteiro de observação e do roteiro de entrevista, que foram

aplicados durante as visitas ao luthier e ao vidreiro na segunda etapa da pesquisa, foi

necessário sintetizar em quadros comparativos e explicativos todo o levantamento

bibliográfico realizado nessa primeira etapa da pesquisa a respeito do universo do trabalho, do

artesanato, da precarização e dos sentidos do trabalho.

Dessa forma, seria necessária uma leitura minuciosa de todo o conteúdo pesquisado

para captar nesses textos conceitos ou palavras-chaves que poderiam ajudar não só a formular

quadros explicativos sobre a pesquisa, para apoiar a elaboração e execução dos roteiros de

entrevista e observação. Essa leitura da fundamentação teórica permitiu que fossem

destacados com clareza, em relação ao quadro 5, conceitos e possíveis resultados que

podemos esperar no final da pesquisa a respeito da relação do trabalho artesanal com a

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precarização e o sentido do trabalho e a coletar ou criar diversos indicadores para que esses

mesmos resultados possam ser medidos em uma futura análise. Em relação ao quadro 6, foi

necessário dissecar a fundamentação teórica da pesquisa a fim de destacar as principais

características do trabalho industrial e do trabalho artesanal, para que elas fossem

confrontadas em um quadro comparativo.

Esse processo de sintetização e comparação não auxiliou apenas na formulação do

quadro, mas também conferiu mais clareza à pesquisa. Isso tudo ajudou a ter uma visão

sistêmica do projeto, a entender o “todo” e a correlação que existe entre os vários temas

abordados, o que foi de grande ajuda para as análises no decorrer da pesquisa.

Quadro 5: Indicadores de precarização e de sentido do trabalho�

Indicadores de Precarização

• Forma de inserção e contrato (informalidade e subcontrato);

• Imposição de salário real mais baixo;

• Terceirização;

• Desregulação e flexibilidade da legislação trabalhista;

• Diminuição dos postos de trabalho efetivos e estáveis;

• Prolongamento da jornada de trabalho;

• Acumulo de funções (polivalência), a partir de 1980;

• Intensificação do ritmo do trabalho;

• Pressão por metas;

• Perda de milhares de emprego devido à reestruturação;

• Adoecimento;

• Sofrimento psíquico;

• Fragilidade dos sindicatos;

• Enfraquecimento dos coletivos e das relações interpessoais;

• Relações de trabalho conflituosas causadas por hierarquia, controle e comando;

• Humilhação e constrangimento;

• Local de trabalho insalubre;

• Rígido controle do tempo;

• Casos de assédio moral;

• Grau de responsabilidade dos funcionários sobre suas funções é pequeno ou quase nulo;

• Grau de identificação com o trabalho é pequeno ou quase nulo;

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• Sentimento de estar sendo “subaproveitado” ou de que o trabalho não tem importância para a organização;

• Alta taxa de absenteísmo

• Alta taxa de rotatividade da mão de obra;

Indicadores de Sentido do Trabalho

• Grau de consciência da atividade que exerce;

• Qualidade de vida no trabalho;

• Alto grau de identificação com a tarefa e com o trabalho;

• Remuneração que lhe confira independência e sobrevivência;

• Feedback apropriado sobre o desempenho do funcionário;

• Prazer no ambiente de trabalho;

• Satisfação pessoal;

• Autonomia para realizar o trabalho;

• Oportunidade de crescimento e progresso na carreira;

• Oportunidade de aprendizado com o trabalho;

• Trabalhos desafiadores;

• O exercício de atividades úteis ou fundamentais para a organização;

• Trabalho que confira uma contribuição positiva para a sociedade;

• Trabalho ético e moralmente aceitável;

• Grau de importância que o sujeito atribui ao trabalho;

• Segurança;

• Saúde;

Fonte: Elaboração própria�

Quadro 6: Trabalho artesanal versus trabalho industrial�

Trabalho Artesanal Trabalho Industrial

Trabalho é feito manualmente ou com a utilização de meios tradicionais ou rudimentares;

O uso de maquinarias passou a ser recorrente, fazendo com que a habilidade da mão-de-obra perdesse parte da sua importância no processo produtivo;

O artesão é proprietários dos seus instrumentos e ferramentas de trabalho;

O capitalista é dono das máquinas utilizadas no processo de produção;

Há diversidade de funções-chaves no processo produtivo: fabricação, negociação de matérias-primas, empregador, e comerciante;

Não há diversidade de funções, as atividades são enfadonhas, repetitivas e pré-definidas por um superior, até 1970/80;

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Atividade produtiva com forte apelo sócio-cultural;

Atividade produtiva com forte apelo econômico e financeiro;

Artesão é autônomo e responsável pelas suas próprias funções;

O funcionário não tem responsabilidade sobre suas próprias funções, isso fica a cargo do capitalista;

Participa ativamente da venda dos produtos que confecciona;

Não é responsável pela comercialização da mercadoria que produz;

O artesão consegue identificar todo o processo de produção;

O funcionário de uma indústria não participa de todo o processo de produção, portanto não consegue identificar esse processo como um todo;

Recebe feedback sobre seu desempenho na confecção de artefatos diretamente com o cliente pois participa da comercialização do mesmo;

Não recebe feedback dos clientes. É avaliado pelos Recursos Humanos da organização;

Como o próprio artesão vende e decide o preço dos seus produtos e o quanto será remunerado;

É remunerado de acordo com o cálculo do lucro para a empresa e da mais-valia;

O produto artesanal é único, ou seja, um lote de produtos nunca vai ser igual ao outro;

Todos os lotes de um determinado produto são padronizados, devido o culto à massificação e uniformização de produtos globalizados;

Artesãos são profissionais, privilegiados e intelectuais, muitos conseguem permanecer livres e autônomos durante quase todo o processo de produção;

O trabalhador vê obrigado a atuar sob um rígido controle daquele que tem total poder sobre suas mãos e sua mente (o capitalista), ou seja, ele pauta as suas atividades de acordo com a vontade do capitalista a quem pertence o seu trabalho;

Artesão tem para com o seu trabalho uma sujeição sentimental;

O trabalhador moderno é indiferente para com o seu trabalho;

Próprio mestre repassa, para as novas gerações, técnicas artesanais e experiências fundamentais de sua atividade;

No ambiente industrial os contratados geralmente aprendem o que sabem na universidade, em cursos técnicos ou em programas de treinamento promovidos ou bancados pela organização;

O saber do artífice é mantido de acordo com ensinamentos repassados por familiares;

O saber técnico do trabalhador moderno lhe é retirado e transferido a mando do capitalista;

Trabalho realizado em casas de famílias ou Trabalho realizado em grandes propriedades e

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ateliês; estruturas, com grande potencial poluidor;

Baixa ou quase nenhuma rotatividade; Alta rotatividade;

Artesão é responsável pela precificação dos produtos que fabrica;

Equipe de marketing é responsável pela precificação das mercadorias;

Ao artesão são demandadas criatividade, imaginação e operacionalização;

Ao trabalhador moderno é demandado agilidade, habilidade e operacionalização;

Produção de pequenas séries com regularidade;

Produção em escala;

Fruto da criação individual, com apoio de um aprendiz e poucos ajudantes;

Frutos da criação de toda uma equipe de produção;

Os detalhes do trabalho diário são significativos porque, na mente do artesão, eles não são separados do produto final;

Os detalhes do trabalho diário não interessam. O foco é bater metas impostas pela gerência;

O trabalhador é livre para controlar sua própria ação de trabalho;

O trabalhador recebe ordens para acelerar o processo e então produzir mais em menos tempo;

O artesão é capaz de aprender, questionar, dialogar e refletir com a sua obra;

Os gerentes também se aproveitam do poder controlador que tem sobre os operários para induzi-los a pensar dentro de uma lógica pré-definida, impossibilitando-os de aprender, refletir e questionar além das regras;

Gera identificação cultural; Gera inclusão econômica e no mercado de consumo;

Foco na qualidade; Foco na quantidade;

Artesão domina o processo de produção, portanto tem controle sobre o tempo de trabalho;

Jornadas cada vez menos flexíveis, controladas por supervisores e gerentes;

Fonte: Elaboração própria�

4.8. Roteiro de Observação e Entrevista�

Após a elaboração da fundamentação teórica e da sua síntese em forma de quadros,

utilizamos esse material para o desenvolvimento do roteiro de entrevista e do roteiro de

observação. Para isso, cada item dos indicadores criados e cada característica confrontada

entre trabalho industrial versus artesanal foi analisado e discutido para a escrita dos roteiros.

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Segue, abaixo, o roteiro de observação e entrevista que realizamos com o luthier e o mestre

vidreiro.

a) Roteiro de Observação:

1- Instrumentos, equipamentos de trabalho, tecnologias utilizadas

1.1. qualidade, tipo, características

1.2. propriedade ou locação ou empréstimo?

1.3. criado por ele mesmo?

2- O artesão participa de todas as atividades do processo produtivo?

2.1. como ele transforma matéria-prima em produto final?

2.2. como ele comercializa o produto? Faz propaganda?

2.3. tem empregados? Aprendizes?

3- Há contatos diretos com compradores?

4- Descrever o local do trabalho. Descobrir se é alugado, próprio, se a casa é junto, se há

“estoque” de matéria-prima e produtos etc.

5- Se há relógio(s): na parede, no pulso...

6- Como é a luminosidade do local: janelas, lâmpadas, claridade?

7- Ergonomia: estação de trabalho, em pé ou sentado?

b) Roteiro de Entrevista

1. Formação para ser luthier? Teve mestre? Foi aprendiz? Onde? Quando? Por que se

interessou? Tradição de família?

2. O mesmo instrumento feito pelo luthier pode ser feito industrialmente? Que diferenças

teriam? Um violino feito pelo luthier é melhor que um feito industrialmente?

3. O senhor tem empregados? Aprendizes? Se sim, como o senhor descreveria a relação

de trabalho de vocês? Há conflitos?

4. Ganho financeiro é finalidade? É suficiente o que ganha? Acha que sua remuneração é

adequada ao trabalho realizado?

5. O perfil dos consumidores? Configura-se consumo de luxo? O senhor considera os

teus compradores exigentes? Por quê?

6. Comercializa para lojas ou direto aos consumidores?

7. Recebe feedback dos consumidores? Como?

8. É possível fazer um produto igual ao outro? Por quê? O que você acha disso?

9. O senhor produz ou já produziu os próprios instrumentos de trabalho?

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10. A qualidade/marca/local de fabricação de um equipamento/instrumento utilizado no

teu trabalho interfere na qualidade do produto final?

11. A realização do teu trabalho depende de mais alguém além de você mesmo?

12. Como o senhor obtém a matéria-prima que utiliza?

13. Você domina todo o processo de produção? O que pensa sobre isso?

14. Já aconteceu alguma vez de você se apegar emocionalmente a algum produto feito?

Como isso aconteceu? O que o senhor sente quando termina um produto?

15. O que o senhor sente pelo/no trabalho que faz?

16. Como o senhor calcula o preço de cada produto? Um mesmo produto pode ter preço

diferente?

17. Como acontece o teu processo criativo? A criatividade é importante no teu trabalho?

Por quê? Como ela surge? É possível aprender a ser criativo?

18. Quem controla o teu processo produtivo?

19. O senhor faz um projeto antes de começar a produzir um instrumento? Visualizar o

produto final antes de começar a fazê-lo é importante na tua profissão? Por quê?

20. Já aconteceu de um comprador devolver um produto pedindo ajustes, consertos,

reparos? Como foi? É normal ocorrer isso? Por quê? Caso ocorra, o senhor cobra a

parte para fazer isso? Considera um serviço extra?

21. Como é a tua jornada de trabalho? Quantas horas por dia em média o senhor trabalha?

Quais dias da semana? O senhor se cansa trabalhando? O senhor considera tua jornada

de trabalho flexível? Por quê? Acha isso importante?

22. Como o senhor combina o prazo de entrega de um produto? Como fazer o cálculo de

quanto tempo vai demorar para fazer um produto? Já aconteceu de o senhor atrasar

alguma entrega? Como foi?

a. Como é o teu ritmo de trabalho?

23. Como ocorre o controle da qualidade do teu produto?

24. (Luthier) Como ocorre o processo de afinação dos instrumentos que o senhor fabrica?

25. O senhor é músico? Que instrumentos o senhor toca? Aprendeu onde?

26. O senhor gostaria de trabalhar menos? Por quê?

27. O senhor gostaria de fazer o mesmo trabalho que faz hoje, mas numa empresa? Por

quê?

28. Quantos luthiers/vidreiros têm na cidade? O senhor se relaciona bem com os colegas

de profissão? Há competitividade nesse setor?

29. Qual seria o teu diferencial em relação aos outros luthiers/vidreiros?

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30. Qual é a importância do teu trabalho?

31. O que o senhor entende por qualidade de vida no trabalho (QVT)? O senhor diria que

tem QVT?

32. Quais são os aspectos negativos do teu trabalho? Por quê?

33. E os aspectos positivos? Por quê?

34. O teu trabalho é desafiador? Em que sentido? Por quê?

35. De que forma o teu trabalho cotidiano interfere na tua saúde?

5. Os achados da pesquisa

5.1. Primeiro contato com o luthier

O primeiro contato com o primeiro mestre artesão foi feito na segunda metade do mês

de janeiro do ano de 2015 e fomos entrevistar o luthier Carlos Gomes Valentim (ele deu

autorização para utilizarmos seu nome na pesquisa), que trabalha há mais de 14 anos no ramo

da confecção de instrumentos de música erudita na cidade de Ribeirão Preto/SP.

Tomamos conhecimento do trabalho de Valentim, como é chamado pelos seus amigos

e clientes, através de pesquisas em fóruns de discussões de músicos da região que

recomendaram o seu trabalho e elogiaram a qualidade dos instrumentos que o luthier em

questão confecciona. Além disso, tivemos em mãos reportagens em revistas (como a Revide,

revista local) e blogs que o entrevistaram e ressaltaram o trabalho do artesão, que também

mantém a profissão de marceneiro, para complementar a sua renda.

Durante o primeiro contato com o luthier, combinamos de irmos visitar a sua “oficina”

e observarmos o seu trabalho e o seu ambiente de trabalho no dia 9 de fevereiro de 2015, às

14h. O senhor Valentim se manteve receptivo com o projeto durante todas as conversas para

combinarmos a visita, embora tenha dito que estava muito atarefado e pedido para essa visita

ser rápida.�

5.1.1. Primeira Visita ao Luthier

Na primeira visita à oficina do luthier, em 09 de fevereiro de 2015, pudemos notar que

se trata de um ambiente pequeno e bem organizado, com algumas violas caipiras e violões

clássicos a serem terminados pendurados ou encostados em algum canto da oficina. Ainda

havia vários instrumentos de trabalho, a maioria confeccionada pelo próprio Valentim.

Pudemos notar uma mesa grande adaptada para a produção de violão e criada pelo próprio

Valentim dentro da oficina. Talvez seja a instrumento de trabalho criado por ele mesmo que

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mais chamou a atenção.

De qualquer forma, a análise final dessa primeira entrevista foi que o senhor Carlos

Gomes Valentim nos recebeu muito bem no seu trabalho, ele havia comentado que estava

atarefado. Entretanto, assim que ele começou a falar do seu trabalho pudemos notar a sua

empolgação e receptividade para conversarmos durante quase duas horas. Valentim nos

mostrou seus trabalhos que ainda ficarão prontos, contou como funciona o processo de

confecção de um violão clássico, como começou a ser luthier, quais matérias-primas ele

utiliza e comentou sobre a sua paixão por música erudita.

5.2. Análise dos achados de pesquisa com luthier

A análise da entrevista feita com o luthier, Sr. Valentim Carlos Gomes, nos mostrou

que, embora seu local de trabalho não lhe ofereça as melhores condições para desempenhar o

seu ofício, ainda há pessoas que fazem instrumentos em condições e locais piores do que os

dele. De forma geral, ele demonstra estar satisfeito com seu trabalho. O entrevistado relata

que não sente estresse por causa do trabalho e que ele gosta do que faz. Além disso, ele

descreve como muito positivo o fato de ter autonomia sobre o seu próprio tempo. No entanto,

ele não consegue sobreviver financeiramente apenas da remuneração de seu trabalho como

luthier, já que consegue produzir cerca de 3 a 4 violões por mês. Por isso, precisa ter um

emprego fixo como marceneiro numa escola privada da cidade de Ribeirão Preto. Assim, ele

trabalha meio período com carteira assinada numa escola e o resto do tempo que tem, trabalha

como artesão.

Figura 1.1. - Sr. Valentim trabalhando em um dos seus instrumentos.

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Quando perguntado o que ele achava sobre o tema dessa pesquisa, ele disse: “[...]

sobre as condições de trabalho e o ambiente, isso depende de cada um. Tem gente que faz

instrumentos em piores condições do que você está vendo aqui, por exemplo, tem gente que

faz em fundo de quintal mesmo e faz só por hobby”. Através dessa fala podemos inferir que

ele não considera seu local de trabalho tão bom ou apropriado para desempenhar suas

funções, pois ele diz que os outros trabalham “em piores condições do que você está vendo

aqui”. Estivemos duas vezes nessa oficina e pudemos perceber que se trata de um espaço

pequeno, apertado, sem muita ventilação, com muito barulho vindo da avenida bastante

movimentada e sua oficina nos pareceu um pouco “desorganizada”, com muitas coisas

entulhadas e espalhadas.

Ter controle sobre o seu próprio tempo é uma das características que o luthier

considera positivo do seu ofício. Ele se considera “autônomo” e diz que consegue programar

o seu tempo de serviço de acordo com aquilo que ele tem que fazer a fim de cumprir seu

prazo com os clientes - os quais, segundo ele, se mostram sempre flexíveis e não fazem

pressão.

É possível deduzir que o ofício do luthier, segundo seus relatos, não contém alguns

dos indicadores de precarização que apresentamos no Relatório Parcial. O primeiro deles é o

de pressão por metas, já que o luthier não tem metas pré-estabelecidas por outras pessoas, o

que reduz a pressão no cotidiano do trabalho. O produto encomendado pelo cliente tem um

prazo de entrega já determinado pelo luthier e, caso o prazo seja estendido por conta de

variáveis externas que atrasam a fabricação do mesmo, os clientes são flexíveis. Podemos

concluir então, que os clientes, embora sejam em sua maioria músicos profissionais e

exigentes, eles acabam tendo uma postura mais tolerante e não pressionam ou cobram o

luthier por resultados ou por disciplina com prazos. Eles entendem as dificuldades de fabricar

violão artesanalmente, ainda mais no caso do Brasil, principalmente por conta do fator

climático, conforme explica o Sr. Valentim:

“Os clientes são muito exigentes. A princípio, quando o músico é muito profissional ele é exigente com o som. (...) O meu prazo de entrega é de seis meses e sempre atrasa um pouquinho, não é? Por exemplo, chove e você não pode jogar mais nada no produto. Esse mês choveu o mês inteiro e eu estou com vários violões parados aqui porque eles não aceitam a umidade. (...) Essa é uma das partes que mais dá trabalho e que mais faz atrasar a entrega, é a parte do acabamento. Se chover, você precisa parar de fazer. (...) Os clientes entendem (as adversidades climáticas), eles nem ligam para cobrar, só para se manterem informados mesmo, geralmente eu informo postando fotos na internet de como o violão tá ficando”.

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Uma das teorias vistas na revisão bibliográfica foi a da precificação dos produtos

artesanais. Quando questionamos o luthier sobre os fatores que ele leva em consideração na

hora de calcular o preço dos seus instrumentos, ele nos respondeu que precifica suas violas de

acordo com as despesas com matéria-prima, adicionando uma porcentagem pela mão-de-obra

mais o serviço prestado; ele também leva em consideração a qualidade funcional do produto

(som) e a relevância que seu nome tem no cenário da música clássica da região. Em relação

ao custo da matéria prima como fator determinante do preço do seu produto, ele nos contou o

seguinte: “(...) o preço de um violão para outro muda, depende da madeira que vai usar. A

madeira baiana, Jacarandá, é de um preço, a alemã é de outro, a americana tem outro

também”.

Sobre a precificação, ele também citou a importância do som alcançado pelo violão:

“O preço do instrumento vai de acordo com aquilo que você alcançar no som do violão “(...)

Quando uma pessoa muito boa está tocando o seu violão, significa que ele tem um bom valor

financeiro, por causa do som que ele pode oferecer”, além de destacar a relevância do seu

nome no mercado musical: “É lógico que quando você fica mais famoso nessa área o preço

do violão dispara, como se fosse uma obra-de-arte. Eu estou numa linha até razoável de

preço, pouca gente vende violão no preço que eu vendo, só os melhores mesmo”.

Sendo a precificação calculada pelo próprio artesão uma das características mais

presentes no trabalho artesanal, podemos então afirmar que o luthier entrevistado se encaixa

nesse perfil. Além disso, ele acrescenta o valor da arte e da importância do seu nome no ramo

de instrumentos da região ao preço dos produtos, sendo este um fator que aumenta o sentido

do seu trabalho.

Outros indicadores de sentido no trabalho presentes no cotidiano laboral do Sr.

Valentim e que muitas vezes não se aplicam às organizações industriais é o “Feedback

apropriado sobre o desempenho”. Quando nós o questionamos sobre o retorno que ele

recebe a respeito dos seus produtos vendidos, o luthier responde com entusiasmo que recebe

com frequência feedbacks positivos dos seus clientes, principalmente no que diz respeito a

qualidade do som dos instrumentos. Além disso, o Sr. Valentim também é beneficiado, já que

esses feedbacks muitas vezes são compartilhados publicamente nas redes sociais ou através do

“boca-a-boca”, quando um músico o elogia ou recomenda o seu trabalho para outro artista da

categoria, rendendo ao luthier um marketing espontâneo e gratuito que reforça ainda mais o

seu nome como uma marca expressiva e reconhecida no cenário musical de Ribeirão Preto e

região. Ele diz: “Eles (clientes) falam direto, ainda mais quando tem algum violão saindo.

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Quando eles ‘pegam’ eles falam, eles elogiam pessoalmente, entram em contato comigo pelas

redes sociais e comentam. (...) Aí todo mundo que vem aqui fala que já ouviu falar dos meus

produtos”.

Quando o questionamos sobre a remuneração do luthier, ele nos conta que embora os

preços dos seus produtos artesanais estejam acima do mercado, a demanda é baixa e as

encomendas pelo instrumento não são garantidas em todas as épocas do ano, por isso, para

complementar sua renda mensal ele trabalha como marceneiro em um colégio de Ribeirão

Preto. Podemos concluir, então, que o indicador de sentido do trabalho, “Remuneração que

confira ao trabalhador independência e sobrevivência” não se aplica necessariamente ao

luthier estudado quando levamos em conta apenas o seu trabalho autônomo como mestre

artesão na sua oficina artesanal, conforme foi dito em seu relato: “Eu tenho dois empregos,

não tenho só o de luthier, ainda preciso trabalhar com armário embutido também (...) se eu

pudesse trabalhar só com isso, eu queria trabalhar o dia todo só aqui na oficina. Mas não dá,

porque aqui não entra capital suficiente pra você se manter e ficar o dia todo aqui”.

Figura 1.2. - Alguns instrumentos em processo de finalização.

Foi possível perceber, através da entrevista, que o trabalho do luthier entrevistado é

dotado não só de autonomia, mas também de uma grande diversidade de funções-chaves e

importantes para processo produtivo: ele participa da fabricação, compra e negociação de

matérias-primas e da precificação e comercialização do produto, ou seja, ele tem um domínio

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sobre todas as etapas da atividade artesanal, o que o aproxima da identificação do trabalho

que desempenha, além de dar a ele uma responsabilidade sobre suas funções que não se

aplicaria, por exemplo, a funcionários das indústrias que realizam suas atividades acatando

ordens e trabalhando sob um rígido controle de tempo e pressão por metas e resultados. Dessa

forma, podemos refutar automaticamente outros dois indicadores de precarização que dizem

que o grau de responsabilidade e de identificação dos funcionários sobre suas funções é

pequeno ou quase nulo.

Além disso, o domínio de todas as funções artesanais acaba conferindo ao trabalhador

o “Exercício de atividades úteis e fundamentais para a organização”, ou seja, esse

indicador de sentido no trabalho está presente nas funções laborais do Sr. Valentim. Tudo o

que ele faz é importante para o sucesso do seu negócio e ele sabe disso.

Ainda sobre a questão do domínio no trabalho, no que diz respeito ao processo de

produção, o luthier entrevistado também coordena pessoalmente todas as etapas da elaboração

e montagem dos instrumentos musicais, mas acredita que ainda tem muito a melhorar e por

isso sempre está em busca de aprendizado a respeito do seu ofício: “Esse é um processo muito

longo. Você tem sempre que aprimorar, sempre faz algo que acha que pode melhorar e faz no

próximo”. E ainda complementa, citando o fator qualidade: “Buscar a qualidade é uma coisa

que a gente faz automático, não é? Você adquire a perfeição da construção fazendo aquilo, se

aperfeiçoando. Isso é automático mesmo”.

Uma das características do trabalho artesanal é que o artesão domina uma atividade

que inclui imaginação, criação e operacionalização da produção em si, sendo o domínio desse

processo (“o todo”) a fonte de satisfação do artesão (Mills, 1951). Foi possível notar na fala

do luthier que ele tem o projeto do violão como um todo em mente antes de começar a

confeccioná-lo, o que mobiliza as suas capacidades mentais de imaginação e de criatividade.

Segundo o Sr. Valentim, a criatividade no seu trabalho é importante para que a qualidade

funcional do produto seja atingida com excelência, e a imaginação e a pré-visualização do

projeto de produto interferem na sua operacionalização e o incentiva a sempre buscar as

melhores formas e condições de entregar um bom instrumento artesanal para seus clientes.

Essas evidências contribuem para a confirmação do indicador de sentido do trabalho

“Grau de consciência na atividade que exerce”, reforçadas pelos seguintes depoimentos do

artesão em que nos fala sobre a importância da criatividade para o acabamento final do

produto e para a extração do som do instrumento no seu trabalho: “A parte do acabamento é

mecânica, não exige tanta criatividade. Agora, na parte de som, é necessária criatividade, na

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esperança de sempre ficar melhor. Ter criatividade e pensar, como vai agir (...) você busca

sempre o melhor som, a parte de inspiração vem disso”.

Uma das peculiaridades do artesanato é que cada peça produzida é única. Elas podem

sair parecidas umas com as outras, mas sempre haverá um diferencial que vai distinguir cada

produto. Ao questionarmos o luthier se há a possibilidade de um violão sair parecido com o

outro, ele diz que não. Mesmo utilizando uma planta pra moldar o violão, eles nunca saem

iguais. Além disso, o som também é extraído de forma diferente, de acordo com as

necessidades do cliente, como podemos notar a seguir: “O meu projeto já vem moldado, né?

Eu uso as plantas de produção e os modelos do Hauser, Bouchet etc, mas eu vou mudando de

acordo com o que eu acho que vai ficar melhor. Eu posso pegar aquela planta, mas nunca

vou fazer o violão igualzinho 'aquele' lá (...) a parte sonora que está na planta eu já vou

pensando em fazer, em como vou mudar de acordo com o que a pessoa pede. (...) Ai você tem

que imaginar, na sua cabeça, o que está faltando e o que você pode fazer, de acordo com a

sua experiência, para conseguir o resultado que eles esperam.”

Figura 1.3. - Molde do violão baseado na planta de produção criado por “Friederich”.

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De acordo com De Decca (1995), o trabalho artesanal muitas vezes se configura

através da relação do mestre com o aprendiz na produção, em que o ofício do artífice é

passado de pai para filho, um modelo de trabalho ligado diretamente a tradicionalismo.

Curiosamente, no caso do Sr. Valentim, essa característica não se aplica. Ele não aprendeu

com nenhum parente o ofício do luthier e nem está repassando o ofício para seus filhos. Ele

diz ser autodidata, sua primeira profissão foi como marceneiro e isso, além da paixão pela

música clássica, conseguiu dar o suporte necessário para ele começar a confeccionar

instrumentos musicais. Essa situação do Sr. Valentim esbarra em alguns indicadores de

sentido de trabalho que podem ser notadas no seu ambiente de trabalho.

O primeiro é o da oportunidade de crescimento na carreira, já que, durante a

entrevista, o Sr. Valentim nos contou que sempre busca aprimorar seu trabalho, sempre se

empenha para que um produto saia melhor do que os anteriores, e sempre está em busca de

aprendizado, novas técnicas de confecção, inclusive fabrica ferramentas para poder auxiliá-lo

na produção, a fim de tornar o processo produtivo mais eficiente.

Figura 1.4. - Estrutura criada pelo próprio luthier para otimizar o processo de produção.

Em segundo lugar, seus relatos permitiram concluir que ele tem grandes

oportunidades de aprendizado no trabalho. Quando perguntamos a ele como aprendeu a ter

o domínio do seu ofício, ele nos contou que é autodidata e que sempre busca aprender cada

vez mais sobre o ofício do luthier. Entretanto, ele disse também que conta com as dicas de

profissionais do ramo, principalmente músicos e professores da Faculdade de Música da

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Universidade de São Paulo. Geralmente, são dicas para melhorar suas técnicas de produção e,

consequentemente, aumentar a qualidade do seu produto, de acordo com o seu relato a seguir:

“Eu sou autodidata (…) eu tive dicas. Dicas dos próprios violinistas, existem cursos, mas eu

nunca fiz. Como eu era marceneiro, isso ficou mais fácil, eu já tinha noção do que fazer com

a madeira, e dominar esse processo e pensar em como fazer”.

Diante disso, tocamos também na questão do desafio no ambiente de trabalho, já que o

luthier afirmou que considera o seu trabalho desafiador, principalmente no que diz respeito às

etapas não mecânicas do processo de produção de um violão, como os esforços para conseguir

tirar o melhor som possível do mesmo. De acordo com o Sr. Valentim, um trabalho desafiador,

como o seu, é importante para o desempenho e para o desenvolvimento, sendo assim,

podemos concluir que o indicador de precarização que sugere que o indivíduo possa estar se

sentindo subaproveitado ou que o seu papel não tem importância para a organização não

se aplica ao caso estudado. Muito pelo contrário, o luthier se sente desafiado e dá tudo de si

para atingir o grau máximo de eficácia na fabricação dos produtos artesanais. O entrevistado

acredita que é importante ter sempre uma noção do instrumento musical que será

confeccionado na cabeça, e isso para ele, é um desafio. “ (...) pra você ir melhorando sempre

e ter sempre na cabeça aquilo que você precisa mexer, esse é o desafio”.

No que diz respeito à relação do produto artesanal e do seu artesão como uma forma

de humanizar o objeto e dar identidade ao produto, também pode ser notada, mesmo que de

forma tímida, no caso estudado. A entrevista com o luthier nos permitiu deduzir que o contato

do luthier com a sua arte está presente também no cotidiano laboral do sr. Valentim. Em

depoimento, ele nos definiu a satisfação de ver seu produto acabado como algo que lhe

“enche seus olhos”, isso porque ele se orgulha de ter feito um instrumento bem feito e com

qualidade funcional impecável. De acordo com o luthier, isso também acaba gerando uma

identificação emocional com o produto, o que evidencia um contato bastante humanizado do

artesão com a sua arte e com a sua matéria-prima, como ele mesmo afirmou: “Na hora que

você termina um produto e você vê que ele fica melhor do que algo que você já fez, ai não dá

vontade de vender. Mas aí não tem jeito, porque o produto já tá vendido, é tudo feito sob

encomenda. Você o faz do jeito que a pessoa pediu, do jeito que ela quer”. Esse foi um dos

pontos que mais revelaram que o trabalho do Sr. Valentim de fato tem um enorme significado

para ele.

A produção de instrumentos musicais também pode ser satisfatória para quem o

confecciona, pois o produto pode ter um impacto interessante no âmbito sociocultural e isso

afeta diretamente a figura daquele que é responsável pela confecção, no caso, o luthier.

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Quando questionado se admira o trabalho depois que fica pronto, Sr. Valentim respondeu que

a maior admiração aparece quando o instrumento é usado por um músico em sua

apresentação. Para ele a questão estética já não o espanta tanto, sendo o resultado sonoro o

mais interessante de todos.

Figura 1.5. - O violão já pronto. Algo que “enche os olhos” do luthier, conforme ele nos contou.

Ainda de acordo com o luthier, as duas grandes satisfações que ele enxerga em seu

trabalho são: a) gostar de fazer o que faz e b) assistir grandes músicos tocando seus

instrumentos. O ato de ouvir seu produto tomando forma através da música, segundo o

próprio artesão, é inexplicável. Davel, Cavedon e Fischer (2012) já ressaltaram a forte

ligação que há entre o trabalho artesanal e as relações socioculturais em que o artífice está

inserido. Quando o Sr. Valentim diz que se orgulha de ver artistas fazendo música com seus

instrumentos, ele coloca seu trabalho em um patamar que transcende o produto e o material,

concretos, e atinge o abstrato, a arte e a cultura. O seu trabalho, no caso, ganha um valor

simbólico e esse valor, conforme o Sr. Valentim nos relatou, resulta na satisfação que dá um

sentido ao seu trabalho, já que é um ofício que se materializa em arte e cultura para a

sociedade.

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Podemos, então, atribuir ao luthier duas características que comprovam que seu

trabalho tem sentido. A primeira é que o fruto do seu trabalho acaba, mesmo que

indiretamente, contribuindo de forma positiva para a sociedade, já que o instrumento musical

é a uma peça fundamental para a construção e manutenção da cultura musical e artística que

será oferecida para a população da região de Ribeirão Preto. A segunda característica é que a

arte de confeccionar violas também confere a ele uma grande satisfação pessoal. Quando

perguntamos ao luthier sobre qual era a sua maior satisfação como mestre artesão que presta

serviços no ramo de instrumentos musicais, ele nos contou:

“A satisfação maior é você gostar de fazer. Então eu gosto de fazer instrumento, então me sinto bem (...) outra grande satisfação é ver as pessoas tocando esse instrumento. É igual quando você faz uma exposição de arte, é o mesmo nível de pensamento. O artista plástico não faz quadro e expõe pra todos admirarem? A satisfação que ele sente é a mesma que a minha, ou a mesma que um compositor que escreve música para as pessoas ouvirem”.

Ao ser questionado sobre o que ele entendia pelo termo “qualidade de vida no

trabalho” e se ele acreditava ter essa qualidade de vida na sua oficina, o luthier nos respondeu,

de forma positiva, que esse termo realmente se aplica à sua realidade, pois para ele a

qualidade de vida no trabalho se associa ao entretenimento da função, satisfação pessoal,

remuneração adequada e à tranqüilidade da sua jornada. Os relatos do sr. Valentim, de que

fica entretido enquanto trabalha e que o serviço que presta é tranqüilo, nos permite adicionar

ao caso do estudo outros dois índices de sentido de trabalho: “Qualidade de vida no Trabalho”

e “Prazer no ambiente de trabalho”. Seguem os relatos do luthier: “Eu tenho (qualidade de

vida no trabalho) porque é um serviço tranqüilo. Se você estiver fazendo, você fica entretido,

isso é qualidade de vida. É uma boa qualidade de vida no trabalho sim, em termos, sem

pensar no dinheiro”.

Dando continuidade à qualidade de vida, foi possível analisar que durante a entrevista

o luthier também colocou satisfação pessoal e remuneração como dois dos principais fatores

para que seja atingida aquilo que ele acredita ser “qualidade de vida no trabalho”, sendo que o

dinheiro tem um nível de importância um pouco maior do que a satisfação de ver o seu

produto sendo usado por um grande artista, já que junto com o dinheiro vem o conforto,

estabilização familiar e a inserção social, conforme mostra o depoimento do sr. Valentim:

“As duas (satisfação e dinheiro) são importantes, tem que estar juntas. (...) Não só no meu trabalho, mas no de todo mundo, o principal para ter uma qualidade de vida boa é o salário. A pessoa tem que ter um bom salário, em qualquer trabalho. (...) Você tem um custo de vida para manter, quer ficar confortável, não quer trabalhar de sábado e

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domingo. Se eu vendesse violão o ano inteiro, a 7 mil reais cada um, você acha que eu precisaria trabalhar de sábado e domingo? 'Não'. (...) Qualidade de vida é ter uma vida mais confortável, e pra isso precisa de dinheiro. Infelizmente a arte vem depois do dinheiro, você fica super feliz ao ver alguém tocando o seu instrumento, dá uma satisfação muito grande, mas a parte financeira é aquela que te mantém, se você precisa ir no médico e não tem dinheiro, como é que você faz?”.

Embora o luthier dê bastante ênfase para a satisfação intrínseca, fruto do seu trabalho,

ele cita muitas vezes a questão financeira com sendo o principal impulsionador do seu

trabalho, principalmente quando lamenta o fato do “dinheiro vir antes da arte”. O ganho

financeiro, como finalidade essencial, fica ainda mais evidente quando perguntamos se ele

deixaria de lado a oficina de luthier para ir trabalhar na indústria de instrumentos musicais e

ele nos respondeu que iria caso fosse no exterior e se o salário fosse bom e cobrisse aquilo

que ele já ganha atualmente como artesão. “Se fosse nos Estados Unidos, eu até iria (...) por

causa do salário, deve ser bom, e só se fosse numa fábrica muito grande”.

Em seguida, perguntarmos porque ele tinha preferência em trabalhar em uma indústria

estrangeira ao invés de uma brasileira e ele respondeu que prestar serviços em uma empresa

do ramo no Brasil está fora de cogitação, já que há poucas fábricas do segmento por aqui, e

ainda assim não são gigantes do setor. Além disso, ele acha que perderia sua autonomia numa

fábrica do país: “Aqui é a linha de produção, é serviço de ajudante, não é serviço

profissional”.

Tendo em vista que o sistema industrial tira a autonomia, há a possibilidade de que um

luthier autônomo que migre para esse sistema de linha de produção venha a se submeter a

todas as questões de precarização estudadas até aqui. Diante desse cenário, quando

perguntamos se ele aceitaria perder a autonomia e o controle de todo o processo de produção

em troca de um bom salário, o luthier ficou alguns segundos pensando e por fim, ficou em

dúvida se aceitaria trocar sua oficina pelo trabalho como assalariado em uma fábrica de

instrumentos musicais. Ainda disse que acha difícil que exista precarização no sistema fabril

no exterior, já que eles têm seus próprios luthiers trabalhando para eles: “Será que compensa?

Não sei te falar não. Eu só estou dando uma sugestão, talvez fora do Brasil você consiga um

salário decente trabalhando em uma fábrica. Essas fábricas mais famosas vendem

instrumentos em loja por 10, 12 mil reais e quem faz é o luthier da própria fábrica. Eles têm o

luthier deles. Eu duvido que um cara que tenha nome vai trocar o serviço dele para trabalhar

em uma fábrica se o salário não fosse bom.”

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Ainda com relação ao dinheiro, o luthier reforçou, em um determinado momento da

entrevista, que o ganho financeiro é sim a sua principal finalidade no trabalho como artesão:

“(...) como todo trabalho a sua finalidade é ganhar dinheiro, lógico que tudo aquilo que você

faz com gosto, o dinheiro é mais gostoso de receber. Caso contrário, não tem jeito.”

Outro tema que podemos destacar nessa análise é o ritmo de trabalho e o cansaço que

pode ser causado ao trabalhador. O luthier entrevistado nos revelou que seu trabalho é

cansativo, muito mais pelo seu emprego como assalariado em um colégio de Ribeirão Preto

do que pelo emprego como luthier em sua oficina. Em resumo, ele diz que o cansaço causado

pelo ofício de marceneiro é físico, enquanto que, como artesão, o cansaço é mental, já que o

seu trabalho exige imaginação, criatividade e métodos de tentativa e erro para conseguir ter

um instrumento com o melhor som possível: “No outro trabalho (de marceneiro) eu mexo

mais com peso, aqui você trabalha mais com a mente. Eu tenho que ficar pensando, pensando

e fazendo. Não é muito automático, tem que ficar regulando muita coisa, são coisas que

dependem de tempo e demora”.

A função intelectual que o luthier desempenha, nesse caso, distancia o seu trabalho

daquilo que poderíamos chamar de precário ou mecânico, já que suas atividades estão longe

de serem enfadonhas, repetitivas ou pré-determinadas por outras pessoas. Dessa forma,

entramos mais uma vez na questão da autonomia e no grau de consciência da atividade que

este trabalhador exerce. Em contrapartida, quando o luthier nos diz que a exigência de

criatividade e imaginação para desempenhar a sua função, vistas como fatores positivos que

dão sentido ao trabalho, acabam gerando também um cansaço mental nele, acabamos nos

deparando mais uma vez com outro indicador de precarização: o cansaço que afeta a sua

mente.

No que diz respeito ao controle do tempo no campo laboral, o Sr. Valentim também

nos deu evidência de que tem um ritmo de trabalho tranqüilo, ele não se vê obrigado a atuar

sob um rígido controle de um chefe que tenha total poder sobre suas mãos e mente. É um

artesão autônomo, é ele quem determina quando e quanto vai trabalhar. O ofício do luthier

estudado tem poucos indicadores de precarização nesse aspecto: o trabalhador é autônomo,

portanto decide seu tempo de trabalho, não há prolongamento da sua jornada de acordo com a

vontade de terceiros. Na verdade, conforme pudemos notar na entrevista concedida pelo Sr.

Valentim, sua jornada de trabalho é razoavelmente tranqüila e fora dos padrões que se

costuma ver em fábricas e indústrias, por exemplo.

O poder de decisão do luthier em flexibilizar seu horário de acordo com as suas

necessidades e de acordo com o tempo disponível ficaram evidentes nos seguintes trechos

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retirados do seu depoimento: “Venho na oficina todos os dias, mas ai depende. Tem dias que

eu fico menos tempo, tem dias que fico mais. Quando eu preciso sair, eu saio. Eu não fico

assim, tipo relógio de ponto, tenho que produzir ‘naquele’ tempo (...) Eu fico umas 4 ou 5

horas trabalhando aqui. Não dá mais que isso”. Dessa forma, ele pauta as suas atividades de

acordo não só com a sua vontade, mas também com o tempo que cada instrumento precisa

levar para ser fabricado sem que haja problemas futuros que implique na deterioração do

mesmo. Vai muito além de bater metas diárias, já que o detalhe de todo o trabalho interessa e

é importante para o processo produtivo: “O ritmo depende do que você está fazendo, se você

está fazendo a parte de colagem, por exemplo, o ritmo é mais devagar, porque como eu falei

pra você tem que esperar para secar, então é mais demorado, agora se for o serviço de lixar

o instrumento ai é mais rápido”.

Segundo Dejours (2007), a indústria impõe aos trabalhadores um aumento de ritmo,

que muitas vezes chega perto do intolerável. O autor diz que o aumento de atividades

repetitivas, a aceleração do tempo de produção e a exigência por bons resultados podem gerar

desequilíbrios psicológicos ao trabalhador, além de aumentar os riscos à sua saúde física. Esse

ambiente de pressão e de ritmo acelerado acaba sendo um gerador interminável de estresse.

Como pudemos analisar anteriormente, o ritmo de trabalho do Sr. Valentim não chega a ter

essa dimensão precária sublinhada por Dejours, mas ainda assim há fatores, internos e

externos ao ambiente de trabalho, que causam estresse ao luthier, mesmo que sejam em

pequenas proporções e em casos isolados.

Para ele, a época que teve mais estresse com o seu trabalho foi no começo da sua

carreira como mestre artesão, já que ele ainda estava em uma fase de aprendizado que exigia

esforços de aperfeiçoamento, análise de processo e de melhora contínua:

“O trabalho não gera estresse. Gera só no começo até você aprender, até ficar conhecido, e ter em mente em todas as coisas que você precisa pensar para construir o instrumento (...) Aqui mesmo não tem muita dor de cabeça, se você seguir o cronograma certinho e ir acertando as mudanças você não tem estresse. O maior problema de alguém que trabalha assim, artisticamente, e o fator financeiro no final, entende? É a hora de você vender e a hora de você receber o dinheiro”.

Quando perguntamos se algum processo do seu trabalho como mestre artesão era

estressante, ele nos respondeu que o grande estresse enfrentando por ele foi no início da

carreira: “No começo é sempre estressante, é estressante na hora de fazer o violão também,

na hora de entregar, quando você fica na expectativa se o cliente vai gostar ou não, se vai

sair do jeitinho que ele quer, isso gera um pouco de estresse sim”.

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Embora o luthier afirme que, de forma geral, ele não vive sob estresse no trabalho, ele

comentou na entrevista sobre algumas atividades do processo produtivo que geram uma maior

tensão, como a etapa de confecção do “tampo” do violão. Segundo ele, é uma parte que exige

bastante atenção, mas também define a mesma como “A parte mais emocionante...”. Além

disso, podemos notar também uma identificação emocional do luthier com o processo

artesanal: “(...) é dali que vai nascer o violão”. Sobre a sua parte favorita do processo, ele nos

relatou: “A parte mais emocionante de fazer é a parte do tampo, porque é dali que vai nascer

o violão. O resto é automático, você vai fazendo. Você nem percebe e já fez. Mas a parte que

dá mais atenção pra você e que te deixa mais tenso é a parte do tampo, que você não pode

errar, porque é ele que dá a afinação pro seu violão”.

Outro aspecto do trabalho do luthier que é apontado pelo Sr. Valentim como

estressante é a “falta de obediência” das madeiras que ele utiliza para seus instrumentos.

Muitas delas são importadas, principalmente da Europa. Normalmente, elas são próprias de

lugares de baixas temperaturas, algumas delas só são encontradas em países onde neva. Por

esse motivo, essas madeiras podem sofrer algumas deformações quando são submetidas ao

calor do Brasil:

“Tem (estresse) com as madeiras, porque elas não respeitam muito. Se ela quiser dar uma torcida pra cá, ou uma torcida pra lá, independente de você querer ou não, ela dá. Tem a questão da temperatura, às vezes não tem um lugar frio para guardar o violão, tem que ser em um lugar de baixa temperatura, porque se for em temperatura alta o instrumento não agüenta”.

O ambiente de trabalho do luthier, em relação ao ritmo e ao estresse (que deduzimos

ser moderado) é tão favorável ao trabalhador que quando perguntamos se ele gostaria de

trabalhar mais, ele respondeu que sim e completou que esse aumento do volume de trabalho

ajudaria também a aumentar a sua renda: “Gostaria de trabalhar mais, ter mais produção e

ficar mais tempo aqui na oficina”.

Um dos indicadores de precarização no mundo do trabalho é a competição entre

concorrentes em um mercado cada vez mais acirrado. A fim de analisarmos se o mestre

artesão também enfrenta problemas gerenciais por conta da concorrência no mercado de

música clássica em Ribeirão, perguntamos ao Sr. Valentim se ele tem muitos concorrentes em

Ribeirão Preto e qual a sua relação com eles. De acordo com os relatos do artesão, pudemos

observar que ele não conhece nenhum outro luthier especializado em violão clássico e viola

caipira na sua cidade, por isso não fica intimidado com a concorrência. Mas conhece outros

luthiers, especializados em outros tipos de instrumentos ou de outras cidades e diz que a

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relação entre eles é boa e que um não prejudica o negócio do outro. Dessa forma, refutamos o

indicador de precarização “competitividade em mercado acirrado”. Essa é uma importante

diferença do setor industrial: cada luthier tem o seu espaço no mercado, e segundo Sr.

Valentim, há um respeito mútuo entre eles, além de troca de informações sobre o ofício:

“Tem muito luthier aqui que só conserta e faz reparo. Um que constrói o instrumento igual a mim eu não conheço nenhum (...) a gente conversa pelas redes sociais, troca dicas. Muitos fora do Brasil já chegaram a conversar comigo pela internet. É legal isso. Não existe muita concorrência nesse meio porque cada um tem um som. Um não consegue copiar o som do outro, então é difícil ter concorrência.”

Ao confrontar os aspectos negativos e positivos da profissão de luthier percebidos pelo

Sr. Valentim, podemos notar que há uma facilidade maior dele falar dos pontos positivos, o

que evidencia que ele tem auto realização no trabalho e se sente muito bem fazendo o que faz.

Para ele, foi uma dificuldade listar os pontos negativos, porém, quando questionado sobre os

aspectos positivos, voltou à questão financeira e de satisfação de ouvir seu instrumento se

materializando em música em espetáculos e orquestras: “Os aspectos positivos são a

satisfação que você tem de ouvir a outra pessoa tocando o seu instrumento e depois o

dinheiro, que faz você ter uma vida mais tranqüila”.

Em relação aos aspectos negativos, depois de muito pensar, respondeu: “É difícil

responder”. E prosseguiu falando que não é fácil elencar os pontos negativos do seu trabalho

já que ele possui autonomia, tem prazer de fazer aquilo que faz e de participar de todo o

processo produtivo:

“Difícil responder, porque eu que defino o horário que vou trabalhar e todos os processos de produção eu gosto de fazer, desde o começo até o final eu gosto de fazer, não tem um serviço que eu não goste. Tem sim algumas etapas que são mais difíceis, como fazer o acabamento do Goma-Laca, é mais complicado, apesar de parecer que jogar o verniz no produto é fácil, não é, é uma parte meio chatinha”.

Além disso, o entrevistado também acabou citando um aspecto que o desanima no

trabalho, e este relaciona à venda e dinheiro: “(...) o que pode te desmotivar é a parte da

venda, às vezes demora para vender, então essa é a parte mais desanimadora da história.

Envolve dinheiro, então se você não consegue vender muito instrumento tem que fazer outra

coisa, eu tenho que fazer armário, tenho que fazer outro serviço”.

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Figura 1.6. - Antes e depois da aplicação da Goma Laca, no violão.

Por fim, o Luthier também comentou sobre os impactos que o ambiente de trabalho

causou à sua saúde. Segundo o Sr. Valentim, seu problema é com o pó que tem na sua oficina

e também costumava ser com as substâncias nocivas para a sua saúde presentes na

composição do verniz: “Tem a questão do pó, eu tenho algum problema por causa disso. O

verniz também, eu não uso mais o fabricado em fábrica, eu uso o natural porque dá menos

problema de saúde”. Ou seja, dentre os grupos de fatores de risco no trabalho listados pelo

Ministério da Saúde (BRASIL, 2001), que incluía fatores físicos, químicos, biológicos,

ergonômicos, psicossociais e mecânicos, podemos concluir que o luthier se enquadra no

grupo de trabalhadores que tem a sua saúde comprometida através do contato com fatores

químicos de risco, que podem ser denominados como: “Agentes e substâncias químicas, sob a

forma líquida, gasosa ou de partículas e poeiras minerais e vegetais, comuns nos processos de

trabalho” (BRASIL, 2001, p. 28).

A partir de agora vamos analisar um caso diferente do luthier. Trata-se do trabalho de

um mestre vidreiro, brasileiro e filho de italianos, chamado Antônio Carlos Molinari. Ele

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começou sua carreira de vidreiro-aprendiz ainda criança, com 10 anos de idade, chamando a

atenção do mestre artesão italiano Aldo Bonora pelo seu talento e desenvoltura, se destacando

dos demais. Foi com o apoio do seu mestre e mentor que o Sr. Molinari conseguiu construir

uma grande fábrica em Poços de Caldas-MG, a “Cristais São Marcos”, empresa que nos

recebeu em junho de 2015 para a realização da entrevista e observação não-participativa que

serão objetos de análise a seguir.

5.3. Análise dos achados de pesquisa com o mestre vidreiro

A análise da entrevista feita com o mestre vidreiro e proprietário da empresa “Cristais

São Marcos”, Sr. Antônio Carlos Molinari8, nos mostrou que a organização ainda mantém

muita das características do trabalho artesanal na confecção de suas peças, como a relação

tradicional de ensino e aprendizagem entre mestres e aprendizes, o desenvolvimento de

ferramentas pelos próprios artesãos e o domínio de todas as etapas de produção de uma peça

de vidro Murano - sendo esta a condição para ser considerado um mestre e não mais um

aprendiz. Além disso, em relação aos indicadores de sentido no trabalho, a entrevista nos

mostrou que o trabalho de vidreiro é um ofício que sempre oferece ao artesão aprendizado e

conhecimento. O mestre artesão vidreiro, hoje proprietário da fábrica, se diz satisfeito com

suas conquistas, acredita ter qualidade de vida no trabalho, se orgulha pelo grande

reconhecimento que recebe no Brasil e no exterior e diz pagar salários satisfatórios para seus

funcionários.

Figura 2.1. - Funcionários da “Cristais São Marcos” manuseando o vidro em uma “cana” de sopro.

���������������������������������������� �������������������8 Sr. Antônio Carlos Molinari autorizou que usássemos seu nome verdadeiro e o nome da sua empresa.

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Figura 2.2. - Vidro ainda incandescente, no estágio inicial do processo de produção

Todas essas características apontam que há sentido no trabalho não só do dono, como

também no trabalho dos vidreiros da “Cristais São Marcos” contratados por ele9. Entretanto,

também pudemos notar que falta autonomia dos funcionários no que diz respeito à criação das

peças, já que essa função se limita ao administrativo da empresa, mas que seria interessante

também ser atribuído ao restante dos mestres vidreiros. Por fim, pudemos notar na análise que

alguns indicadores de precarização, como acidentes no ambiente de trabalho, altas taxas de

rotatividade e ritmo de trabalho intenso (por parte dos funcionários) não estiveram presentes

nos relatos do Sr. Molinari, portanto não se aplicam ao caso. Em contrapartida percebemos

indícios de precarização na “Cristais São Marcos” relacionados ao ambiente de trabalho

insalubre e ao adoecimento por conta do estresse provocado pelo trabalho, como veremos a

seguir.

Durante a visita à fábrica “Cristais São Marcos”, em Poços de Caldas-MG e antes de

entrevistarmos o Sr. Molinari, fomos recebidos primeiro pelo Técnico de Segurança de

Medicina do Trabalho da empresa, que também é responsável pela área de recursos humanos.

Ele nos contou a história da fábrica, bem como o primeiro contato dos irmãos Molinari com a

arte de produzir peças de vidro de Murano. Há mais de 60 anos, o brasileiro Antônio Carlos

Molinari, hoje com 71 anos de idade, aprendeu com o grande mestre vidreiro italiano, Aldo

Bonora, a arte de confeccionar vidros manualmente e acabou chamando a atenção do

experiente artesão estrangeiro pelo seu talento e ousadia. Depois que Aldo Bonora desistiu de

produzir e comercializar cristais, ele doou uma parte da sua fábrica em Poços de Caldas para o

���������������������������������������� �������������������9 Não foi possível conversar com os trabalhadores assalariados da fábrica para confirmarmos ou não essa versão dada pelo proprietário, o Sr. Molinari.�

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sr. Molinari, conforme ele mesmo nos contou: “Quando o Aldo Bonora aposentou, ele deu a

fábrica para o irmão dele e me deu um pedacinho da fábrica e disse: olha, isso aqui é teu”.

Com o apoio dos seus familiares, como irmãos, filhos, genros, sobrinhos e netos, o Sr.

Molinari fez, de um pedaço de fábrica herdado de seu mestre, um “império dos cristais” em

Minas Gerais, arte reconhecida não só em todo o Brasil como também no exterior. Foi com

carinho e gratidão que Antônio Carlos atribui grande parte do sucesso da empresa aos

ensinamentos do seu mestre Aldo Bonora. Essa relação entre mestre, no caso o sr. Bonora, e

aprendiz, o Sr. Molinari, é uma das principais características do trabalho artesanal. Quando

perguntamos ao mestre vidreiro sobre a sua formação ele nos disse: “Aprendi a trabalhar com

o primeiro italiano que veio para o Brasil com essa arte, que foi o Aldo Bonora”. Isso nos

leva a crer que a tradição do trabalho artesanal, no que diz respeito à continuidade do savoir-

faire do mestre artesão está fortemente presente na história da família Molinari.

Quando perguntamos ao mestre vidreiro se ele havia feito algum curso para se

especializar nessa arte ele disse que não, já que esse ofício só pode ser aprendido com a

prática e com a tradição, o que reforça ainda mais a característica artesanal do trabalho que é

feito na sua fábrica. Além do mais, podemos notar nos relatos do Sr. Molinari que a tradição

de dar continuidade ao savoir-faire do mestre artesão ainda se faz presente na “Cristais São

Marcos”, agora com o Sr. Molinari atuando como mestre, e seus funcionários mais jovens

como aprendizes que vão se tornando mestres graças aos seus ensinamentos: “Todos aqueles

que vocês forem ver lá dentro da indústria são mestres-vidreiros e aprenderam comigo”. O

Sr. Molinari disse em seus depoimentos que tem facilidade para ensinar aos seus funcionários

a arte de fabricar vidros manualmente e que faz questão de compartilhar o seu conhecimento e

o domínio que tem do processo produtivo do vidro com cada novo trabalhador contratado

para prestar serviços na sua fábrica.

Figura 2.3. - Esse é um dos funcionários mais antigos da “Cristais São Marcos”, trabalha na fábrica há quase 40 anos e aprendeu tudo o que sabe sobre produzir vidros com o Sr.

Molinari.

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A respeito dessa transição do aprendiz para mestre de ofício, o Sr. Molinari relatou que

ele mesmo decide quando é que o funcionário já está pronto e preparado para carregar consigo

o título de mestre na fábrica. Quando perguntamos como ele tomava essa decisão, nos

respondeu: “Decido tendo por base o que o Aldo Bonora já falava quando eu era criança:

quando a pessoa sabe do início ao término de uma peça”. Dessa forma, para um aprendiz se

tornar um mestre é necessário passar por todos os processos de produção do vidro, ter em

mente não só o produto acabado como também dominar toda a técnica de transformá-lo em

uma peça de Murano. Além disso, aprendemos com o mestre vidreiro que, a produção de uma

peça de vidro de Murano precisa de no mínimo duas pessoas para produzi-la com qualidade e

em tempo hábil, muito embora o artesanal tradicional remeta essencialmente ao trabalho

manual e individual — em que o artesão é capaz de confeccionar sozinho as suas peças por

dominar todas as etapas do processo produtivo:

“Aqui não se faz nada sozinho. Se você quer que eu faça a peça sozinho, eu não consigo. Eu preciso de pelo menos alguém pra ajudar, pra abrir a boca do formo, pra segurar a ferramenta. Com duas pessoas é possível fazer uma peça, com uma não. Eu já tentei, já provei pra mim mesmo a dificuldade que é fazer uma peça sozinho, mas faz, você vai preparando as coisinhas, porque você está com o vidro quente na mão. Não é ideal, é praticamente inviável”.

Conclui-se, então, que conhecer todo o processo não necessariamente implica na

participação do vidreiro sozinho em todas as etapas da produção.

Figura 2.4. – Uma das etapas do processo produtivo de fabricação do vidro de Murano.

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Outra característica presente no trabalho artesanal é a confecção de ferramentas e

utensílio de trabalho, feitas pelo próprio artesão, a fim de melhorar o seu processo produtivo e

aumentar a qualidade da peça que está em desenvolvimento. Essa característica também se faz

presente no cotidiano laboral da empresa “Cristais São Marcos”, pois o mestre artesão

entrevistado nos contou que aprendeu a fazer “fornos” com seu mestre há mais de 50 anos e

essa prática ainda é recorrente nos dias de hoje: “Quando eu trabalhava com o Aldo Bonora,

eu aprendia a trabalhar com ele, mas eu fazia, por exemplo, os ‘fornos’ com ele. Então aqui

nós fazemos os nossos ‘fornos’, criamos e desenvolvemos ferramentas para ajudar a produzir

mais, porque eu era vidreiro, eu queria sempre produzir mais”. E completou, dizendo que

essas ferramentas podem ser classificadas como “gambiarras”: “São na verdade gambiarras,

porque a ferramenta é a própria pessoa, ela é que usa as suas maneiras para dominar o vidro

quente”.

Figura 2.5. – Vidros dentro do forno produzido pelos próprios mestres vidreiros.

Figura 2.6. - Algumas ferramentas utilizadas no processo de confecção do vidro de Murano.

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Podemos notar nessa fala do Sr. Molinari que, embora o trabalho artesanal seja

essencialmente manual, o uso de ferramentas ou “gambiarras” não descaracteriza de forma

alguma a produção artesanal, já que ele destaca a importância da figura humana como crucial

para que o vidro quente seja dominado e transformado em uma peça de cristal.

De acordo com a revisão bibliográfica, o mestre artesão geralmente concebe a ideia do

produto e todo o seu acabamento já na mente e depois o transforma em uma peça através das

habilidades com as mãos. No caso da “Cristais São Marcos’’, os mestres que trabalham na

fábrica acabam não tendo essa liberdade para criar, já que a maioria das ideias vem da cabeça

do irmão do Sr. Molinari:“Antes de fazer a peça o meu irmão vai lá, faz o desenho final, mas

só dele falar: ‘Fulano, nós vamos fazer isso e aquilo’, então o vidreiro já sabe o que ele vai

ter que fazer”. Quando questionamos se os outros vidreiros não tinham a liberdade para criar

peças de cristal, o Sr. Molinari nos respondeu: “90% é o meu irmão, minha filha, minha

sobrinha que criam”, ou seja, na empresa, o processo criativo se limita à família Molinari,

muitos deles responsáveis também pela área administrativa.

Figura 2.7. -Atrás do vidreiro podemos notar vários desenhos de peças feitos pelo irmão do Sr. Molinari.

Uma das teorias vistas na revisão bibliográfica, que caracteriza o processo de

produção e comercialização do trabalho artesanal, é a precificação das peças. Geralmente ela

é feita pelo próprio artesão, que acompanha desde a criação, até a confecção, venda e muitas

vezes, a manutenção. Quando perguntamos ao Sr. Molinari como é calculado o preço de cada

peça e quais fatores são levados em consideração nesse cálculo, ele respondeu, ressaltando a

dificuldade dessa atividade:

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“A coisa mais difícil para nós é fazer o preço dos nossos produtos, mas nós fazemos. Nós compramos a nossa matéria-prima (...) por tonelada e então fazemos o custeio por tonelada mais o pessoal que está manuseando aquilo. Depois a gente faz a fórmula e joga no forno, nós temos um tempo de fusão, onde nós vamos ver o quanto consumiu de oxigênio, o quanto consumiu de gás, mais a depreciação, já que nós fazemos um forno por ano. (...)Nós temos o custo do vidro e da matéria-prima, mais o pessoal do administrativo, mais a embalagem, mais acabamento e aquilo vai longe. (...) Você acrescenta o peso do vidro no preço pra ter uma média”.

Quando o questionamos sobre o valor da arte acrescentado ao preço do produto, o Sr.

Molinari preferiu atribuir a diferença de preços entre os seus produtos de acordo com o peso

de cada peça, como pudemos notar no seu depoimento acima.

A entrevista realizada também nos permitiu inferir que a arte de fazer vidro artesanal

está morrendo aos poucos por falta de interesse dos jovens. Quando perguntamos ao Sr.

Molinari se ele acreditava que as pessoas estavam perdendo o interesse pela confecção

artesanal de vidros, ele nos respondeu que sim e que essa mortalidade atinge não só o Brasil,

mas também na Itália, o berço dessa arte:

“É uma arte que está morrendo, as pessoas pararam de se interessar em fazer. Os jovens não se interessam mais em aprender essa arte, por isso todas as fábricas de vidro de Murano estão acabando, na Itália fecharam várias (…) o jovem não vê aquilo como prazer, como uma arte. Pra motivar eles eu sempre falo: 'Rapaz, pegue um milhão de homens, você faz parte de 1 desses um milhão que mexem com vidro de Murano. Se você for ser um mecânico, vão ter outros milhares desempenhando a mesma função'. Mas as pessoas às vezes não entendem o raciocínio e acham que falo isso por conveniência, apenas para mantê-los no emprego, mas não é”.

Constatamos então que é essa é uma arte que está se perdendo, não só pela falta de

interesse das pessoas em aprenderem o ofício de fabricar vidros de Murano, como também de

filhos e netos seguirem a carreira de seus pais. Conforme o Sr. Molinari nos contou, seus

familiares participam das atividades organizacionais da “São Marcos”, entretanto, eles se

limitam à área administrativa e de criação, o ofício de produzir vidros também tem se perdido

em relação à “herança familiar”, os filhos e netos não querem mais seguir os passos de seus

pais e avôs na produção artesanal.

Esse cenário de baixa na procura pelo trabalho manual nos permite refutar os índices

de precarização “diminuição de postos de trabalho efetivos e estáveis devido a reestruturação”

ou “perda de milhares de empregos devido a reestruturação”, já que não são as vagas de

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emprego que estão diminuindo e sim a procura de pessoas para ocupar essas “vagas”. Além

disso, conforme foi dito pelo sr. Molinari, as pessoas tem perdido o prazer em fazer essa arte,

ou seja, esse que seria um indicador de sentido no trabalho tem se perdido com o passar dos

anos na área de produção de vidros artesanais.

Um dos indicadores que dá sentido ao mundo do trabalho é aquele cujo ofício confira

ao trabalhador a oportunidade de aprender ao longo da sua carreira e que, dessa forma, cresça

como profissional. Durante a entrevista com o Sr. Molinari ele enfatizou que tudo o que

aprendeu deve ao Aldo Bonora: “Eu aprendi a trabalhar com o primeiro italiano que veio

para o Brasil com essa arte”. Pudemos inferir que lá na fábrica os vidreiros começam sempre

“do zero”, eles aprendem a fazer “fazendo”, e todos são auxiliados e capacitados pelo dono da

empresa e mestre vidreiro, o próprio Sr. Molinari, que nos contou que todos os funcionários,

novos e antigos, aprenderam e ainda aprendem a trabalhar com ele.

Segundo o entrevistado, esse processo de aprendizagem não é simples, e demanda

algum tempo até que o aprendiz se especialize com a técnica de produzir as peças de Murano:

“Isso aqui é como uma faculdade, a pessoa não aprende de um ano pra outro. Demora três,

quatro, cinco anos. Quanto mais velha a pessoa vai ficando, mais ela aprende. Ela sempre

está aprendendo alguma coisa”. Esse processo de aprendizagem é potencializado pela

facilidade com que o sr. Molinari tem para ensinar e passar para outras gerações tudo aquilo

que aprendeu ao longo de mais de 60 anos de carreira, como ele mesmo nos contou: “Eu

tinha a facilidade, o dom de ensinar e então eu ia ensinando e criando maneiras de facilitar o

nosso trabalho”. Podemos concluir, dessa forma, que o processo de aprendizagem percebido

no processo produtivo da “Cristais São Marcos” evidencia a presença de um indicador que dá

sentido ao trabalho dos funcionários que prestam serviço para a empresa.

Outro fator que evidencia que um trabalho tem sentido é a autonomia e a liberdade

para criar que o funcionário pode ter dentro de uma organização. De acordo com a entrevista

realizada com o sr. Molinari, podemos deduzir que as atividades de criação se limitam ao

administrativo da empresa, composta pela família Molinari: “Eu, meu irmão, minha filha,

minha sobrinha, meu cunhado, os mestres, nós criamos e desenvolvemos produtos todos os

dias”. O mestre artesão ainda completou, em seus depoimentos, que a maior parte das peças é

criada pelo seu irmão, que também elabora o desenho final das peças: “Antes de fazer a peça,

o meu irmão vai lá e faz o desenho final”. Em seguida, perguntamos durante a entrevista se

outros vidreiros, além da família do Sr. Molinari, participavam do processo de criação de

peças na fábrica e ele nos respondeu que a autoria dos funcionários na confecção de vidros é

rara e se dá de uma forma bem inusitada: “Mas os mestres-vidreiros, às vezes, estão fazendo

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uma peça, dá uma errada na peça e muitas vezes essa peça sai mais bonita do que a original,

que foi planejada. Então a gente atribui a ideia dessa peça ao funcionário”. Conclui-se,

dessa forma, que a autonomia para a criação de novas peças por parte dos funcionários da

empresa é bastante limitada e se dá por meio de exceções, durante o processo produtivo,

conduzidas pelo erro. O que não deixa de ser interessante, pois um erro num trabalho

artesanal pode gerar uma arte mais bonita do que o desenho original, o que não acontece

numa produção padronizada.

Embora a liberdade no campo criativo seja limitada, a análise da entrevista com o Sr.

Molinari nos permite depreender que em outros campos os funcionários da fábrica são

dotados de autonomia e liberdade para trabalharem da maneira como quiserem, desde que isso

não interfira na produtividade e na qualidade das peças, conforme consta nos relatos coletados

na entrevista: “Tem funcionário que está há 40 anos aqui que sempre se envolve em alguma

coisa. Mesmo a maneira de produzir, ele não segue aquilo à risca, ele tem a possibilidade e a

liberdade pra mudar a forma de trabalhar, pra facilitar pra ele e pra melhorar a qualidade

ou o desenho da peça. E ele vai melhorando com a prática do dia-dia”. Tais relatos permitem

concluir que alguns dos funcionários da fábrica têm o seu estilo próprio para trabalhar e para

conceber o produto, isso reforça ainda mais a ideia de que o mestre artesão é aquele

profissional que já tem a ideia de produto final na cabeça e o produz de acordo com seus

métodos. Esse indicador, mesmo que limitado a alguns funcionários, conferem sentido ao

trabalho dos mesmos dentro da fábrica de vidros.

Outro indicador de sentido no trabalho visto na fundamentação teórica foi a da

satisfação do trabalhador com o seu ofício e com os frutos que a atividade que desempenha

pode render. Quando perguntamos ao Sr. Molinari o que ele sentia em relação ao seu trabalho

ele nos disse: “Uma satisfação enorme, de saber que cheguei onde cheguei, nas condições

que tivemos que enfrentar pra chegar nisso aqui”. Podemos inferir, que além da satisfação

gerada pelo orgulho de ter construído um império, o Sr. Molinari também destaca o prazer e a

satisfação que sente quando a arte fabricada na sua empresa é reconhecida no Brasil e no

exterior: “Eu sinto prazer pelo reconhecimento que as pessoas têm do meu trabalho, do

respeito, do meu conhecimento, que eu fiz sozinho, aprendi ralando”.

Quando perguntamos ao Sr. Molinari sobre a satisfação dos funcionários e se eles se

dedicam ao trabalho com a mesma paixão com que ele administra a sua fábrica, ele nos

respondeu: “Sim, a maioria é dedicada, procura aprender e fazer as coisas da melhor forma

possível”. Esse relato pode sugerir que a maioria dos trabalhadores da fábrica também está

satisfeita com o seu ofício, já que eles são muito dedicados e apaixonados pelo que fazem e

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por isso estão sempre dando o melhor de si na produção. Além disso, o mestre artesão nos

relatou que seus funcionários não só trabalham felizes e têm uma ótima relação com ele e com

membros da sua família que cuidam da área administrativa, como também são bem

remunerados por aquilo que fazem: “Eu posso te falar que um aprendiz que está começando

agora ganha mais de 2 mil reais, e ai vai aumentando o salário conforme ele vai se

aperfeiçoando, e também tem prêmios. Ai você vê, onde um aprendiz ganha isso tudo? Em

outros lugares a maioria ganha um salário mínimo, acho que é um salário justo, muito bom”.

De acordo com a fala do Sr. Molinari, esse salário não só é justo como está acima do

mercado e é um pagamento bem mais expressivo do que aquele que é pago em uma indústria

“comum”, que não tenha como foco o trabalho artesanal, ou que não tenha como dono um

mestre vidreiro que vivenciou desde muito pequeno as dificuldades do ofício: “Eu sou

vidreiro, sou criado junto com eles, eu estou com eles todos os dias, eu estou vendo as

dificuldades deles todos os dias”. Podemos, em resumo, identificar entre os donos e

funcionários da empresa “São Marcos” mais três indicadores de sentido no trabalho:

satisfação, reconhecimento e salário adequado, de acordo com o Sr. Molinari.

Perguntamos ao Sr. Molinari o que ele faz para se divertir e se gostaria de trabalhar

menos. Ele nos respondeu que o trabalho afetou o seu relacionamento com a família, já que

desde os 10 anos de idade ele tem dedicado maior parte do seu tempo ao trabalho: “Falando

em casamento, minha mulher e meus filhos reclamam por eu não ter dado tanta atenção e por

ter saído pouco por causa do trabalho”. E ainda completou, relatando sobre o pouco tempo

que também dedicou para a diversão fora da sua fábrica:

“Minha vida foi sempre a mesma coisa, trabalhando sempre ao invés de curtir a minha vida, vou continuar trabalhando enquanto puder. E eu não me arrependo de jeito nenhum. Se eu não tivesse trabalhado não teria arrumado as amizades que arrumei, não daria condições para os meus filhos estudarem e viajarem. A gente vive melhor. Trabalhar só 8 horas por dia não dá não, é pouco pra mim”.

Vimos na revisão bibliográfica que um trabalho que tenha sentido é aquele que confira

independência financeira para o trabalhador, além de uma jornada flexível que possibilite que

a força de trabalho dedique uma parte do seu tempo para o lazer. A partir da entrevista,

podemos inferir que, embora esse trabalho confira ao Sr. Molinari independência financeira e

uma autonomia para trabalhar o tempo que quiser, ele dispensa esse tipo de “privilégio” e

renuncia o seu tempo livre ao lado da família e amigos. O Sr. Molinari nos contou isso em

tom de lamentação e disse que este é um dos maiores aspectos negativos na sua carreira: “Um

aspecto negativo é que eu não sei usufruir daquilo que eu consegui fazer. É uma questão de

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cultura, de princípio. (…) Me dediquei demais ao trabalho e esqueci a minha família”.

Entretanto, ele se orgulha daquilo que conquistou com o seu trabalho, da estabilidade

financeira alcançada e também das amizades que fez enquanto gestor e vidreiro da empresa

“São Marcos”.

Embora o vidreiro tenha confirmado que não dedica seu tempo livre para o lazer –

mostrando ter o perfil de um trabalhados compulsivo - , quisemos saber se ao menos ele teria

qualidade de vida no trabalho de acordo com aquilo que ele entenderia ser “qualidade de vida

no trabalho”. Ele nos contou: “Acho que qualidade de vida no trabalho é eu pensar em algo e

conseguir executar isso exatamente da forma em que foi pensado, e isso dá o maior prazer no

trabalho. Essa é a qualidade plena, e paralelamente eu não vivo, eu vegeto. Eu não tive lazer,

a minha vida foi trabalhar”. Podemos supor, de acordo com os relatos do mestre artesão, que

ele possui qualidade de vida no trabalho em termos de produtividade e criatividade, já que

muito daquilo que é proposto pelo Sr. Molinari acaba sendo executado de forma bastante

eficaz, e isso consequentemente leva à auto-realização do profissional, contribuindo para um

sentido maior no ambiente de trabalho. Em contrapartida, a auto-realização na fábrica não

necessariamente é acompanhada pela qualidade de vida fora do ambiente laboral. De acordo

com os relatos do artesão, o fato dele ter dedicado a maior parte do seu tempo ao trabalho o

tornou um “vegetal”, ao abrir mão do lazer e de estar mais tempo ao lado dos familiares.

Durante a entrevista, o Sr. Molinari também comentou que a arte de fabricar vidros

artesanais é bastante desafiadora e quando perguntamos para ele em que sentido esse trabalho

era desafiador, ele nos respondeu:“Ele é desafiador porque o trabalho com vidro é muito

fechado, ninguém ensina nada pra ninguém, cada indústria tem o seu segredo, um não ensina

para o outro. Está acabando a arte de Murano por causa disso. Então é desafiador, você tem

que procurar, fazer, buscar aprender. Não tem escola que ensine”. Podemos inferir, então, que

a arte de fazer vidro é desafiadora e essa é uma das principais características para que um

trabalho tenha sentido. Esse desafio no ambiente de trabalho, na opinião do entrevistado, se dá

por dois motivos. O primeiro é pelo fato da indústria de vidro ser fechada, o que faz com que

seus agentes protejam a sete chaves segredos de produção e se esforcem para não

compartilhá-los com mais ninguém. Isso acaba exigindo da concorrência uma maior atenção e

ainda incentiva a procura por novos métodos e novas formas de produzir. O outro motivo é o

fator aprendizagem. Dada a dificuldade de obter as informações sobre o setor e também pela

falta de solidariedade entre os concorrentes, os mestres vidreiros e aprendizes precisam sair

em busca dessa informação por conta própria. É necessário se empenhar e correr atrás daquilo

que é necessário para dominar o processo com a maestria que ele exige.

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Um dos indicadores de sentido no trabalho estudados na fundamentação teórica foi o

da contribuição que o trabalho pode render para a sociedade. A respeito disso, um dos

funcionários que acompanhou o Sr. Molinari durante sua entrevista nos contou sobre a

contribuição e o comprometimento socioambiental da “Cristais São Marcos”. A empresa

recebeu em 2015 o certificado de organização “ecoeficiente”, conforme ele nos explicou:

“Hoje nós estamos recebendo um certificado de empresa 'ecoeficiente' (...) pra ser uma empresa 'ecoeficiente' você precisa cumprir os cinco Rs: 1- reduzir a emissão de gás carbônico no ar, então usamos gás natural e então reduzimos; 2- reaproveitar os resíduos sólidos que seriam descartados, e fazemos isso; 3- reciclar produtos, já que o produto vidro é altamente reciclável; 4- repensar junto aos funcionários sobre reciclagem; 5- responsabilidade., já que os Molinari se responsabilizam pela não contaminação dos lençóis freáticos”.

Dessa maneira, podemos depreender que a contribuição ambiental, de certa forma, por

ser extremamente positiva e bem vista, acaba gerando um maior orgulho entre os funcionários

da empresa, já que fazem parte de um grupo que preza pelo ambientalmente correto e que

gera impactos positivos para a sociedade, aumentando assim o sentido que se tem no trabalho.

Em relação à precarização no mundo do trabalho, podemos citar os acidentes causados

no ambiente de trabalho como um dos indicadores mais problemáticos, já que implica na

degradação física do trabalhador. O Técnico de Segurança da Medicina do Trabalho nos

contou que na “Cristais São Marcos” o índice de acidentes de trabalho é praticamente igual a

zero: “Lá dentro nós temos um trânsito e quanto você não burla esse trânsito, essa regra de

circulação, obviamente o seu índice de acidente vai ser praticamente zero”. Durante nossa

visita à fábrica para a observação de como o trabalho do mestre vidreiro é desenvolvido,

notamos que os vidreiros manuseiam um material de vidro incandescente e o que protege a

sua mão de queimaduras é um pedaço de papel de jornal umedecido e não luvas, já que elas

afetariam a produção e a qualidade do produto.

Figura 2.8. - Vidreiro manuseando o vidro, ainda incandescente, com um jornal umedecido na mão direita.

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Além disso, o Sr. Molinari nos contou que, para que haja maior segurança no trabalho

e dado o grande risco de sofrer queimaduras, os trabalhadores são obrigados a utilizar alguns

equipamentos como óculos de proteção, calçado de segurança apropriado ao ambiente de

trabalho e uma proteção usada no braço em que o vidreiro vai manipular o vidro.

Quando, durante a visita na fábrica, questionamos um dos supervisores se haviam

muitos casos de queimadura no trabalho, ele nos respondeu que há poucos acidentes com

funcionários e que nos últimos dez anos o índice foi bem próximo de zero, confirmando

aquilo que o Técnico de Segurança da Medicina do Trabalho já havia nos relatado. Dessa

forma, apesar de não termos tido essa sensação de segurança durante a visita na fábrica,

podemos deduzir que o indicador de precarização “acidentes no trabalho que afetem a saúde

física do trabalhador” não se aplica na empresa estudada.

Durante a observação, foi possível notar também que o ambiente de trabalho na

fábrica não é o mais apropriado devido aos ruídos dos equipamentos, tanto é que vimos

alguns funcionários usando protetores auriculares, a temperatura lá dentro é muito alta e há

ferramentas de trabalho com bastante pó e cinzas, o que pode comprometer o sistema

respiratório de quem passa muito tempo lá dentro. O próprio Sr. Molinari nos contou sobre a

insalubridade desse ambiente de trabalho: “Por que um jovem vai aguentar o dia todo dentro

daquele forno, que jovem vai querer enfrentar aquilo? É puxado”.

Pela observação e pelos depoimentos do Sr. Molinari, podemos então inferir que o

ambiente de trabalho de uma fábrica de vidros de Murano expõe o trabalhador a diversos

indicadores que levam a conclusão de que o local é insalubre, portanto, precário. O

trabalhador é exposto a ruídos, exposição pelas vias respiratórias através da inalação de

alguns agentes prejudiciais à saúde, além de altas temperaturas e riscos contra a integridade

física. Além disso, o espaço é bem apertado com intensa circulação de pessoas o tempo todo,

com rapidez, pois o vidro quente deve ser transferido de uma cana para outra e moldado em

curto tempo para não esfriar. Tivemos uma sensação de “aventura” quando circulamos pela

fábrica em meio a tanta gente e tão pouco espaço livre entre fornos e pessoas.

As altas taxas de rotatividade em uma organização são fortes indicadores que o

trabalho pode ser precário. A respeito da desistência dos trabalhadores da “Cristais São

Marcos”, o Sr. Molinari nos contou que muitos de seus funcionários trabalham com ele há

anos: “Tem funcionários que estão há 35, 48 anos trabalhando comigo”. Através desse

relato, podemos supor que a taxa de rotatividade na empresa é baixa, visto que os vidreiros

mais antigos dificilmente desistem de suas vagas e se dedicam ao ofício artesanal até o fim,

seja pelo salário, pelo amor ao trabalho ou por gratidão à família Molinari. Podemos inferir,

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entretanto, que quando se trata de jovens trabalhadores há certa rotatividade, ou até falta de

mão-de-obra pra substituir os que forem aposentar, visto que o Sr. Molinari muitas vezes não

consegue mantê-los no emprego e ainda há a dificuldade de contratar mão-de-obra interessada

em se formar mestre vidreiro após um longo período como aprendiz. Dessa forma, o índice de

precarização “alta taxa de rotatividade” atinge, em grande parte, apenas os trabalhadores mais

jovens. Os antigos permanecem até hoje nos seus empregos.

A jornada de trabalho na fábrica parece ser bastante “frenética”, pelo menos a jornada

do fundador da “São Marcos”, que aparentemente é extensa e com pouca folga ou descanso.

Quando perguntamos a respeito da quantidade de horas por dia que o Sr. Molinari trabalha,

ele nos respondeu: “Se o relógio tivesse 25 horas por dia, eu trabalharia as 25. Eu não canso.

Eu sou muito caseiro, saio da minha casa, vou para o trabalho e vice-versa. Se você quer se

esconder de mim, vai pra rua. E eu não canso do trabalho, as vezes venho aqui de

madrugada, ou num domingo”. Como já podemos notar, não só com essas falas do Sr.

Molinari, mas em relatos anteriores já citados aqui, o mestre artesão e proprietário da empresa

dedica muitas horas do seu dia e da semana ao trabalho, abrindo mão do seu tempo livre para

lazer e para passar ao lado de sua família. O indicador “Jornadas intensas e prolongadas” pode

nos levar a crer que o trabalho é precário, entretanto, o caso do Sr. Molinari é uma exceção,

ele é dono da empresa e tem o controle e o domínio do seu tempo, a sua jornada é estendida

por opção própria. Em relação aos demais funcionários, não obtivemos informações precisas

sobre a quantidade de horas trabalhadas por dia.

A respeito do ritmo de trabalho, pudemos notar durante as entrevistas e durante a

observação na fábrica que ele é frenético. Os funcionários nunca param, estão todos sempre

produzindo, muito apressados, a ponto de vermos vários funcionários quase esbarrando um no

outro, muitas vezes enquanto carregavam vidros quentes, o que pode acabar sendo perigoso

também. O ritmo é igualmente agitado para o Sr. Molinari, que sempre faz questão de

acompanhar tudo de perto e estar sempre presente nas atividades da empresa, tanto na

produção quanto no departamento administrativo.

Quando questionamos se os funcionários reclamavam ou não do ritmo de trabalho na

fábrica, ele nos disse: “Reclamar todo mundo reclama, afinal, quem quer trabalhar todos os

dias? Mas aqui nós trabalhamos com prazer, eu não vejo eles reclamando, pode reclamar de

um prêmio que é dado pra outro, ou porque um mais novo está ganhando quase igual a quem

está aqui há mais tempo”. Podemos inferir, com essa fala do entrevistado, que embora ele

ouça reclamações dos funcionários, raramente essas reclamações acabam sendo pelo ritmo

intenso de trabalho da produção, já que ele ressaltou o prazer com que seus funcionários

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desempenham o ofício de vidreiro na fábrica. As reclamações são mais baseadas em disputas

por prêmios ou por salários maiores em relação àqueles funcionários menos experientes.

Evidentemente, temos consciência de que escutamos apenas o dono da empresa, o mestre

vidreiro Molinari. Talvez, se escutássemos os trabalhadores da fábrica, mesmo os que já são

considerados mestres, poderíamos conhecer outras visões sobre tudo isso. Na fala a seguir, o

próprio Sr. Molinari acaba relatando que já sofreu processos trabalhistas de funcionários.

A jornada frenética de trabalho e o ritmo intenso são dois fatores, dentre muitos outros,

que acabam aumentando os riscos para a saúde do trabalhador. A respeito disso o Sr. Molinari

nos contou que já sofreu de tensão nervosa e o trabalho intenso e todas as preocupações que

ele gera foram um dos causadores desse adoecimento: “Já me deu um problema, tive que

fazer tratamento, fui internado, "tensão nervosa", tive que ir correndo pra São Paulo. A gente

fica nervoso porque as coisas nem sempre saem como a gente quer, as coisas mudaram, as

leis hoje são muito fortes, hoje em dia não pode falar nada, não pode nem olhar para o

funcionário que ele leva a gente na justiça”. Podemos concluir que as relações interpessoais

foram as grandes causadoras dos problemas de saúde que o Sr. Molinari enfrentou em

decorrência do trabalho, de acordo com ele as pessoas estão pouco comprometidas e não

fazem ideia da falta que fazem para a fábrica. Ele também reclamou que muitos funcionários

“não têm nada”, mas mesmo assim chegam a ficar uma semana sem ir ao trabalho, amparados

por atestados médicos: “Às vezes uma pessoa, que não tem nada, fica uma semana fora com

atestado”. Aqui, mais uma vez, ecoa a voz do empresário-patrão. Não obtivemos nenhum

tipo de informação escutando diretamente seus funcionários. O mestre artesão se confundiu

com o empresário em muitas passagens de sua entrevista. De certa forma, isso também

dificulta a nossa análise, pois nem sempre sabemos se pensamos no Sr. Molinari como artesão

ou como empresário que tem dezenas de trabalhadores contratados.

Por fim, podemos afirmar, de acordo com a teoria já vista, que uma das características

do trabalho industrial e também um dos indicadores de precarização do trabalho é a atividade

excessivamente repetitiva, enfadonha e mecânica. Em uma de suas falas, o Sr. Molinari nos

falou sobre a liberdade que os funcionários têm para desenvolver seus próprios métodos de

produção, facilitando assim o seu trabalho: “A maneira de produzir, ele não segue aquilo à

risca, ele tem a possibilidade e a liberdade pra mudar a forma de trabalhar, pra facilitar pra

ele e pra melhorar a qualidade ou o desenho da peça”. Esse depoimento permite inferir que o

trabalhador acaba tendo a sua subjetividade preservada e respeitada dentro da fábrica quando

lhe é atribuída a liberdade para decidir de que forma vai produzir. No entanto, na mesma fala,

o Sr. Molinari completou: “E ele vai melhorando com a prática do dia-dia, ele decora os

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movimentos”, o que sugere a possibilidade de haver uma contradição no seu relato, visto que

o trabalho com movimentos decorados se torna mecânico e repetitivo, ou seja, embora a

técnica seja criada por um funcionário, ele acaba reproduzindo-a diversas vezes, e isso se

aproxima bastante do sistema precário de produção industrial. Na frente da fábrica há uma

enorme loja onde se vendem os produtos Molinari. Pudemos perceber ali em exposição, e

mesmo quando visitamos o galpão onde se estocam as peças, que, apesar de não ser comum,

existem algumas peças padronizadas, que não são únicas.

Quadros-sínteses das análises: “Luthier”

Quadro 1: Características do Trabalho do Artesão

a) Artesão responsável pela precificação Presente b) Domínio de todo o processo produtivo dos

instrumentos musicais Presente

c) Cada peça produzida é única Presente (som é diferente, cada cliente pede de um jeito). Entretanto o acabamento costuma ser parecido/molde.

d) Relação entre aprendiz e mestre Ausente e) Aprende através da prática e tradição; Herança

Familiar Ausente

Quadro 2: Características de Sentido do Trabalho

a) Tem controle sobre o próprio tempo Presente b) Tem nome de relevância no cenário musical da região

de Ribeirão Preto Presente

c) Feedback apropriado Presente d) Remuneração que confira ao artesão independência

financeira e sobrevivência Ausente, ele tem dois empregos

e) Exercício de atividades fundamentais para o processo produtivo

Presente

f) Alto grau de Responsabilidade Presente g) Alto grau de Independência no Trabalho Presente h) Alto grau de consciência na atividade que exerce Presente i) Oportunidade de crescimento na carreira Presente j) Oportunidade de aprendizado no trabalho Presente k) Trabalho rende contribuição positiva para a sociedade Presente

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l) Satisfação pessoal com o que faz Presente m) Qualidade de vida no Trabalho Presente n) Prazer no ambiente de trabalho Presente o) Auto-realização no trabalho Presente

Quadro 3: Características de Precarização do Trabalho

a) Pressão por metas Ausente b) Artesão se sente subaproveitado Ausente c) Ritmo de trabalho frenético Moderado. Ele não

reclama do ritmo de trabalho como luthier, mas reclama pelo fato de ter um segundo emprego.

d) Estresse Moderado. Ele diz que a falta de demanda por instrumentos às vezes o deixa estressado.

e) Competitividade em mercado acirrado Ausente f) Fatores de risco para a saúde no ambiente de trabalho Presente. Agente

químico, do pó. E anteriormente do verniz.

Quadros-sínteses das análises: “Mestre Vidreiro”

Quadro 4: Características do Trabalho do Artesão

a) Relação aprendiz/mestre Presente b) Aprendizagem através da prática e da tradição Presente c) Domínio de todo processo Presente d) Liberdade de criação Moderada. Limita-se à

administração em 90% das vezes.

e) Precificação Limitada. Os administradores da empresa cuidam disso.

f) Confecção de ferramentas próprias Presente g) Cada peça produzida é única Ausente Há linha de

produção.

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Quadro 5: Características de Sentido do Trabalho

a) Aprendizado no trabalho Presente b) Autonomia Presente c) Satisfação pessoal Presente d) Qualidade de vida no trabalho Presente e) Reconhecimento do Trabalho Presente f) Auto-realização Presente g) Salário satisfatório Presente h) Trabalho desafiador Presente i) Contribuição positiva para a sociedade Presente j) Espaço acolhedor, boa relação entre todos os

funcionários de diversos níveis hierárquicos. Presente

Quadro 6: Características de Precarização do Trabalho

a) Acidentes de trabalho Ausente b) Local de Trabalho Insalubre Presente c) Alta taxa de rotatividade Ausente d) Jornadas de Trabalho Intensas e Prolongadas Presente e) Ritmo de trabalho frenético Presente f) Adoecimento do trabalho Presente g) Diminuição de postos de trabalhos efetivos e estáveis Ausente h) Perda de milhares de emprego devido à reestruturação Ausente

6. Considerações Finais

O objetivo dessa pesquisa foi identificar quais são os indicadores que diferenciam o

trabalho artesanal do trabalho do tipo industrial, através do estudo das características

peculiares do trabalho de duas categorias de artesãos existentes no Brasil – o luthier e o

vidreiro. Nossa intenção foi analisar o trabalho artesanal, especialmente o de mestres de

ofício, inserido no atual contexto capitalista, como uma das alternativas possíveis à

precarização no mundo do trabalho, e dessa forma, responder as perguntas norteadoras desse

projeto: Existem alternativas reais, na ordem do capital, para os trabalhadores desfrutarem de

uma vida laboral dotada de sentido? Que particularidades esse tipo de trabalho possui? E por

fim, a principal questão que pretendemos responder: Estariam os artesãos dessas duas

categorias estudadas, blindados (totalmente ou parcialmente), da precarização presente no

cotidiano laboral dos trabalhadores assalariados tipicamente industriais?

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Para responder às perguntas propostas pela pesquisa, foram utilizadas as seguintes

técnicas, no âmbito de uma metodologia qualitativa de pesquisa: a) levantamento

bibliográfico sobre trabalho, precarização do trabalho, sentidos do trabalho e trabalho

artesanal e b) pesquisa de campo e análise das entrevistas, baseadas na metodologia

etnográfica.

Através da entrevista com os mestres artesãos e do confronto com os indicadores de

sentido do trabalho listados na etapa do levantamento bibliográfico, foi possível identificar o

modelo artesanal como uma alternativa de trabalho, mesmo que limitada, que confere ao

trabalhador uma vida laboral dotada de maior sentido, se comparado aos trabalhadores de uma

indústria, por exemplo. A justificativa para essa conclusão se dá pela constatação de que

ambos os mestres artesãos entrevistados exercem, ou exerciam, atividades que são

fundamentais para todo o processo produtivo. São atividades que geralmente exigem um alto

grau de consciência e de autonomia, geram aprendizado e possibilidades de crescimento na

carreira, e que resultam em satisfação pessoal para o sujeito no ambiente de trabalho.

Entretanto, identificamos algumas limitações no trabalho artesanal das duas categorias

estudadas – luthier e vidreiro – que evidenciam que nem sempre o trabalho artesanal atribui

ao trabalhador uma vida laboral dotada de sentido, já que não foi possível falar com os

funcionários que trabalham na fábrica de vidros de Murano “Cristais São Marcos” e não

podemos atribuir a eles indicadores de sentido do trabalho relatados na versão do proprietário

da organização, o sr. Antônio Carlos Molinari. E também porque, no caso do luthier,

observamos que ele precisa de dois empregos para sustentar a família, o que evidencia que o

seu trabalho artesanal perde parte do sentido ao não conferir ao artesão independência

financeira e sobrevivência.

A outra questão a ser respondida se relaciona às particularidades do trabalho artesanal

e estas foram listadas em sua maioria na etapa do levantamento bibliográfico e uma outra

parte foi observada nas visitas que fizemos aos dois mestres artesãos, um Ribeirão Preto/SP e

o outro em Poços de Caldas/MG. As principais características do trabalho artesanal, que o

diferencia do industrial ou do modelo padrão de produção na ordem capitalista, é que as

atividades dessa categoria são exercidas totalmente de forma manual, o artesão é proprietário

de todas as suas ferramentas de trabalho, ele participa de todo processo produtivo. Além disso,

no modelo artesanal de produção, o mestre artesão dialoga com a sua matéria-prima, reflete

junto à sua obra e se identifica com ela, o que gera uma sujeição sentimental do artífice com o

seu trabalho. Além do mais, no trabalho artesanal, cada objeto produzido é, de alguma forma,

único, mesmo que isso não seja facilmente percebido pelos compradores. As diferenças de um

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produto para o outro podem ser mínimas, mas elas existem pelo fato do trabalho ser manual e

pela fabricação não ser em escala, por meio de equipamentos tecnológicos desenvolvidos para

padronizar a produção.

Podemos notar, dessa forma, que essas características peculiares do trabalho artesanal,

acabam de certa forma, propiciando aos artesãos aquilo que os empregos tradicionais da

sociedade industrial ainda não propiciam aos trabalhadores assalariados, que vai desde a

autonomia, até a participação de todo o processo.

Em relação à precarização, embora tenhamos notado na pesquisa de campo com o

luthier e com o vidreiro, diversas características do trabalho artesanal – como evidências de

autonomia, conhecimento do artífice a respeito de todas as etapas da cadeia produtiva,

identificação com a obra, trabalho totalmente manual e uso de ferramentas confeccionadas

pelo próprio artesão – chegamos à conclusão de que em ambos os casos o trabalho é

parcialmente blindado da precarização no ambiente laboral, visto que identificamos na

entrevista e na observação algumas fragilidades que evidenciam a precarização nas duas

categorias de artesanato pesquisadas. No caso do luthier, o trabalho é parcialmente blindado

da precarização. Ou seja, mesmo tendo autonomia e não sendo submetido a pressão por

metas, sub-aproveitamento, controle rígido de tempo, assédio moral, doenças psíquicas

causadas no ambiente laboral, é preciso se atentar ao fato de que o artesão exerce sua

atividade em um ambiente de trabalho pouco confortável ou saudável, conforme notamos na

observação que fizemos na oficina. Estivemos lá duas vezes e pudemos perceber que se trata

de um espaço pequeno, apertado, desorganizado, sem muita ventilação, com muito barulho

vindo da avenida bastante movimentada. Além disso, o trabalho do luthier não o remunera

com uma renda que lhe confira sobrevivência, fazendo com que ele tenha que manter dois

empregos diferentes para garantir sua independência financeira. Inferimos também que a

complexidade do processo de confecção um instrumento musical de corda gera no luthier um

pouco de estresse, conforme ele mesmo nos relatou. O artífice dessa categoria também

revelou ter a sua saúde comprometida através do contato com fatores químicos de risco, como

o pó e uma substância tóxica presente no verniz que fazia mal à sua saúde. Já no caso do

mestre vidreiro notamos um sistema de produção e gestão muito parecido com o modelo

industrial, sendo o método de confecção manual uma das poucas características artesanais que

prevalecem até hoje, em uma organização que cresceu muito além daquilo que o próprio

proprietário, o Sr. Antônio Carlos Molinari esperava. Hoje, a fábrica tem centenas de

funcionários, sendo a força de trabalho deles uma das maiores fontes de riqueza dos

administradores da “Cristais São Marcos”. Através das falas do Sr. Molinari pudemos inferir

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que o seu trabalho na fábrica de vidros de Murano é caracterizado por jornadas de trabalho

prolongadas e intensas, ritmo de trabalho frenético e que causa adoecimento, é, portanto, um

ambiente de trabalho parcialmente precário, que se diferencia do modelo industrial de

produção devido a relação de amizade que o dono tem com seus funcionários, que trabalham

com ele há mais de 30 anos e que são, segundo o Sr. Molinari, muito bem remunerados e

todos tem, inclusive, liberdade para criar ou para adotar métodos particulares de produção que

facilitem a sua vida laboral, o baixo índice de rotatividade evidência essa boa relação de

funcionários e patrão. Entretanto, também pudemos observar traços de insalubridade na

fábrica, onde o trabalhador é exposto a ruídos, exposição pelas vias respiratórias através da

inalação de alguns agentes prejudiciais à saúde, além de altas temperaturas e riscos contra a

integridade física, o espaço, além do mais, é bem apertado e com intensa circulação de

pessoas o tempo todo.

Durante o desenvolvimento dessa pesquisa, partimos da premissa de que a

precarização do mundo do trabalho se dá pelo fato de o trabalhador assalariado estar

submetido a uma lógica em que produz para auferir lucro ao capitalista e que a produção

artesanal é uma das alternativas que propiciam condições de trabalho mais saudáveis.

Podemos confirmar essa premissa, mesmo que parcialmente, já que identificamos no trabalho

artesanal características que de fato propiciam condições de trabalhos mais saudáveis àquele

sujeito que o desempenha, motivados pela autonomia e pela participação do artesão em todos

os processos do trabalho. Muito embora tenhamos identificado alguns indicadores de

precarização nas atividades laborais do luthier e do vidreiro, não conseguimos obter

evidências de que ambas as categorias cheguem a um nível de precarização que leva ao

esgotamento físico ou mental, além disso, não há indícios de acidente de trabalho e nem de

assédio moral nas duas organizações. Dessa forma, a busca por alternativas de modelos de

trabalho ou de gestão que não precarizem totalmente a mão-de-obra não deve parar por aí,

visto que até o trabalho artesanal, diferente do que pensávamos, também possui alguns,

mesmo que poucos, sinais aparentes de precarização da mão-de-obra.

Entretanto, chegar às conclusões discutidas até agora acabou implicando em algumas

dificuldades que encontramos durante o desenvolvimento dessa pesquisa, principalmente no

que diz respeito à análise das entrevistas realizadas com os mestres artesãos e também o

grande desafio que foi interpretar os indicadores de precarização e de sentido de trabalho

quando confrontados com os achados do estudo. A etapa das entrevistas avançou com bastante

êxito, não houve problemas com agendamentos e ambos os entrevistados se mostraram

solícitos e entusiasmados em colaborar com esse trabalho. Em contrapartida, o processo de

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análise representou um grande desafio no caso do Sr. Molinari, visto que ele foi o único

mestre vidreiro da fábrica de cristais que nos concedeu entrevista, e dessa forma conseguimos

coletar apenas relatos que dizem respeito à sua opinião e não a das centenas de funcionários

que trabalham para ele. Além disso, o Sr. Molinari mescla funções de mestre artesão com a de

empresário e patrão, e isso nos coloca em dúvida e nos faz questionar até que ponto o savoir-

faire do mestre artesão é perdido quando ele se confunde com uma atividade empresarial

intimamente ligada à lógica do capital, sendo essa uma indagação que ainda pode render

outras pesquisas na área da administração e da sociologia do trabalho.

Ao mesclar o trabalho artesanal com o industrial, o caso da fábrica Molinari foi o que

nos chamou mais a atenção nessa pesquisa. Pudemos observar durante a visita em Poços de

Caldas/MG e comparando com o cotidiano de trabalho mais simples e tradicional do luthier,

que quanto mais o artesanato se aproxima do modelo industrial de produção, mais os

indicadores de precarização se mostram presentes no ambiente de trabalho. Na “Cristais São

Marcos” foi possível notar um ambiente fabril muito mais insalubre do que a oficina, simples

e pequena, do luthier, além disso, os funcionários que trabalham na confecção de vidros de

Murano tem uma atividade produtiva com forte apelo econômico, eles não são responsáveis

pela comercialização da mercadoria que produzem e a jornada de trabalho de todos é

controlada pela administração da empresa, todos esses são indicadores de precarização não

observados no trabalho do luthier. Além disso, os funcionários do Sr. Molinari, embora

recebam salários acima da média do mercado, ainda assim acabam recebendo uma

remuneração baseada no cálculo do lucro e da mais-valia, o que não aconteceu, por exemplo,

no caso do luthier, cuja receita do seu trabalho na oficina vai integralmente para o seu bolso.

Ou seja, notamos que o trabalho dos funcionários da fábrica “São Marcos” gera mais valor ao

capitalista do que custo, o que não estava previsto quando entregamos o projeto de pesquisa,

já que achávamos que a mais-valia era uma característica ligada aos modelos de trabalho e de

produção essencialmente industriais.

Dessa forma, pensamos ser peculiar essa característica de um mestre vidreiro, que

começou como aprendiz na infância, ter se tornado empresário e patrão. O Sr. Molinari

mesclou a savoir-faire do mestre artesão com a função de empresário capitalista, que visa o

lucro na comercialização de peças feitas em larga escala, inclusive para a exportação, e esse

lucro provém em grande parte do trabalho de outros artesãos.

A dificuldade nesse caso, em específico, é entender até que ponto as características do

trabalho artesanal se perdem quando o mestre de ofício opera na produção como um

capitalista que controla o trabalho de seus funcionários e se apropria da mais-valia. Pudemos

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notar que os índices de precarização nesse caso, acabam sendo mais elevados do que os do

luthier, se formos compará-los. Entretanto, algumas características do trabalho artesanal como

a relação de aprendizagem entre mestre e aprendiz e o domínio que cada vidreiro tem do

processo de produção como um todo ainda se fazem bastantes presentes no sistema de

produção de vidros. Conclui-se, dessa forma, que em busca de lucros e para se firmar no

mercado, a “São Marcos” opera sob um modelo de produção e de gestão híbrida, que

aproveita e une as características mais rentáveis tanto do trabalho artesanal, como do trabalho

industrial, em busca de maiores resultados financeiros.

Além disso, podemos notar peculiaridades e grandes diferenças entre o mestre vidreiro

e o luthier no que diz respeito a forma como cada um assina seus produtos. No caso do

luthier, a sua assinatura é a “mão” do violão, uma característica única que diferencia o seu

produto dos artesãos concorrentes, além disso, o instrumento é etiquetado com informações

relacionadas ao luthier e à ordem de produção.

Em relação ao mestre vidreiro, observamos que cada peça possui um adesivo com o

logotipo da “Cristais São Marcos” e há algumas peças que levam a assinatura do Sr. Molinari,

peças que ele já não produz mais, ou seja, ele de alguma forma se apropria do trabalho dos

seus funcionários e toma para si a autoria do produto, o que é muito comum no mundo

capitalista, em que grandes marcas de roupas, bolsas, perfumes, entre outros produtos, acabam

se firmando no mercado com a assinatura dos proprietários dessas marcas, mas na verdade são

projetados e confeccionados por funcionários, que não levam o crédito pelo seu trabalho e tem

grande parte da sua mão-de-obra expropriada pelo capitalista. Podemos concluir que o Sr.

Molinari transformou seus produtos de cristal/murano em uma marca.

Diante de todo o material que conseguimos coletar e analisar através desse estudo,

podemos apontar algumas possibilidades de novas pesquisas que possam estender a discussão

de diversos temas apresentados até aqui. Acreditamos que seria de grande importância para a

ciência e para as disciplinas que estudam o universo do trabalho, uma pesquisa mais

aprofundada sobre casos de mestres artesãos que se transformam em empresários,

confundindo esses dois universos que acreditávamos, até então, serem tão distintos e

imiscíveis. A pergunta que fica é: Será que isso pode significar a perda das peculiaridades do

trabalho artesanal e do savoir-faire dos mestres de ofício?

Por fim, sugerimos que as contribuições dessa pesquisa, no campo da administração e

da sociologia do trabalho, vão no sentido de mostrar possibilidades viáveis de uma gestão

mais humanizada, em que seja possível gerir qualquer tipo de negócio sem que o quadro de

trabalhadores perca sua identidade, adoeça ou enlouqueça. Além disso, a pesquisa também

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mostra possibilidades viáveis de se criar modelos alternativos de gestão e de produção que

precarizem menos a força de trabalho, resgatando para o universo gestionário algumas

características positivas do modelo artesanal de produção, que dê mais autonomia e domínio

para seus funcionários. Acreditamos que as características do trabalho artesanal operam como

um fator que empodera o trabalhador e dá mais sentido ao seu trabalho.

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