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1 Os sentidos da escrita da História da Balaiada e da Praieira entre 1848 e 1850 Lillian Micheli Silva Mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo Resumo: A Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840 foi escrita, exceto o primeiro capítulo, durante a estadia de Gonçalves de Magalhães no Maranhão (1840 a 1841) no momento em que o poeta ocupava o cargo de secretário do governo da província durante a contenção da Balaiada. Este texto foi premiado pelo IHGB em 1847 como uma obra de natureza historiográfica. Poucas revoltas foram objeto de narrativas históricas. Teremos outras duas narrativas de revoltas produzidas por homens que participaram da Revolta Praieira: a de Urbano Sabino Pessoa de Melo Apreciação da Revolta Praieira de Pernambuco -, que figurava ao lado dos liberais; e a outra escrita como resposta àquela pelo conservador Jerônimo Martiniano Figueira de Melo Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1849. A proposta deste artigo é refletir sobre os três textos, apresentados ao público da corte entre 1848-1850. Salvaguardando as peculiaridades de cada narrativa, que se assemelham por terem sido escritas por homens envolvidos nos conflitos, estas obras constituem, de certa maneira, um campo historiográfico nascente no Império brasileiro que é a narrativa de guerra. Palavras-chave: História; Revoltas; Narrativa de Guerra. Abstract: Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840 it was written , but the first chapter , during the Gonçalves de Magalhães stay in Maranhão ( 1840-1841 ) at the time that the poet held the office of the provincial government secretary for the containment of Balaiada . This text was awarded by IHGB in 1847 as a great work of historiographical nature. Few revolts were the subject of historical narratives. We will have two other accounts of revolts produced by men who participated in the Praieira Revolt: Urbano Sabino Pessoa de Melo Apreciação da Revolta Praieira em Pernambuco - who appeared alongside the liberals; and the other written in response to that the conservative Jerônimo Martiniano Figueira de Melo Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1850. In this article, we intend to reflect on the three texts, data to the public from 1848 to 1850. Safeguarding the peculiarities of each narrative, which will be discussed, which are similar because they were written by men involved in the conflicts and conform, in a sense, a nascent historiographical field, the war narrative. Keywords: History; Riots; War Stories. O ato de narrar um acontecimento histórico envolve uma série de escolhas por parte de quem se propõe a este desafio. Ao expor o desenrolar dos acontecimentos, o historiador assume uma determinada postura com relação ao

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Os sentidos da escrita da História da Balaiada e da Praieira entre

1848 e 1850

Lillian Micheli Silva

Mestranda em História pela Universidade Federal de São Paulo

Resumo: A Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840 foi escrita, exceto o primeiro capítulo, durante a estadia de Gonçalves de Magalhães no Maranhão (1840 a 1841) no momento em que o poeta ocupava o cargo de secretário do governo da província durante a contenção da Balaiada. Este texto foi premiado pelo IHGB em 1847 como uma obra de natureza historiográfica. Poucas revoltas foram objeto de narrativas históricas. Teremos outras duas narrativas de revoltas produzidas por homens que participaram da Revolta Praieira: a de Urbano Sabino Pessoa de Melo – Apreciação da Revolta Praieira de Pernambuco -, que figurava ao lado dos liberais; e a outra escrita como resposta àquela pelo conservador Jerônimo Martiniano Figueira de Melo – Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1849. A proposta deste artigo é refletir sobre os três textos, apresentados ao público da corte entre 1848-1850. Salvaguardando as peculiaridades de cada narrativa, que se assemelham por terem sido escritas por homens envolvidos nos conflitos, estas obras constituem, de certa maneira, um campo historiográfico nascente no Império brasileiro que é a narrativa de guerra. Palavras-chave: História; Revoltas; Narrativa de Guerra.

Abstract: Memória histórica e documentada da revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840 it was written , but the first chapter , during the Gonçalves de Magalhães stay in Maranhão ( 1840-1841 ) at the time that the poet held the office of the provincial government secretary for the containment of Balaiada . This text was awarded by IHGB in 1847 as a great work of historiographical nature. Few revolts were the subject of historical narratives. We will have two other accounts of revolts produced by men who participated in the Praieira Revolt: Urbano Sabino Pessoa de Melo – Apreciação da Revolta Praieira em Pernambuco - who appeared alongside the liberals; and the other written in response to that the conservative Jerônimo Martiniano Figueira de Melo – Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1850. In this article, we intend to reflect on the three texts, data to the public from 1848 to 1850. Safeguarding the peculiarities of each narrative, which will be discussed, which are similar because they were written by men involved in the conflicts and conform, in a sense, a nascent historiographical field, the war narrative. Keywords: History; Riots; War Stories.

O ato de narrar um acontecimento histórico envolve uma série de escolhas

por parte de quem se propõe a este desafio. Ao expor o desenrolar dos

acontecimentos, o historiador assume uma determinada postura com relação ao

2

objeto que pretende apresentar ao seu público. Assim, o lugar social ocupado por

este sujeito, o diálogo que este estabelece com a sociedade, os debates existentes

e as disputas na construção de determinadas memórias permeiam a escrita da

História. Como bem nos lembra Michel de Certeau, “da reunião dos documentos à

redação do livro, a prática histórica é inteiramente relativa à estrutura da

sociedade”1.

Assim, refletir sobre a escrita da História no século XIX brasileiro implica uma

série de questionamentos a respeito das perspectivas e angústias vivenciadas pelos

homens que tinham a tarefa de pensar uma identidade nacional no processo de

consolidação da independência política e literária brasileira.

Sem dúvida, neste cenário, a criação do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, no ano de 1838, marcaria o momento em que se propõe uma produção

de textos históricos brasileiros de uma forma mais sistematizada para pensar sobre

as questões relacionadas à nação. Assim, “uma vez implantado o Estado Nacional,

impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a ‘Nação brasileira’, capaz

de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo de ‘Nações’.” 2

Entretanto, a construção do Estado e da identidade nacional relacionada com

a concepção da produção de interpretações sobre o passado brasileiro não

resultaria em um processo simples, pois se no Império brasileiro da primeira metade

do século XIX “o projeto nacional não era evidente, tampouco o era a identidade da

história e a do historiador”. 3 Assim, a partir das especificidades da relação entre a

pesquisa histórica e a construção do Estado Nacional neste período, queremos

saber como compreender a produção de obras que apresentam como objeto de

análise acontecimentos do passado brasileiro recente. Quais os elementos que

podem ser identificados nesta prática de narrar o passado nos primórdios de nossa

historiografia?

A partir desta questão, pretende-se, neste artigo, apresentar uma análise

sobre aspectos específicos da escrita da História no Brasil no século XIX. O foco

1 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”. In: A escrita da história. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 74. 2 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Nação e Civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. Revista Estudos Históricos, RJ, n. 1, CPDOC, 1988. p. 6. 3 CEZAR, Temístolces. “Lições sobre a escrita da história: as primeiras escolhas do IHGB. A historiografia brasileira entre os antigos e os modernos”. In: Estudos de Historiografia Brasileira. NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal; GONÇALVES, Marcia de Almeida; GONTIJO, Rebeca (orgs.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011. p. 94.

3

desta investigação incidirá sobre os elementos que permeiam a organização de

documentos na construção de narrativas de guerras para compreender as

motivações de escrita, os lugares de edição e divulgação de obras que tomam como

objeto histórico duas revoltas importantes na configuração política do Império

brasileiro: a Balaiada, que teve como cenário principal a província do Maranhão

entre 1838-1841, e a Revolta Praieira, ocorrida na província de Pernambuco, entre

1848-1849.

Desta forma, as especificidades que envolvem a prática da escrita da História

serão consideradas nesta análise para observarmos as disputas existentes na

construção de uma memória coletiva e histórica que estão presentes na publicação

de três narrativas de revoltas apresentadas ao público do Rio de Janeiro no período

entre 1848–1850. Sobre a revolta ocorrida no Maranhão temos o texto publicado em

1848, pela Revista do IHGB, escrito por Domingos José Gonçalves de Magalhães

que ocupava o cargo de secretário do governo e produziu a obra durante o período

em que esteve na província. Sobre a revolta de Pernambuco também tivemos duas

narrativas publicadas neste período: a primeira publicação seria da narrativa escrita

por Urbano Sabino Pessoa de Melo em 1849 – Apreciação da revolta praieira de

Pernambuco – que figurava ao lado dos liberais na revolta, e a segunda publicação

foi escrita como resposta àquela pelo conservador Jerônimo Martiniano Figueira de

Melo – Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1849, publicada logo em seguida, em

1850.

Essas narrativas têm em comum a característica de terem sido produzidas

por homens que estiveram envolvidos nas revoltas, mas que apresentam

motivações específicas para historiá-las. Apesar da bandeira da imparcialidade estar

presente em todas as obras, apoiada principalmente na justificativa da exposição

dos acontecimentos a partir dos documentos produzidos durante a revolta, é

importante observar como as disputas políticas e os respectivos posicionamentos

dos autores são essenciais para refletirmos sobre o lugar de produção dessas obras,

as suas principais marcas interpretativas, seus processos de edições em espaços

específicos e as subsequentes divulgações.

Além disso, a prática de apresentar ao público uma visão histórica de

revoltas tão recentes não era comum neste período, apesar da efervescência de

conflitos em várias províncias do Império brasileiro nas décadas de 1830 e 1840. Por

4

outro lado, as formulações discursivas a respeito das revoltas constituíram um

elemento importante no processo de construção da nação e na disputa política nas

décadas de 1830-1840. Nas assembleias e nos jornais, os debates e as

interpretações das revoltas eram constantes. Assim, as revoltas que ocorreram

durante a regência e no início do Segundo Reinado constituíram uma das bases da

argumentação conservadora para caracterizar, numa ótica negativa, o governo dos

liberais. A Cabanagem (Pará, 1835-1840), a Sabinada (Bahia, 1837-1838), a

Balaiada (Maranhão, 1838-1841), a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul,

1835-1845) – e as revoltas liberais em 1842 (São Paulo e Minas Gerais), foram

utilizadas como argumento para que as propostas de Interpretação do Ato Adicional

(1840), e a Reforma do Código do Processo (1841) fossem efetivadas. 4

Entretanto, a escrita e a publicação das narrativas históricas que relatassem

as revoltas não eram frequentes. Nem mesmo a Farroupilha, rebelião das elites e

com duração ampla, foi historiada nem durante, nem nas duas décadas seguintes ao

seu término. Só a Guerra do Paraguai inauguraria ampla narrativa de guerra, da

pena de seus participantes e de outros. Assim, é importante problematizar este

momento do final da década de 1840, pois além da busca pela construção de uma

memória específica sobre as revoltas, estes homens estavam preocupados em

apresentar uma interpretação histórica que pudesse interferir nas ações políticas

daquele momento.

O processo de escrita, principais aspectos e divulgação das

narrativas

A primeira obra publicada foi a Memória histórica e documentada da

revolução da província do Maranhão desde 1839 até 1840, escrita, exceto o primeiro

capítulo, durante a estadia de Gonçalves de Magalhães no Maranhão (1840 a 1841)

no momento de contenção da Balaiada. O autor da Memória é o poeta considerado

4 Segundo Marcello Basile, nos anos subsequentes a promulgação do Ato Adicional, durante a terceira legislatura (1834 a 1837), a ocorrência de muitas revoltas provinciais ajudou a difundir a ideia de um governo caótico, e ocasionou uma desilusão com as reformas liberais. Este cenário teria possibilitado a ascensão política dos regressistas. BASILE, Marcello Otávio Neri de Campos. “O laboratório da nação: a era regencial”. In. GRINBERG K; SALLES Ricardo (orgs.). O Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 85-86. No entanto, como destaca o historiador Tâmis Parron, as insurreições escravas que aconteceram neste período não eram citadas pelos conservadores nos debates políticos, justamente, porque a manutenção do tráfico de escravos era um interesse para este grupo político. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 101.

5

o percursor do romantismo no Brasil, que tinha voltado da Europa havia apenas dois

anos, depois de uma estadia de quatro anos em terras europeias.

O cargo de secretário do governo, aceito por Magalhães para acompanhar o

novo presidente da província do Maranhão - o coronel Luís Alves de Lima -, tinha

características administrativas. Tratava-se de redigir documentos oficiais e ajudar na

administração da província. Entretanto, Magalhães, que era um homem das letras,

preocupava-se também com as questões culturais do Brasil e ao ter acesso a toda

documentação relacionada à revolta, escreve uma narrativa sobre a Balaiada. Para

a historiadora, Adriana Barreto de Souza, Magalhães, ao aceitar o cargo de

secretário, não estava apenas interessado na função administrativa que exercia um

secretário do governo provincial, mas também em conhecer um pouco mais o Brasil,

seu território e as características de sua população.5

A revolta da Balaiada seria uma experiência importante para Magalhães

conhecer as especificidades de uma província do Império brasileiro. A historiografia

hoje aponta que a revolta teve como principal característica o aparecimento de

novos atores no cenário político, pois foi uma revolta firmada em alianças locais

bastante heterogêneas que contou com a participação de homens livres pobres,

vaqueiros, escravos e fazendeiros. Para Matthias Röhrig Assunção, o “caráter

popular” da revolta e, principalmente, a aliança entre livres e escravos é a principal

particularidade que diferencia a Balaiada de outras revoltas que ocorreram nas

décadas de 1830 e 1840.6

Esta seria a revolta que Magalhães vivenciaria como secretário do governo e

realizaria um estudo detalhado a respeito dos motivos para a eclosão da revolta, o

seu desenvolvimento e as ações que puderam concretizar a pacificação da

província. Desta forma, o autor apresenta no texto documentos produzidos durante o

período da revolta, como por exemplo, os relatórios e a correspondência dos

presidentes da província e publicações de jornais locais, principalmente o Bemtivi e

a Chronica Maranhense.

5 SOUZA, Adriana Barreto de. “O resgate do que se desmancha: a cartografia da pacificação da Balaiada”. Revista Topoi, v.9, n. 16, jan-jun. 2008. p. 237. 6 O autor caracteriza a Balaiada como uma “das grandes revoltas rurais da história do Brasil”, na qual houve o aparecimento de novos atores que reapropriaram o conceito de liberalismo utilizado pela elite e transformaram em um liberalismo popular. ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. “‘Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador’. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão”. In: DANTAS, Monica Duarte (org.), Revoltas, Motins, Revoluções, homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX, São Paulo, Alameda, 2011. p. 298.

6

Seis anos após o final da revolta, em 1847, a Memória escrita por Magalhães

seria premiada pelo IHGB e publicada em sua revista. O Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro destacava a importância deste texto, destacando o sucesso de

Magalhães de narrar os acontecimentos “sem alterá-los pelas paixões próprias, que

comumente conturbam o juízo do historiador”7. Assim, o IHGB, a instituição cultural

do país que carregava a autoridade de pensar uma história nacional naquele

momento, apresenta a relevância da publicação desta obra escrita por Magalhães.

O instituto dava o aval, quebrando uma regra de não publicar nada sobre

pessoas ainda vivas, em atuação na política do tempo. A historiadora Lucia Maria

Paschoal Guimarães, ao analisar as publicações da Revista do IHGB, observa

também a ausência de trabalhos de cunho histórico que tomam algum fato da

história recente brasileira como objeto de reflexão. Estes temas poderiam, segundo

a autora, “trazer à tona uma série de contradições, dúvidas e até mesmo rivalidades

pessoais, que em nada poderiam contribuir para o fortalecimento das debilitadas

instituições monárquicas”. 8 A autora cita alguns exemplos, como o caso de José de

Rezende Costa, que era sócio do IHGB, e traduziu um capítulo da obra da História

do Brasil, de Robert Southey, que tratava sobre a Conjuração Mineira (1817). O

texto ficaria sete anos na gaveta até que a Comissão encarregada de avaliá-lo

apresentasse um parecer negativo para a publicação.9 Enquanto isso, a Memória da

Balaiada recebia o carimbo positivo para a publicação e com grande êxito. Tinha o

aval também das próprias origens do ofício, o do historiador testemunha, que esteve

presente em um momento crítico de conflito nacional e assegurou seu registro para

a posteridade.

Assim, quando Magalhães escreve o primeiro capítulo, que seria acrescido

para a publicação do IHGB, pode-se observar o esforço do autor em historiar a

revolta, e, principalmente, transformá-la em um marco político importante na História

brasileira. A transmissão de uma “lição histórica” era o principal objetivo deste

trabalho de Magalhães, pois ao narrar os acontecimentos da Balaiada, o autor indica

o nascimento do espírito da ordem que deveria prevalecer no futuro. Desta forma,

Magalhães alerta, em 1847, que este passado ainda não havia sido superado e que

seria necessário lembrá-lo para que não se repetisse: 7 A Ata da premiação é apresentada na RIHGB, v. 7, 1847. 8 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “Debaixo da imediata proteção de sua majestade imperial”: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Tese de doutorado, USP: 1994. p. 125-126. 9 Idem, p.118.

7

Custa-me na verdade, depois de passados os males, estar agora a relatá-los; mas estes passados males deixam uma chaga aberta, que ainda hoje goteja, e um eco de dor para o futuro: inútil não é o estudo do passado.10

Magalhães justifica a necessidade de tornar público a Memória, pois a sua

obra traria elementos para compreender um passado que deixou uma “chaga aberta

e que ainda goteja” e que não seria “inútil” o aprendizado desta experiência para o

presente e principalmente para o futuro.

Ao refletir sobre esta necessidade de aprendizagem com os erros do

passado, Magalhães faz críticas ferrenhas à política do Império que vigorava durante

a eclosão e o desenvolvimento da revolta, principalmente com relação às lutas

partidária. Para o autor, as ambições políticas dos partidos em nada ajudariam na

construção de um Estado forte. Diante desse mal, a solução proposta por

Magalhães era que os homens que estivessem no governo tivessem uma postura de

imparcialidade, pois, segundo o autor, “governo partidário é sempre injusto.” 11

É a partir dessa premissa que Magalhães constrói toda a sua narrativa. Dessa

forma, apresenta e expõe as ações dos três presidentes que governaram a província

durante a revolta, caracterizando dois momentos centrais na História da Balaiada:

um primeiro momento seria o governo completamente desorganizado dos dois

presidentes – Vicente Thomaz Pires de Figueiredo Camargo e Manoel Felizardo de

Souza e Mello; e o segundo momento seria marcado por um governo preparado

para a contenção da revolta e que conseguiria por fim as barbáries que estavam

ocorrendo na província. Esse segundo momento seria o governo de Luís Alves de

Lima, que tinha como secretário Gonçalves de Magalhães, o próprio autor da

narrativa.

Esta mudança do comando da província também era resultado da ação do

novo ministério de 16 de maio de 1839. Assim, as decisões políticas de nomeação

de Luís Alves de Lima influenciariam diretamente na contenção da revolta. Segundo

Magalhães, as notícias dos horrores praticados pelos revoltosos haviam chegado à

capital, e então o novo ministério decidiu mudar o presidente da província,

nomeando para o cargo um homem que presidisse o governo provincial e também

fosse responsável pelo comando das armas. Esta decisão evitaria atritos, pois os

10 MAGALHÃES, Domingos Gonçalves de. Memória histórica e documentada da revolução da província do maranhão desde 1839 até 1840. Novos Estudos do CEBRAP, n.23, março, 1989. Cap.1. 11 Idem, p. 18.

8

dois cargos estariam a serviço de um mesmo homem. Para Magalhães o governo

reconheceu “a necessidade de confiar a um só homem a presidência e comando das

armas, para evitar destarte delongas e intrigas”. 12

Assim, Luís Alves de Lima seria o modelo de político idealizado por

Magalhães, pois ao ocupar o cargo de presidente colocava-se acima das disputas

partidárias e governava a província de forma imparcial. Seria “mais militar que

político”13. Desta forma, na Memória da Balaiada pode-se encontrar várias

referências aos feitos militares estratégicos de Luís Alves de Lima no êxito da vitória

de suas tropas. A imagem de um homem imponente aparece com frequência na

narrativa. Além disso, Magalhães apresenta que o novo presidente da província não

sofreu censura alguma da imprensa, pois todos seriam favoráveis à sua nomeação.

O autor descreve os ânimos da população para a chegada de Luís Alves de Lima no

momento da pose do cargo de presidente da província da seguinte forma:

Os que já de nome e fama o conheciam, o saudaram alegremente, e os jornais da província, a quem não eram ocultas as eminentes qualidades do novo chefe, em seu favor se dispuseram; e desde já notaremos que nunca a seu governo fizeram a menor oposição e censura, antes sempre o exaltaram, e nisto cada partido quis sempre avantajar-se ao contrário. Tanto é certo que o grande homem que no desempenho de seus sagrados deveres não mira a qualquer outro fim, impõe silêncio à mesma inveja e à intriga. Os grandes homens se mostram nas grandes ocasiões, como os pequenos nelas desaparecem.14

Desta forma, Magalhães apresenta o caráter extremamente positivo da

nomeação de Luís Alves de Lima para presidente e como as suas ações posteriores

foram aprovadas pela população maranhense que buscava o restabelecimento da

paz na província. É importante pontuar que o autor da Memória apresenta a

chegada do novo presidente como um momento de grande expectativa, indicando

que Luís Alves de Lima teria seus feitos militares conhecidos no Maranhão antes

mesmo de assumir o cargo de presidente e comandante de armas da província. Luís

Alves de Lima também iria ser exaltado pelo o literato ainda 1841 na Ode ao

Pacificador, quando Magalhães condensou a imagem de Luís Alves de Lima de

12 Idem, p. 36. 13 Idem, p. 38. 14 Idem, p. 37.

9

maneira potente, contribuindo significativamente para o seu epíteto de “pacificador

nacional” e para o título de barão de Caxias.15

Pode-se perceber o esforço de Magalhães nesta narrativa em construir uma

imagem grandiosa do presidente da província. Depois da contenção da revolta, Luís

Alves de Lima tornar-se-ia o barão de Caxias e a maioria dos trabalhos

historiográficos que refletem sobre esta figura marcam o momento de contenção da

Balaiada como o grande início da carreira militar e política do Duque de Caxias,

futuro patrono do exército brasileiro.16 Os escritos de Magalhães, inclusive a

narrativa da Balaiada, contribuíram significativamente nesta construção de uma

memória a respeito do militar, marcando também a importância da estratégia

desempenhada pelo ministério de 1839.

A publicação do texto de Magalhães em 1848 também é significativa. Eram

anos marcados pela tensão política e social, quando os debates entre os

conservadores e os liberais eram intensos. Foi também o ano da Praieira, momento

em que os conservadores tentavam um redirecionamento desse apaixonado debate,

questões que merecem um espaço maior para pensar esta obra escrita por

Magalhães e também a publicação de outras narrativas de guerra.

Assim, no âmago das discussões políticas, as questões sobre a Revolta

Praieira foram centrais. As duas narrativas que historiaram a Revolta de

Pernambuco seriam impressas nas tipografias dos dois jornais rivais, buscando,

desta forma, ampliar os elementos que adensassem o debate político diante do

público da corte. A tipografia do jornal Correio Mercantil, jornal da oposição, imprimiu

a obra escrita por Urbano Sabino Pessoa de Melo, enquanto que a tipografia do O

Brasil, jornal dos conservadores, redigido por Justiniano José da Rocha, financiou a

impressão da obra do Jerônimo Martiniano Figueira de Melo.

15 Na guerra dos farrapos Magalhães também estaria ao lado de Caxias e ficaria conhecido como seu braço direito. Ver SOUZA, Adriana Barreto de. Duque de Caxias, o homem por trás do monumento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. A historiadora destaca a forte ligação entre Magalhães e o futuro Duque de Caxias, durante a Balaiada e a Farroupilha. Segundo a autora, no Maranhão, os documentos oficiais do presidente da província eram, no mínimo, revisados por Magalhães, “mas é provável que fossem integralmente redigidas por ele.” p. 294. Na contenção da Farroupilha, Magalhães fica, de fato, reconhecido como o braço direito de Caxias p. 414. Magalhães escreveria também um poema para registrar a contenção da Farroupilha: “Ode à paz da Província do Rio Grande do Sul”, que foi publicado pela revista Minerva Brasiliense, n. 12, 1845, vol. II, na seção poesia lírica. 16 Essa questão é apresentada na Introdução do livro Duque de Caxias, o homem por trás do monumento escrito por Adriana Barreto de Souza. A autora problematiza este marco referencial, expondo a necessidade e a importância de pensar a trajetória do Duque de Caxias antes de sua atuação na Balaiada. Op. Cit. p. 33-34.

10

A primeira interpretação sobre a Revolta em Pernambuco viria dos escritos de

Urbano Sabino Pessoa de Melo, membro proeminente do partido liberal, sob o título

de Apreciação da Revolta Praieira de Pernambuco. O autor era um dos editores do

jornal O Correio Mercantil e procurava nessa obra justificar a Revolta Praieira,

apontando os erros gravíssimos cometidos pelo governo central com relação a

província de Pernambuco, falhas que teriam ocasionado a eclosão da revolta.

O debate sobre a legitimidade da revolta estava em voga no cenário político

do Império brasileiro, e, ocupando o centro da imprensa nesta acalorada disputa,

Urbano Sabino enfatiza inúmeras vezes que os deputados pernambucanos não

foram os responsáveis pela eclosão da revolta. Ao colocar-se como testemunha

ocular de todo o processo que ocasionou a revolta, o autor indica que o próprio

governo foi o principal incitador da revolta, pois manobrava os nomes para o cargo

de senador e substituía arbitrariamente as autoridades locais de Pernambuco. Desta

forma, a partir das ações do governo central, movidas não pela ação governativa,

mas por paixões políticas, apareceu um pensamento de desordem e também de

indignação popular. Não bastante, além da responsabilidade de incitar a revolta, o

despótico governo, segundo o autor, também conduziria de forma completamente

arbitrária a contenção da revolta, exercendo uma “política de sangue”.

Portanto, a narrativa de Urbano Sabino tem como ponto central o caráter de

denúncia sobre as ações do governo, sobre sua condução na repressão da revolta e

no processo de punição dos envolvidos. Urbano Sabino procura destacar que o

conflito não chegara ao fim em 1849 e que na província ainda não era possível

encontrar a paz. O autor inicia seu texto em tom de acusação, dizendo que não

poderia mais continuar em silêncio diante dos acontecimentos recentes:

Já não posso continuar o silêncio que tenho guardado sobre deploráveis sucessos da província de Pernambuco. Esperava que com a pacificação cessassem tantas calamidades, e voltasse o regime da constituição a substituir o domínio da espada, do arbítrio e do terror, empregado com a maior crueza e desumanidade, e pretextado com fictício reclamos da ordem pública: minha esperança se tem completamente esvaecido, e com dor observo que o furor da vingança e extermínio bem tarde se há de aplacar. 17

17 MELO, Urbano Sabino Pessoal de. Apreciação da revolta praieira de Pernambuco. Brasília:

Senado Federa, Ed. UnB, 1978. p. 33. Grifo nosso.

11

É com o ímpeto de fazer vir a tona o verdadeiro estado “deplorável” da

província de Pernambuco, que Urbano Sabino reúne documentos para construir sua

narrativa, argumentando que os registros produzidos durante a revolta devem ser

observados como “provas” para que se possa “restabelecer a verdade dos fatos”

tornando possível uma compreensão fidedigna dos acontecimentos. Para tanto, o

autor utiliza os documentos produzidos pelos deputados liberais que procuravam dar

legitimidade à revolta, como os manifestos e as publicações em jornais. O autor

também destaca os documentos relativos ao processo de julgamento dos envolvidos

na revolta para apresentar os erros no processo de punição dos praieiros.

Assim, ao apoiar-se na ideia de apresentar uma visão imparcial dos conflitos,

o objetivo do autor é rebater os discursos que atacavam os deputados praieiros que

tinham seus nomes envolvidos na revolta e que sofriam acusações constantes dos

conservadores. Na introdução da Apreciação, Urbano Sabino dirige-se diretamente

ao deputado Maciel Monteiro, que segundo o autor, acabara de realizar um discurso

na assembleia provincial que era completamente falso, calunioso, e retratava o

instinto de vingança para com os “inimigos vencidos, presos e foragidos, e

impossibilitados de responder-lhe”.18

Na narrativa de Urbano Sabino foram os próprios homens que defendiam a

bandeira da ordem os principais responsáveis pelo descontentamento popular que

causaria a revolta, e que contaria, posteriormente, com o apoio dos deputados da

praia, que “ter-se-iam colocado à frente do movimento, como o fizeram corajosa e

francamente depois de perdidas todas as esperanças de solução pacífica.” 19

Desta forma, pode-se observar a intenção de Urbano Sabino em construir

uma memória positiva sob os deputados praieiros que se envolveram na revolta.

Assim, a primeira edição do livro, em 1849, apresenta um retrato de Nunes

Machado, deputado liberal que foi morto no confronto do dia 02 de fevereiro na

cidade do Recife, e que aparece na narrativa como um mártir popular, um símbolo

importante da luta praieira. Esta imagem ficaria marcada na memória

correspondente à revolta. Joaquim Nabuco, em Um Estadista do Império, por

exemplo, lamenta profundamente a morte do deputado Nunes Machado no conflito

ocorrido em Recife, e apresenta que o deputado liberal seria o principal nome

lembrado pela população pernambucana:

18 Idem, p. 34. 19 Idem, p. 68.

12

Nunes Machado ficou sendo até hoje o ídolo popular pernambucano, a memória querida por excelência... É que o povo perdoa aos que se parecem com ele, e Nunes Machado é a expressão das qualidades e dos defeitos pernambucanos. A sua política, se lhe tivessem deixado livre o campo, nunca teria melhorado, porém, só piorado a condição do povo. A Praia morreu com ele, por ser ele de todos os seus homens o único que podia imprimir ao movimento um cunho de generosidade. 20

Apesar das ressalvas feitas por Nabuco com relação ao desempenho de

Nunes Machado como um deputado liberal, o autor de Um Estadista do Império,

destaca a importância que este homem teve para a população pernambucana e para

os seus companheiros no movimento da Praia. Segundo Nabuco, a revolta não

sobreviveria sem a sua principal figura, pois ele seria o único de “seus homens” que

apresentava alguma “generosidade”. Assim, com relação a importância de Nunes

Machado na revolta, Joaquim Nabuco aproxima-se da visão apresentada de Urbano

Sabino na Apreciação. Entretanto, a intenção de fundação de uma memória de

Nunes Machado como um grande mártir popular é colocada por Urbano Sabino sem

maiores problematizações, enquanto que Nabuco apresenta um certo tom de

desmitificação desta imagem, alegando que se o deputado tivesse continuado sua

política só teria piorado a situação do povo, que após a sua morte o enaltece.

A caracterização dos responsáveis pela contenção da revolta feita por Urbano

Sabino também é um elemento importante para compreender a construção de sua

argumentação. Assim, além de demarcar o completo apoio popular da revolta,

Urbano Sabino faz sérias críticas ao presidente da província de Pernambuco Manoel

Vieira Tosta e ao chefe da polícia Jerônimo Martiniano Figueira de Melo. Para o

autor, ambos são responsáveis pelo desenvolvimento de uma “política de sangue” -

eram homens de caráter perverso, com coração frio e sanguinário, que

apresentavam os piores instintos de vingança:

Cumpre desmascarar a hipocrisia, em que se envolve a facção para devastar o país e exterminar seus adversários. A ordem, a ordem! Nos gritam continuamente, e com essa palavra vão assassinando suas vítimas! Mas nem ao menos há sinceridade em tanto furor: são revolucionários audazes, sanguinários e incendiários. 21

20 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império: Nabuco de Araújo: sua vida, suas opiniões, sua época. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899, vol. 1.p. 104. 21 Idem, p. 47.

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Ao se posicionar de forma tão crítica sobre a atuação de homens que

estavam na política, essa narrativa intensificou o debate no Rio de Janeiro e também

em Pernambuco. A narrativa escrita por Urbano Sabino não demoraria muito para

ser questionada, e em 1850, no ano seguinte à publicação da obra de Urbano

Sabino, o chefe da polícia que havia sido tão duramente criticado pelo deputado

liberal, Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, apresentaria ao público a Crônica da

Rebelião Praieira, 1848-1849, que também pretendia expor fielmente os motivos e o

desenvolvimento da revolta, mas, dessa vez, sob a ótica do governo geral.

Assim, Jerônimo Martiniano Figueira de Melo apresenta no início do texto,

que manteve-se imparcial e que não estava imbuído de nenhum espírito do partido

naquele momento, estando com “os olhos fitos somente na verdade”, fundamentado

nos fatos de que fora testemunha e também nos documentos impressos e

manuscritos que circularam durante a revolta, valendo-se principalmente dos

relatórios de presidente da província, das correspondências oficiais entre as

autoridades locais, das discussões da Assembleia provincial e de dados gerais da

revolta.

Para o autor, a revolta teria sido iniciada por articulações políticas dos liberais

que estariam lutando para não perder seu poder depois da queda do gabinete

liberal, e acabaram por espalhar “a desconfiança, a intriga, a mentira e a calúnia

contra o novo Gabinete.” 22

Além dos debates nos ambientes institucionais, o autor destaca o papel

destes homens nos jornais, que serviriam de impulso para a agitação da população

“menos pensante”. Para Jerônimo Martiniano, a circulação das ideias na imprensa

ajudaria a pregar a anarquia, pois os praieiros “descreviam horríveis assassinatos

como triunfos militares da facção e... elevavam o crime de resistência ao grau de

sublime virtude.”23

Jerônimo Martiniano destaca a perversidade dos revoltosos, que em sua

maioria, não estão preocupados com as questões políticas, mas envolviam-se na

revolta para praticar os crimes mais perversos e acabavam por ficar acobertados

pela bandeira da luta partidária. Aproveitavam esta situação para roubar casas,

saquear engenhos, invadir cadeias e soltar os criminosos. Para o autor, tratava-se

22 MELO, Jerônimo Martiniano Figueira de. Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1849. Brasília: Senado Federa, Ed. UnB, 1978. p. 11. 23 Idem, p. 103.

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de verdadeiros assassinos sanguinários e não homens preocupados com as

disputas políticas.

A caracterização que o chefe da polícia faz dos principais líderes da revolta,

como Pedro Ivo, Borges da Fonseca, João Roma também é degradante, enquanto

que do outro lado, o autor esforça-se para desconstruir a imagem que Urbano

Sabino apresenta de homens como o presidente Tosta, que seria, segundo o chefe

de polícia, um homem tolerante com as opiniões divergentes, que “não podia

prestar-se ao papel de algoz de uma Província, e que empregaria todos os meios

brandos para restabelecer a ordem pública.” 24

Nos autos do processo Jerônimo Martiniano classifica o movimento da

Praieira como crime de rebelião, assim como faz questão de colocar a palavra no

título de sua narrativa - Crônica sobre a Rebelião Praieira, 1848-1849. Para a

historiadora Izabel Andrade Marson, Jerônimo Martiniano, ao classificar o movimento

da Praia como um crime de rebelião, atribuiria à punição mais severa do Código civil

do Império Brasileiro, caracterizada pela prisão perpétua em Fernando de Noronha

com a realização de trabalhos forçados.25 Por sua vez, ao utilizar a nomenclatura de

rebelião para classificar o movimento da Praia, o autor também indica que houve

uma premeditação política anterior a revolta, não restringindo a sua análise apenas

ao desenvolvimento da revolta, mas apontando características do partido

responsável pela movimento Praieiro, que não conseguiam aceitar a perda do poder

político. Assim, os homens da Praia:

... trataram de organizar em seus clubes da Corte o programa da resistência à pacífica realização da nova política entenderam que animando nas Províncias o espírito de agitação, excitando todas as más paixões da sociedade, resolvendo todas as fezes que a poluem; espalhando, a desconfiança, a intriga, a mentira e a calúnia contra o novo Gabinete... eles não queriam resignar-se a serem governados, como fizeram os seus adversários, e resolveram lançar mão do desesperado recurso das armas. 26

Um movimento incitado por deputados que viam suas posições políticas

serem enfraquecidas pela ascensão de um novo gabinete é a definição que

Jerônimo Martiniano Figueira de Mello apresenta para o início da guerra civil de

24 Idem, p. 108. 25 MARSON, Izabel Andrade. “Política, polícia e memória: a atuação do Chefe de Polícia Jerônimo Martiniano Figueira de Mel na Revolução Praieira”. Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n. 7. 26 Op. Cit, p. 11.

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Pernambuco. Esta característica seria crucial para que o autor classificasse a revolta

como um crime de rebelião nos autos do processo. Além disso, o chefe de polícia

lamenta que a ambição política e mesquinha dos deputados praieiros tivessem

causado tantas desgraças ao povo pernambucano. O autor faz questão de destacar

que com o fim da revolta, a província de Pernambuco e o Império estavam salvos.

Este feito seria resultado da ação dos conservadores que, com o apoio popular dos

pernambucanos, teriam combatido a revolta e livrado o país destes homens

ambiciosos que faziam guerra apenas com o objetivo de se manterem no poder, e

que acabavam por incitar a população contra o governo.

Tanto sangue derramado, tantos cadáveres amontoados, tantas viúvas, tantos órfãos, para quê? Para elevação de alguns demagogos, que em seus cálculos de ambição não recuaram nem perante o saque da Cidade, com o qual acenaram e chamaram em derredor de si, essas hordas selvagens, que desonraram a nossa terra, e desmentem a nossa civilização. Basta. Está salva a Cidade, com ela a Província e com a Província o Império... enxuguemos com a caridade as lágrimas da viuvez e orfandade; coroemos de louros e recompensas os nossos bravos; roguemos a Deus pelos heróis, que pereceram no combate, defendendo a Cidade, e os objetos sagrados, que ela contém; e sobretudo aproveitemos a lição, e olhemos para o futuro. 27

Pode-se destacar que a narrativa escrita por Jerônimo Martiniano seria

utilizada como referência para a interpretação que Joaquim Nabuco realizaria em

Um Estadista do Império sobre a Praieira. Apesar de não utilizar o conceito de

rebelião, preferindo a palavra revolução, Nabuco apresenta uma chave de leitura

semelhante à proposta por Jerônimo Martiniano com relação às ações dos

deputados liberais que incitaram uma guerra civil em Pernambuco. Para Nabuco, os

homens da Praia não se contentarem com a perda do poder para os conservadores

e ainda os atribui a falta de capacidade de direcionar a política imperial quando

estiveram no poder. Segundo o autor, “a revolta era inevitável, não porque os chefes

políticos da Praia a promovessem, mas porque eram impotentes para dominar os

seus correligionários.”28

Nabuco também marcaria a Revolta Praieira como a “última das revoluções”29

que viria para fechar um ciclo tortuoso de revoltas e ensinar aos homens a valorosa

27 Idem, p. 183. Grifo nosso. 28 Op. Cit, p. 97 29 Idem, p. 100.

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lição de aceitação da constituição do jogo político, para que o partido liberal não

recorresse mais ao uso das armas para se manter no poder.

Assim, a ideia de que era necessário naquele momento olhar para o futuro a

partir das experiências dolorosas do passado é enfatizada por Jerônimo Martiniano.

Para o autor, a Rebelião da Praieira havia chegado ao fim e o custo foi alto. Era

necessário “enxugar as lágrimas” e, “sobretudo aproveitar a lição, e olhar para o

futuro”. Segundo o autor, o fim da revolta marca um novo tempo, no qual a ordem

estava instaurada pelos conservadores. O presente e o futuro tomariam novos

rumos a partir da experiência com aquelas revoltas e, nesse processo, as

aprendizagens do passado seriam fundamentais.

Esta visão da ação triunfante dos conservadores também está presente na

narrativa de Magalhães, que apresenta a chegada de Luís Alves de Lima para o

cargo de presidente da província como um momento de ruptura na revolta da

Balaiada. O autor da Memória da Balaiada apresenta o modelo de um bom governo,

que deveria manter-se impessoal diante das disputas políticas locais. Assim, como

Jerônimo Martiniano, Magalhães também apresenta a ideia de ruptura com esse

passado recente de revoltas. Estas conturbações políticas deveriam ser tidas como

um exemplo para o futuro e, assim, possibilitariam o progresso nacional.

Essa ruptura para a demarcação de um novo tempo, de uma nova ordem, não

pode ser observada na narrativa escrita por Urbano Sabino. Na ótica da narrativa

liberal do pernambucano, as disputas ainda não haviam cessado no final da década

de 1840. Pelo contrário, estavam longe disso. Ao narrar a revolta, Urbano Sabino

tem um tom de denúncia e alerta sobre as ações dos homens do “partido da ordem”

que mostravam-se incoerentes entre seus discursos e suas ações. Os pregadores

da ordem seriam os verdadeiros responsáveis pelas principais injustiças causadas

no Império.

Assim, pode-se perceber a existência de disputas de posições políticas no

período e como ela aparecia nas narrativas publicadas sobre as revoltas, pois

destaca-se duas visões sobre o passado na construção das narrativas de guerra

analisadas. Os três autores apoiam-se na cientificidade do trabalho do historiador,

valendo-se da documentação produzida durante a revolta, para construir sua versão

imparcial dos conflitos, mas pode-se destacar como os posicionamentos políticos de

cada autor são cruciais para a compreensão das exposições dos documentos e da

17

narração das revoltas. Os acontecimentos do passado deveriam ser repensados

naquele momento e ganham, dessa forma, uma significação por parte dos autores

que estava intimamente relacionada com os debates que lhe são contemporâneos.

Assim, o conhecimento histórico e a construção das representações das

revoltas historiadas podem ser pensados como mecanismos de poder, que refletem

sobre o passado para legitimar ações políticas do presente. Para o historiador

Fernando Catroga, a memória é seletiva e está intrinsicamente relacionada com as

questões que lhe são contemporâneas. Esse processo seria contínuo, sendo

possível que “cada presente construa a sua própria história, não só em função da

onticidade do que ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente.” 30

Este é justamente o processo que ajuda-nos a compreender a ocorrência da

publicação de narrativas de revoltas neste final da década de 1840 e suas principais

especificidades.

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30 CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Lisboa: Quarteto, 2001. p. 22.

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