os portoes - trecho

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Em Os portões, a extraordinária imaginação de John Connolly mistura fantasia, humor e ciência numa história informativa e arrebatadora, que prova que aprender também pode ser muito divertido (além de ser de grande ajuda quando um bando demoníaco resolver destruir o planeta).

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Do Autor:

O Livro das Coisas Perdidas

Os Portões: um Romance Estranho para Jovens Estranhos

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Rio de Janeiro | 2013

Tradução

Dênia Sad

Um romance estranho para jovens estranhos

JOHN CONNOLLY

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QUATROQuando Aprendemos o Quanto É Desaconselhável

Tentar Invocar Demônios e Mexer Com a Ultravida em Geral

AMUEL E Boswell se sentaram no muro do lado de fora da casa dos Abernathy e observaram o mundo girar. Como era uma noite tranquila e grande parte das pessoas estava dentro de suas casas tomando chá, não havia muito do mundo a ser observado, e o que havia não estava

fazendo muita coisa. Samuel sacudiu seu balde e ouviu o som do vazio, que, como qualquer um sabe, não é a mesma coisa que som nenhum, já que inclui todo o barulho que alguém esperava ouvir, mas não ouve.7

7 É como a velha questão sobre se uma árvore caindo numa floresta faz algum barulho se não há ninguém lá para ouvir. Isso, é claro, supõe que as únicas criaturas com quem devemos nos preocupar no que diz respeito à queda de ár- vores são os seres humanos e ignora os pequenos pássaros, vários roedores e coelhos que, por acaso, estão no lugar errado na hora errada e se deparam com uma árvore caindo sobre suas cabeças. No século XVIII, um bispo

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J O H N C O N N O L LYHSamuel não queria ir para casa. Sua mãe se preparava para

passar a noite fora quando ele partiu. Era a primeira vez que ela se

arrumava para sair desde que o pai de Samuel havia ido embora, e

alguma coisa naquela cena entristecia o menino. Ele não sabia com

quem sua mãe iria se encontrar, mas ela estava passando batom, se

ajeitando para ficar bonita, e não se dava àquele trabalho quando

ia jogar bingo com as amigas. A mãe não perguntou por que o

filho se vestia de fantasma e carregava um balde de Dia das Bruxas

quando ainda não era Dia das Bruxas, porque estava muito acos-

tumada a vê-lo fazer coisas que podiam ser consideradas um tanto

incomuns.

Na semana anterior, o professor de Samuel, o sr. Hume, telefo-

nara para ela para ter o que descreveu como “uma conversa séria”

sobre o menino. Contou que Samuel chegara para apresentar

um trabalho naquele dia levando apenas um alfinete. Quando o

sr. Hume o chamou para a frente da turma, ele ergueu o alfinete,

orgulhoso.

— O que é isso? — perguntara o sr. Hume.

— Um alfinete — respondera Samuel.

chamado Berkeley afirmava que os objetos só existem porque as pessoas estão ali para vê-los. Muitos cientistas riram dele e de seus pensamentos, por considerá-los tolos. No entanto, de acordo com a teoria quântica, um ramo muito avançado da física, que envolve átomos, universos paralelos e outras matérias do tipo, o argumento do bispo Berkeley pode ter feito sentido. A teoria sugere que a árvore existe em todos os estados possíveis ao mesmo tempo: queimada, em forma de serragem, tombada ou no formato de um patinho de madeira que grasna ao ser puxado. Você não sabe em que estado ela está até observá-la. Em outras palavras, o observador não pode ser sepa-rado da coisa observada.

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Os portõesh— Disso eu sei, Samuel, mas essa está longe de ser a mais empol-

gante das apresentações, não é? Quero dizer, não é bem um foguete, como o que o Bobby fez, nem como o vulcão da Helen.

Samuel não achara grande coisa o foguete de Bobby Goddard, que lhe parecia uma série de rolos de papel higiênico cobertos de papel-alumínio, nem o vulcão da Helen, apesar de ele pro-duzir uma fumaça branca ao despejarem água em sua cratera. O pai da Helen era químico, e Samuel tinha certeza de que ele dera uma mãozinha à filha para criar o vulcão. Helen, como Samuel sabia, não conseguia nem fazer um pote de palitos de picolé sem instruções detalhadas e uma grande quantidade de solvente para depois remover a cola e os vários palitos de picolé de seus dedos.

Samuel dera um passo à frente e segurara o alfinete sob o nariz do sr. Hume.

— Não é só um alfinete — falou solenemente. O sr. Hume parecia não ter sido convencido. Também parecia

um pouco nervoso por haver um alfinete muito mais perto de seu rosto do que ele gostaria. Não dava nem para dizer o que aquelas crianças poderiam fazer se tivessem qualquer oportunidade.

— Então, o que é? — perguntou o sr. Hume.— Bom, se o senhor olhar de perto...Apesar de seu bom senso, o sr. Hume se viu tombando o corpo

para a frente a fim de examinar o alfinete.— Bem de perto...O sr. Hume semicerrou os olhos. Uma vez, alguém lhe dera um

grão de arroz com seu nome escrito, o que ele achara interessante, mas inútil, e se perguntava se, de algum jeito, Samuel tinha conse-guido fazer um truque parecido.

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J O H N C O N N O L LYH— O senhor deve ser capaz de ver um número infinito de anjos

dançando na cabeça deste alfinete — concluiu Samuel.8

O sr. Hume olhou para Samuel. Samuel olhou de volta para ele.

— Você está tentando ser engraçado? — perguntou o professor.Aquela era uma pergunta que Samuel ouvia com frequência,

normalmente quando não fazia o menor esforço para ser engra-çado.

— Não — respondeu Samuel. — Li sobre isso em algum lugar. Teoricamente, cabe um número infinito de anjos na cabeça de um alfinete.

— Isso não significa que eles estejam lá de verdade — disse o sr. Hume.

— Não, mas podem estar — falou Samuel, sensatamente.— Do mesmo jeito que podem não estar.— Só que não dá para provar que não estão lá — disse Samuel.— Mas não dá para provar que estão.Samuel pensou naquilo por alguns segundos e, então, falou:— Não dá para provar uma proposição negativa.— O quê? — perguntou o sr. Hume.

8 Era São Tomás de Aquino, um homem dotado de muitos conhecimentos, que morreu em 1274, que se supunha ter sugerido que um número infi-nito de anjos poderia dançar na cabeça de um alfinete. Na verdade, ele não sugeriu, embora tenha passado muito tempo pensando se os anjos possuíam corpos ou não (parecia acreditar que não) e quantos deles devia haver lá em cima, no céu (muitos, concluiu). O problema com São Tomás de Aquino era que ele gostava de discutir consigo mesmo, e é muito difícil determinar o que ele pensava de qualquer coisa. Ainda assim, a questão de quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete deve ser de interesse dos filósofos, principalmente, e presume-se que dos anjos dançantes também, pois a última preocupação que um anjo dançando o foxtrote quer ter é com o quanto a cabeça do alfinete está cheia e com qual a possibilidade dele cair dali e se machucar.

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Os portõesh— Não dá para provar que uma coisa não existe. Só dá para

provar que uma coisa existe mesmo.— Você leu isso em algum lugar também? — O sr. Hume tinha

dificuldade de disfarçar seu sarcasmo.— Acho que sim — disse Samuel, que, como grande parte das pes-

soas sinceras e diretas, tinha dificuldade de reconhecer sarcasmo. — Mas é verdade, não é?

— Suponho que sim — respondeu o sr. Hume. Ele se deu conta de que havia soado distintamente irritado. Por isso, tossiu e, em seguida, falou com mais intensidade: — É, suponho que você esteja certo.9

Samuel prosseguiu:— O que significa que tenho tantas chances de provar que

existem anjos na cabeça deste alfinete quanto as que o senhor tem de provar que não existem.

9 Isso não é totalmente verdade. Pode muito bem ser o caso de alguém não conseguir provar a existência de um monstro rosa com vários tentáculos e nove olhos chamado Herbert, mas isso não significa que, em algum lugar do universo, não exista um monstro rosa com vários tentáculos e nove olhos chamado Herbert se perguntando por que ninguém escreve para ele. O simples fato de o monstro nunca ter sido visto não significa que ele não esteja por aí. Isso é conhecido como argumento indutivo. Todavia, o argu-mento é provável, não definitivo. Se há de fato uma boa chance de ele existir, há pelo menos uma chance tão boa quanto essa de ele não existir. Portanto, é possível provar uma negativa, pelo menos tanto quanto se pode provar qualquer coisa.

Além disso, mais uma vez de acordo com a teoria quântica, existe a probabilidade de que todos os acontecimentos possíveis, não importa o quanto sejam estranhos, ocorram. Portanto, existe a probabilidade, embora pequena, de que Herbert exista, no fim das contas.

Ainda assim, é um bom argumento a ser usado para confundir os profes-sores da escola e os pais e, levando apenas isso em consideração, Samuel deve ser aplaudido.

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J O H N C O N N O L LYHO sr. Hume esfregou a testa, frustrado.— Você tem mesmo só 11 anos? — perguntou.— Positivo — respondeu Samuel.O sr. Hume balançou a cabeça, desgastado.— Obrigado por isso, Samuel. Pode levar seu alfinete e seus anjos

de volta para a carteira agora.— O senhor tem certeza de que não quer ficar com ele? —

perguntou Samuel.— Tenho, sim.— Tenho muito mais em casa.— Sente-se, Samuel — mandou o sr. Hume, que tinha um jeito de

fazer com que um sussurro soasse como um grito, sinal de uma quase não controlada ira que até Samuel foi capaz de reconhecer. O menino voltou para seu lugar e, com cuidado, espetou o alfi-nete na carteira para que os anjos, se estivessem mesmo ali, não caíssem.

— Mais alguém tem alguma coisa que gostaria de compartilhar conosco? — perguntou o sr. Hume. — Um coelhinho imaginário, talvez? Um pato invisível chamado Percy?

Todos gargalharam. Bobby Goddard chutou a parte de trás do assento de Samuel.

Samuel suspirou.Então, fora por isso que o sr. Hume telefonara para a mãe de

Samuel, por isso que, depois, ela dera ao filho um sermão sobre levar a escola a sério e não provocar o sr. Hume, que parecia ser, como ela disse, “um pouco sensível”.

Samuel espiou o relógio. Agora, sua mãe já devia ter saído, o que queria dizer que Stephanie, a babá, estaria à sua espera quando ele voltasse. Stephanie era razoável quando começou a tomar conta de Samuel, alguns anos antes, mas, nos últimos tempos, havia

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Os portõeshse tornado horrível, do jeito que apenas algumas adolescentes con-seguem ser. Tinha um namorado chamado Garth que às vezes apa-recia para “lhe fazer companhia”, o que significava que Samuel seria mandado para cama depressa, muito antes da hora de ir dormir. Até mesmo quando Garth não estava por perto, Stephanie pas-sava horas conversando ao telefone enquanto assistia a reality shows na televisão, em que os concorrentes competiam para se tornarem modelos, cantores, dançarinos, atores, construtores ou qualquer coisa que não fosse o que eram de verdade, e ela preferia fazer isso sem desfrutar da companhia de Samuel.

Agora estava escuro. Samuel já devia ter chegado em casa quinze minutos atrás. Aquela casa, porém, não era mais a mesma. O menino sentia saudades do pai, mas também estava chateado com ele e com a mãe.

— Devíamos voltar — disse Samuel a Boswell. O cachorro abanou o rabo. Estava esfriando, e ele não gostava do frio.

Naquele momento, uma luz azul brilhante veio de algum lugar atrás deles, acompanhada de um cheiro como se uma fábrica de ovos podres estivesse pegando fogo. Boswell quase caiu do muro, em estado de choque, e foi salvo por pouco pelos braços de Samuel.

— Está bem — disse o menino, percebendo uma oportunidade de adiar a volta para casa —, vamos ver o que foi isso...

No porão da avenida Crowley, número 666, várias figuras sob mantos cobriam o rosto com suas mangas e falavam de forma confusa.

— Ah, isso é nojento — disse a sra. Renfield. — Que horror!O cheiro era mesmo horrível, ainda mais num espaço tão

fechado, apesar de o sr. Abernathy ter aberto uma fresta da janela

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J O H N C O N N O L LYHdo porão mais cedo para arejar um pouco. Agora, ele se apressou para abri-la toda e, devagar, o fedor começou a passar. Ou talvez fosse apenas o fato de agora haver outra coisa para atrair a atenção das quatro pessoas que estavam no porão.

Pairando no ar, bem no centro do cômodo, girava um pequeno círculo de luz azul-clara. O círculo tremeluziu e, em seguida, sua força e seu tamanho aumentaram. Aos poucos, se tornou um disco perfeito, com cerca de 60 centímetros de diâmetro, de onde nuvens de fumaça emergiam.

Foi a sra. Abernathy quem deu o primeiro passo à frente.— Cuidado, querida — disse seu marido.— Ah, fique quieto — falou ela.A sra. Abernathy continuou se aproximando até ficar a poucos

centímetros do círculo.— Acho que estou vendo uma coisa — disse ela. — Esperem um

minuto. — Chegou mais perto. — Tem... terra ali. É como uma janela. Dá para ver lama e pedras e as grades de uns portões enormes.

— E agora tem alguma coisa se mexendo...

Lá fora, Samuel se agachou ao lado da pequena janela e espiou o porão. Boswell, que era um cachorro muito inteligente, se escondia junto à cerca viva. Na verdade, Boswell estava debaixo da cerca viva e, se fosse um cachorro maior, capaz de controlar um menino de 11 anos de idade, por exemplo, Samuel estaria bem ali, ao seu lado. Isso ou os dois estariam a caminho de casa, onde não havia cheiros nojentos, luzes azuis brilhantes nem indícios de que algo ruim tinha acabado de acontecer e de que devia piorar consideravelmente, já que Boswell também era um cachorro melancólico e até pessimista por natureza.

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Os portõeshA janela tinha apenas 30 centímetros de comprimento, e sua

dobradiça mal permitia uma abertura de 5 centímetros, mas a fresta era ampla o bastante para Samuel conseguir enxergar e ouvir tudo o que acontecia lá dentro. Ele ficou um pouco surpreso ao ver os Abernathy e outras duas pessoas vestindo o que pareciam roupões pretos, num porão frio, mas já tinha aprendido havia muito tempo a não se chocar demais com nada que os adultos fizessem. Ouviu a sra. Abernathy descrever o que via, mas tudo o que o menino conseguia enxergar era o círculo brilhante. Parecia estar repleto de uma neblina branca, como se alguém tivesse soprado um anel de fumaça muito grande e muito denso no porão dos Abernathy.

Samuel estava ansioso para descobrir o que mais a sra. Abernathy podia avistar. Infelizmente, aqueles detalhes estavam destinados a permanecer desconhecidos, a não ser pelo fato de que o que quer que fosse tinha a pele escamosa e cinzenta e três dedos enormes com garras, pois foi o que se estendeu para fora do círculo bri-lhante, agarrou a cabeça da sra. Abernathy e a arrastou. Ela nem teve tempo de gritar.

Em vez disso, quem gritou foi a sra. Renfield. O sr. Abernathy correu em direção ao círculo brilhante. Depois, pareceu pensar melhor no que quer que planejasse fazer e se contentou com gritar lamentosamente o nome de sua esposa.

— Evelyn? — perguntou. — Você está bem, querida?Não houve resposta alguma do buraco, mas ele ouviu um som

desagradável vindo lá de dentro, como o de alguém esmagando fruta madura. Mas sua esposa tinha razão: dava para avistar algo pelo buraco. De fato parecia um par de portões enormes, portões que haviam desenvolvido um buraco que agora borbulhava com metal derretido. Através dele, o sr. Abernathy conseguiu ver uma paisagem horrível, só árvores decadentes e lama escura. Formas

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J O H N C O N N O L LYHse moviam por ali, figuras sombrias que não tinham lugar senão nas histórias de terror e nos pesadelos. De sua esposa, não havia nem sinal.

— Vamos sair daqui — disse o sr. Renfield. Ele começou a puxar a esposa em direção à escada e então parou, quando um movi-mento no canto do porão lhe chamou a atenção.

— Eric — falou.O sr. Abernathy estava preocupado demais com o paradeiro da

esposa para escutar o sr. Renfield.— Evelyn? — chamou de novo. — Você está aí dentro, querida?— Eric — repetiu o sr. Renfield, dessa vez com mais intensidade.

— Acho que você vai querer ver isso.O sr. Abernathy se virou e olhou para o que o sr. e a sra. Renfield

estavam vendo. Logo que fez isso, concluiu que, apesar de tudo, preferia não ter visto aquilo, mas, àquela altura, é claro, era tarde demais.

Havia uma sombra no canto do porão, contornada por luz azul. Lembrava um balão enorme na forma da sra. Abernathy, só que um balão que era preenchido por água e, em seguida, jogado de um lado para o outro por uma força invisível, de modo que inchasse nos piores lugares. Além do mais, sua pele, exposta apenas no rosto e nas mãos, nas partes que emergiam do manto agora esfarrapado e ensanguentado, era cinzenta e escamosa, e as unhas de cada dedo da mão estavam amareladas e curvas como um gancho.

Enquanto observavam, a transformação foi concluída. Um ten-táculo com a superfície coberta de ventosas afiadas que se mexiam como bocas se enrolou nas pernas da figura por um momento e então foi absorvido pelo corpo. A pele se tornou branca, as unhas passaram de amarelas a pintadas de vermelho, e algo que era quase a sra. Abernathy estava diante deles. Até Samuel, de onde

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Os portõeshele assistia, pôde ver que ela não era a mesma. A sra. Abernathy era muito bonita para alguém da idade de sua mãe, mas agora ela estava mais atraente do que nunca. Parecia irradiar beleza, como se alguém tivesse acendido uma luz dentro de seu corpo, que agora brilhava através da pele. Seus olhos estavam cintilantes e parte daquela energia azul tremeluzia em suas profundezas, como relâm-pagos avistados na mais escura das noites.

Ela também estava, como Samuel percebeu, muito assustadora. Poder, pensou ele. Ela está cheia de poder.

— Evelyn? — perguntou o sr. Abernathy, hesitante.A coisa que parecia a sra. Abernathy sorriu.— Evelyn se foi — disse ela. Sua voz estava mais profunda do que

Samuel se lembrava e isso lhe deu arrepios.— Bem, onde ela está? — perguntou o sr. Abernathy, exigindo

uma resposta.A mulher ergueu a mão direita e apontou um dedo para o

buraco brilhante.— Ali dentro, do outro lado do portal.— E o que é “ali dentro”? — perguntou o sr. Abernathy. Para seu

mérito, ele estava sendo muito corajoso diante de algo claramente além de sua experiência e, de fato, além deste mundo.

— Ali dentro é... o Inferno — respondeu a mulher.— Inferno? — disse a sra. Renfield, entrando na conversa. — Você

tem certeza? Não acho muito provável. — Ela espiou o interior do buraco. — Parece um pouco com aquele lugar no brejo, onde sua mãe mora, Reginald.

O sr. Renfield olhou com cuidado.— Sabe que você tem razão? Parece um pouco.— Traga Evelyn de volta — disse o sr. Abernathy, ignorando os

Renfield.

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J O H N C O N N O L LYH— Sua esposa se foi. Vou tomar o lugar dela.O sr. Abernathy olhou para a coisa no canto.— O que você quer? — perguntou ele, que era mais esperto do

que o sr. e a sra. Renfield e todos os pequenos Renfield juntos, se estivessem ali.

— Abrir os portões.— Os portões? — indagou o sr. Abernathy, intrigado. Em seguida,

a expressão em seu rosto mudou. — Os portões... do Inferno?— É. Temos quatro dias para preparar o caminho.— Muito bem — disse o sr. Renfield. — Estamos fora disso.

Venha comigo, Doris. — Ele pegou a esposa pelo braço e os dois começaram a subir os degraus para sair do porão. — Obrigado pela, hum, noite interessante, Eric. Temos que fazer isso de novo qualquer hora.

O sr. e a sra. Renfield não foram muito longe. No momento em que pisaram o terceiro degrau, algo parecido com fios duplos de teia de aranha voou do buraco azul brilhante, se prendeu ao redor da cintura do casal azarado e, então, o puxou da escada e arrastou pelo portal. Numa rajada de fumaça fétida, os dois se foram. O portal ficou maior por um instante, até o contorno azul parecer sumir por completo.

— Onde está o portal? — gritou o sr. Abernathy. — Para onde ele foi?

— Ainda está ali — respondeu a mulher. — Mas é melhor ele per-manecer escondido por enquanto.

O sr. Abernathy tentou tocar onde o círculo estava, e sua mão desapareceu no ar. Ele a puxou depressa e a ergueu diante do rosto. Estava coberta por um fluido claro e pegajoso.

— Quero a minha esposa de volta — disse. — Quero os Renfield de volta. — Ele reconsiderou. — Na verdade, você pode ficar com

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Os portõeshos Renfield. Só quero Evelyn de volta. Por favor. — O sr. Abernathy podia não ser muito chegado à esposa, mas tê-la por perto era mais fácil do que ser obrigado a cuidar de si mesmo.

A mulher mal balançou a cabeça. Havia um par de clarões azuis atrás dela e duas coisas peludas enormes se mexeram nas sombras do porão. De onde estava agachado, Samuel avistou olhos negros brilhantes — olhos demais para duas pessoas — e uns membros ossudos e articulados. Enquanto ele observava, as sombras aos poucos assumiram a forma do sr. e da sra. Renfield, embora os dois parecessem ter problemas para encontrar um lugar onde pudessem guardar todas as suas pernas.

— Não vou ajudá-la — disse o sr. Abernathy. — Você não pode me obrigar.

A mulher suspirou.— Não queremos a sua ajuda — disse ela. — Só queremos o seu

corpo.Com isso, uma língua comprida e rosada surgiu do portal, e o

sr. Abernathy foi puxado pelos pés, desaparecendo no ar. Momentos depois, uma gota gorda, verde e com olhos enormes assumiu a forma dele e tomou seu lugar ao lado do que parecia, para quem observasse por acaso, a sra. Abernathy e os Renfield.

Àquela altura, Samuel já tinha visto o bastante, e ele e Boswell corriam o mais rápido que podiam rumo à segurança de seu lar. Se tivesse esperado, Samuel poderia ter visto a criatura que agora era a sra. Abernathy olhando na direção da pequena janela, para a forma esboçada de um menino que permanecia, no ar imóvel da noite, onde Samuel estivera escondido.

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