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Introdução

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HÁ COISAS na vida que só se tornam possíveis pela completa e ale-gre inconsciência com que são enunciadas. Assim aconteceu comigo, com a editora Oficina do Livro e com estes seis queridos amigos que fizeram o favor de embarcar numa aventura tão abstrusa como di-vertida, para nós e também, esperamos, para os leitores.

O início era simples: inspirado pelo mano a mano de Eça e Rama-lho, de que resultou o Mistério da Estrada de Sintra, sonhei juntar um grupo de escritores suficientemente inconscientes e disponíveis para escreverem os novos mistérios de Sintra.

Juntámo-nos os sete e a primeira questão que surgiu foi a da Es-trada de Sintra do mistério original. E logo a estrada desapareceu, já que dificilmente o famoso IC19 permitiria ambiente propício ao mistério. Entrámos, portanto, no drama verdadeiramente dramático que era o de saber qual é a história e qual é o mistério.

Num acto de coerentíssimo delírio, resolvemos que a história, ou o Mistério, ou o que quer que fosse, se devia engendrar a si próprio. Ou seja... Um de nós começava e o senhor ou a senhora que se seguia que se desembrulhasse.

Assim foi. De mão em mão, o mistério foi crescendo na escrita e no espírito dos seus autores, que se viram e desejaram para que a estrada comum da ficção não tivesse demasiadas curvas.

Com paixão por Sintra e pelos muitos escritores que se deixaram tomar pelo seu veneno doce, fomos andando ao sabor do prazer da

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escrita, inventando crimes nas sombras da Serra da Lua, encontros secretos na Regaleira e viagens pela nossa História onde se encon-tram templários, maçons, um satanista duvidoso, uma intriga inter-nacional, um assassinato inexplicável e tudo o mais que adiante se verá.

A falta de unidade estilística era uma condição prévia. Estava no cerne do projecto. Havia apenas que controlar essa falta de unidade criando uma linha de coerência que atravessasse o romance através dos seus múltiplos sobressaltos e que o fizesse chegar a um final ra-zoavelmente credível.

Inesperadamente, este processo de escrita acabou por tornar-se numa estratégia de provocação e sedução com que cada um de nós procurava puxar os outros para a sua própria história. Porque cada um de nós tinha uma história própria, uma história que era necessa-riamente acrescentada, modificada e torpedeada pelos companhei-ros que se seguiam. E, mais tarde, quando voltava a sua vez de entrar na trama, procurava forma de reintroduzir alguns dos seus temas, das suas simpatias e das suas obsessões.

Se o jogo era encantador, a certa altura revelou-se também perigo-so. Alguma descoordenação fazia balançar o navio. Multiplicavam--se os becos sem saída a que cada um de nós conduzia o capítulo que lhe cabia.

Mas a história acabou por chegar a bom termo, e graças também à nossa querida editora, a Cristina Ovídio, que nos ralhava como a meninos que sonhavam e se divertiam, recusando-se a regressar ao sumário da lição.

No final, o objectivo foi conseguido: uma história misteriosa e divertida. Um exercício de escrita tão agradável que alguns de nós pensam continuar e partir já para o próximo romance.

JOSÉ FANHA

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I

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A chave

— VENHAM, meninos. Esta não é uma visita qualquer. O Palácio da Vila nasce de um alcácer levantado pelos mouros no século X e há nesta arquitectura um sabor enigmático, um encanto oriental que eu gostaria que vocês apreendessem.

— Ó pai, e as queijadas? Estou cheio de fome — disse o Miguel.E a Luísa:— O pai prometeu que íamos às queijadas.Explicar à Luísa e ao Miguel que o Paço Real fechava às cinco e

que as queijadas lá estariam pela tarde adiante foi ainda mais difícil quando a Helena tomou o partido dos filhos e garantiu que eram quase horas de lanchar.

— Hão-de ser sempre uns burros, vocês. Uns burros e uns igno-rantes. Vamos então só dar uma volta, ver o que vêem os turistas, a Sala dos Cisnes, a Sala das Pegas, uma espreitadela ao terreiro de

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São Sebastião. Depois podem ir lanchar, mas eu fico. Encontramo--nos mais tarde, ao pé da escadaria do palácio.

— Devias ter sido arquitecto — disse Helena. — Arquitecto e não historiador.

— A arquitectura faz parte da História — defendi-me, porque aquilo era um ataque. — Não a que se constrói, mas a que se es-tuda. Há mais História numa simples porta fechada que em todas as versões oficiais dos acontecimentos que vêm nos vossos manuais escolares.

— Que exagero, Gonçalo. Mas está bem. Vamos lá dar uma volta, e por favor mostra-nos só o essencial.

— Nós vemos o resto na Internet — disse a Luísa.— O essencial — refilei. — O essencial é a essência, e isso é pre-

cisamente o que vocês não querem perceber. Um dia, quando eu estiver gagá, hão-de ter saudades das minhas explicações.

— Eu acho que o pai já está gagá — disse o Miguel em voz baixa à irmã. Mas eu ouvi. E magoou-me a forma imbecil como os meus próprios filhos se riram de mim.

Lá fizemos a tal voltinha para turistas e depois deixei-os ir, porque não se assimila nada se o coração não está lá, e não é com o coração num pacote de queijadas que se pode aprender o inefável da Histó-ria.

Deixei-os ir. Com pena, porque a minha intenção era interessá--los nos mil e um mistérios daquele palácio, desde a carta régia de D. Diniz datada de ‘28 z na qual se refere aos mea palacia de Oliva preceituando que a sua conservação deveria ficar a cargo dos mou-ros forros de Colares, até à Sala dos Brasões, já do século XVI, onde havia de mostrar-lhes o nosso, enfim, o brasão dos Vieiras, com a concha do marisco que nos dá o nome.

São talvez demasiado pequenos para se interessarem por estes te-mas. Nove e onze anos, e tentei recuar na memória até à idade deles, quando qualquer livro com um pouco de mistério me fazia ficar até altas horas a ler com a lanterna acesa por baixo dos cobertores.

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São outros tempos, pensei, nada conformado mas rendido à evi-dência. Não sei em que momento destes raciocínios me alheei da re-alidade que me cercava. A verdade é que me achei perdido (estranha esta construção paradoxal, mas foi o que aconteceu), achei-me per-dido numa sala do palácio totalmente vazia de mobiliário e de gente.

Conheço bem o palácio e não me lembro de alguma vez ter estado nesta sala. É uma divisão pentagonal com as paredes cobertas de azulejos de fabrico sevilhano, século XV, suponho, em verdes, azuis e brancos como os da Sala dos Árabes, mas sem o friso de flores-de-lis e maçarocas e sem a janela manuelina que ali deita para o Pátio dos Cisnes.

Pensei tudo isto num ápice, sem entender como viera ali parar, correndo os olhos pelas paredes à procura do arco ou passagem que me dera acesso. E sim, lá estava ela, uma pequena porta renascentis-ta, de elegante mármore lavrado, sedutora e fechada.

Há mais história numa porta fechada... tinha eu dito aos meus fi-lhos minutos antes. A frase martelava-me na cabeça enquanto me dirigia para ela, subitamente assustado e sentindo-me estúpido por esse minuto de pânico que me invadiu quando me aproximei da por-ta e verifiquei que não tinha nem chave nem puxador.

Há mais história numa porta fechada...É só empurrar, pensei. Óbvio. É só empurrar.Mas uma certeza me inquietava. Eu não tinha entrado por aquela

porta. A porta estava na minha frente e eu tinha vindo do lado con-trário. Mas como, se atrás de mim nada mais havia que uma parede de azulejos fazendo ângulo com outra, dois quintos do pentágono, mais uma parede ao meu lado direito, outra à esquerda e outra à minha frente, com a porta ao meio. Teria eu dado voltas sobre mim mesmo à procura da saída? Agora isso era irrelevante. A própria es-trutura da sala prestava-se a confusões. Senti-me mesmo um pouco tonto e foi já sem firmeza que caminhei para a porta, ansioso por sair dali, procurar a fonte com repuxo que figura Proteu com o seu tridente, passar água na cara, rir-me do meu susto infantil.

Mas a porta estava firmemente fechada. Por mais que a empur-

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rasse, mantinha-se sólida, impenetrável, como se fosse apenas uma fantasia arquitectónica decorativa.

Pus-me então a esquadrinhar as paredes com as duas mãos aber-tas, a transpirar, a sentir-me asfixiar, como se aquela sala, de pé--direito altíssimo, não contivesse oxigénio para muitos dias e muitas noites.

Isto não me está a acontecer. Estou a dormir e é um pesadelo, consegui pensar, fazendo valer o meu habitual optimismo, sem con-siderar a total falta de lógica desta hipótese, eu estava minutos antes a visitar um palácio, não era natural que tivesse adormecido (em pé?) durante o processo.

Não estou adormecido, estou é lixado, disse em voz alta e sentei--me no chão, ao lado da porta, a tentar raciocinar.

Achei que tinha passado um século. O palácio fechava às cinco e pensei que teria de ficar ali até ao dia seguinte, não, até terça-feira, à segunda não abrem e depois, na terça-feira, que hipóteses haveria de alguém dar comigo numa sala sem portas?

A Helena devia ter esperado horas, sentada com os pequenos nos degraus do palácio, até que se fez noite, e, a chamar-me todos os nomes do seu repertório, meteu-se no carro e voltou para Lisboa. Era o que eu imaginava e subitamente apercebi-me de que na sala não estava escuro, o que significava uma saída, enfim, uma entra-da de luz. Sem compreender, pus-me a olhar para o tecto e vi que de dois círculos concêntricos jorrava uma lindíssima cortina de luz branca matizada de turquesa ametista e topázio, como um arco-íris incompleto. Era de uma beleza irreal e só o meu estado de pânico me impediria de perceber tal deslumbramento.

Não sei porquê, esta visão encheu-me de esperança e tive a certeza de que conseguiria abrir a porta.

Não queria olhá-la. Por uma espécie de superstição infantil, fe-chei os olhos e acreditei que quando os abrisse a chave estaria na fe-chadura. Admitindo que havia uma fechadura. Não, pensei, com os olhos fortemente cerrados. Não vi nenhuma fechadura. Uma chave não me serviria para nada.

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Foi então que ouvi passos. Passos leves, leves, como de criança, talvez de mulher descalça. Abri os olhos e não vi ninguém. Como poderia ter visto? A minha imaginação iria continuar, tinha a certe-za, a pregar-me toda a espécie de partidas. Começava a desconfiar dos meus próprios sentidos, quando olhei para a porta e vi uma cha-ve no chão. E então tive muito, muito medo.

Era uma chave pequena, de aspecto antigo, só por si um objecto de arte, e só esperava que eu lhe pegasse e abrisse finalmente a mis-teriosa porta.

Sentindo-me uma personagem dos irmãos Grimm ou de Lewis Carrol, baixei-me e peguei na chave. Não tinha pressa porque sabia que a porta não tinha fechadura, mas não custava nada procurar com todo o pormenor. Mas nada. Em nenhuma voluta do mármo-re esculpido havia fenda, buraco ou ranhura onde a chave pudesse entrar.

Tive a certeza de que estava louco. Tinha morrido e passado para outra dimensão. Entrara sem aviso num mundo paralelo e pus-me, como um doido, à procura de qualquer depressão entre os azulejos onde a chave coubesse e, por estranho que isso fosse, não era mais estranho que a minha permanência numa sala pentagonal sem jane-las, nem portas praticáveis, que a aparição súbita de uma chave no chão de azulejos onde se podia observar um grande círculo de tom ferruginoso, como se alguém (e esta ideia gelou-me de terror) ou quem sabe centenas de homens e mulheres tivessem caminhado às voltas na busca desesperada de uma saída, de uma fenda na parede, de uma depressão no mármore da porta e tivessem, com seus passos inúteis, desgastado o vidrado dos velhos ladrilhos de cerâmica.

E de súbito aquele chão lembrou-me alguma coisa de tenebroso, alguma coisa que a minha memória parecia recusar, mas que, sim, se eu conseguisse concentrar-me viria ao meu espírito. A sala. Talvez esta sala. Uma sala-prisão. Uma sala para um encarcerado, que era precisamente a minha situação actual. E então soube que jamais sai-ria dali. Que morreria em breve, de inanição e desespero.

Era isso. A chamada sala de D. Afonso VI, onde aquele rei esteve

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recluso durante nove anos.A outra sala tinha portas e janelas, mas esta era a sua representa-

ção simbólica e cabia-me agora a mim, por qualquer obscura razão, sentir na pele o que o rei sentira nos seus últimos anos de vida, lou-co, atraiçoado e doente.

D. Afonso VI era filho do rei D. João IV, o tal que na revolução de 1640, que depôs os Filipes de Espanha, se escondeu debaixo da cama porque não queria ser rei. Não bastou ao pobre Afonso a ge-nética de sua mãe, D. Luísa de Gusmão, duquesa de Bragança, que soube estar à altura dos acontecimentos, declarando «mais vale ser rainha uma hora do que duquesa toda a vida» e fazendo com que o duque assumisse o papel que a História lhe reservara.

O par real teve quatro filhos: D. Teodósio, que morreu criança, D. Afonso, que sofreu uma paralisia cerebral ainda antes de completar três anos, D. Pedro e D. Catarina.

Esta princesa casou com Carlos II de Inglaterra e ficou célebre por introduzir naquele país o hábito de tomar chá.

Tudo me vinha agora à memória com uma nitidez assustadora, como se eu próprio tivesse vivido no conturbado século XVII.

Pareceu-me que o meu corpo se deformava com a enfermidade do infante D. Afonso, o lado direito paralisado, a boca, a mão e o pé distorcidos e vi-me a arrastar, em círculos, a perna inútil, cavando no chão a marca da minha deficiência e da minha agonia.

Apesar da sua anormalidade, D. Afonso, que o embaixador inglês Robert Southwell descrevia, em informação à sua corte, como um ser que vivia «em estado estúpido e digno de compaixão», foi jurado herdeiro em 1653 e aclamado rei a 15 de Novembro de 1656.

Que rei seria este? Um pobre de espírito que «folgava de tratar com gente bronca e de se entregar a passatempos grosseiros». Os seus amigos eram os irmãos Conti, mercadores genoveses de baixa estirpe, que introduziu no paço. Com eles e o seu bando se arrastava o rei à noite por Lisboa, entretendo-se com vandalismos e brincadei-ras de mau gosto.

A rainha, cansada de tentar, em vão, pôr cobro a estes inaceitáveis

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desmandos, quis abandonar a regência quando o filho completou dezoito anos. Rogaram-lhe que o não fizesse. Foi então que o conde de Castelo Melhor, jovem ambicioso, imaginou ser capaz de alcan-çar um enorme poder tornando-se valido de um rei totalmente in-capaz e levando-o a rebelar-se contra a rainha e a assumir o poder.

Quatro anos mais tarde realizou-se o casamento de D. Afonso VI com Maria Francisca de Sabóia. No próprio dia da boda o rei prefe-riu jantar sozinho nos seus aposentos e quando quiseram convencê--lo a entrar na câmara nupcial desatou num choro infantil, alegando que se tratava de uma conspiração para o matarem.

O casamento nunca se consumou e mais tarde foi considerado nulo.

A rainha Maria Francisca de Sabóia, linda e inteligente, livrou-se da terrível provação que seria o casamento, no sentido bíblico, com aquele estropício de marido.

Mas não era sua intenção permanecer virgem. Não tardou que toda a corte murmurasse das suas relações com o cunhado D. Pedro. Solicitou um inquérito sobre a «incapacidade do rei para consumar o casamento». Obteve uma carta em que o marido declarava isso mesmo. Guardado à vista, teve de ceder a todas as exigências que a mulher e irmão lhe fizeram, e desistiu da governação.

As cortes depuseram o rei e confiaram a regência do reino ao in-fante D. Pedro, que pôde casar com a cunhada, uma vez anulado o casamento dela.

O rei ficou prisioneiro até à morte.Começou por ser mandado para a ilha Terceira, depois de ter per-

manecido confinado aos seus aposentos no Paço de Lisboa. Mas a sua proximidade não era tolerável para a rainha e para o seu novo marido.

Ficou nos Açores cinco anos, trôpego, abandonado e dominado por acessos de fúria que tornavam a vida insuportável a quem o ser-via.

Uma conspiração contra o regente que planeava um levantamen-to em Angra do Heroísmo, assassinando o governador e libertando

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o rei, fez com que este fosse chamado de novo a Lisboa.O plano era levar para Espanha D. Afonso VI, que dali tentaria

apossar-se do trono de Portugal.Mas os conspiradores foram descobertos e condenados à morte.Na viagem para o Continente, o rei, num ataque de fúria ou talvez

de loucura, tentou assassinar o governador de Angra, que o acom-panhava. Tiveram de prendê-lo e encerrá-lo no camarote do navio.

Quando desembarcou (e é esta informação que o meu espírito não quer recordar), levaram-no para o Palácio da Vila, em Sintra.

O rei sou eu e estou preso. O rei sou eu. O rei sou eu. Durante nove anos vou arrastar em círculos o meu pé disforme, fazer um sul-co ainda mais profundo neste chão já marcado pela desgraça, urrar pedindo que me soltem, que me acudam, que me matem.

Parei, de novo com falta de ar; de novo coberto de suor, de novo com um ataque de pânico, e caí desmaiado.

Nunca tinha desmaiado na vida e o que senti foi, primeiro, que a vista me fugia, a seguir o ouvido, por fim a voz, quando quis gritar para dizer que também as pernas me faltavam. E depois fiquei bem. Deitado no fundo de um lugar escuro, repousante, e aos poucos, como uma espiral dentro da cabeça no caminho de volta, comecei a ouvir vozes, alguém que pedia água e uma mulher nova segurou a minha cabeça e disse:

— Afastem-se, dêem-lhe espaço, eu sou médica, onde está a água — e deu-me de beber.

Fiquei ali um momento até me aperceber da situação e então, cheio de confusão e vergonha, abri os olhos, sentei-me no chão um pouco trémulo, e disse:

— Perdão, que estupidez — e a mulher tomou-me o pulso e disse:— Está melhor, deve ter tido uma alteração da tensão arterial, não

quer ir amanhã ao meu consultório?E então percebi que era linda, com uns enigmáticos olhos claros,

pele branca, cabelos negros, vestida de azul com um decote sugesti-vo, e um sorriso trocista que me fez morrer de embaraço.

— Bem, acho que estou melhor — disse eu. — Ouvi bem? Você é

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médica?Psiquiatra — disse ela. — Nada que me impeça de prestar pri-

meiros socorros a um desfalecido — e sorriu. — É o calor, sabe, este Verão tem sido terrível.

— Não sei como hei-de agradecer-lhe. É que eu... Percebi que não podia explicar-lhe a situação, porque corria o ris-

co de me ver internado num hospício.E contudo podia reconhecer, à minha volta, a Sala dos Árabes,

com serventia a partir da cozinha, revestida de azulejos, com a linda janela manuelina, e, ao centro, a fonte que tanto desejara momen-tos antes (ou noutro tempo ou noutra dimensão) com suas figuras marinhas, querubins nus e a flora fantástica que só um artista podia imaginar.

Ela entregou-me um cartão-de-visita.— Procure-me no meu consultório. Temos de evitar novos aciden-

tes.— Que acidentes — ainda murmurei. Mas ela virara as costas e

pude ver como era bem feita de corpo, não muito magra mas extre-mamente harmoniosa e, não sei porquê, tocou-me a beleza do seu longo cabelo preto caído nas costas sobre o azul do vestido e fiquei a olhá-la, que, sem se voltar, descia em direcção à saída.

Só então percebi que afinal não eram sequer cinco horas, porque os visitantes prosseguiam calmamente o seu passeio pelas salas ma-ravilhosas.

Onde estivera eu? Que se passara? Quem era aquela mulher? Se-riam seus os passos que nitidamente ouvira no meu pesadelo? E teria sido um pesadelo? E a chave? Seguramente mais uma miragem, visto que não a encontrei nos bolsos, depois de me apalpar furiosamente. Alguém ao meu lado perguntou:

— Perdeu alguma coisa? É que os larápios, sabe, aproveitam-se da confusão...

— Pois, eu sei, mas não, não me falta nada. Obrigado.Faltava-me tudo. Sobretudo a razão. A distinção entre real e ima-

ginário. A percepção do tempo e do espaço, a certeza de estar na

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posse das minhas faculdades mentais.Pensei na Helena e nas crianças. Mas ainda era cedo e eu sabia que

elas não voltariam antes das cinco, com medo que eu lhes impingisse uma aula de História, lhes contasse a lenda das pegas que dizem «por bem», ou lhes falasse de tectos de alfarge, de azulejos alicatados ou dos veados heráldicos da Sala dos Brasões.

Sentei-me nas escadas, a saborear a tarde magnífica, feliz por estar vivo, por haver um mundo real, por sentir fome. Tive vontade de rir alto. Mas agora tinha tanto medo de passar por doido que me levan-tei, tentando compor uma pose digna de homem sensato.

Mas a minha paz estava irreversivelmente arruinada. A minha ca-beça voltava e voltava àquela sala sem portas nem janelas, com o chão gasto pelos pés de ninguém, a luz celestial vinda do tecto como uma doce cascata, a chave inútil de nenhuma fechadura. Aquele lu-gar. Mágico, misterioso, aterrador e fascinante ao mesmo tempo. Aquele lugar dentro de mim, fora de mim, inquietante, onírico, ka-fkiano.

A Helena chegou com as crianças.— O que tens? — perguntou ela.— Nada — respondi.Toda a gente que pergunta o que tens sabe que a resposta é nada.

Mas as mulheres insistem em perguntar, não para saberem a respos-ta, mas para nós repararmos que elas notaram alguma coisa diferen-te. Sabemos que, nesta matéria, têm sempre razão.

Nada — disse eu, e soube que para a Helena este nada queria dizer muita coisa, ou alguma coisa de anormal. Mas ela não insistiu.

— Pai — disse o Miguel, cuja barriga atafulhada de queijadas tornava conciliador.

— Pai, para a próxima havemos de ir ao Palácio da Pena.— Mentiroso — disse eu. — Só queres vir a Sintra para comer

queijadas.— E travesseiros — disse a Luísa. — Ele comeu três.— Não sejas queixinhas, idiota.

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E foi preciso metê-los na ordem para não partirem para o con-fronto físico.

— Eu não lanchei, sabem? Até me senti maldisposto lá dentro do palácio. O meu bife do almoço era péssimo e comi mal.

— Ah, então era isso — disse a Helena. — Fome. Não há nada pior que um homem com fome.

— Ó pai, estivemos horas na pastelaria, não aguento mais.— Que egoísta Luísa — disse a Helena. — O pai vai lanchar, sim

senhora. Vamos lá.Mas de facto eu não tinha a certeza de querer comer. Era como se

estivesse nas nuvens. Caminhava sem sentir o chão debaixo dos pés. Apoiei-me na Helena, que interpretou o meu gesto como ternura e me beijou a mão que lhe pousei no ombro.

Comprei uma sanduíche e um sumo e propus que voltássemos para Lisboa; por Cascais e pela Marginal. A beleza da tarde justifi-cava esta opção.

As crianças estranharam o meu silêncio, mas a mãe disse que eu não me sentia muito bem, mesmo depois de ter comido, o que era óbvio, e que eles deviam deixar-me em paz.

Agradeci à Helena, porque, de facto, precisava de pôr a cabeça no lugar. Não gozei minimamente o presente que é a vista da Margi-nal ao fim da tarde. Continuava naquela sala pentagonal a reviver a angústia da situação inenarrável. Inenarrável, sim, porque não po-dia contá-la a ninguém. Há coisas que não se podem contar. Não podem mesmo. E o mais terrível é que não se podem compreender. Nem esquecer. Tive a certeza de que nunca mais dormiria uma noi-te tranquila. Tive a certeza de que de tanto tentar descobrir aquele mistério havia de enlouquecer.

Tenho o hábito de esvaziar os bolsos, à noite, para um lindo prato de porcelana que a Helena me ofereceu. Está no meu quarto de ves-tir, que é a única divisão da casa exclusivamente minha.

Ali tenho os meus fatos, muito bem pendurados e escovados, as minhas camisas, os cintos, as gravatas, as malhas, os sapatos. É um móvel de enorme funcionalidade que condiz com o meu espírito me-

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tódico. E sobre uma pequena mesa o prato de porcelana com motivo de perdizes, onde coloco as chaves, os trocos...

Aqui estão elas, as chaves. A chave do carro. O porta-moedas, a carteira. Um lenço, dobrado e perfumado. Um pente de bolso. Um corta-unhas. Uma pequena agenda. Um cartão-de-visita: Brites de Vilhena, psiquiatra. E uma chave.

Uma chave desconhecida, por si só um objecto de arte.E de repente aquele mal-estar que a chave me provoca transfor-

mou-se numa espécie de alívio de descoberta. Esta era a chave.