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4 P2 Segunda-feira 16 Maio 2011 E quão livres são os imigrantes? Em 1980 havia cerca de 50 mil estrangeiros em Portugal e agora há quase 500 mil. Desde 2006, Portugal tem uma das melhores leis de imigração da Europa. Gostamos de dizer que somos um país de emigrantes e que por isso entendemos os imigrantes. Redescobrimos no século XXI em Lisboa a cidade cosmopolita, desaparecida durante a maior parte do século XX. Somos morenos, somos louros, somos negros, somos mulatos, somos asiáticos, somos sul-americanos, somos de muitas nacionalidades, somos europeus, somos portugueses. Somos cada vez mais pessoas crescendo com diferentes coordenadas. Um em cada oito bebés que nascem no país tem pelo menos um dos pais estrangeiro. Falar sobre diversidade não é moda; é o nosso futuro. Durante uma semana, o P2 vai publicar histórias de jovens de várias origens, os novos portugueses. Começamos com um debate sobre “migração”, “discriminação”, “integração”, entre jovens para os quais estas palavras são o quotidiano Os novos portugueses I

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Page 1: Os novos portugueses I

4 • P2 • Segunda-feira 16 Maio 2011

E quão livres são os imigrantes?

Em 1980 havia cerca de 50 mil estrangeiros em Portugal e agora há quase 500 mil. Desde 2006, Portugal tem uma das melhores leis de imigração da Europa. Gostamos de dizer que somos um país de emigrantes e que por isso entendemos os imigrantes. Redescobrimos no século XXI em Lisboa a cidade cosmopolita, desaparecida durante a maior parte do século XX. Somos morenos, somos louros, somos negros, somos mulatos, somos asiáticos, somos sul-americanos, somos de muitas nacionalidades, somos europeus, somos portugueses. Somos cada vez mais pessoas crescendo com diferentes coordenadas. Um em cada oito bebés que nascem no país tem pelo menos um dos pais estrangeiro. Falar sobre diversidade não é moda; é o nosso futuro. Durante uma semana, o P2 vai publicar histórias de jovens de várias origens, os novos portugueses. Começamos com um debate sobre “migração”, “discriminação”, “integração”, entre jovens para os quais estas palavras são o quotidiano

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a Malam Sisse nasceu em Portugal, mas porque nasceu em 1990, entre 1982 e 2006, quando a lei portuguesa não lhe dava direito à nacionalidade, não é considerado português e joga futsal, porque os estrangeiros não podem jogar futebol de 11. David Varela (Fox), de 23 anos, veio da Covilhã mas ninguém acredita, porque ele é negro e é mais convincente se disser que é cabo-verdiano. Nuno Alves, de 24 anos, não é de Lisboa porque é de Viana do Castelo e em Viana não é de Viana porque é de Lisboa, e de alguma forma, como outros serão sempre imigrantes, ele será sempre um migrante. André Silva, de 21 anos, é um português como todos gostariamos de ser e dizemos que somos, mas muitas vezes não fazemos: tem amigos de todas as origens e pensa que assim será melhor pessoa. Edgar Silva, de 27 anos, nasceu em Paris, cidade que já teve mais portugueses que Lisboa. Mamadu Faty, de 16 anos, é português e tem familiares guineenses que arriscam a vida para chegar a Portugal e quase nunca encontram o Eldorado. Álvaro Pena, de 23 anos, veio da Venezuela e tem sangue português, colombiano e argentino. Alex Dragomir, de 22 anos, veio da Roménia para Portugal há seis anos, mas os empregadores não acham que fale sufi cientemente bem português para lhe darem emprego. Vivem todos nos Anjos, bairro babélico, onde alguns julgam que Lisboa se perdeu e outros que Lisboa se encontrou. Frequentam o ConTacto Cultural, um espaço apoiado pelo programa Escolhas, coordenado por Tiago Fernandes e Nuno Torres. É neste espaço que

alguns colaboram dando formação ou fazendo animação cultural, outros simplesmente vão jogar xadrez ou consultar o Facebook nos computadores disponíveis. No ConTacto Cultural também fazem rádio e gravam canções. Fazem rap ou hip-hop, a sua principal forma de expressão, e é raro terem outros espaços de intervenção pública. Este debate foi informal, num círculo na sala do ConTacto Cultural, no Mercado do Forno do Tijolo, junto da Junta de Freguesia dos Anjos. Durou uma hora e meia, o sufi ciente para fi carmos a conhecer, como diz uma canção rap de David Varela (Fox), outra “visão do futuro do passado”. Susana Moreira Marques: Trouxe um excerto de um poema Queen’s Speech, do poeta Lemn Sissay, britânico de origem etíope, que traduzi, e que me pareceu interessante para começar a discussão: “Eu sou um imigrante. Serei sempre um imigrante/ Eu ando como um imigrante. Eu falo como um imigrante./ Eu sou um imigrante da cabeça aos pés./ Esta palavra Imigrante, sabem como nasceu?/ Emergiu da palavra Migrar. Migrar./ Primeiro utilizada para descrever aquilo que os pássaros fazem./ E quão livres são os pássaros? Eu sou um imigrante como os pássaros.” Querem comentar? Malam Sisse: “Imigrante como os pássaros.” Ele está a comparar as pessoas com os animais, mas os animais não têm fronteiras. Nós ainda temos fronteiras e o que nos bloqueia são os papéis. Os europeus podem viajar para onde quiserem, mas para nós, os africanos, é complicado. Para vir para Portugal é preciso documentos. No Serviço de Emigração e Fronteiras [SEF] fi camos bué de tempo à espera, e

pagamos. Eu paguei 40 euros só para fazer o título de residência e nasci cá. Já meti o pedido de nacionalidade, mas ainda não saiu. Tenho os mesmos direitos que um estrangeiro. Isso é uma maneira de nos cortar as asas. Tentei praticar futebol de onze, mas não inscreviam um estrangeiro. Eu só fui uma vez à Guiné por 45 dias. Sempre estive cá. Não temos a nossa identidade, a nossa nacionalidade. Nisso, somos tratados como animais. David Varela (Fox): “Tenho grandes amigos que nasceram cá ou vieram para cá em criança, e até hoje nem residência têm. Não podem candidatar-se a um trabalho. Não podem ir para um curso profi ssional. Não podem fazer nada. São encostados pela polícia, correm. Não fi zeram nada de mal, mas correm, têm medo.” Mamadu Faty: “Lá no nosso país [Guiné-Bissau], por falta de oportunidades de documentação, as pessoas têm que vir de barco e é muito perigoso. Tenho um primo que veio de barco e não morreu por um triz. Não é seguro, é ilegal, mas eles vêm porque querem ganhar uma vida melhor.”Malam: “A Europa é cheia de ilusões para os africanos. Pensam que chegam aqui e vão arranjar logo trabalho. Mas depois não é fácil…”Mamadu: “Arriscam as vidas, e depois aqui têm uma vida pior do que a que tinham lá, e querem voltar. Mas como é que vão voltar?” Susana: “O que é que vocês acham que pode ser feito?” Malam: “Não podemos mudar nada.”Mamadu: “Não temos poder sufi cente. Vai continuar assim até alguém impor…” Fox: “Mas tem que ser alguém

importante. Nós somos peixe pequeno.” Malam: “Só vai mudar quando os países fracos começarem a subir. O Brasil está a subir. Se os países africanos começarem a subir assim também, vai mudar. Susana: “Vocês sentem que só podem ter poder aqui se os vossos países de origem tiverem poder?” Fox: “Nem que seja comércio. Ou seja, tem que ser uma troca. Não é pelo pensamento de ‘vamos ajudá-los, já que eles estão cá há 20 anos, foram criados aqui, andaram na escola com os nossos fi lhos…’”Susana: “Então acham que o facto de África ser vista como um continente mais desfavorecido tem impacto na vossa vida aqui?” Malam: “Estou farto que mostrem sempre as mesmas imagens tristes de África. As pessoas que nunca foram a África não sabem a beleza que África tem. Quando mostram a imagem de um africano ou é o tema da doença ou do roubo.” Mamadu: “Nos telejornais, quando é uma coisa boa, o africano não aparece, mas se for um assalto, sim, e os africanos fi cam mal vistos.” Susana: “Voltando ao poema. Vocês acham que serão sempre imigrantes apesar de muitos terem nascido aqui?”Malam: “Eu vou viver sempre como imigrante. Daqui a pouco tempo vou ter o documento português, mas vou carregar sempre as raízes africanas. Fox: “Encontras uma pessoa na rua, ela pergunta: de onde é que tu és? Sou da Covilhã. Ah, és da Covilhã… Ao pé da serra da Estrela? Yá. Susana: “As pessoas fi cam espantadas?”Fox: “Um bocado… Um bocado não, mesmo muito. Estão à espera que eu diga o Zimbabué ou qualquer

coisa assim. Apesar de ter aquele espírito cabo-verdiano – a minha mãe é, o meu pai é, toda a minha família é – não implica que não possa absorver novas coisas, e que não tenha crescido com estes dois lados [cabo-verdiano e português]. Eles [os portugueses] vêem só um lado: o black. Um indiano no Bairro Alto é o ‘quer-fl or’, o monhé. São as diferenças raciais. No outro dia comprei um casaco que gostei, com capucho, fi xe, mas se ponho o capucho as pessoas desviam-se na rua. Se acordo de manhã chateado, porque não bebi café, por exemplo, e apanho o autocarro para ir para o trabalho, achas que alguém se vai sentar ao meu lado? Não se senta ninguém. Nuno Alves [que é branco]: “Mas eu se tiver mal disposto também não se sentam.” Susana: “E há diferença entre as pessoas mais novas e mais velhas nestas reacções?”Nuno: “As pessoas mais novas já estão habituadas a lidar na escola com outras pessoas de visuais diferentes. As pessoas mais velhas têm outra mentalidade. O meu pai e a minha mãe não têm nada a ver comigo. Eles são do Norte, de uma aldeia. O meu pai ainda se lembra do tempo do Salazar.” Mamadu: “Acho que vai mudando de geração para geração.” Malam: “Depende. Há mulheres jovens que agarram nas malas com força quando me vêem! Isso dá raiva.” André Silva: “Eu conheço pessoal de quase todas as raças: chineses, indianos, timorenses, sempre me dei bem com eles, crescemos juntos. Temos as nossas confusões, claro, mas faz parte do nosso crescimento. Temos o privilégio de usufruir da cultura dos outros

Susana Moreira Marques

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e aprendemos com isso – crescemos como pessoas. Devemos ver isso como um benefício, não como: ‘Ah, são de África, são assim ou são assado’ – são como qualquer outra pessoa.

Portugal agora está mal. Se eu tivesse a oportunidade de ir para uma Suíça ou uma Dinamarca, ia, e não gostava que as pessoas me olhassem de lado e dissessem, este é português, este é assado, os portugueses têm fama disto e daquilo. Não olho de lado para as pessoas porque não gostava que olhassem de lado para mim. Tiago [coordenador do ConTacto Cultural]: “A cultura de um país ou de um continente é uma fronteira? Nós, portugueses, temos uma cultura limitada entre o Gerês e Vila Real de Santo António?” André: “A vida de Trás-os-Montes é completamente diferente da vida que se leva em Lisboa. Eu se vivesse numa aldeia, com uma horta, ia aprender a viver assim e seria normal. Se chegasse um rapaz a comer um big tasty [do McDonald’s], eu fi cava a olhar para ele: o que é isso? Ainda há pouco tempo vi uma reportagem de uma rapariga que não sabia o que era comer um big tasty na vida.

Apesar de eu não poder defi nir dos pés à cabeça o que é a cultura portuguesa, o que eu acho é que somos pessoas um bocadinho mais pacatas, mais conservadoras, sempre com o pé atrás. Eu não ando com o pé atrás, mas no geral acho que os portugueses são assim. Os africanos costumam andar aos 20 e aos 30, é uma cultura mais unida. Os portugueses não são assim, têm um amigo aqui, outro ali…Nuno: “Mas se fores para Inglaterra, tens bairros de portugueses, onde os portugueses andam sempre

Tenho grandes amigos que nasceram cá ou vieram para cá em criança, e até hoje nem residência têm. Não podem candidatar-se a um trabalho. Não podem ir para um curso profissional. Não podem fazer nada. São encostados pela polícia, correm. Não fizeram nada de mal, mas correm, têm medo. Fox

juntos. Quando imigram, juntam-se para fi carem mais fortes. Como os chineses aqui se juntam aos chineses. E os indianos aos indianos. Acontece em todo o lado.” André: “Mas acho que há uma diferença: em África tem-se pouco, mas vive-se com pouco. Aqui, não há maneira.” Malam: “Lá em África, eles vivem com pouco, sabes porquê? Porque o vizinho é como família. Falta qualquer coisa em casa, pedes, o vizinho dá. Estamos sempre a dividir as coisas. Isso torna as pessoas mais fortes e gastam menos. Ajuda muito. Agora aqui, vais pedir a quem?” Fox: “Quando eu vim lá de cima [da Covilhã] e vim morar para os Anjos, apresentei-me ao prédio. Acreditas que, em 10 anos, os únicos que fi zeram isso foram dois guineenses da Bela Vista e um indiano? Em 10 anos! E acredita que passou ali gente e gente e gente. Nunca ninguém chegou com uma torta, nem que fossem rebuçados de mentol, a dizer boa tarde.” Nuno: “Quando eu vim de Viana do Castelo também me passei com a vizinha da frente por ela não me falar. Aqui é habitual. Em todas as grandes cidades de todo o mundo se passa isso.” Edgar Silva: “Eu nasci em Paris e na minha infância, na creche, havia muitas culturas. Quando vim para Portugal [com cinco anos] não havia tantas culturas juntas. Crescer com essa envolvência de várias culturas em Paris fez com que encarasse a diversidade como uma coisa normal.” Susana: “Vocês costumam falar destes temas entre vocês?” Mamadu: “Eu dispenso.” Nuno [coordenador do ConTacto Cultural]: “Achas que não vale a

pena este debate?” Mamadu: “Sim, mas entre nós não falamos disso.” Nuno [coordenador do ConTacto Cultural]: “Mas nas letras que fazes com o pessoal falam disto.” Mamadu: “Aí estou a mandar uma mensagem, é uma forma de expressão.” Susana: “Como é que são as vossas letras?” Mamadu: “Falamos de racismo.” André: “De experiências que vocês viveram ou presenciaram?” Mamadu: “Nas minhas letras, falo de todos os negros, não falo só de mim.” Malam: “É sempre tema de conversa. Quando um português olha de lado, dizemos já que é racismo. Quando vemos um branco com uma preta ou uma preta com um branco, comentamos… É sempre tema de conversa.” Susana: “Essa é uma questão interessante. Como é que vêem as relações de namoro?” Malam: “O André namora com uma preta. Eu também namoro com uma branca. Acho que a próxima geração vai ser só mulatos…” Susana: “Alex, apesar de não teres uma cor de pele diferente, não é por isso que as pessoas deixam de te ver como diferente. Como é a tua experiência?” Alex: “Não tenho tido muitas oportunidades de trabalhar, porque sou romeno e ainda não falo muito bem português.” Nuno [coordenador do ConTacto Cultural]: “A questão da língua é importante.” Alex: “Tentei inscrever-me para um trabalho num armazém. Não tinha que falar muito. Acho que não está certo.””André: “Álvaro, vieste com que idade da Venezuela?”

Álvaro: “Com 15.” André: “Veio com 15 e já se engasga a falar espanhol.” Álvaro: “Estou aqui há 10 anos e nunca lá voltei… O meu pai é português, a minha mãe é da Colômbia, e conheceram-se na Venezuela.” André: “Estás a ver? É o cruzamento de culturas.” Álvaro: “E os avós da minha mãe são da Argentina.” Susana: “Como é que vocês se vêem daqui a 10 anos?”Mamadu: “Se nos queremos ver bem, temos que fazer por isso. Não podemos fi car à espera que o futuro venha cair aos nossos pés.” Álvaro: “O problema é que este país está cada vez pior…”Fox: “Quero imigrar para a Suíça, ganhar montes de dinheiro, e voltar para cá e abrir um negócio.” Malam: “Eu gostava de ser jogador da bola.” Nuno: “Gostar a gente gosta de fazer algumas coisas; ter a oportunidade de as fazer é que é complicado. Se precisamos de dinheiro, todos nos sujeitamos, até vamos para a obra. Mas para um bom trabalho vão 50 entregar o currículo, a vaga é só para um, e entra o da cunha. Hoje em dia arranjar um trabalho que a gente gosta é como sair o Euromilhões.” Susana: “Querem acrescentar alguma coisa?” Fox: “Sim, esta frase: Nem legal, nem ilegal, cidadão mundial!”

Debate editado por Susana Moreira Marques com a colaboração de Malam Sisse

MIGUEL MANSO

Mamadu Faty, Mamadu Baldé, Malam Sisse e Carla Santos durante o debate no espaço do ConTacto Cultural, nos Anjos

Veja o debate em www.publico.pt

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RUI GAUDÊNCIO

Nós somos o império que nos faz falta

1. Desde que voltei de Londres, há nove meses, tenho apontado

frases que encontro nas paredes de Lisboa. Perto do Castelo de São Jorge, uma homenagem ao Padre António Vieira: “Para nascer Portugal, para morrer o mundo.” Junto da Casa dos Bicos, uma frase de Saramago: “Esquecer a nossa terra e a nossa pátria seria esquecer o próprio sangue.” E na parede de umas escadinhas no Chiado, uma frase de um anónimo: “Nós somos o lugar que nos faz falta”.

2. Desde que voltei de Londres, ainda não encontrei Ulisses.

Gostava de vê-lo como Manuel de Freitas escreveu num poema, de cabelos compridos e blusão negro. Também ainda não vi o D. Sebastião. E mesmo nos dias com as mais bonitas e irreais madrugadas sobre o Tejo que vejo da minha janela não vislumbro, como escreveu Pessoa na Mensagem, o Quinto Império de Vieira.

3. Quando penso no provérbio africano “até que os leões

comecem a produzir os seus historiadores, a história da caça irá apenas glorifi car o caçador”, que

descobri num ensaio do escritor nigeriano Chinua Achebe, não imagino estepes amarelas, não imagino um homem de espingarda nem leões caindo. Não penso nos anos de colonização, não penso em África. Imagino a pele do leão pendurada na parede de um apartamento europeu, troféu de um homem com barriga que há muito deixou de caçar, e penso: que história contaria esse leão depois de habitar intimamente com o caçador?

4. E se, cada um imperador e súbdito de si próprio,

fi zéssemos o império que nos faz falta?

5. O balanço das histórias, é esse o título do ensaio de Chinua

Achebe, só acontecerá quando o leão, para além de contar a sua história na estepe, antes de ser caçado, e a história de como foi caçado, começar a contar a história do caçador. E o que é que o caçador iria descobrir sobre ele próprio?

6. Vou tirando notas de Lisboa como se fosse uma cidade

estrangeira. Para um estrangeiro, Lisboa é luminosa e aberta, sim senhor, mas também é misteriosa. Em Lisboa, a gente esquece-se do tempo a passar, e até nos dias longos de Verão fi ca sempre alguma coisa por dizer, alguma coisa que

Susana Moreira Marques

Crónica

alguém terá dito e nos escapou e poderia ter sido a solução.

7. Um amigo de visita, de Estocolmo, foi comprar vinho

a uma loja de um paquistanês e de repente pareceu-lhe estar em Londres, onde nós nos tínhamos inicialmente conhecido. Outra

amiga vem de Londres porque é diferente e está mais próximo de Telavive. Cada um procura a cidade que quer. E talvez eu sempre tenha estado à procura de Lisboa no tempo que passei em Londres.

8. E em Lisboa, talvez procure Londres. Procuro no Martim

Moniz, nos Anjos, nos bairros onde vivem os que chamamos “imigrantes” como se ainda não tivessem parado de viajar, onde sou eu “outra”, perceber que a Europa não é uma só, não é óbvia, e sobretudo não é minha. Teremos sempre mais curiosidade pelos outros. E ainda bem que é assim.

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O avô de Nuno Chiou teve restaurantes, ele é dono de uma loja

De Nossa Senhora de Fátima à deusa Guangying

Jie Zhu, Lin Tsu Hwei e Nuno Chiou são portugueses de origem chinesa, são bilingues, e trabalham em Vila do Conde, no complexo industrial onde se concentram os armazéns chineses. É a única coisa que têm em comum com aquela comunidade. De resto, cada um lida com a sua herança cultural de maneira diferente. E todos são portugueses.

Os novos portugueses II

Por Susana Moreira Marques (texto) e Nelson Garrido ( fotografi a)

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As pessoas dizem que os chineses não morrem”, diz, a rir. Os chineses morrem, e, se tiverem que morrer, morrem onde estiverem. Mas os mais velhos, explica, querem ir morrer à terra deles. Quase sempre, em qualquer cultura, as pessoas querem morrer na terra deles. “Provavelmente”, diz, “eu vou acabar os meus dias em Portugal.Lin Tsu Hwei

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a O escritório de contabilidade de Jie Zhu dá para a rua principal por onde se chega à Varziela e para a Rua 5 do Complexo Industrial, onde acaba de estacionar uma carrinha de onde sai uma família de etnia cigana, bons clientes nas lojas chinesas de revenda de roupa, calçado e acessórios. Na Varziela, conhecida como China Town de Vila do Conde, começaram a instalar-se, na segunda metade dos anos de 1990, os armazéns que fornecem as chamadas “lojas dos chineses” e muitas outras que não são de chineses.

A maior parte veio nos últimos dez anos para Portugal, mas na Varziela também se encontram chineses de famílias que vivem em Portugal há várias décadas.

Jie Zhu veio para o Porto com três anos. Esperamos que os chineses sejam os mais estrangeiros dos estrangeiros. Talvez eu esperasse encontrar o meu perfeito “outro”, e encontrei uma rapariga do Porto, como eu.

Nas janelas do primeiro andar da Rua 5 com a rua principal, está anunciado o nome da

um insulto, é uma brincadeira que lhe diz que, para ele, ela é como qualquer outra rapariga.

Jie Zhu nunca foi à China. Gostava de ir, para visitar, mas, se pensasse em emigrar, pensaria primeiro em partir para outros lugares da Europa.

Os irmãos, diz, ainda são menos ligados à cultura chinesa. Não falam tão bem chinês, porque os pais não se preocuparam tanto com a educação chinesa dos mais novos; já tinham a fi lha mais velha a fazer a ponte entre eles e os portugueses. O irmão Luís Rafael está a acabar o 12.º ano na escola de ensino artístico, Soares dos Reis, e quer continuar os estudos em Londres.

Jie já foi a Londres. Achou parecido com o Porto, mas maior. O que ela mais gostou foi de andar na rua sem ninguém fi car a olhar para ela. “Em Londres, vi chineses com pretos e ninguém olha”, diz. Aqui, olham para a cara e a cara é chinesa. A voz é portuguesa. As pessoas fi cam baralhadas.

Jie não tem sotaque chinês, tem sotaque do Porto; Jie, quando viaja, não pensa em comida chinesa, tem saudades da boa comida do Porto; Jie não gosta assim muito de Lisboa, onde as pessoas são diferentes, até os chineses — as pessoas do Porto, acha, são mais dadas. Ela também é. É aberta, faladora, directa, calorosa. E, claro, também é do FC Porto. Jie Zhu é uma portuense apaixonada pela sua terra. Os pais talvez gostassem que não vivesse sozinha, que casasse com um chinês (ela tentou ter um namorado chinês e não resultou), que mantivesse mais a sua cultura, mas eles próprios já estão mais “ocidentalizados”, vão aceitando as opções de vida de Jie. Ela vê-se dentro de dez anos, ali, na Varziela, mas com o negócio crescido, ela também mais crescida, talvez com um fi lho, e ainda ajudará a comunidade chinesa quando é preciso. Ainda será Zhu Jie, porque as raízes não se esquecem, “porque são aquilo que faz o que nós somos hoje”. Mas Jie Zhu continuará a ser “chinesa só de cara” e a sentir-se plenamente portuguesa.

Depois do almoço, a um dia de semana, as lojas de revenda estão abertas, mas há pouco movimento. Nalgumas lojas, vê-se apenas uma pessoa ao balcão, esperando. Porque chamam à Varziela a China Town do Norte de Portugal, imaginava um lugar cheio de vida. Mas esta não é uma China Town de centro de cidade. É de subúrbio, isolada, para onde está planeado um novo edifício, mais “industrial”, mais “moderno”, um cruzamento de China Town com shopping português.

O escritório de Lin Tsung Hwei fi ca por cima de um dos poucos restaurantes da zona, o Café Industrial, na Rua 1, uma rua com poucas lojas. Ao lado do escritório de Lin Tsung Hwei, há uma escola de línguas, onde as crianças, dos quatro aos 14 anos, aos fi ns-de-semana, aprendem a falar e a escrever a língua ofi cial do país dos seus pais, o mandarim. A um dia de semana, a única sala da escola de línguas está vazia, e o professor sozinho. É um homem calmo, fala muito baixo, e, apesar de pedir desculpa pelo seu português, fala claramente. “O mandarim será a língua mais importante do

mundo”, diz. E há outra razão para ter a escola aberta: “As crianças nascem aqui, mas nós somos chineses para sempre.”

Lin Tsu Hwei é poliglota sem praticamente ter ido à escola. A sua empresa faz tradução e apoio aduaneiro. Ao contrário do professor da escola, Lin Tsu Hwei fala alto e depressa, é um homem grande e exuberante. É prático. Apesar de ter mudado de Cantão para Lisboa aos nove anos, Lin Tsu Hwei parece ter resolvido completamente a sua identidade. É português e é chinês. Tem o melhor dos dois mundos.

No seu escritório, estão a trabalhar dois portugueses, que o vão interrompendo para que atenda o telefone a clientes chineses. Quando entro no seu gabinete, Lin Tsu Hwei vai despejar o cinzeiro carregado de beatas. Tem jornais da comunidade chinesa junto do sofá, duas árvores delicadas a crescer lentamente no parapeito da janela, na estante tem uma estátua de um deus guerreiro a protegê-lo do mau olhado, e, por trás da secretária, um amuleto

de madeira pendurado, onde está desenhada uma deusa. É parecida com a Nossa Senhora de Fátima, diz. Chama-se Guangying. Ajuda-o a manter a confi ança em si próprio.

Lin Tsu Hwei, o tradutor — Ó sr. Cláudio, pá, não pode ser!... Não podemos dizer aos clientes que é às duas e meia, e entregamos às cinco horas. Assim levamos sempre na cabeça, pá… Ó pá, não pode ser… Uma diferença de meia hora ou até uma hora... Agora assim…

Lin desliga o telefone. O telefone toca outra vez. Lin atende e agora fala chinês, dirá “ó, pá” em chinês.

Os fornecimentos para as lojas de revenda chegam ao porto de Leixões, em Matosinhos, e alguém tem que fazer a ponte entre o porto, as autoridades portuguesas e os comerciantes chineses, a maior parte chegada ao país nos últimos sete, oito anos e com pouco domínio da língua portuguesa.

Lin é o homem para eles. É conhecido como o chinês que fala português melhor do que os portugueses. E também é conhecido como o português que fala mandarim, e ainda o seu dialecto de Cantão e mais outros dois dialectos, um deles o da mulher, que é de Zhejiang, a região de onde é a maior parte das famílias que trabalham, e algumas vivem, na Varziela. Além deste negócio, trabalha como intérprete ofi cioso e é muitas vezes chamado a traduzir julgamentos.

Lin nunca deixará de ser chinês. Veio para Portugal com nove anos e casou com uma chinesa que veio para Portugal com oito. Mas é português por opção. Aos 18, maior de idade, quando os pais decidiram regressar à China, ele decidiu fi car. O ano passado fi nalmente conseguiu a nacionalidade e já tem cartão de cidadão.

Na estante do seu escritório, ao lado da pequena estátua do deus guerreiro, está uma fotografi a de família. O fi lho é parecido consigo. “Ele é a terceira geração”, diz Lin. O fi lho entende chinês, mas prefere falar português. Tem 12 anos, anda na escola e, nas horas extra, vai à escola de futebol. Vêem juntos os jogos do Benfi ca e os de Portugal. Lin respeita o desejo do fi lho de querer ser jogador de futebol, mas tem dúvidas em relação ao seu futuro. O problema, diz ele, é que os clubes em Portugal já não contratam jogadores portugueses. “É tudo estrangeirada”, diz.

O fi lho já foi à China. Ele levou-o na última visita. “Ficou muito espantado por ver tantos chineses juntos”, conta.

Lin não parece ser homem de fi car muito tempo sem comunicar com outro ser humano, e é difícil ver nele um miúdo sonhador e solitário com vontade de ser astronauta. Mas era a Guerra Fria, a corrida espacial, era 1979, muitos meninos queriam ser astronautas sem pensarem na solidão do espaço, e, em 1983, quando tinha 12 anos, deixou de ter tempo para sonhar. Foi trabalhar para o restaurante do pai e começou logo como gerente.

Era o único da família que falava bem português. Ele não era fi lho único, mas era como se fosse, porque os irmãos mais velhos tinham fi cado na China. Era ele que atendia os telefones em português, fazia a ligação com

empresa de Jie: “Números e Letras”, com um ábaco como logótipo. Na loja de candeeiros no rés-do-chão, um senhor está em cima de uma cadeira a colocar um candeeiro. Não fala chinês e aponta para uma rapariga mais jovem, a segunda geração, que fala português e indica-me a porta para o escritório da Jie Zhu. Subo para um primeiro andar fantasmagórico em que o escritório de Jie é o único ocupado. Lá dentro, não há nenhum símbolo chinês, a não ser o mesmo ábaco impresso nas cortinas das janelas.

Jie Zhu, nascida Zhu JieJie Zhu, até à escola primária, era Zhu Jie. Na escola, se dizia que se chamava Zhu Jie, toda a gente a chamava Zhu. Imagine-se ser chamado pelo apelido no recreio para ir brincar.

Jie é um nome fácil de pronunciar por um português e até nisso Jie parecia estar predestinada a ser portuguesa. Os irmãos já nasceram em Portugal e ganharam nomes portugueses: Tânia, a seguinte, Luís Rafael, o mais novo.

Jie tem 27 anos, mas com negócio próprio, casa própria, onde vive desafi antemente sozinha, parece mais velha. Teve que, muito cedo, ajudar a tomar conta dos irmãos. E ajudava a tomar conta dos pais. E dos amigos dos pais. Os adultos precisavam de quem traduzisse para eles, de quem os acompanhasse ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), ajudasse a preencher os formulários, explicasse coisas que já não eram problemas linguísticos mas culturais. “Às vezes, não é só não perceberem a língua”, diz. “Muitas vezes, os chineses não entendem a lógica das leis portuguesas.”

Hoje, Jie continua a fazer esse trabalho de tradutora informal. O trabalho ofi cial dela é contabilista. Abriu uma empresa com uma colega portuguesa da faculdade. Eram muito jovens, mas decidiram, em época de pouco emprego, criar o seu, usando a capacidade de Jie de poder comunicar com os chineses. Na Varziela, todos os comerciantes precisam de contabilista. Nem sempre os clientes de Jie são dali, mas, se não são, acabam por passar por lá nos seus negócios e aproveitam para deixar documentos. Às vezes, aproveitam para conversar. Telefonam-lhe muitas vezes fora de horas. Também telefonam para não falar de contabilidade. Por favor, explique isto ou aquilo, traduza, ajude-nos. Uma vez, recebeu um telefonema do hospital: uma mulher chinesa estava a dar à luz e ninguém conseguia perguntar-lhe se queria levar a epidural.

Jie Zhu e Sónia Ferreira não só trabalham juntas como vivem em casas, lado a lado, no mesmo piso, perto da Varziela. Comem juntas muitas vezes, comida portuguesa ou chinesa. Para o almoço, trazem um tupperware e comem na cozinha do escritório. Ambas cresceram no centro do Porto. Conheceram-se no primeiro dia de aulas na Faculdade de Economia e nunca mais se largaram. Jie Zhu praticamente não tem amigos de origem chinesa. O namorado também é português. O namorado diz-lhe que, de chinesa, ela não tem nada, e não é um elogio, nem

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os fornecedores em português, atendia os clientes em português. O pai era cozinheiro profi ssional e fi cava na cozinha.

Os quatro anos da escola primária foram sufi cientes para aprender bem português. Tinha mais dois amigos chineses na escola, também recém-chegados, e entre eles faziam uma competição para ver quem aprendia mais depressa. Até não terem qualquer sotaque. Até dizerem “ó pá”, até as pessoas fi carem baralhadas ao telefone, porque não batia certo o nome com a voz da pessoa.

Lin não acha que os portugueses sejam racistas. É raro ter problemas. Mas cansa-se de ter que estar sempre a desmentir preconceitos — sim, os chineses pagam impostos — ou rumores loucos, mas persistentes, como aquele sobre o mistério dos corpos chineses. “As pessoas dizem que os chineses não morrem”, diz, a rir. Os chineses morrem, e, se tiverem que morrer, morrem onde estiverem. Mas os mais velhos, explica Lin, querem ir morrer à terra deles. Quase sempre, em qualquer cultura, as pessoas querem morrer na terra deles. “Provavelmente”, diz, “eu vou acabar os meus dias em Portugal.”

Nuno Chiou achava que não era a melhor pessoa para ser entrevistada. Achava que tinha pouco para dizer. Não nos encontrámos na Varziela, onde tem uma loja de revenda de moda e acessórios para senhora, mas em sua casa, ou melhor, no hall de entrada de um prédio novo de primeira linha da praia de Matosinhos. Nuno Chiou veio com Filipe, o fi lho de nove anos. “Não sou parecido com o meu pai?”, pergunta Filipe. “Toda a gente diz que sim.” Filipe, que quer ser futebolista, mas “o pai não quer”, voltou para casa, desiludido com a falta de câmaras e de glamour da entrevista e fi quei com Nuno Chiou nos sofás brancos, com candeeiros brancos, no hall branco de um prédio moderno, e podíamos estar em Taiwan, de onde é o seu pai, e para onde Nuno foi enviado entre os quatro e os seis anos.

Há momentos, em algumas entrevistas, em que o entrevistado começa a fazer a entrevista a si próprio. Nuno Chiou parecia pensar em todas as perguntas como se as ouvisse pela primeira vez. Português ou chinês? Os dois? Nenhum? Nuno Chiou queria poder guardar de cada cultura as melhores características, mas nós somos humanos, tantas vezes trabalhamos contra nós próprios.

O que é o sucesso? Não foi uma pergunta que fi zesse a Nuno Chiou, mas parecia ser sobre isso que Nuno Chiou queria falar. Na verdade, estávamos a falar da felicidade, tema melancólico.

Nuno Chiou ambiciosoA história da família de Nuno Chiou é uma saga que poderia contar a história da comunidade chinesa em Portugal. O bisavô teve a primeira profi ssão chinesa conhecida em Portugal: vendia gravatas na Baixa do Porto. Quando só havia sete estabelecimentos chineses em Por-tugal, na década de 1970, ele abriu o oitavo: o restaurante chinês da

Ponte da Arrábida. O avô de Nuno Chiou abriu depois um restaurante na Rua de Camilo Castelo Branco, em Lisboa. Foi em Lisboa que cresceu a mãe de Nuno Chiou e foi nesse restaurante que a sua mãe conheceu o seu pai.

Nuno Chiou nasceu em 1977, teve uma irmã, e, depois do liceu e de uma breve incursão num curso de Gestão, de que não gostou, começou a trabalhar com o pai. Mas ele nunca gostou de restau-ração e, mais tarde, aventurou-se no comércio de roupa. Foi a sua maior aventura. Talvez sem contar a primeira visita à China em adulto, quando descobriu um país sujo mas ebuliente. Nas visitas seguintes, foi aprendendo a gostar cada vez mais da energia da China. Brevemente, vai levar o fi lho. Gostava que o fi lho visse aquele grande país e que tivesse orgulho

em ser chinês. “Às vezes gozam com ele, chamam-no chinesi-nho…” , conta. “Quando eu cresci, tinha vergonha de ser chinês, não me parecia que fosse uma grande coisa ser chinês.”

Nunca lhe passou pela cabeça fazer outra coisa que não ter um negócio próprio. Todos os familiares com profi ssões liberais em Portugal passam mais difi culdades. Um tio arquitecto acabou a abrir um restaurante chinês num centro comercial. E Nuno, apesar de ter nascido em Portugal, e a sua mãe já ter crescido em Portugal, continua a achar que é difícil para um chinês ter uma profi ssão que não seja tradicionalmente chinesa, que não corresponda à imagem do chinês. Por exemplo, advogado. “Um português não iria confi ar num advogado chinês. Eu próprio

preferiria contratar um advogado português, porque acho que ele vai saber mexer-se melhor”, diz.

Apesar de inspirar confi ança — é elegante mas modesto; sério mas acessível; energético mas comedido —, acabou no mais recente negócio que em Portugal associamos aos chineses.

Nuno conheceu a mulher no Martim Moniz e decidiu mudar-se para Vila do Conde, onde a família dela já estava estabelecida. A mulher ajuda-o no negócio. Trabalham muito. Nuno não se imagina com uma mulher portuguesa. “Creio que não ia ter tanta ambição”, avalia. A mulher tem os mesmos objectivos. Esteve imigrada em França em criança, ilegal, passou por difi culdades, e, por isso, tem ambição. Dinheiro é segurança. Dinheiro signifi ca que estão a mover-se nalguma direcção, que não estão parados numa vidinha, acredita. O casal tem um bom negócio, tem dois fi lhos numa escola internacional privada, ali em Matosinhos, onde estudam ao lado dos fi lhos dos jogadores de futebol. Têm uma casa com vista para a praia. Mas Nuno Chiou quase nunca vai à praia. Aborrece-se sentado na areia. Já teve uma casa com piscina. “Devo ter usado a piscina quatro vezes”.

Era nisso que ele gostaria de ser mais português. “Os meus amigos portugueses sentam-se no café a conversar, muito descontraídos. Mas eu não consigo, tenho que estar a fazer alguma coisa”, diz.

“Sabe que fi zeram um estudo e chegaram a esta conclusão e eu acho que é verdade: qual é o povo mais triste? O chinês. Nunca está contente. Quer sempre melhor. Os portugueses são mais felizes.”

Nuno tem um sorriso melancólico. Sorri desse jeito quando pergunta alto, para si mesmo: “O que é que me faz feliz?” Nuno Chiou pensa de mais. Nisso, talvez devesse ser menos português.

Qual é o povo mais triste? O chinês. Nunca está contente. Quer sempre melhor. Os portugueses são mais felizes.Nuno Chiou

Lin Tsu Hwei é tradutor e dá apoio aduaneiro à comunidade chinesa

Jie Zhu tem uma empresa de contabilidade que criou com a melhor amiga

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Os novos portugueses III

Bilingues em uma língua só

PedroEra tão pequenino que não se lembra de deixar o Rio de Janeiro em 1986. Atravessou o Atlântico no colo da mãe. Passou por Lisboa, e as recordações de infância começam em Cascais, para onde foi com quatro anos e onde cresceu. Não tem memória do momento em que entendeu que em casa falava um português e na escola outro português, com palavras diferentes para dizer a mesma coisa, palavras iguais para dizer coisas diferentes. Para Pedro Almeida, sempre foi natural ser bilingue em uma só língua. Mas sentia que era um “bicho raro”. Quase não existiam brasileiros em Cascais. Aliás, quase não viviam brasileiros em Portugal. Na televisão portuguesa, primeiro só com dois canais, depois com quatro, passavam poucas novelas. Não tinha amigos que tivessem viajado de férias para o Brasil e por isso não sabiam nada sobre o Brasil. Os portugueses ainda não tinham nem boa nem má opinião dos brasileiros. Pedro foi estudar para um colégio privado em Cascais. Era gerido por freiras, o catolicismo fazia parte da educação tradicional portuguesa e ele fez a primeira comunhão. Cresceu protegido, tanto no colégio, como em casa, fi lho único.

FernandaFernanda cresceu “de pé no chão”. No interior do estado de São Paulo nunca fazia tanto frio que não pudesse brincar na rua à chuva, nem no pico do Inverno, em Julho

e Agosto. E ela gostava de brincar nas poças de água. Gostava de subir às árvores, pegar fruta. A sua cidade era pequena de poder andar na rua sem preocupação, crescer à solta. Quando partiu do Brasil, talvez não soubesse como ia ter saudades de andar de “pé no chão”. Na Europa é preciso andar sempre calçado. Até numa cidade pequena como Cascais, por comparação grande, é preciso tomar cuidado. A adolescência de Fernanda Souto foi muito diferente da sua infância.

Qualquer menina que se torna mulher perde liberdade. Fernanda ainda mais, porque, acabada de chegar a Portugal, com 13 anos, vivia numa casa com 12 pessoas e só ela e a mãe eram mulheres. Então, Fernanda passou a adolescência no Cascais Shopping – “o Shopping” como lhe chamam afectuosamente as pessoas em Cascais, como se shopping houvesse só aquele e mais nenhum. Brincava, estudava, tomava conta do irmão, tudo dentro do shopping, enquanto os pais

gastavam horas de juventude num restaurante. Durante o primeiro ano, a casa da família era um quarto. Era duro e procuraram apoio na sua religião. Juntaram-se primeiro a uma Igreja evangélica em Lisboa e depois em Cascais. Uma senhora portuguesa da mesma Igreja passou a ser como uma segunda mãe para Fernanda. Passava muito tempo em casa dela, descobrindo como era uma casa portuguesa e uma família portuguesa, ouvindo o português de Portugal. Na escola em Alcabideche,

Fernanda era gozada pelo sotaque. Mais tarde mudou de escola e tudo correu melhor. Entretanto, Fernanda tinha aprendido a não se distinguir de qualquer outra portuguesa. Adaptou-se tanto que, quando, alguns anos mais tarde, se juntou à ADMP (assembleias de Deus missões de Portugal), onde a maioria dos congregantes são brasileiros – e onde conheceu, ainda mal saída da adolescência, o seu marido –, já não sabia falar português do Brasil. E com os novos amigos brasileiros, chegados mais recentemente ao país, reaprendeu o português do Brasil, voltou às raízes.

Pedro com fundo de marDepois de ter abandonado o curso de Engenharia Civil, Pedro começou a estudar Gestão Hoteleira na Universidade Lusófona, em Lisboa. Tem aulas só de manhã e ainda chega a tempo de almoçar em casa todos os dias. Antes o menu era sempre arroz+feijão+farinha, mas pouco e pouco Pedro conseguiu impor em casa dos pais um menu “étnico”, que não é só europeu, mas também asiático, um melting pot culinário.

À hora do almoço, vê sempre a TV brasileira. Para além da notícia do boom económico do seu país de origem, todos os dias vê desastres, soberbamente dramatizados para televisão. Desastres sem nomes sonantes, sem Lula ou Dilma por perto, desastres a acontecerem na rua a um ritmo que nem uma televisão com recorde de canais

Falam um português em casa e outro português na rua. Pedro era um “bicho raro” no fi nal dos anos 80, início dos anos 90 em Portugal. Hoje, os brasileiros representam 25% da população estrangeira, eram 116.220 em 2009. Nanda encontrou na recente vaga de imigração outro Brasil em Portugal. Por Susana Moreira Marques (texto) e Pedro Cunha (fotografi a)

Fernanda Souto tem saudades de uma infância passada “de pé no chão”

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poderia acompanhar. Pessoas roubadas, mortas, famílias desfeitas, a natureza que se rebelou, os carros que chocaram, o drogado que virou assassino, o assassino que se reconverteu à religião, nascendo novamente, uma criança de rua, mais uma que não sairá da rua.

Tudo isto na TV de Pedro com uma vista magnífi ca para a baía de Cascais. A sala de Pedro está mobilada com tons solares, toda ela a fazer-se à vista. É domingo. Os pais de Pedro tomam chá com outro casal de brasileiros residentes em Portugal que têm um fi lho quase da mesma idade de Pedro, também ele crescido em Cascais, e um dos poucos amigos brasileiros de Pedro.

O pai de Pedro é muito moreno e exótico. A mãe também é exótica: loira, de pele branca e sardenta como uma irlandesa. Pedro parece-se com qualquer outro português. O pai é empresário de construção civil e talvez Pedro venha um dia a trabalhar num hotel construído pelo pai. Mas Pedro ainda não consegue ver com clareza o seu futuro. Não se imagina no Brasil, de que gosta para visitar, mas não para viver. Se imigrasse, escolheria, antes que tudo, outro país da Europa.

Nanda na igrejaNanda, é assim que os amigos brasileiros a tratam, está sentada a meio da sala. Ouve-se um pastor brasileiro vindo do Japão: “A minha fi lha, Jesus!”, diz com a voz a tremer. “De olhos revirados, sufocada com o seu vómito, sem vida.” A congregação está silenciosa. De vez em quando alguém solta um

“Ámen”. O pastor parece estar prestes a chorar. Até que anuncia: milagre! E ouvem-se gritos de “Aleluia”. O pastor conta como a sua fi lha ressuscitou em frente de japoneses incrédulos. Os japoneses, dirá outro pastor, são parecidos com os portugueses: “Quando se convertem, nem o diabo os consegue afastar do caminho de Deus.”

O marido de Fernanda, Alex, está de pé, para que outras pessoas tenham lugar. Ele é “obreiro” e tem responsabilidades para cumprir, garantindo que todos os congregantes estão bem. O fi lho de Fernanda e Alex, Guilherme, de dois anos, vem pedir colo à mãe, e depois vai outra vez cirandar com o pai pela sala.

A sala está a abarrotar, domingo é o dia mais importante da semana, o dia em que podem afi rmar o seu “compromisso com Deus”. A missa começou às 18h30, e às 21h, em apoteose, há pessoas que são abençoadas, há pessoas que choram e outras que gritam e a emoção de uns pega-se aos outros, até os homens têm lágrimas nos olhos. E no fi nal, limpando as lágrimas, cantam, abraçam-se e despedem-se: “A vitória é nossa.”

Pedro a dizer “comboio”No Brasil, Pedro sente-se um pouco estrangeiro. No Brasil, esforça-se por falar “brasileiro” – o português que fala em casa com os pais –, mas há coisas que já não lhe saem, as tais palavras diferentes para dizer

o mesmo. Ele esquece-se e diz “comboio” em vez de “trem”, ou “frigorífi co” em vez de “geladeira”. E depois há os pronomes e outros pormenores gramaticais denunciadores dos segredos de uma pessoa. O seu segredo é ser português, assim como em Portugal o seu segredo é ser brasileiro. Dá-lhe gozo contar o seu segredo, assustando algumas pessoas com aquela súbita revelação de que o português de Portugal pode ser falado de forma perfeita por um brasileiro. Às vezes, deixa chegar a conversa ao ponto que alguém diz mal dos “pés de chinelo”. Às vezes, até os seus amigos se esquecem de que ele é brasileiro. Que há preconceito em relação aos brasileiros em Portugal há. Mas às vezes, acha Pedro, é com razão: “Eu próprio às vezes digo mal dos brasileiros.”

Nanda a ouvir “rapariga”A avó de Nanda gostava de se lembrar dos seus avós portugueses. Fazia então Nanda rir, dizendo “ó, rapariga!”, palavra que é feio dizer no Brasil e que é ainda mais engraçada dita com a boca de dentes cerrados. Nesses momentos, ainda menina, não lhe passava pela cabeça que um dia viria para Portugal e ouviria dizer “rapariga” de cara séria.

Os congregantes – a sua segunda família – já saíram quase todos e a igreja está praticamente vazia. O pastor responsável pelas igrejas desta comunidade em Portugal, um senhor de fato cinza claro a condizer com o cabelo, cumprimenta toda a gente até à porta.

Guilherme, de chupeta na boca, vem chamar a mãe para se irem embora. Não diz nada, simplesmente olha para ela.

À porta, ainda está muita gente a conversar, o marido num círculo de amigos. A igreja fi ca ao lado do Espaço Jovem de Cascais e por baixo de uma igreja de Testemunhas de Jeová, anunciada numa placa com tradução em russo.

De Cascais vão para Sintra, onde encontraram uma casa para cuidar, como caseiros, e poupar renda. No dia seguinte, segunda-feira, Nanda irá, como no resto da semana, deixar o fi lho na creche e trabalhar numa lavandaria em Cascais. Alex é jardineiro. Para ele é mais difícil a adaptação, porque veio adulto para Portugal. É Nanda que trata de todas as coisas “ofi ciais”. É ela que fala ao telefone, porque ela fala

“português” e em geral levam-na mais a sério do que ao marido. É terem um fi lho nascido em Portugal que os agarra mais ao país.

Alex é um paranense muito moreno e elegante. Nanda é um pouco mais alta do que ele, usa os cabelos bem compridos, e mesmo vestindo-se de forma simples, é, dos dois lados do Atlântico, um mulherão. Mas tem um olhar doce e simples, de mulher que não se olha demasiado ao espelho, de quem ainda se vê, apesar de aos 22 anos estar casada e com um fi lho, como a menina que brincava à chuva. Nanda sabe que em Portugal o fi lho tem mais possibilidades de ter tudo. Mas o que é ter tudo? É ir ao Shopping? É ver lojas? É comprar? É ter computador? Nanda tem pena que o fi lho não possa brincar à chuva. Não possa crescer com o pé no chão. Então às vezes pensa regressar ao Brasil. Mas o Brasil vai mudando, fugindo-lhe, e talvez ela nunca o volte a apanhar.

Pedro e NandaPedro e Nanda não se conhecem. Provavelmente nunca se conhecerão. A vida de Fernanda é a vida da maior parte dos brasileiros em Portugal: trabalhando em profi ssões de baixa qualifi cação, sonhando descomplicar as suas vidas europeias. A vida de Pedro é aquela que os brasileiros esperam que venha cada vez mais a ser a dos seus fi lhos, segundas e terceiras gerações de brasileiros portugueses, crescendo nas cidades europeias com “tudo”, sonhando complicar as suas vidas.

Pedro não se imagina no Brasil, de que gosta para visitar, mas não para viver

Para além da notícia do boom económico do seu país de origem, todos os dias [Pedro] vê desastres, soberbamentedramatizados para televisão. Desastres sem nomes sonantes, sem Lula ou Dilma por perto

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Os novos portugueses IVContadores da sua própria história As histórias que consumimos sobre a África antiga e o velho Portugal escrevem-se a branco. Os negros com quem nos cruzamos todos os dias ainda não chegaram à fi cção nacional. Fomos conhecer dois actores portugueses nascidos em Angola que querem contar histórias do novo Portugal.

a Zia Soares quis ser actriz aos 16 anos. Chegou a pensar ir para Londres, onde vivem os quatro irmãos, uma cidade de sonho para fazer teatro, mas acabou por não deixar Lisboa, onde chegou em 1975, com dois anos de idade.

O pai é timorense e participou na revolta de 1959 contra o regime português. Foi apanhado e levado para outro continente: África. Ficou preso no Bié, no Sul de Angola, e quando o libertaram começou a trabalhar na fazenda de um português. Por essa fazenda passava todos os dias a mãe de Zia. Em 1975, pouco antes da independência de Angola, voavam com a família para Lisboa, onde iam parar, para seguir para Timor. Foram adiando a viagem. A estadia temporária em Lisboa foi-se prolongando. Até que tinha passado uma vida, os fi lhos eram adultos, tinham netos. Os pais de Zia ainda vivem em Portugal e nunca voltaram a Angola. Zia também não.

Zia acabou por nunca se juntar aos irmãos em Londres, porque conheceu o seu companheiro. Talvez pudessem ter ido juntos para Londres porque, por coincidência, também ele tem todos os irmãos em Londres. Mas entretanto tiveram fi lhos, primeiro o Rodrigo, agora com 10 anos, depois Marta, que hoje tem cinco.

A sua história não é tão dramática, o enredo não tem lutas contra a independência, nem prisões, nem fazendas africanas, mas estão juntos há 14 anos. O companheiro de Zia é meio português, meio moçambicano, e tinha um avô indiano. Os seus fi lhos são portugueses, angolanos, timorenses, moçambicanos e ainda um bocadinho indianos.

Em Lisboa, Zia encontrou o seu teatro. Começou por fazer escola

com Os Sátiros e mais tarde foi uma das fundadoras do Teatro Praga. Nunca parou para pensar que ser negra era uma condicionante para a sua carreira de actriz. Não fi cou à espera que a escolhessem em castings, onde não iria corresponder à aparência física mais pretendida. Juntou-se à Associação Griot, fundada por Daniel Martinho, Miguel Sermão e Ângelo Torres, actores e contadores de histórias africanos há muitos anos a trabalhar em Portugal. A Griot está aberta a qualquer actor ou encenador ou artista, mas pretende incentivar os africanos ou afro-descendentes a criarem o seu próprio espaço, a contarem as suas histórias, histórias que também são nossas mas que nem sempre são contadas.

No supermercado, cruzamo-nos com famílias negras. Nos supermercados das telenovelas, não. Na vida real, temos amigos afro-descendentes ou mestiços descendentes de várias nacionalidades, que estudam e trabalham em diversas profi ssões. Na fi cção, os afro-descendentes, os “imigrantes” – mesmo que estejam em Portugal há décadas – estão sempre em perigo de vida, a deles ou a dos outros, e só têm uma profi ssão: bandido. Em Portugal, os afro-descendentes casam-se, têm fi lhos, divorciam-se, perdem os pais, apaixonam-se de novo, são traídos, têm maus patrões, têm bons patrões, cometem erros diariamente, e de vez em quando, como todos nós, vivem pequenos milagres. Nos estúdios e até nos palcos portugueses, os protagonistas dos grandes e pequenos dramas da vida são todos brancos. Na televisão ainda gostamos de ver o velho Portugal, onde as pessoas têm empregadas que vestem uniforme, tímidas e modestas mulheres do povo, e brancas.

cheia de crianças. Carlota criou os sete fi lhos e seis sobrinhos. Giovanni era o cassule, o fi lho mais novo, o mais protegido pela mãe, e uma espécie de mascote para os irmãos mais velhos. Para se impor numa família tão grande era preciso ser um verdadeiro performer.

Giovanni decorava tudo o que ouvia na televisão. Cantou até à exaustão “Ó rama, ó que linda rama…”, por causa de um anúncio ao azeite Gallo. Em criança, às escondidas da mãe, chegou a pedir dinheiro pelo bairro até reunir 200 escudos para ir com a irmã ao circo.

Não ia ao teatro, e quando brincava com os irmãos e primos às profi ssões que gostariam de ter quando fossem grandes, não lhe ocorria brincar de actor. Os irmãos têm empregos: um é motorista, outro trabalha no McDonald’s, outra é empregada doméstica. O caçula persegue um sonho. Às vezes quando está sem trabalho – não há muito trabalho para actores, e para um actor afro-descendente ainda menos – desanima. A mãe, com quem vive ainda, em São Domingos de Rana, diz-lhe que não desista. Manda-o levantar-se, apanhar o comboio para Lisboa, ir conhecer

Zia encontrou em Lisboa o seu teatro

Por Susana Moreira Marques

“Em Portugal, as actrizes negras ainda nem sequer conseguiram os papéis de criadas, que é o caso do Brasil”, diz Zia. Ela não diz isto com nenhuma amargura, mas como um problema que é preciso falar e resolver, andar para a frente.

“Quando comecei a trabalhar como actriz não me apercebi logo disso. Em toda a minha vida nunca tive a noção de que a minha cor me pudesse condicionar. De vez em quando, acordava e pensava, isto ou aquilo talvez tenha acontecido por causa da minha cor. Mas eu não acordo de manhã a pensar que tenho esta cor, nem a pensar que outros são brancos. Quando comecei a fazer teatro, estava completamente apaixonada. Mais tarde, quando comecei a fazer castings percebi que a cor podia condicionar eu ser escolhida, sobretudo em televisão. Mas o teatro vence barreiras. O que

o público vê é a personagem. Já fi z de francesa e de cigana. Só uma vez fi z papel de mulher negra. Foi estranho. Pediram-me que fi zesse um sotaque africano.”

Zia está sentada num café nas Docas. É de manhã cedo e não está ninguém. O céu acabou de se abrir depois da chuva, mostrando o rio em toda a sua glória. Zia raramente vai às Docas, mas fi cava a caminho entre o Cacém, onde acaba de deixar a fi lha na escola, e a ponte, que vai apanhar para ir a uma reunião no Barreiro, onde está a ajudar a organizar uma exposição de homenagem ao pintor moçambicano, recentemente falecido, Malangatana.

Zia faz produção para a associação e também encenou a primeira peça do Teatro Griot, O Corcunda e a Cigana, que esteve em cena no Chapitô em Janeiro e Fevereiro. A próxima peça da Griot será um texto do escritor angolano Ondjaki.

Criado: empregado doméstico; servo.

Servo (Dicionário de 1913): Aquelle que não exerce direitos; Aquelle que não dispõe da sua pessoa e bens; que não é livre; que é escravo.

Carlota Bernardo estava a ver um jogo de futebol internacional quando entrou em trabalho de parto. Um dos jogadores chamava-se Giovanni, ela achou bonito, e foi o nome que deu ao fi lho. Giovanni Lourenço viveu os dois primeiros anos na Maianga, bairro fi no de Luanda, e a partir de 1989 passou o resto da infância no Bairro do Fim do Mundo, no Estoril, onde gente fi na tinha medo de entrar. Foi uma infância boa. Com liberdade para brincar, num bairro onde toda a gente se conhecia, e numa casa

JOANA FREITAS

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pessoas, bater às portas. Depois de um curso profi ssional

de Teatro, Giovanni fez várias peças de teatro infantil e um espectáculo musical no São Luiz. Depois em 2008 foi escolhido, como muitos outros actores negros, para participar na adaptação para televisão do bestseller de Miguel Sousa Tavares Equador, uma história sobre a escravatura nas roças de café de São Tomé e Príncipe, fi lmado no Brasil. Depois de Equador, não vieram mais trabalhos de televisão. Não há assim tantas produções em que entrem escravos ou bandidos, e tirando uma ou outra aparição numa novela, ainda não voltou a trabalhar em televisão.

Juntar-se à Associação Griot é uma maneira de não estar sentado no sofá à espera, a dizer que os actores negros, coitadinhos, são discriminados. “Houve um tempo em que estava de pé atrás, que achava que qualquer coisa que acontecia era porque era racismo, mas depois há um percurso que cada um faz de tentar não pensar tanto nisso.”

Giovanni é uma daquelas pessoas que se transformam em palco. Fora do palco tem um ar de rapaz

perdido. Atrapalha-se a falar. Mas há momentos em que parece que saltou para o palco: “Gostava de fi car em Lisboa. Quero crescer nesta associação. Se cresci aqui, por que é que não posso criar projectos meus em Portugal? Isso é uma maneira de fazer parte do país.”

Giovanni é um “griot”. Gosta de “griotizar”, que é o que o grupo chama às sessões de poesia. Recitam Fernando Pessoa, mas também dizem poetas africanos, por exemplo José Craveirinha, poeta moçambicano que escreveu ao seu pai português, Ao meu belo pai, ex-imigrante: E nestes versos te escrevo, meu Pai / por enquanto escondidos teus póstumos projectos/ mais belos no silêncio e mais fortes na espera / porque nascem e renascem no meu não cicatrizado / ronga-ibérico mas afro-puro coração.”

Um “griot” ama a palavra. Um “griot” recita versos que não escreveu, acreditando neles. Um “griot” é uma espécie de matrioska: conta histórias que contam outras histórias que contam outras histórias. Um “griot” não esquece de onde veio.

Giovanni conheceu o pai em 2008 quando regressou a Angola. Já não se lembrava dele. Não foi o momento que tinha esperado, não sentiu que era um ponto de viragem. Era um senhor angolano, conversaram, desconhecidos contando as suas vidas pela primeira vez, quando cada um deveria ter sido um contador da história do outro.

Angola também não foi a terra prometida. Passou um mês em repartições públicas, a dar “gasosa” a funcionários, a tentar encontrar amigos de amigos ou primos de primos de fulano ou sicrano ligado ao MPLA. Tudo para conseguir o passaporte.

Não se imagina a viver em Luanda, mas gostava de regressar para fazer alguns trabalhos. Fez recentemente em Lisboa um episódio-piloto de uma série para ser vendida à televisão angolana. A série chama-se O Bar do Ti Chico, e ele tem um papel relevante, de ajudante do Ti Chico. Em Angola, talvez seja um actor branco a ter difi culdade em arranjar um papel de protagonista.

Zia também gostava de ir a Angola. Quanto mais o tempo passa,

mais vai alimentando o sonho. Mas sabe que quando for não encontrará apenas o magnífi co pôr do sol africano. Tem outros amigos angolanos-portugueses que, ao voltarem, no dia seguinte queriam apanhar o avião de regresso.

Não sabe o que é ser actriz num país onde a sua cor de pele seja a maioria. Mas sabe que não precisa de ir a lado nenhum para fazer as personagens que quiser e que pode conquistar o público em qualquer lugar. Nas peças infantis, quando entra em palco a fazer menina, a audiência espera a menina loira de todas as histórias. No fi nal, as meninas querem ser como ela e os meninos apaixonam-se por Zia.

Giovanni anda a ler Sábado à noite, Domingo de manhã, de Allan Sillitoe, um escritor britânico, herói da classe trabalhadora inglesa, numa edição amarelada, sem data. Sillitoe morreu há um ano, e pouco antes escrevera num prefácio à obra da mulher, a poeta judia americana Ruth Fainlight, que “um poeta, ainda que esteja em território familiar, sofre exílio da vida”. O mesmo se poderia dizer do actor: sofre exílio de si próprio, e pode ser qualquer um de nós.

Giovanni: “Se cresci aqui, por que é que não posso criar projectos meus em Portugal?”

O que o público vê é a personagem. Já fiz de francesa e de cigana. Só uma vez fiz papel de mulher negra. Foi estranho. Pediram-me que fizesse um sotaque africano. Zia Soares

ENRIC VIVES-RUBIO

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Os novos portugueses V

Nikolai não é um clichéNenhuma comunidade imigrante provoca tanto fascínio como a dos ucranianos e russos, desde que começaram a chegar maciçamente a Portugal há uma década. O festival Indie acaba de mostrar dois fi lmes portugueses com protagonistas de leste. Nikolai Nekh, artista português e russo, foi ver a antestreia e achou que os portugueses procuram sempre uma certa ideia da Rússia nos imigrantes em Portugal.

Noite de 6 de Maio Culturgest/Clube Ferroviário

Do fi lme fi cam no ouvido palavras russas: pajalsta, por favor. Os imigrantes pedem muito por favor. Estão dependentes. A protagonista russa está dependente do marido português e dos companheiros dele. Está dependente de um passaporte. Está dependente do imigrante ucraniano por quem se apaixona: “Pajalsta, leva-me contigo.”

Os imigrantes precisam de alguém que lhes explique como tudo funciona. Necessitam de tradução,

necessitam de vistos, necessitam de trabalho, porque o dinheiro que trazem acaba-se depressa, fi cam com as mãos cheias de vento, tudo voa. Em América, há tempestades e chovem barcos, caso os homens se tenham esquecido de que um dia navegarão os céus. América é uma nação de vulnerabilidade, onde os imigrantes são presas fáceis e os que supostamente não são imigrantes – os portugueses – acabam por ser estrangeiros na vida.

As luzes acendem-se no Grande Auditório da Culturgest e há palmas e comentários e abraços dos actores

e dos técnicos – estão lá todos, gente da câmara, do guarda-roupa, da produção, todos aqueles que aparecem em letras pequenas e tão rápidas no ecrã fi nal – que dão parabéns uns aos outros e ao realizador, João Nuno Pinto. Era a antestreia, no Festival Indie, de América, que ontem se estreou nas salas.

De todos as comunidades que chegam a Portugal, nenhuma parece provocar tanto fascínio nos portugueses como os russos e os ucranianos. Ainda no Festival Indie, na semana seguinte, estreava-

se Viagem a Portugal, de Sérgio Tréfaut, a partir de uma história real de uma imigrante ucraniana que fi ca retida no aeroporto de Faro. Tréfaut fez há alguns anos Lisboetas, um documentário e um dos primeiros fi lmes a mostrar como os habitantes da cidade estavam diferentes no início do século XXI, e nesse fi lme a câmara namorava os imigrantes de leste com mais veemência.

Nikolai Nekh, que o P2 convidou para vir ao cinema e comentar o fi lme, vem à porta da Culturgest fumar um cigarro.

Nikolai fi cou um pouco desiludido com América. Conta a história que já foi contada. Mostra as pessoas que já foram mostradas: em outros fi lmes, na televisão. Os ucranianos são doutores. Bebem vodka, mas não fazem muito barulho. No entanto, repara Nikolai, o imigrante angolano faz barulho, aliás, faz mesmo confusão, aliás, dá pancada no protagonista português, um bandido pouco profi ssional que lhe prometeu um passaporte e não cumpriu. “São clichés”, diz.

E agora repete-o numa mesa no Bar Clube Ferroviário, enquanto

Nikolai Nekh fotografado no café do Instituto Alemão, em Lisboa

Por Susana Moreira Marques

DANIEL ROCHA

Page 13: Os novos portugueses I

P2 • Sexta-feira 20 Maio 2011 • 7

João Nuno Pinto fi ca a meio de uma sandes.

– Achas que os russos do fi lme são clichés? – pergunta o realizador.

– Acho – responde Nikolai. É a festa de estreia do fi lme.

Está molhado o Terraço do Clube Ferroviário e ainda assim está cheio. No rés-do-chão há música para dançar. João Nuno Pinto é um dos sócios do bar em Santa Apolónia. O P2 sentou-se com ele e com aquele rapazinho com ar de quem não faz mal a uma mosca, vestido de blusão azul-anjo, discreto, para assistir a um breve braço-de-ferro. João Nuno Pinto gosta de uma boa luta.

– Os russos são mais organizados, mais sérios – explica. – Até os mafi osos russos são mais efi cientes do que os mafi osos portugueses.

– O meu padrasto é português, foi para a Rússia e lá era ele que organizava os russos.

– Todos os imigrantes fi cam mais motivados, tornam-se mais dedicados, focados.

João Nuno ainda pergunta se Nikolai viu Stromboli, de Rossellini. Não viu. América também é uma história de uma mulher deslocada e o Mar da Palha é a paisagem que ela procura para se lembrar da Rússia e de quem é.

Para Nikolai, a imagem da russa Liza, uma e outra vez, com o mar em fundo, é a imagem da nostalgia – que é parecida com a nossa “saudade”.

João Nuno acaba a sanduíche e vai festejar com a equipa. Um copo mais tarde voltamos a encontrá-lo. Despede-se de Nikolai: “Gostei da tua sinceridade, miúdo.”

Já no carro, depois da festa acabar, Nikolai volta a falar da nostalgia. A nova Rússia é nova-rica

e não é tão poética. Não é séria, bem-comportada, estóica. Mas os portugueses continuam a imaginar uma Rússia heróica. A Rússia é a outra periferia, na outra ponta da Europa. E imaginamos que os russos são cismáticos como nós, de olhar perdido.

O imaginário da Sibéria é tão forte que até para Nikolai é difícil distinguir entre realidade e imaginação.

Deixou a Sibéria com 13 anos, em 1998. Tem agora 25. Diz que não é nostálgico. O seu português já não tem vestígios da língua russa. Como

artista, quer continuar a trabalhar na Europa ocidental. Nikolai aprendeu a “negociar”, a ditar os termos. Ele também pode, do seu lado, jogar com as percepções do que é um russo e o que é um português. E também pode escolher não jogar. Depois, a caminho de casa, às três da manhã – e todos somos mais sinceros a essa hora –, disse que se lembrava de uma vez nevar em Vila Franca de Xira, onde passou a adolescência e viveu até ter ido estudar para Lisboa, para Belas-Artes, e a frase – “Uma vez nevou em Vila Franca de Xira” – saiu-lhe nostálgica. Ou talvez uma portuguesa não consiga deixar de achar que um russo deve amar a neve, desejá-la, sentir falta.

Para um rapaz que cresceu na Sibéria nevar em Vila Franca de Xira deve ter sido familiar e ao mesmo tempo deve ter sido estranho.

Manhã de 7 de MaioInstituto AlemãoNikolai põe-se à sombra de uma árvore do jardim do Instituto Alemão. Pediu para ser fotografado em frente do café, uma casinha de madeira pintada como se fosse as Caraíbas, com cores fortes – uma intervenção da escola Maumaus, de que Nikolai fez parte no Verão passado.

Também podia ser em Raduzhnyy, a cidade onde Nikolai cresceu, na Sibéria. Raduzhnyy quer dizer “arco-íris”. É uma cidade petrolífera e as autoridades usaram o que Nikolai descreve como uma “metáfora óbvia”. A cidade tinha todas as cores do arco-íris. As cores dividiam os bairros da cidade. Os

Comecei a dar conta que estava a cair numa armadilha – de pensar sobre a relação Rússia-Portugal – e de criar umaimagem como artista, que depois tinha que sustentar Nikolai Nekh

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APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICA

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Mecenas Exclusivo do Museu e do Projecto Improvisações/Colaborações

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Page 14: Os novos portugueses I

8 • P2 • Sexta-feira 20 Maio 2011

Sergiy e Tamara no país sem futuro Hoje há 52 mil ucranianos em Portugal, é a segunda maior comunidade estrangeira. Sergiy e Tamara fazem, um com o outro, o seu país. São diferentes. São, em Portugal, uma “nódoa branca”

a Primavera. Um dos primeiros dias de Verão. A gelataria Ice-it no Freeport, em Alcochete, começa a despertar da hibernação. A esplanada vai-se enchendo sobretudo ao fi nal da tarde até o sol se pôr por trás das lojas outlet. Várias mesas juntas fazem uma grande mesa onde se senta um grupo de jovens louros, bem vestidos. Falam russo.

O “patrão” da gelataria gosta de trabalhadores russos e ucranianos. Trabalham ali enquanto estudam ou procuram outro trabalho que se pareça mais com uma profi ssão.

Sergiy Plugatar já só trabalha ali aos fi ns-de-semana e um ou outro dia de semana, quando faz falta. Sergiy tem 21 anos. Já trabalhou nas obras, nas vindimas, nas discotecas. Agora, está a fazer um estágio numa empresa, parte de um curso profi ssional em instalação e manutenção de painéis solares: “O futuro.”

O que também tem futuro é a tropa, que “não pode ir à falência”. Mas para o futuro com que mais sonha terá que percorrer 16 mil quilómetros.

Ir para a Austrália também é o sonho de Tamara Pryanyk, a namorada de Sergiy, embora Tamara jure a pés juntos que já tinha um sonho antes de conhecer Sergiy.

Na Austrália, Sergiy poderá fazer surf e kite-surf, como poderia estar a fazer agora se não estivesse no Freeport, e vestir-se como agora, camisa de manga curta de botões abertos no peito, bermudas e chinelos de praia. A Austrália tem o que Portugal tem: sol e mar. E tem o que Portugal não tem: futuro.

Uma ideia de nacionalismoSergiy veio para Portugal com 13 anos e agora toda a gente lhe chama Sérgio. Quando a mãe o foi buscar à Ucrânia fi cou feliz – há dois anos que vivia com os avós enquanto a mãe se estabelecia em Lisboa – mas quando chegou a Portugal foi “horrível”, porque andava à pancada na escola. Tamara chegou da Ucrânia com 11, e, já nessa idade, percebeu que tinha encontrado uma vida melhor. Aqui podia ter pequenos luxos. “Aqui podia comer chocolates.”

Sergiy mudou várias vezes de casa nos arredores de Lisboa. A família de Tamara foi a primeira a instalar-se no Montijo, onde ainda vivem. Ela foi a primeira ucraniana na sua escola. Não havia qualquer apoio extracurricular – de língua ou outro, para fi lhos de imigrantes – e dependiam da caridade dos professores. Alguns professores ajudavam. A Matemática era o céu, porque tinham uma preparação excelente na Ucrânia,

mas o Português era o inferno. Ainda hoje, ao fi m de uma década em Portugal, Sergiy e Tamara não têm um completo domínio do português. Para Tamara, isso difi culta os estudos que está a fazer em contabilidade e fi nanças no politécnico de Setúbal.

Falam ucraniano em casa com os pais e falam ucraniano um com o outro. Falam russo com a maior parte dos amigos. Mas Sergiy sente-se bem em Portugal e Tamara acha que está “integrada”. O que não quer dizer que se sintam portugueses.

“Sou completamente ucraniana”, diz Tamara. Os pais são ucranianos – a mãe é empregada doméstica e chegou a trabalhar, diz orgulhosa, para o Carlos do Carmo; o pai era jardineiro, mas, aos 45 anos, há bastante tempo que está sem trabalho. O namorado é ucraniano. Os amigos são ucranianos ou russos, que é como se fossem ucranianos. “Até o meu gato é ucraniano. É um gato persa. Aqui custava entre 200 e 300 euros. Comprei-o por 10 euros quando fui à Ucrânia de férias.”

Sergiy tem olhos muito azuis sob sobrancelhas espessas, defi nidas. Tem uma pele dourada do sol, mas não chega para disfarçar, fi ngir que é moreno. Tamara é alta, tem olhos verdes, que com a maquilhagem ainda parecem mais olhos de gata, e aos 20 anos parece mais mulher do que uma portuguesa de 30.

Quando vão a qualquer lado, Sergiy e Tamara distinguem-se imediatamente. Os portugueses costumam falar dos seus emigrantes que estão fora, dentro há muitos

estrangeiros, mas ao mesmo tempo, diz Sergy, “mantêm uma ideia de nacionalismo”. E dentro dessa ideia, Sergiy e Tamara não têm lugar. A Tamara já lhe disseram várias vezes: “Vai embora para a tua terra”, assim “de caras”. Portugal está difícil para todos. Está mais difícil para eles.

“Os portugueses põem-nos à parte”, diz Sergiy. “Em todo o lado, somos uma nódoa branca.”

Fazer da vida uma loucuraSe em Espanha estivesse mais fácil, talvez se mudassem para Espanha. Vão visitar quando podem. Sergiy ainda não percebeu como é que isto é possível, mas constata que os portugueses não têm nada a ver com os espanhóis. Os espanhóis, constata também, e a primeira vez foi uma surpresa, “são muito parecidos com os russos e os ucranianos.” Os espanhóis têm uma boa palavra para a característica que os une aos ucranianos e separa dos portugueses: “festeiros”.

Ou nas palavras de Sergiy: “são malucos”, gostam da “loucura”. A “loucura” desviou Sergiy quando vivia em Setúbal, antes de se mudar para o Montijo, mas ele depois encontrou o caminho de volta e encontrou Tamara.

Agora a “loucura” é só ao fi m-de-semana. A “loucura” é uma das coisas que pesa na balança tornando mais leves os problemas. E se não fosse assim, se a vida não tivesse problemas, também não aproveitaríamos a “loucura”. É essa a fi losofi a de vida de Sergiy: sem problemas, a vida seria “secante”. E “os problemas passam”.

Sergiy vai para a cozinha e Tamara para a esplanada com uma amiga russa, Ana, que de T-shirt sem mangas, ainda não acredita que voltou da Sibéria, onde ainda há dois dias, a menos que zero, visitava o namorado.

Sergiy chega com crepes para elas, dá um beijo a Tamara, ela sorri. Sergiy tinha namoradas portuguesas, mas não tinha corrido bem. Até que encontrou a sua história de amor ucraniana no Montijo.

Durante o longo fi m de tarde de Primavera, quente como no Verão, quando não tem clientes, vem à esplanada, pergunta a Tamara se está tudo bem, passa pela grande mesa dos jovens ucranianos e russos para conversar, até ter que voltar para dentro do balcão. Em meia dúzia de mesas se faz uma Rússia, uma Ucrânia. Onde o sol brilha quase todo o ano.

Sergiy diz: “Sempre vou ter aquela mentalidade russa, ucraniana”. É essa mentalidade que faz com que se sinta melhor com Tamara do que com uma namorada portuguesa. Talvez seja também o facto de partilharem uma história, de estarem aqui num país que já não é estranho mas que ainda não é inteiramente familiar.

Quando Sergiy diz “a comida é boa” e Portugal “tem terras bonitas”, di-lo como se já tivesse partido e tivesse voltado de visita. Mas se emigrarem para a Austrália, talvez se descubram mais portugueses do que julgaram e venham a ter saudade. Estas “terras bonitas” costumam ter esse efeito nas pessoas.

RICARDO SILVA

Susana Moreira Marques

habitantes vinham de várias partes da Rússia, e não se entendiam todos, como se a Rússia fosse um continente, e cada província, um país estrangeiro.

Raduzhnyy era o título do trabalho de Nikolai Nekh que foi premiado com o prémio BES Revelação em 2008 e exposto no Museu de Serralves. Fez uma série de postais de Raduzhnyy, porque já não conseguia lembrar-se bem da sua cidade. Uma carta acompanhava: “Olá, pai! Como disseste que a minha cidade não tinha postais, decidi fazê-los. Misturei as minhas memórias com a cidade de Lisboa e procurei lugares familiares que me causam estranheza.”

Dentro do Instituto Alemão, Nikolai mostra as marcas que fez nas paredes o Verão passado: desenhou um pau e escreveu “stock”: a palavra é de origem alemã e quer dizer “pau”, e é um comentário discreto, mas mordaz do tempo em que vivemos.

As palavras importam. Quando chegou a Portugal, só sabia dizer uma coisa em português: “Rei do gado”. Em Portugal, nem reis, nem gado, nem escravos, mas as pessoas conheciam a Escrava Isaura, que tinha visto na televisão russa.

Na biblioteca onde Nikolai tem o seu atelier – porque não tem dinheiro para alugar um atelier e a biblioteca do Goethe é muito perto de casa, confortável e com Internet –, abre o computador e o YouTube. Basta escrever o nome do cantor russo Murat Nasyrov, para encontrar o vídeo. Play, e um careca pálido, imitando a personagem da família Adams, uiva à lua. Duas sul-americanas dançam rumba. A mãe Adams também por lá anda. E um homem de cabelo comprido e óculos começa a cantar: “Malchik hochet v Tambov.” “Um miúdo quer ir a Tambov”, canta Nasyrov, ao som de Bate, bate o tambor. O músico russo morreu quando se atirou de uma janela depois de tomar LSD, informa Nikolai.

O vídeo faz parte das suas pesquisas. Ele pesquisa sempre sobre imagens que outros fi zeram de outras imagens. Nos arquivos de família, por onde começou a trabalhar, julgava que se encontraria a ele próprio. E se isso foi verdade para o primeiro trabalho, o que vimos em Serralves, deixou de ter a certeza que olhava para os arquivos de família e explorava a sua própria história pelas razões certas.

“Comecei a questionar-me: por que é que é preciso olhar para esse passado? Comecei a dar conta que estava a cair numa armadilha – de pensar sobre a relação Rússia-Portugal – e de criar uma imagem como artista, que depois tinha que sustentar”, diz. “Eu estou aqui, agora. E quero fazer a melhor arte possível.”

Do outro lado da biblioteca há televisores com DVD onde mostra o vídeo mais recente em que está a trabalhar. Uma câmara foca um pontinho no mar. Estamos dentro de um helicóptero. O mar de novo, o pontinho às vezes parecendo uma ilusão de óptica. Depois, subitamente, corte para um imagem de um bloco de gelo, grande como uma montanha, imóvel sobre o mar. E depois, novamente, o pontinho fl utuante.

Um icebergue parece imóvel, mas não está. E Nikolai partiu para esta ideia de monumentos fl utuantes – que não se fi xam, porque não podemos fi xar a memória.

Page 15: Os novos portugueses I

8 • P2 • Sábado 21 Maio 2011

“Não tem a ver com cor, é ser pobre ou rico”

Os novos portugueses VI

Os cabo-verdianos são uma das comunidades estrangeiras mais antigas em Portugal. José, por exemplo, diz “nós”, os portugueses. Histórias de quem foi empurrado para a periferia e não quer fi car na periferia das oportunidades. Última reportagem da série.

Bairro do Zambujal interior

Um bar com garrafas por abrir. Uma estante com fotografi as a sorrir. Um sofá vazio. Uma poltrona onde já não se senta o pai de José. Costumava sentar-se, ligar a aparelhagem, pôr música cabo-verdiana, aumentar o som, e assistir aos fi lhos a jogar futebol entre a sala e o corredor. A mãe vinha, baixava o som, tirava a bola, voltava para a cozinha. O pai voltava a aumentar o som do funaná, sorria para a mulher, os fi lhos voltavam a recuperar a bola, sorriam para a mãe.

Era uma casa de 11. O casal Tavares teve nove fi lhos. Na estante das fotografi as há só uma com todos os irmãos. Estão espalhados pelo mundo, de Marselha aos Estados Unidos. E essa fotografi a foi tirada da última vez que se juntaram – para o funeral do pai, que morreu com cancro. Na fotografi a, José sorri. É o único que sorri. Depois ao ver a fotografi a fi cou um pouco envergonhado. Mas estavam todos juntos nesse dia, como tinham estado todos juntos, a lembrar-se da infância – neste apartamento de quatro quartos no Bairro do Zambujal –, no momento em que o pai morreu. José não queria convencer-se de que a família não voltaria a ser a mesma, não queria que aquela foto fosse a sua despedida da infância, e sorriu.

O pai de José tinha nascido em Cabo Verde e veio para Portugal como milhares de outros cabo-verdianos. Foram durante muitos anos a maior comunidade estrangeira em Portugal, depois ultrapassados em número pela imigração ucraniana e brasileira.

Há mais cabo-verdianos fora de Cabo Verde do que dentro, e talvez por isso fosse tão importante para os pais de José falarem crioulo com os fi lhos, porem música cabo-verdiana, fazerem com que tivessem orgulho nas suas raízes mesmo que nunca

viessem a visitar Cabo Verde. José gostava de ir um dia. Tem

34 anos e ainda não foi. A mãe dele está agora em Cabo Verde a cuidar da avó doente. José trabalha num Centro de Repouso das clínicas CUF, onde muitos residentes precisam de cuidados de fi m de vida, um trabalho que nunca lhe ocorreu fazer antes da experiência de acompanhar a doença do pai, mas que agora faz sentido. Às vezes faz turnos da manhã, outras vezes chega muito tarde, cansado, a precisar de se animar, e encontra este silêncio de 10 pessoas.

Já pensou voltar para Marselha, onde estão alguns dos irmãos e onde viveu durante um período. “Marselha é parecido com Lisboa”, diz. Tem um porto, e uma praça como o Rossio onde, em vez de angolanos, cabo-verdianos e guineenses, há africanos do Senegal, dos Camarões, de Marrocos. Em Marselha também estão todos “divididos”. Os imigrantes são empurrados para a periferia. Como em Lisboa. Como no Bairro do Zambujal, em Alfragide.

Quando estava em Marselha e os franceses desdenhavam dos portugueses, ele dizia-lhes: “Vocês fi zeram-se ao mar por causa de nós”. Sem os portugueses, hoje não haveria senegaleses, malianos, argelinos em Marselha.

Os franceses são mais “nacionalistas”, diz José, o que, chamando as coisas pelos nomes, quer dizer mais racistas. “Nós, portugueses, tratamos bem os estrangeiros, até damos mais aos outros do que a nós próprios.”

José nunca fala dos portugueses na terceira pessoa. Diz sempre “nós”. Por nós, esteve na Bósnia com o Exército e, pela primeira vez, viu gente passar fome. Da Bósnia, para além de uma grande amizade com um tripeiro, o Valadares, o “Baladares”, como lhe chamava, trouxe a certeza de que era boa a sua vida no Bairro do Zambujal.

José Tavares Eduardo e Lúcia Baessa com a filha, Íris

Por Susana Moreira Marques

NUNO FERREIRA SANTOS

Page 16: Os novos portugueses I

P2 • Sábado 21 Maio 2011 • 9

Isa Monteiro

José nunca fala dos portugueses na terceira pessoa. Diz sempre “nós”. Por nós, esteve naBósnia com o Exército e, pela primeira vez, viu gente passar fome. Da Bósnia, para além de uma grande amizade com um tripeiro, o Valadares, o “Baladares”,como lhe chamava, trouxe a certeza de que era boa a sua vida no Bairro do Zambujal

Sem conclusão

1. Lisboa, Anjos, Espaço Contacto Cultural. Explico que estou a fazer uma série de histórias sobre a segunda geração de imigrantes, e que escolhi o bairro mais multicultural de Lisboa para começar. Os coordenadores do Espaço, com experiência de trabalho com jovens da zona, perguntam-me logo: o que queres dizer com multicultural? E o que é a segunda geração de imigrantes? Quer dizer que ainda são imigrantes? E porque falamos de imigrantes, e não de migrantes?

Risquei “multicultural”, risquei “segunda geração”, risquei “imigrante”. Fiquei sem palavras.2. O antigo editor da revista americana Paris Review, o jornalista Philip Gourevitch, confessou-me numa entrevista que, depois de ter lido todas as entrevistas a escritores de todo o mundo da Paris Review, feitas durante cinco ou seis décadas, só tinha chegado a uma conclusão: que não havia conclusão. Centenas de escritores e não havia dois que escrevessem da mesma maneira. E o que acontece muitas vezes aos jornalistas é isto: fazemos dezenas de entrevistas e descobrimos que não há conclusão. 3. Comi gelado em Alcochete com ucranianos. Falei com chineses em Vila do Conde. Encontrei-me com angolanos em cafés de Lisboa. Fui ao Festival Indie com um russo. Comi uma tosta mista com um caboverdiano em Alfragide. Fiquei amiga de um guineense no Facebook. Falei com cerca de 20 pessoas de origens diferentes em pouco mais de um mês. Contaram-me onde cresceram, como chegaram onde estão, para onde se vêem a ir. Contaram-me histórias de família, de vida, dos amores, porque havia sempre um pouco mais de tempo para mudar de assunto. A única conclusão é que cada pessoa tem uma história que dava uma reportagem só. Não há uma história comum de integração ou de não-integração.4. Durante as entrevistas, fazia perguntas idiotas: Comes comida portuguesa? Gostas de fado? E os entrevistados eram extraordinariamente pacientes. Já ouviram muitas vezes: Mas sentes-te português?

Se eu fi zer uma lista das características tipicamente portuguesas, quantos items da lista batem certo comigo? Eu não ouço fado. Detesto sardinhas. E sou demasiado optimista. 5. Para a reportagem sobre os descendentes dos caboverdianos, estive no CESIS, uma associação no Bairro do Zambujal, e apontei uma frase escrita num cartaz: “Alguns países ainda não começaram a pensar.” É uma frase mordaz mas oblíqua. Estariam a falar de Portugal? Portugal já deve ter começado a pensar nos novos portugueses, porque tem uma das melhores leis de imigração da Europa. Falta os portugueses começarem a pensar. Nós também podemos ser novos portugueses.

Susana Moreira Marques

Crónica

Bairro do Zambujal exterior

A fronteira é um edifício de prédios contíguos que parece não ter fi m. De um lado, a rua principal que vai para Alfragide e para o IKEA, e do outro começa o Bairro do Zambujal, na Rua das Mães-d’Água, com as suas estruturas de pedra marcando o caminho do Aqueduto das Águas Livres. A passagem de um lado para o outro faz-se por uma espécie de túneis, recortados no edifício.

Foi para esta fronteira que veio viver Isa Monteiro aos dois/três anos de idade. Do lado de cá, o mundo era confortável. As pessoas pensam que os bairros sociais são perigosos, mas perigoso parecia o mundo do outro lado. No bairro tinha os pais, irmãos, avó, tios, primos. E todos os amigos, fossem fi lhos de cabo-verdianos ou fi lhos de portugueses.

Da janela do quarto via o morro por onde as crianças desciam a fazer “sku” em pára-choques abandonados. “Imaginavam que andavam de caiaque.”

Isa diz que não fazia “sku” nem caiaque. Deve ter sido uma criança séria. Isa é uma rapariga séria. Mesmo quando sorri, para toda a gente, todo o tempo, cumprimentando à direita e à esquerda, enquanto faz uma tour do bairro.

Um dos limites é o túnel que liga à Buraca, numa das pontas da Rua das Mães-d’Água, que Isa ajudou a requalifi car, conseguindo pôr um grupo de jovens a pintar. Três miúdos saem do túnel disparados de bicicleta e travam aos pés de Isa. São crianças que ela acompanha no Cesis (Centro de Estudos para a Intervenção Social), onde é coordenadora de um programa de combate ao abandono e insucesso escolar. Dizem olá e voltam a acelerar rua fora. “Tenham cuidado”, ainda grita Isa. Aos 27 anos, já tem alguns cabelos brancos. Preocupa-se com toda a gente e,

embora não tenha fi lhos, é uma espécie de mãe do bairro.

Seguindo a linha do aqueduto na outra direcção vai-se dar a um parque, outra fronteira. De um lado Zambujal, do outro Alfragide, poucas centenas de metros, mas continua a fazer diferença dizer que se é do Zambujal ou de Alfragide.

A escola onde Isa estudou, assim como José, fi ca nesse parque. No tempo de Isa, fi cava num descampado e não estava pintada de azul.

O mundo lá fora deixou de ser intimidatório quando começou o liceu. Depois foi para a universidade. Quando não arranjou colocação como professora, começou a trabalhar no bairro com o Cesis, a dar apoio escolar. Ela não só tinha nascido ali – conhecia as famílias e falava crioulo – como tinha nascido para aquilo.

No exterior do Cesis, os jovens do bairro pintaram o muro. Fizeram um globo terrestre muito azul, desenharam uma lupa, e pela lupa vemos o Bairro do Zambujal. É isso que a Isa faz, pôr as pessoas do Zambujal no mundo.

Bairro do Zambujalcafé

O café tem meia dúzia de mesas, uma televisão a dar a Eurosport, gelados e matraquilhos – tudo o que é preciso para o negócio. Lúcia Amorim está atrás do balcão. Eduardo Baessa anda de um lado para o outro, não consegue estar quieto. Foi assim desde miúdo, e por isso é que um dia na escola a professora, ao pô-lo de castigo, chamou-lhe “Andorinha”. Pegou. Ainda hoje é o Andorinha. Também é conhecido como Eduardo, o Pacifi cador, porque ao seu café vão pessoas de raça branca, negra, mista e de etnia cigana, e quando é preciso resolver confl itos vêm chamá-lo.

Eduardo é mulato, fi lho de cabo-

– onde Lúcia já cresceu atrás de um balcão – foi mais difícil aceitar. Não só pela cor de pele de Eduardo, mas porque ele tinha estado preso pouco antes de começarem a namorar.

O “Andorinha” tinha fi cado irrequieto demais, e dinheiro fácil “era aliciante”. Depois percebeu que “a trabalhar também pode ter aquilo que quer”. E é isto que ele quer: Íris acaba de chegar afogueada numa bicicleta cor-de-rosa. Quer ver os fi lhos crescer, se possível com mais oportunidades do que as que os pais tiveram. “Não queria que a minha fi lha tivesse que passar a vida atrás do balcão como a mãe”, diz.

Se quando ele cresceu ainda fazia diferença a cor de pele, Eduardo acredita que já não faz, nem na escola nem no mundo do trabalho. O que faz diferença é o acesso à educação, o dinheiro, o poder, as “cunhas”. “Não tem a ver com cor, tem a ver com ser pobre ou rico.”

Íris é parecida com o pai. E também é uma andorinha. Acompanha o pai para fora do café, ajuda-o a aspirar o carro, e começa a dançar quando Eduardo liga o rádio.

É fi nal de dia e a rua vai fi cando mais cheia. Os clientes entram para comprar cerveja e voltam a sair. Faz calor de trovoada. As pessoas – muitos homens jovens – sentam-se nos canteiros, à espera que algo aconteça. E algo acontece: um cabo-verdiano e um cigano pegam-se, depois fogem cada um para seu lado. Uma audiência concentra-se do outro lado da rua para esperar a briga.

Íris não deu por nada e continua a dançar junto do carro do pai, ao som da Shakira: I’m crazy but you like it, loca, loca, loca…

Lúcia junta-se a eles com o mais pequenino ao colo que acaba de sair da creche.

A briga não chegou a acontecer, e todos voltam lentamente às suas cervejas, à espera. O dia está a cair rapidamente. Talvez seja amanhã que algo aconteça que mude as suas vidas.

verdianos, bisneto de um português, e Lúcia é branca, fi lha de um casal de Ponte da Lima. Têm dois fi lhos, Íris, de cinco anos, e Leandro, de um ano e meio.

Quando Eduardo começa a olhar à volta para os clientes, aponta para várias pessoas que estão em casais mistos. “Aqui no bairro é normal.” Para Lúcia, namorar um cabo-verdiano era normal, ela sempre teve amigos negros, sempre saiu para discotecas africanas. Para os pais de Lúcia, que têm uma mercearia na esquina oposta ao café

NUNO FERREIRA SANTOS PEDRO CUNHA