os novos feminismos e os desafios para o século 21

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Os novos feminismos e os desafios para o século 21 “Enquanto o feminismo dos anos setenta se organizava em torno da unidade de todas as mulheres, os novos feminismos partem da diferença como condição inerente à prática política” Carla Cristina Garcia As teorias feministas são inúmeras, mas todas partem de uma consideração elementar: que a opressão das mulheres é um fato histórico, social e cultural inquestionável. As estudiosas estão cônscias da dimensão política de seus trabalhos e das conexões entre vida e produção cultural. Constatam que a experiência e a perspectiva das mulheres têm sido sistematicamente assimiladas no genérico “universal masculino” que “naturaliza” o feminino nas concepções culturais. Por esse motivo, toda investigação feminista é uma forma de ação e de compromisso com a modificação das estruturas sociais. O século 20 foi o cenário de importantes correntes de pensamento feminista. Durante os anos sessenta e início dos setenta, o feminismo se consolidou como uma hermenêutica da suspeita, no sentido filosófico do termo: como outras correntes interpretativas que propuseram uma atitude de suspeita ante as práticas culturais, os poderes e os saberes monológicos e oficiais e as grandes totalizações universalistas. Um importante passo teórico dado pelas pioneiras daqueles anos foi a criação do conceito de gênero como ferramenta de análise. Sobre o dimorfismo sexual da espécie humana, ou melhor, sobre a explicação da biologia ocidental de que existem apenas dois sexos – machos e fêmeas – se construiu uma divisão psicossocial: o gênero é assim o conjunto de características físicas, psíquicas e de comportamento que cada cultura designa a cada um dos sexos, à fêmea humana a feminilidade e ao macho, a masculinidade. O conteúdo de gênero varia de uma sociedade para outra e de uma época para outra, mas essa construção cultural traz consigo uma hierarquização de valores segundo a qual às atividades masculinas se atribui mais valor que às femininas. O conceito de gênero gerou discussões sem fim: por um lado, ele se constituiu como via de acesso dos estudos sobre mulheres na Academia e, deste modo, o termo indicaria seriedade e rigor. Por

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Page 1: Os Novos Feminismos e Os Desafios Para o Século 21

Os novos feminismos e os desafios para o século 21

“Enquanto o feminismo dos anos setenta se organizava em torno da unidade de todas as mulheres, os novos feminismos partem da diferença como condição inerente à prática política”

Carla Cristina Garcia

As teorias feministas são inúmeras, mas todas partem de uma consideração elementar: que a opressão das mulheres é um fato histórico, social e cultural inquestionável. As estudiosas estão cônscias da dimensão política de seus trabalhos e das conexões entre vida e produção cultural. Constatam que a experiência e a perspectiva das mulheres têm sido sistematicamente assimiladas no genérico “universal masculino” que “naturaliza” o feminino nas concepções culturais. Por esse motivo, toda investigação feminista é uma forma de ação e de compromisso com a modificação das estruturas sociais.

O século 20 foi o cenário de importantes correntes de pensamento feminista. Durante os anos sessenta e início dos setenta, o feminismo se consolidou como uma hermenêutica da suspeita, no sentido filosófico do termo: como outras correntes interpretativas que propuseram uma atitude de suspeita ante as práticas culturais, os poderes e os saberes monológicos e oficiais e as grandes totalizações universalistas.

Um importante passo teórico dado pelas pioneiras daqueles anos foi a criação do conceito de gênero como ferramenta de análise. Sobre o dimorfismo sexual da espécie humana, ou melhor, sobre a explicação da biologia ocidental de que existem apenas dois sexos – machos e fêmeas – se construiu uma divisão psicossocial: o gênero é assim o conjunto de características físicas, psíquicas e de comportamento que cada cultura designa a cada um dos sexos, à fêmea humana a feminilidade e ao macho, a masculinidade. O conteúdo de gênero varia de uma sociedade para outra e de uma época para outra, mas essa construção cultural traz consigo uma hierarquização de valores segundo a qual às atividades masculinas se atribui mais valor que às femininas.

O conceito de gênero gerou discussões sem fim: por um lado, ele se constituiu como via de acesso dos estudos sobre mulheres na Academia e, deste modo, o termo indicaria seriedade e rigor. Por outro lado, da perspectiva das críticas francesas, ele se tornou uma espécie de folha de parreira, que oculta muito mais do que mostra.

As teóricas do conceito de gênero como Chodorow, Millett, Rubin, Gilligan e outras se encarregaram de descrever um território novo que alterou radicalmente as teorias antropológicas androcêntricas; essas teóricas forçaram o reconhecimento da diferença que marca o gênero e o reconhecimento da política sexual como princípio fundamental do patriarcado.

Sem dúvida, desde meados dos anos oitenta, o novo sujeito “generado” (ou seja, permeado pelo conceito de gênero), também se manifestou muitas vezes como uma ficção unitária, que encobria – ao não considerar – outras dimensões da construção da identidade individual e social. Se nos anos setenta as feministas haviam reagido contra a razão patriarcal, agora as primeiras a denunciar que o gênero havia se convertido em uma nova totalização excludente

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foram as marginalizadas dos relatos feministas: as mulheres negras e as lésbicas que buscavam sua história e sua cultura. O termo “mulher”, usado no discurso feminista dos anos setenta, com frequência se referia à experiência das mulheres ocidentais, brancas, burguesas e heterossexuais e relegava ao silêncio a experiência individual e coletiva de muitas mulheres.

Os feminismos dos anos setenta acreditavam na possibilidade de definição de “mulher” como uma categoria, e também que as mulheres compartilhavam certas experiências e perspectivas trans-históricas e transculturais que se mostravam nos textos literários ou nas análises críticas que procediam diretamente dessas experiências.

Por um lado, a crítica feminista dessa época foi determinante na hora de desmascarar a razão patriarcal ao denunciar que as pretensões de neutralidade e objetividade se faziam à custa das mulheres e contra elas, mantendo-as afastadas da esfera da razão transcendente. Por outro, manteve alguns essencialismos utilizando conceitos e teorias como se fossem ferramentas permanentes e invariáveis.

A terceira onda do feminismo surge no contexto de crise no começo dos anos noventa do século 20 e cresce em meio ao impasse político e existencial que colocou em xeque as certezas do presente e do futuro. Aparecem novas temáticas, se fragmentam os grupos, emergem outras práticas, se expandem as diferenças, se questionam identidades e se assiste ao final do sujeito único. O feminismo cessa de ser definido como caminho de mão única ou por interesses necessariamente compartilhados.

As novas práticas feministas que surgiram nesse contexto é o que chamamos de novos feminismos, como uma maneira não apenas de nomear algo que reformulou de maneira irreversível o movimento feminista tal e qual o conhecíamos, mas também como forma de articular um novo marco de problemas e estratégias no contexto dos novos circuitos abertos pela globalização.

É preciso ressaltar que a diferença entre a segunda e a terceira onda do feminismo não é meramente temporal. A questão chave é que enquanto o feminismo dos anos setenta se organizava em torno da unidade de todas as mulheres, os novos feminismos partem da diferença como condição inerente à prática política. A identidade passa a ser entendida como um processo múltiplo no qual se articulam o gênero, a classe, a raça, a etnia e a idade, formando uma subjetividade complexa, contraditória, que não pode ser reduzida a apenas uma dessas categorias.

Essas diferenças são as que impedem que se possa traçar um itinerário ou interesses e objetivos comuns a todas as mulheres e coloca em questão as políticas de representação. Aparecem outras figurações do “ser mulher” – trabalhadoras precarizadas, migrantes ilegais, estudantes sem futuro, trabalhadoras sexuais, queer, lésbicas, transexuais, trabalhadoras transfronteiriças – que deslocam o sujeito tradicional e exigem outras estratégias cotidianas de resistências desenvolvidas nos países do sul ou em periferias limítrofes das cidades globais do norte. Desse modo, se enriquecem enormemente os discursos e imaginários dos feminismos atuais.

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Desde os anos noventa, as transformações no mundo do trabalho e da vida em seu conjunto mudam a maneira de entender o poder como meramente político e econômico, mas também como aquilo que toma a vida dos indivíduos como matéria prima e campo privilegiado de ações. Assim, as lutas deixam de ser exclusivamente econômicas ou por reconhecimento, mas incorporam toda uma economia simbólica e subjetiva, como mostra Rosi Braidotti. Daí a importância que adquire a produção de imagens, a guerrilha da comunicação, as inter-relações entre arte e política, o ciberfeminismo como possibilidades de reinventar as identidades por meio das novas tecnologias.

A esse importante giro do poder e da política, deve-se somar outro fenômeno, a crise de representação, que se expressa de três modos diferentes: como brecha profunda entre a população e o poder politico; como crise de conteúdos, legitimidade e participação em partidos e sindicatos, cada vez mais afastados dos interesses dos(as) trabalhadores(as), quando não diretamente contrários e como crise dos movimentos sociais que haviam definido suas lutas ao redor de uma identidade estável. Quando proliferam as diferenças e se diversificam os temas e os interesses, impõe-se a renúncia a um movimento homogêneo: torna-se impossível seguir sustentando lutas sob uma única identidade. Todos esses elementos impulsionam uma mudança definitiva: a percepção subjetiva e social dos movimentos dos anos oitenta se perde nos noventa. Os grupos que aparecem são muito desconectados entre si e essa perda de vínculo faz com que a memória histórica se quebre, os novos grupos não se sintam parte de movimentos feministas, nem os tomem como referência, chegando a rejeitá-los, como incapazes de dar conta das exigências de renovação do momento. Além disso, a esse suposto final do movimento tal e qual se conhecia, somam-se políticas fortes impulsionadas pelo feminismo institucional ou de Estado. E aparecem outras temáticas: a construção da identidade de gênero; a pornografia e a sexualidade; os direitos das trabalhadoras do sexo; as reflexões sobre as identidades queer; a crítica à institucionalização do movimento gay e lésbico; as lutas contra a AIDS; questões sobre o corpo e a saúde ambiental; a questão da autonomia; as novas formas de expressão política; as lutas e resistências cotidianas das mulheres imigrantes e ilegais organizadas por meio de redes diversas; a critica à precarização da existência na globalização e muitos outros.

Todas estas questões nos mostram uma cartografia de inquietudes que repensam as temáticas clássicas do feminismo – o aborto, a sexualidade, o corpo, a violência, o acesso ao mercado de trabalho ou o trabalho do lar – em relação a outras problemáticas que antes não existiam. Assim, apontam algumas novas formas de dominação produzidas pelo patriarcado e a necessidade de colocar em marcha outras formas de expressão política e de resistência, mas também mostram que o hiato da falta de memória histórica pode produzir grandes problemas ou ainda mais lacunas nos movimentos de mulheres ou novos feminismos. Os primeiros anos do século 21 foram anos de esquecimento dos caminhos abertos pelas feministas e pelo feminismo. Nesse processo de apagamento de momentos marcantes da cultura, a atual falta de memória se estabelece em um cenário político amplo que acaba por cancelar questões fundamentais e favorece visões simplistas. Urge então retornar as trilhas perdidas buscando a memória política. Nas palavras de Braidotti: “É preciso voltar a colocar no centro do debate a experiência feminista como um protótipo para descolar a questão identitária da questão da subjetividade […]. Partindo do feminismo, é possível imaginar um tipo de sujeito que não necessita de uma identidade ou uma questão identitária para funcionar de maneira

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responsável e em conexão com outros […]. As coalisões são possíveis e sobre isso creio que as mulheres e o feminismo são realmente uma das grandes forças. Repito: o cancelamento atual da experiência feminista é uma desgraça para todos”.

Carla Cristina Garcia é doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, onde também é professora.

Referencia:

Revista Cult. Disponível em:< http://revistacult.uol.com.br/home/2015/03/os-novos-feminismos-e-os-desafios-para-o-seculo-21/> Acesso em:23 ago 2015.