os orixás e o universo-raul de xangô

4

Click here to load reader

Upload: luzia-tremendani

Post on 10-Aug-2015

32 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: Os Orixás e o Universo-Raul de Xangô

OS ORIXÁS E O UNIVERSO Raul de Xangô

(29/04/1988)

E é essa a imagem — os Orixás e o universo — que reporta meu pensamento mágico ao passado mais longínquo: a África. O meu pensamento só poderia ser mágico porque é na África negra que se encontra o inconsciente de nosso planeta — a Terra.

O homem agora se diz moderno, atualizado, aperfeiçoado, um ser consciente. E quanto mais se conscientiza tanto mais se afasta do seu eu original, superior, o eu antigo.

A consciência, acho que é tão necessária quanto o intelecto. É algo formado, lapidado, poderes acumulados pelo homem. Seriam, assim, opiniões antecipando-se à própria razão da existência humana — a vida. Mas não basta tão-somente a consciência. Aqui, vale citar um homem que aparentemente não foi religioso, mas foi sábio, Marx: ―não é a consciência do homem que determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência‖. É nesse ângulo onde reconheço a necessidade dessa consciência, nunca pretendi matá-la. O que também não é possível é sepultarmos os nossos deuses ancestres. Pois não vivemos apenas o palpável ou o que nos é visível; coisas extraordinárias e belas acontecem no recôndito da mente — o incognoscível — que, na sabedoria iorubá, é chamado orí-inú, parte interior da cabeça que ninguém vê e que se liga à ascendência da vida: o infinito. Volta-se aonde surgimos, ou seja, se faz viagem de regreso ao ponto de partida. Cais luminoso de nossa procedência divina. Impossível é raciocinar sobre isso, basta-nos não estranhar e nem repelir os vários sentidos que temos, mesmo em estado latente. A projeção astral, tanto espiritual quanto psíquica, é bastante antiga em todo mundo. Há sempre o véu e é nele que se dá o encanto. É nesse véu, que é a inconsciência, onde se oculta o eu perdido.

Antes que nos tornássemos humanos ou terráqueos, éramos energia, força, essência cósmica, ocupando um ponto uno ou individual em determinado orbe do universo: o Orun. Lá é onde e encontra a nossa origem, fonte, marco invisível, mas que resguarda o nosso verdadeiro destino, preservando o Iporí, rosto imutável que eterniza a nossa existência sagrada. Um dia estaremos voltando à nossa primeira morada, porque toda esperança atávica e espiritual do homem é reencontrar o berço, o princípio ou as raízes de sua enigmática vida.

Precisamos do encanto, do êxtase, do transe, voar. E o vôo sensorial é se harmonizar com o desconhecido — os mistérios indevassáveis. Resta-nos a confiança total e o amor-perfeito; sem se autovigiar, entregando-se à escuridão, num caminho ou sem caminho, sem temer obstáculos, abismos ou limitações que não existem; confiando no aliado oculto ou no elemental — o Orixá — que mora dentro do Orí-Inú (o secreto da gente), até romper a escuridão e se deparar com a luz que foi gerada pelo ventre da própria escuridão. As portas para o mundo sobre-humano, agora, estão abertas, porque a consciência fabricada foi anulada pela inconsciência ou subconsciência ou superconsciência, não imporá qual seja a denominação, melhor seria a anticonsciência.

Os sonhos do Eldorado ou da Terra Prometida são memórias ancestrais. É o racional que envelhece e desmemoria o ente humano. O homem terá que deixar de

Page 2: Os Orixás e o Universo-Raul de Xangô

2

existir assim, dessa forma, para que o universo, num todo exista nele. Cada homem possui sua própria eternidade, bem antes do nascimento. A carne do homem é a Terra, seu hálito é o Ar, seu sangue é a Água, o fogo é seu Calor Vital, seus olhos são o Sol e a Lua, seu peito recebe os humores do corpo, assim como o mar recebe os influxos dos rios. Somos o microcosmo e existiremos sempre porque somos partículas do macrocosmo que só poderia ser eterno. Há uma lei natural superior que opera muito além das reações de causa e efeito. Absorção! Encantação! Momentos mágicos! Um presente que simulava estar ausente! Como é suave ouvir esse silêncio que nos faz penetrar nesse Infinito Nada!

Os Orixás e o Universo estão dentro de nós mesmos, porque também estamos fragmentados dentro deles. A magia é a arte que desenvolve esses fragmentos divinos dentro do homem. É o conhecimento oculto que ressurge no alvorecer do dia, dia que inclui no próprio presente a marca, o estigma dos ancestrais que são os Éboras e os Orixás. Uma luz, uma estrela, um corisco que corre em nossas veias e projeta-se e transcende nos olhos, na voz, nos braços, nos dedos, na palma da mão, nas pernas, nos joelhos, nos pés, no corpo todo e nos gestos. Uma dança encantada do Orun ou do Céu, dos deuses ou dos Orixás. Interação cósmica: Deus–Orixá–Homem.

É que antes o Universo era um só. Uma cabeça inteira, compacta. Mas, poderão indagar: como? E só poderia responder: o melhor não é saber que sabemos (como diz o taoísmo). Há um provérbio Zen que diz: ―antes que estudar o Zen, as montanhas são montanhas e os rios são os rios. Enquanto estudamos o Zen, as montanhas deixam de ser montanhas e os rios deixam de ser rios. Uma vez alcançada a iluminação, as montanhas voltam a ser montanhas e os rios voltam a ser rios‖. Por que perguntar como, por que, onde?

Fato é que o universo só poderia ser mesmo um, uno uni-verso. Era Ilú-Ayê — a terra da vida eterna, a terra onde reina a plenitude da vida a terra da vida. Depois essa cabeça foi dividida ao meio, foi dái que surgiram os opostos: céu e terra, Deus e o Diabo, noite e dia, luz e travas, Orixá e Homem. A imagem divina, também, tornou-se dupla: uma cabeça luminosa e uma cabeça sombria; o ideal branco e o ideal negro; a cabeça superior é o sonho do homem-deus e a cabeça inferior é a suposição do deus-homem. Uma, a forma do deus de sabedoria; a outra o ídolo do vulgo. E, assim, tudo ficou partido ao meio, nada está mais inteiro, até Deus foi dividido em duas metades: o Deus invisível e indefinível e o Deus adorado ou blasfemado vulgarmente. E o universo passou a ser confundido com o mundo que, a rigor, são dois mundos, o mundo em que vivemos e o outro mundo, supostamente, além da morte.

Estas duas metades do universo, na linguagem iorubá, são chamadas de ayê e orun. Ayê é o plano terráqueo. Vida efêmera do homem. O mundo ponderado onde vivemos — social, econômica, política e religiosamente — mundo conflitante, ambíguo, do apocalipse da fome, da peste, da guerra e da morte. Vale de lágrimas e expiações. Mas que, por obra e graça de Olorum, nos concede espaços para o sonho, o otimismo, a esperança e o desafio; na busca do reencontro cósmico, sob os lampejos da lembrança atávica que é essa magia que nos move e nos anima no vôo sensorial que, um dia, no Juízo final, nos reconduzirá às nossas origens tão remotas.

Orun é o orbe superior da vida permanente e perene. Para algumas tradições africanas o Orun não está situado no Céu, mas debaixo da Terra. Há realmente em

Page 3: Os Orixás e o Universo-Raul de Xangô

3

Ifé, capital religiosa da África negra, um lugar chamado Orun Oba Adó, onde haveria dois poços sem fundo que os antigos diziam ser o caminho mais curto para o além. O Orun seria, portanto, o Além, o infinito, o longínquo, o imponderável de Deus em oposição ao Ayê, o período de vida, este mundo aqui, terráqueo. E essa idéia de que o Orun está situado embaixo da Terra é justificada quando das oferendas aos Orixás que são feitas no Ojubó, um buraco cavado na terra, em frente ao altar (Peji) consagrado às divindades; tanto é que os olhares dos iniciados se voltam para o chão e não para o Céu.

Ainda na percepção religiosa iorubá, Orixá, em princípio, seria um ancestral divinizado que, em vida, estabelecera vínculos mágicos — sagrados que lhe permitiam controlar certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas dos rios e dos mares, assegurando-lhe, também, o poder sobre diversas atividades: a caça, o trabalho com os metais, a arte-dança, canto desenho, daí a grafia dos símbolos e, ainda, o conhecimento das plantas — seus segredos e sua utilização. É esse Axé, energia, força do Orixá, após sua morte, que se incorpora, momentaneamente, em alguns dos seus descendentes durante o transe — o fenômeno da possessão por ele provocado.

Esses antepassados divinizados, consta, não morreram de morte natural, morte que em iorubá vem a ser o abandono do corpo (Ara), pelo sopro da vida (Emí). Eram possuidores de um Axé cosmicamente privilegiado e muito forte, de poderes, por assim dizer, excepcionais. Sua morte ou desenlace ou desprendimento de Ayê, a Terra, só poderia ser de firma também excepcional, provocada pela cólera ou outros sentimentos violentos. Uma metamorfose sibilina, e o que neles era material desaparecia, queimado por essa paixão, restando-lhe, todavia, o Axé, um poder em estado de energia pura. O Axé era recolhido, zelado e cultuado pelos sacerdotes e membros da família. Axés que, até hoje, permanecem fortalecendo e inspirando criaturas humanas, frágeis mortais, mas que têm a ventura ou o privilégio de descenderem dos Orixás.

Os Orixás, como os planetas, se refletem no homem, são energias paralelas, aliadas, que propiciam essa comunhão. O homem é que desata esse laço invisível que é concedido num metafísico ou mediúnico, onde é básico e inerente a meditação, a contemplação, o êxtase adquirido pelo encanto mágico da absorção. Orixá–Planeta–Homem, eis aí o fenômeno da cósmica interação.

Os planetas foram batizados com nomes de deuses mitológicos. O Sol é Apolo e a Lua é Diana. Mas o Sol é, também, Oxalá e a Lua Iemanjá; no planeta onde se encontra Marte, Ogum também se faz presente; no de Mercúrio, Oxossi; no de Júpiter, Xangô; no de Vênus, Oxum; no de Saturno, Omolu.

O sol e Oxalá são a energia do espírito; a Lua e Iemanjá, a da mente; Marte e Ogum do coração; Mercúrio e Oxossi, a do sangue; Júpiter e Xangô, a do poder ou vontade; Vênus e Oxum, a do amor ou do sexo; Saturno e Omolu a da saúde.

A influência ou o relacionamento dos planetas ou dos Orixás é tão sensível, ou mesmo identifica tanto o homem, que é comum, de forma evidente e até familiar, avisá-lo de doenças. Os antigos eram sabedores disso.

Se, repentinamente, surge uma dor forte na fronte, pode ser o Sol diagnosticando um distúrbio no coração; se a dor for entre os olhos ou na raiz do nariz, pode ser a Lua avisando uma enfermidade cerebral; se a dor for no ouvido direito, pode ser Marte denunciando um derramamento interno de bílis; se a dor for

Page 4: Os Orixás e o Universo-Raul de Xangô

4

no ouvido esquerdo, pode ser Vênus alertando que os rins não estão normais; se for uma dor na boca ou no queixo, pode ser Mercúrio acusando um enfraquecimento nos pulmões; se a dor for no olho direito, pode ser Júpiter, apontando um estado doentio do fígado; se a dor for no olho esquerdo, pode ser Saturno revelando que o baço não está nada bem.

Da mesma forma, os Orixás estão ligados às várias partes do corpo humano. Existe uma anatomia mística assim como existe uma geografia mística no espaço. Os Orixás têm tráfego aberto no corpo humano, podendo fazer adoecer ou curar o homem.

EXÚ muitas vezes é responsável pelas doenças bucais e das outras aberturas do corpo. Ele é o guarda das entradas, vigia as aberturas, as cancelas.

XANGÔ é muitas vezes o responsável por algumas febres ou cóleras. Ele é o fogo, os raios e os trovões.

OXALÁ freqüentemente é causador de doenças que atingem a cabeça, perturbações na vista e tonteiras. Ele é a abóbada celeste, o pai, repercute na cabeça.

OMOLU não raramente causa as doenças da pele e as que atacama carne: erisipela, varíola, lepra, dermatoses ou males que comumente se manifestam por vômitos. Ele é o orixá da terra, das minas, dos cemitérios, o protagonista da varíola.

IEMANJÁ e OXUM associam-se às doenças do baixo-ventre, cólicas e partes genitais. Elas são divindades úmidas, dos mares e dos rios.

OXOSSI tem a ver com as doenças do sangue, as intoxicações. Ele é o Orixá das matas, das plantações.

OGUM é muitas vezes o responsável pelas doenças depressivas ou nervosas. É o Orixá dos metais.

A vida é um todo irredutível, está em dois, dois que são partes de um. Um mundo que tem dois mundos, uma vida que tem outra vida; Orun e Ayê, o Céu e a Terra, ou seja, duas metades da cabeça universal que foi cortada ao meio. Se somarmos uma coisa a outra coisa o resultado só poderia ser uma única coisa. A soma não sapara, mas funda, junta, forma, une, o universo.

Um dia será o Juízo Final, o derradeiro julgamento. ―Quando houver um toque de trombeta e vierdes em multidões, então o sol e a Lua se unirão‖ (Alcorão). São o dia e a noite se fundindo; são das duas bandas da cabeça cósmica que se reencontrarão. E aí será u uno-mundo, o Universo que, afinal é o tudo, o todo ou o nada. Os opostos assim desaparecerão, não haverá como distinguir a matéria do espírito, o corpo da alma, o macho da fêmea, o adulto da criança, o amor do ódio, a graça da desgraça, o fausto da pobreza, o belo do feio, a luz da treva, o Céu da Terra, se tudo, todo ou nada são, agora, irreversivelmente iguais.