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Os novos rumos da Hipoteca no âmbito da Incorporação Imobiliária
Por Roberto Santos Silveiro
É inegável que a garantia hipotecária, vem, paulatinamente, perdendo
força e cedendo espaço para outras garantias mais eficazes, sobretudo em face da Lei
nº 9.514/1997, que instituiu, dentre outras inovações, o instituto da alienação
fiduciária em garantia, o qual garante maior proteção ao crédito, e viabiliza, em caso
de inadimplência, a rápida recuperação do crédito pela instituição financeira.
Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, a garantia hipotecária
segue exercendo papel importante no âmbito da incorporação imobiliária. É fato que
os contratos de financiamento para alavancar a construção do empreendimento
imobiliário, celebrado entre o incorporador e o agente financeiro, permanecem
encontrando na hipoteca do próprio terreno e das unidades imobiliárias a serem sobre
ele construídas a garantia a ser executada em caso de inadimplemento do
incorporador. Salienta-se que na alienação fiduciária em garantia, ao contrário da
hipoteca, o imóvel é transmitido ao credor (transmissão da propriedade fiduciária),
situação esta que não se coaduna com o microssistema da incorporação imobiliária, na
qual quem vende as unidades é o incorporador, que deve, portanto, conservá-las em
seu domínio.
O tema ganha, ainda, contornos de atualidade e exige redobrada atenção
de todos que participam do microssistema da incorporação imobiliária em face da
possível reviravolta quanto à propagada e generalizada ineficácia da hipoteca
(decorrente do enunciado nº 308 da Súmula do STJ). Vejamos.
Como sabido, a hipoteca, enquanto direito real que é, seria oponível contra
todos e dotada do direito de sequela, seguindo o bem, portanto, independentemente
de quem o possua. Dessa forma, a garantia hipotecária do terreno e das suas futuras
unidades daria, em tese, a segurança jurídica que os agentes financiadores necessitam
para os financiamentos imobiliários em geral. Ocorre que, no âmbito do microssistema
da incorporação imobiliária, tais características, que são ínsitas ao milenar instituto,
restaram relativizadas pela jurisprudência pátria. No ano de 2001, o Superior Tribunal
de Justiça editou o enunciado nº 308, o qual reza que “A hipoteca firmada entre a
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construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de
compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.
Referido enunciado veio como resposta a um conflito repetitivo nos
Tribunais: em caso de inadimplência da construtora com o agente financeiro, o que
prevaleceria: o direito de crédito da instituição financeira que concedeu o empréstimo
ao incorporador mediante garantia hipotecária das próprias unidades, ou o direito dos
terceiros adquirentes que pagaram o preço do imóvel para a incorporadora, na
expectativa de recebê-los, ao final, livres de ônus?
Tratando-se de matéria de ordem federal, a resposta haveria de ser dada
pelo Superior Tribunal de Justiça. Na esteira da decisão paradigmática sobre a matéria,
da lavra do Eminente Ministro Ruy Rosado (Resp nº 187.940, publicado no DJ em
21.06.1999), consolidou-se na Corte Superior o entendimento de que as regras gerais
sobre a hipoteca não se aplicam no caso de edificações financiadas por agentes
imobiliários integrantes do Sistema Financeiro da Habitação. Segundo a decisão “dos
três personagens que participaram do negócio; dois com intuito de lucro (portanto,
correndo riscos) e um com o propósito de adquirir a casa própria, os dois primeiros
negligentes e inadimplentes, não pode perder o terceiro que adquiriu e pagou.” De
acordo com o entendimento jurisprudencial prevalente, havendo venda, a garantia da
sociedade de crédito imobiliário passa a incidir sobre os direitos decorrentes dos
contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado
(art. 22 da lei 4.864/65) e não mais sobre as unidades.
A construção jurisprudencial visou, declaradamente, proteger o adquirente
da casa própria, parte mais fraca da relação. Não se pode perder de vista, ainda, o
caráter social do enunciado nº 308 da súmula do STJ, sobretudo em face do momento
pelo qual passava a construção civil. Não foi por coincidência que a “queda da
hipoteca” decretada com a edição da súmula no ano de 2001 se deu
contemporaneamente à falência da Encol (março/1999), maior construtora do País à
época. Outro fosse o entendimento jurisprudencial, consequências desastrosas
adviriam para os milhares de mutuários da Encol, os quais perderiam as suas casas
para os credores hipotecários. Protegeu-se, portanto, em última análise, o direito à
moradia.
Muito embora as substanciosas razões que o justificam, tal construção
jurisprudencial vem sendo, desde então, alvo de pesadas críticas. Umas de cunho
estritamente jurídico como as palavras de Bruno Mattos e Silva no sentido de que “A
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hipoteca é, tecnicamente, um direito real e, como tal, é oponível contra todos (erga
omnes), inclusive contra o comprador (se não for assim, não é hipoteca!)”1, e outras de
caráter social e econômico. Dentre elas, destacamos trecho da manifestação de
Romitti & Dantas Júnior2 as quais sintetizam boa parte das críticas ao enunciado: “Ao
contrário do que possa parecer à primeira vista, essas decisões não atendem ao
interesse social. Com efeito, resolvem um problema, mas geram outro muito maior: é
que, se a garantia hipotecária não mais der segurança ao credor, os financiamentos
simplesmente tenderão a desaparecer do mercado, com óbvias e desastrosas
consequências sociais. Resguarda-se a moradia de uma pessoa, mas em troca, causa-
se o prejuízo de milhares de outras, uma vez que milhares de imóveis deixarão de ser
construídos por falta de financiamento.”
Ainda, segundo as críticas que recebe, o enunciado nº 308 generaliza a
inoponibilidade da hipoteca aos adquirentes de imóveis. Não há qualquer referência
ou limitação à sua aplicação. Tratou, é verdade, a jurisprudência ao longo do tempo de
fazer uma única e pontual distinção: a aquisição de imóveis comerciais. Não se
tratando de imóveis destinados a moradia, estes não merecem a mesma proteção
especial conferida aos imóveis residenciais.
Para os que acompanham a matéria, até aí nenhuma novidade. O fato
novo – e porque não dizer surpreendente – é que recentemente o Superior Tribunal de
Justiça, ao receber mais um dos tantos recursos que tratam da matéria, afetou o
julgamento da matéria à Segunda Seção, nos termos do art. 543-C do CPC. O relator
do processo REsp nº 1.175.089/MG, Min. Luis Felipe Salomão, justificou “haver
multiplicidade de recursos a versar sobre o tema tratado nos autos, alusivo ao alcance
da hipoteca constituída pela construtora em benefício do agente financeiro, como
garantia do financiamento no empreendimento, precisamente se o gravame prevalece
em relação aos adquirentes das unidades habitacionais.”
Ora, a multiplicidade de recursos sobre a matéria já é consabida, tanto
quanto o entendimento jurisprudencial consolidado e sumulado pelo próprio Superior
Tribunal de Justiça. Dessa feita, nos parece que não haveria sentido em afetar a
matéria (e com isso sobrestar milhares de recursos espalhados pelos Tribunais Locais)
se o entendimento, ao menos, do Relator do processo fosse ao encontro do
1 Análise crítica da súmula 308 do STJ, pág. 79. Boletim do Irib em revista. Editora Atlas. Porto Alegre,
Março/Abril, 2006. 2 Apud Os Rumos da hipoteca diante da súmula 308 do STJ, pág. 25. Revista de Direito Imobiliário, 2007
– RDI 63. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007.
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entendimento vigente no Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Especula-se,
portanto, que poderá advir desse processo representativo, orientação jurisprudencial
que venha a restringir à propagada ineficácia da hipoteca no microssistema da
incorporação imobiliária.
Em manifestação apresentada nos autos do processo representativo da
controvérsia, a ABECIP – Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e
Poupança -, na qualidade de entidade representativa do setor financeiro de crédito
imobiliário, defendeu a inaplicabilidade do enunciado nº 308 do STJ nas hipóteses em
que: i) a aquisição das unidades ou dos direitos a elas relativos tenha se dado por
permuta firmada entre o antigo proprietário do imóvel em que se edifica o
empreendimento e a incorporadora (uma vez que não se enquadrariam na categoria
de adquirentes finais dos imóveis); ii) o registro da hipoteca tenha sido lançado na
matrícula do imóvel objeto da incorporação antes da celebração da promessa de
compra e venda (haja vista que neste caso o adquirente já teria presumível ciência do
gravame hipotecário); e iii) as incorporações sejam realizadas sob o regime do
patrimônio de afetação estabelecido pela Lei nº 10.931/2004, ou por Sociedade de
Propósito Específico (alegadamente porque a garantia hipotecária visaria a garantia do
próprio empreendimento em benefício dos próprios compradores...). Ressalva-se, por
outro lado, que instada a se manifestar nos autos, não houve, até a presente data, a
manifestação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, o qual por certo
defenderá a manutenção da plena ineficácia da hipoteca, tal como hoje está assentada
nos Tribunais.
A verdade é que a intenção das entidades financeiras não é simplesmente
relativizar a aplicação do enunciado nº 308, mas sim fazer letra morta do
entendimento pacificado pela Corte Superior. É de conhecimento geral que o contrato
de financiamento firmado entre o incorporador e o agente financiador, por força do
qual se dá em garantia o terreno no qual será edificado o empreendimento, serve para
alavancar a sua construção, e, portanto, ocorre, em regra, antes das vendas das
unidades. Aliás, se já vendidas as unidades do empreendimento e recebido o preço -
até mesmo diante da possibilidade da securitização dos créditos e antecipação da
carteira de recebíveis - não haveria maior sentido na assunção de financiamento
bancário para a construção. Nota-se, por oportuno, que o único negócio que costuma
ocorrer antes da assunção do financiamento (e da constituição do gravame
hipotecário) é o contrato de permuta com o proprietário do terreno, o qual giza-se, a
prevalecer o entendimento dos agentes financiadores, também não mais seria
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merecedor de proteção especial. E, ainda, se o caso concreto não se enquadrar em
nenhuma dessas duas hipóteses (o que é raro), é provável que recaia ainda na
hipótese de incorporação imobiliária realizada sob o regime do patrimônio de
afetação, hipótese também aventada pelas entidades do sistema financeiro.
Espera-se que o Superior Tribunal de Justiça não agrida com tal ferocidade
o entendimento por ele mesmo consagrado. Todavia, é possível – e penso justificável –
que a matéria deva ser examinada à luz do caso concreto. Ao nosso sentir, deve ser
observada não simplesmente a mera literalidade da redação do enunciado nº 308 do
STJ, a qual simplesmente generaliza a ineficácia da hipoteca para toda e qualquer
situação, mas sim a construção jurisprudencial que lhe deu origem, de cunho
eminentemente social, e de proteção ao direito à moradia.
Frisa-se que não nos impressiona o argumento de que tal entendimento
prejudicaria os financiamentos do País, haja vista que os mesmos são cada vez mais
abundantes nos dias atuais, cabendo, aliás, aos agentes financiadores e aos
incorporadores seguirem buscando formas de viabilizar seus negócios, sem que isso
signifique a assunção de riscos para os terceiros adquirentes, os quais esperam pagar e
receber os seus imóveis livres de ônus.
Seja como for, o certo é que a reanálise da matéria em sede de recurso
representativo pelo Superior Tribunal de Justiça deve servir de alerta para todos que
participam do microssistema da incorporação imobiliária, sendo mais do que nunca
aconselhável a adoção de cautela na realização de negócios nesse âmbito.