os instrumentos musicais na repÚblica de platÃo profa …

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1 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA REPÚBLICA DE PLATÃO Profa Dra Carin Zwilling 1 RESUMO: Este artigo consiste num estudo organológico dos instrumentos musicais citados no Livro III da República de Platão, que aborda sua origem mitológica, fontes primárias, representação dos mesmos em vasos gregos e documentação disponível a esse respeito. PALAVRAS-CHAVE: República de Platão; cultura grega; História da Música; Organologia. ABSTRACT: This article is an organological study concerning the musical instruments quoted in Plato’s Republic, aiming the retrieval of its mythological genesis, primary historical sources, representation in Greek vases, covering extensive available data. KEYWORDS: Plato’s Republic; Greek Culture; History of Music; Organology. 1 CARIN ZWILLING - FILICAÇÃO ACADÊMICA Graduada em Música e em Teologia, diplomada pelo Conservatório de Viena (violão clássico), especialista em Música Antiga (alaúde renascentista e barroco) pelo Sweelinck Conservatorium Amsterdam como bolsista do Ministério de Ciência e Cultura Holandês. Tornou-se Mestre em História da Arte pela UNICAMP (1996) com a dissertação The Schoole of Musicke de Thomas Robinson – tradução comentada e transcrição musical de um tratado inglês do início do século XVII, e doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP, FFLCH, Departamento de Letras Modernas (2003) com a tese As Canções de Cena de William Shakespeare – resgate das canções originais, transcrição e indicações para tradução (tese publicada pela Ed. Annablume, sob patrocínio da FAPESP). Em 2012, passou no concurso de carreira pública para o cargo de professora de música na Universidade Estadual de Maringá – PR (2012).

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Page 1: OS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA REPÚBLICA DE PLATÃO Profa …

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OS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA REPÚBLICA DE PLATÃO

Profa Dra Carin Zwilling1

RESUMO: Este artigo consiste num estudo organológico dos instrumentos musicais

citados no Livro III da República de Platão, que aborda sua origem mitológica, fontes

primárias, representação dos mesmos em vasos gregos e documentação disponível a

esse respeito.

PALAVRAS-CHAVE: República de Platão; cultura grega; História da Música;

Organologia.

ABSTRACT: This article is an organological study concerning the musical instruments

quoted in Plato’s Republic, aiming the retrieval of its mythological genesis, primary

historical sources, representation in Greek vases, covering extensive available data.

KEYWORDS: Plato’s Republic; Greek Culture; History of Music; Organology.

1 CARIN ZWILLING - FILICAÇÃO ACADÊMICA

Graduada em Música e em Teologia, diplomada pelo Conservatório de Viena (violão

clássico), especialista em Música Antiga (alaúde renascentista e barroco) pelo

Sweelinck Conservatorium Amsterdam como bolsista do Ministério de Ciência e

Cultura Holandês. Tornou-se Mestre em História da Arte pela UNICAMP (1996) com a

dissertação The Schoole of Musicke de Thomas Robinson – tradução comentada e

transcrição musical de um tratado inglês do início do século XVII, e doutora em

Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP, FFLCH, Departamento de Letras

Modernas (2003) com a tese As Canções de Cena de William Shakespeare – resgate das

canções originais, transcrição e indicações para tradução (tese publicada pela Ed.

Annablume, sob patrocínio da FAPESP). Em 2012, passou no concurso de carreira

pública para o cargo de professora de música na Universidade Estadual de Maringá –

PR (2012).

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OS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA REPÚBLICA DE PLATÃO

Profa Dra Carin Zwilling

1. Introdução

A música exercia um papel proeminente na vida grega. Canções corais, incluindo, em

maior ou menor grau, a dança mimética, representaram sua manifestação mais

característica.1 Coros de homens, mulheres, meninos ou meninas, acompanhados de

cítara, aulos, ou de ambos, estavam presentes no culto aos deuses (procissões,

ditirambos), casamentos, funerais e celebrações de homens famosos ou atletas

vitoriosos. Das atuações corais em homenagem a Dionísio, desenvolveu-se a tragédia e

a comédia, permanecendo o coro como elemento importante até o século IV a.C. Estes,

incluindo os que tomavam parte nas competições ditirâmbicas e dramáticas em Atenas,

eram constituídos de músicos amadores, uma vez que a música fazia parte da educação

geral do cidadão ateniense (figura 1).

Figura 1. Cena escolar. Vaso ático de figuras vermelhas pintado por Duris, c. 480 a.C., Berlim, Staatliche Museen. A educação na Grécia Antiga tendia a uma ampla formação cultural, valorizando a música e a ginástica. Neste vaso, o pintor Duris da Escola Ática, dono de um “estilo severo”, retratou uma cena escolar. Nele um menino aprende a tocar a lira, enquanto outro recita a Ilíada de Homero.

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O instrumento usado pelo amador era, de preferência, a lira (cf. Platão, Protágoras

325d-326c); a cítara e o aulos eram os preferidos do músico profissional, para os quais

havia competições em vários festivais (Jogos Píticos em Delfos, Carnea em Esparta,

Panateneas em Atenas, etc.). Dentre as categorias musicais praticadas nestas

competições incluía-se o canto sofístico com cítara (kitharodia) e com aulos (aulodia) e

a execução solística na cítara (kitharesis) e no aulos (aulesis). A música, portanto, era

praticada não somente para acompanhar as palavras – embora fosse essa sua função

principal, como desejava Platão – mas também visando o virtuosismo. Foi, talvez,

devido a este tipo de competição que Platão (na República) e Aristóteles (na Política)

advertiram os cidadãos para os malefícios do profissionalismo da música pura. Os coros

ditirâmbicos e dramáticos, por sua vez, eram acompanhados de um auloi profissional,

cuja habilidade era reconhecida como fator importante para o sucesso da cerimônia.

Infelizmente, o corpo sobrevivente de melodias gregas consiste em menos de mil

compassos, incluindo suplementos conjeturais, cerca de vinte peças ou fragmentos de

peças (muitas com datação incerta), cobrindo um espaço de sete séculos. Sobre a teoria

musical, entretanto, existe maior quantidade de fontes, como os aspectos gerais do

sistema de Aristoxeno (século IV a.C.), o Harmonicus de Ptolomeu e outros tratados.

Platão, no livro III da República, especifica duas classes de instrumentos musicais: os

de sopro (aulos e syrinx) e os de corda (cítara, lira, pektis e trigonon). As informações

disponíveis sobre os instrumentos musicais gregos levantam uma série de problemas,

mas também sugerem soluções sobre sua constituição. Os poucos aulos sobreviventes

perderam seu bocal e as cítaras perderam sua estrutura. Embora escassos para se

estabelecer conclusões, existem alguns elementos que nos convidam a especular sobre

essa questão.

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Este artigo, que partiu de informações apresentadas por Evanghelos Moutsopoulos

(1959) e por Helen Roberts (1980), está dedicado a questões organológicas (ou seja, à

história e descrição desses instrumentos, de acordo com as categorias estabelecidas por

Platão) e baseado no estudo de descrições em fontes históricas, de informações

apresentadas pelos teóricos gregos e de cenas musicais em vasos gregos de figuras

pretas e vermelhas, úteis também em relação à técnica de execução de cada

instrumento.2

2. O Aulos

Na República III, Platão propõe o banimento de todos os tipos de aulos (). Já nas

Leis III, 700d, em uma passagem intercalada por um longo texto alusivo à decadência

musical no século V, o autor sugere que o enriquecimento técnico dos auloi teve

repercussão sobre a lira e a cítara (cf. também: Platão, República, III, 399d). A

evolução do aulos, de acordo com Platão, precedeu a evolução dos instrumentos de

cordas.

Aristóteles apresenta informações precisas acerca das possibilidades técnicas do aulos.

Teofrasto, De Historia Plantarum, IV, ii, 4-5, apresenta indicações a respeito do

material com que era elaborado: uma madeira chamada chalamos zeugitez

Plutarco, De musica, §198, p.82-85, explica que na época de

Antigenidas, célebre auloi contemporâneo de Alexandre, abandonou-se a maneira

tradicional de tocar o aulos para adotar-se um novo estilo, modificando a técnica de

ação dos lábios.

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Figura 2. Lekythos, ca. 480 B.C. .com figura vermelha atribuído a Brygos - pintor grego ático, retratando tocador de aulos. Metropolitan Museum, New York. O aulos, comumente confundido como uma flauta, era mais parecido com o oboé , pois era um instrumento de palheta feita de cana, na forma de um tubo cilíndrico. O instrumento possuía dois tubos com ourifícios que podiam ser tocados simultaneamente, e era feito de madeira, com chaves de metal. Altíssimamente evoluído, era o instrumento preferido do teatro, tocado com o ímpeto de levar a plateia à catarse.

O aulos (figura 2) – muitas vezes traduzido erroneamente por flauta – pertence à

categoria dos instrumentos com palheta, como o oboé, e jamais era tocado por

mulheres, cortesãs ou meninos, mas somente por homens. Existiam três categorias de

aulos: 1) o aulos de concerto, usado pelos profissionais; 2) o mogaulos (),

mais conhecido entre todos; 3) o plaliauloi (), assim denominado pelos

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escribas alexandrinos, considerado invenção de Osíris,3 dos habitantes da Líbia4 ou de

Midas da Frígia.5

O aulos possui um tubo denominado sýrinks monokhálamos ()

(Moutsopoulos, 1959, p. 87, nota 8),6 mas foi normalmente representado na iconografia

disponível com um par de tubos idênticos, cilíndricos ou ligeiramente cônicos,

denominados bómbyx, com comprimentos variáveis, mas, em média, de 50 cm.

Exemplares primitivos eram feitos de cana ou de osso, mas a madeira e o marfim

tornaram-se comuns. Esses materiais refletem-se nos nomes dados pelos gregos e

latinos às suas partes, como kálamos (tubo de cana), lotos (madeira proveniente da

árvore de lotus líbia) e tíbia (osso da tíbia). Na extremidade do bómbyx encontrava-se o

hólmos, i.e., um bulbo de madeira ou marfim, que servia de gancho para as palhetas, ou

glottai. Freqüentemente, existiam dois bulbos entre o bómbyx e o hólmos, denominados

hypholmion (figura 3)

Figura 3. Partes do aulos: 1. glossa/ zeugos; 2. hólmos; 3. hypholmion; 4. bómbyx; 5. tremata/ trypemata. [Diagrama: in Barker, 1989, no 12].

Os tubos do aulos projetam-se da boca do executante, formando um ângulo agudo com

a face e são sustentados pelos polegares, enquanto os outros dedos pressionam os

orifícios do tubo (excetuando-se, em vários casos observados, o dedo mínimo).

Existe, em muitas imagens, uma espécie de tira ou casquete presa entre a boca e a nuca

do instrumentista, denominada phorbeia, às vezes peristomion (em latim capistrum),

com pequenos orifícios que permitem a inserção do bocal do aulos (figura 4). Uma

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outra tira serve de suporte para a anterior, atada à parte superior da cabeça. Esse artefato

teve, possivelmente, a função de proporcionar maior liberdade ao intérprete, permitindo

que este também dançasse.

Figura 4. Auloi tocando em uma competição. Vaso ático de figuras vermelhas, c. 480 a.C., Londres, Museu Britânico. O auloi está pronto para uma competição, vestindo traje típico com phorbeia para sustentar suas bochechas. São visíveis o hólmos e o hypholmion e a palheta encontra-se inteiramente na boca do instrumentista.

O aulos grego possuía de três a cinco orifícios em cada tubo. Durante o século V a.C., o

instrumento foi alargado por Prônomo, o primeiro a conceber um aulos no qual podia-se

tocar todas as harmonias. Isto parece subentender a invenção de aros móveis, destinados

aos orifícios secundários, que serviam para alterar e corrigir o som (Schuhl, 1955, p.

278). De acordo com Proclo – um auloi beociano – ao discorrer sobre a maneira de

tocar de Prônomo e Diodoro, diz que tais aros possuíam chaves ou keratas que

permitiam ao instrumentista acioná-las durante a execução (Schlesinger, 1938, p. 74).

Essas chaves, entretanto, aparecem em algumas representações romanas. A referência à

execução de diversas harmonias em um mesmo aulos sugere a criação de um novo

estilo figurado na música, o que explicaria o fascínio exercido sobre os ouvintes que

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pode ser considerado uma forma primitiva de teatrocracia, tão combatida por Platão

(Moutsopoulos, 1959, p. 86).

Teofrasto, filósofo grego e discípulo de Aristóteles, deixou-nos em De Historia

Plantarum, IV, ii, 1-7 (Barker, 1989, p. 186-189), um interessante capítulo a respeito da

técnica de manufatura da palheta do aulos que esclarece algumas questões sobre sua

constituição:7

[1] Sobre a palheta [cálamo – ] dizem haver dois tipos, a palheta do aulos e a outra; pois

este outro tipo, dizem, é simples, e suas plantas diferem uma da outra por serem uma forte e outra

fraca e fina [...].

[2] Quanto à cana [usada para palheta] do aulos, não é verdade o que dizem alguns, que ela nasce

somente de nove em nove anos, este sendo o princípio da ordem que ela se adequa: de modo geral,

ela cresce quando o lago está cheio. Como em tempos idos supunha-se que isso acontecia, na

maior parte, a cada nove anos, eles atribuíram este período de crescimento à cana também,

tomando isso como mero acidente para ser um princípio de uma ordem.

[3] [A cana] cresce quando há chuva, e a água permanece no lago pelo menos por dois anos; sendo

melhor se a água permanecer por mais tempo. Disseram-me que isto aconteceu recentemente, com

exatidão durante a Batalha de Queronéia [338 a.C.]. Antes disso, disseram-me, o lago ficou baixo

por muitos anos, e ainda antes, quando houve uma praga severa, o lago encheu mas a água não

permaneceu: as chuvas de inverno falharam e a cana não cresceu. Dizem, e parece estar certo, que

se ela permanecer durante o ano seguinte, tornar-se-á madura: a cana madura é boa para o zeugos,8

e se em torno dela a água não permanecer, será boa para o bómbyx.9 Esta é, segundo dizem, a

maneira dela crescer.

[4] Diz-se que esta [cana] difere dos outros caniços, de modo geral, por seu aspecto luxuriante. Sua

folha, além disso, é mais fina e branca, e suas flores são menores que dos outros caniços, e

algumas delas, as quais chamam de “cana de eunuco” não tem, em geral, flor. Desta, dizem, vem

o melhor zeuge, embora poucos saibam preparar bem a palheta. Antes do tempo de Antigenidas,

quando tocavam o aulos sem elaboração,10 o tempo exato de cortar a cana era no mês de

Boedromion, no tempo do surgimento de Arcturus [ao redor de setembro]. Assim, após muitos

anos, cortam a cana deixando-a pronta para o uso, para o qual requer-se muitos treinos

preliminares11 como a abertura entre as lingüetas bem fechada, o que a torna apta para projetar o

som.

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[5] Mas quando se almeja um estilo de execução mais elaborado, o tempo de corte da cana também é

alterado; hoje em dia a cortam no Skirophorion e Hekatombaion, no tempo do solstício ou um

pouco antes [no final de junho]. Dizem estar pronta para o uso em três anos, e necessita treinos

preliminares só por pouco tempo, e as lingüetas mantêm-se amplamente abertas, o que é essencial

para os executantes que tocam no estilo elaborado. Estes são, como dizem, os melhores momentos

para o corte da cana usada para o zeugos.

[6] A manufatura é feita da seguinte maneira. Após juntarem a cana [cortada] a colocam ao ar livre

para o inverno. Na primavera devem limpá-la e a esfregá-la vigorosamente e deixá-la ao sol. Mais

tarde, durante o verão, devem cortá-la em pedaços entre os nós, e mais uma vez colocá-la ao sol

por algum tempo. Em cada seção devem deixar os nós perto do anel de crescimento, sendo que o

comprimento das seções não deve ser menor que dois palmos de largura. Agora, a melhor das

seções para se fazer o zeuge, dizem ser aquela da metade do comprimento total da cana. As seções

perto do anel de crescimento fazem um zeuge muito suave, e aquelas perto da raiz, muito duro.

[7] Lingüetas feitas da mesma seção soam em consonância, uma em relação a outra, enquanto que as

outras não;12 aquela perto da raiz vai à esquerda, e aquela perto do anel de crescimento vai à

direita. Quando a seção é dividida, a boca de cada uma das duas lingüetas é feita ao final em

direção ao lugar em que a cana é cortada. Se as lingüetas forem feitas de outra maneira, não soarão

propriamente em consonância. Essa, então, é a maneira como são feitas.

3. A Syrinx ou Siringe ou Flauta de Pã

Na Mitologia Grega, a syrinx ou siringe é atribuída à Pã, meio homem meio bode, deus

dos pastores. Seu pai, Hermes, foi retratado com ela no período arcaico, porém no

período clássico tornou-se exclusivamente atributo de seu filho. O mito foi relatado por

Ovídio nas Metamorfoses (Ovídio, 1983, p. 26):

“Nas gélidas montanhas da Arcádia, havia, entre as hamadríades de Nonacris,

uma náiade que era a mais famosa de todas; as ninfas a chamavam Syrinx.

Mais de uma vez, ela escapara da perseguição dos sátiros e dos diversos deuses

que habitavam os bosques e os campos ferazes. Dirigia todos os seus votos à

deusa Ortígia [Diana], dedicando-lhe sua virgindade. Trazendo o cinto à moda

de Diana, poderia iludir e ser tomada pela filha de Latona, se o seu arco não

fosse de chifre e o outro de ouro. Ao voltar do monte Liceu, Pã a viu trazendo

na cabeça a coroa de folhas de pinheiro [...]. Faltava contar como a ninfa,

desdenhando as súplicas, fugira por lugares sem caminho, até chegar ao

Ladon, que corre placidamente em um leito de areia. Ali, como a água do rio a

detivesse, ela implorara às suas irmãs, as ninfas das águas, que a

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transformassem; Pã acreditou-se já senhor de Syrinx, mas agarrou, em vez do

corpo da ninfa, apenas caniços palustres. Quando suspirava, então, ao sopro, o

caniço emitiu um som suave, semelhante a um lamento. E disse o deus, cativado

pela nova música e sua doçura: ‘É assim que permanecerá meu convívio

contigo!’ E de tal modo, graças aos caniços desiguais e presos uns aos outros

pela cera, conservara o nome da donzela.”

Outra importante menção ligando Pã à syrinx está no Hino Homérico à Pã (Barker,

1984, p. 46):

“Então à noite ele ergue sua voz, ao voltar de sua caçada, e gentilmente toca

doces músicas em seus caniços [i.e., a syrinx]. Em suas melodias, não pode ser

ultrapassado nem sequer pelo pássaro que entre as folhas frondosas entoa seu

lamento, uma doce canção com sua voz de mel. Seguem-no então as ninfas

montesas que ao cantar e dançar, saltam com pés ágeis uma fonte de águas

escuras. Eco soa alto no topo do monte; e o deus, ao saltar para cá e para lá

entre as dançarinas, conduz a dança com pés ágeis. Nas costas leva uma pele

de lince malhada; e se regozija cantando com voz clara uma canção, no macio

prado onde florescem o açafrão e a flor de jacinto suavemente perfumados,

rolam pela grama em íntimo abraço.”13

Figura 5. Exemplos de . Syrinx, Siringe ou Flauta de Pã.

Tradicionalmente, a syrinx ou “flauta de Pã” teve uma conotação pastoril. Platão

sugeriu sua exclusão da cidade, admitindo-a, no entanto, entre os pastores nos campos.14

Plutarco em De musica (21), fala de sua utilização nos Jogos Píticos. Strabon (IX, 3, 10)

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fala do nome pítico introduzido pelo célebre Sacadas de Argos (verso 580), dando

informações sobre o instrumento afirma que este é tocado com uma palheta dura feita

de khálamoz zeulítes (), próprio para conferir os sons sugeridos pelo

cris de phyton que expire. Seu emprego ficou conhecido a partir do incidente singular

ocorrido com o músico Midas de Agrigente:

“Enquanto este tocava, a lingüeta de seu aulos subitamente partiu, mas ele

continuou a executar sua música, como se fosse uma syrinx; o público, surpreso

com o inusitado timbre extraído do aulos, aclamou-o vencedor.”15

Os romanos mantiveram a associação pastoril da syrinx, mas ampliaram seu uso, que

chegou a obter alguma importância na pantomima. A syrinx, instrumento de fácil

fabricação, pode ser encontrada até hoje em certos países europeus como Romênia,

Bulgária e Hungria, e em regiões andinas americanas, onde é muito apreciada. Supõe-se

que não tenha sofrido transformações essenciais.

Constituída por uma fileira de tubos com diversos comprimentos (unidos entre si por

cordas), que soam a partir do sopro na borda de cada tubo, a syrinx era originalmente

constituída de tubos de cana de mesmo tamanho, unidos de modo a produzir um

formato retangular. A mudança de altura do som era obtida através do preenchimento

parcial do tubo com cera (processo descrito por Aristóteles na Problemata physica).

Os romanos e os etruscos cortavam os tubos em tamanhos variados, produzindo uma

forma semelhante às flautas andinas ou kenas (figura 5). Os tubos de cana foram,

eventualmente, substituídos por tubos de madeira, argila ou até mesmo bronze e foram

encontrados alguns instrumentos moldados em uma única peça, na qual havia orifícios

semelhantes à flauta doce. A iconografia grega e romana retrata a syrinx, contendo de

cinco a treze tubos sendo oito o número médio.

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4. Os Instrumentos de corda

De acordo com Montargis, no De Platone Musico, dois tipos fundamentais de

instrumentos eram usados pelos gregos – os de corda e os de sopro (Montargis, 1886, p.

50):

“Duas eram as famílias de instrumentos musicais: [chordai – de

cordas] e [auloi – de sopro]. Os de muitas cordas eram

denominados lira, cítara, barbiton, chelys, psalterion, clepsiambe, pectis,

phormix, phoenix, trigone, sambuca, epicone, iambuca, etc. A cítara

possuía tantas cordas quanto a lira.”16

A confusão entre a lira e a kithara (ou cítara), vem desde a tradição antiga. Platão, no

Protágoras, 326a, não específica sua diferença e, na República III, 399d, cita os dois

instrumentos sem tecer maiores distinções.

De acordo com a tradição literária arcaica, a lira foi introduzida na Grécia a partir da

Trácia (Sachs, 1940, p.131). Vasos geométricos atestam sua presença (Gombosi, 1939,

p. 33.), mas a existência da cítara é atestada em época bem anterior a essa: em cerca de

3.000 a.C. já existia na Mesopotâmia, tanto seu tipo maior quanto o menor. No princípio

do II milênio a.C., os dois tipos foram encontrados no Egito. O tipo maior aparece no

século XV a.C., espalhando-se provavelmente até Creta, enquanto o tipo menor aparece,

ao mesmo tempo, na Assíria e Fenícia e através de Chipre acabou chegando à Grécia.

Nenhuma semelhança pode ser estabelecida entre os instrumentos arcaicos gregos

aparentados à lira e a cítara pré-helênica, pertencente à civilização creto-micênica, pela

simples razão de esta última, nas duas versões asiáticas, contar com quatro a sete

cordas, enquanto a lira grega, no período arcaico, contava com somente três cordas. No

século IX a.C., existiu uma lira com quatro cordas, mas as representações com cinco

cordas, nos vasos gregos, são bem posteriores, datadas já do século XII a.C. (justamente

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no final da fase geométrica e orientalizante) (Gombosi, 1939, p. 40). A lira de seis

cordas (figura 6) foi usada a partir de 580 a.C., paralelamente a uma outra de sete

cordas, existindo cítaras com até onze cordas no mesmo período, como veremos à

seguir.

Figura 6. Apolo em Delfos. Moeda. Atenas, Museu Arqueológico Nacional. Os deuses olímpicos eram cultuados em rituais. Apolo foi reverenciado na moeda acima, sendo representado em seu templo em Delfos. Sentado no omphalos – o trono que marcava o centro do mundo – apoia meditativamente seu braço sobre a lira, presente de seu irmão Hermes. [Foto: Hirmer Verlag.]

5. A Lira

As características específicas da lira, que a diferenciam da cítara, estão relatadas no

Hino Homérico a Hermes (Barker, 1989, p. 42-46), que narra como o mensageiro dos

deuses olímpicos inventou a lira e a doou a seu irmão Apolo, que a partir de então

tornou-se o maior lirista de todos os tempos e padroeiro dos músicos.

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Esta descrição do nascimento e construção da lira corresponde às representações usuais

da lira (figura 7) e se refere à fase antiga, quando esta era produzida com materiais

naturais. Mesmo sendo posteriormente feita de madeira, a lira manteve sua aparência

original, principalmente no que se refere à caixa de ressonância em forma de carapaça.

Devido a seu formato, os poetas referiram-se a esse instrumento como tartaruga (khelys

em grego e testudo em latim).

Figura 7. Hermes tocando a lira em uma procissão de divindades. Vaso de figuras pretas. Londres, Museu Britânico B.167. Neste vaso, Hermes é representado como lirista e guardador de gado, ofício a ele oferecido por seu irmão Apolo, como recompensa, após haver lhe ofertado a lira que consagrou-o como exímio músico (cf. Hino Homérico a Hermes). [Foto: in Roberts, 1980. n.35]

A lira tornou-se o instrumento favorito de Apolo, mas o deus olímpico deixou um nobre

representante na arte da música: Orfeu, filho de sua união com Calíope, a musa da

poesia épica. Orfeu (figura 8) recebeu a lira de seu pai, tornando-se tão excelente

músico que não teve rivais entre os mortais. Conta-se que, ao som de sua lira, ele era

capaz de domar as feras, mudar o curso dos rios e fazer as árvores andarem a fim de

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ouvi-lo cantar. A história de seu amor desventuroso por Eurídice serviu de inspiração

para inúmeros poetas e músicos.

Figura 8. Orfeu encantando os Trácios. Cratera17 ática de figuras vermelhas pintada pelo pintor de

Orfeu em Gela, c.440 a.C. Berlim, Staatliche Museen. [Foto do Museu].

A lira (figura 1), que os atenienses aprendiam a tocar desde tenra idade, era o menor de

todos instrumentos de cordas. Esse instrumento aparece pela primeira vez na

iconografia no século VII a.C., tornando-se comum durante os dois séculos seguintes.

Suas cordas, inicialmente três a quatro, chegaram a sete, fixando-se neste número. O

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executante tocava a lira sentado e mantinha o instrumento em seu colo. Com a mão

esquerda pulsava as cordas com a polpa dos dedos, enquanto a mão direita acionava as

cordas com o auxílio de um plectrum ou palheta (figura 10). Isto se deve à função

musical de cada uma das mãos: a esquerda poderia acompanhar o canto, enquanto à

direita era reservada a tarefa de tocar prelúdios, interlúdios e epílogos (o canto nunca

era acompanhado pelo som emitido pela palheta).

Figura 9. Partes da Lira: 1. kollops ou afinadores; 2. zygon; 3. pechys ; 4. cordas; 5. magas ou cavalete;

6. chordatonium; 7. plectrum ou palheta; 8. tira de pano para o pulso.

[Diagrama: in Barker, 1989, no 1].

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Figura 10. Faón e as Mulheres de Lesbos. Pintor de Meidias, hidra18 de figuras vermelhas, Populonia, c.410 a.C.; Florença, Museu Arqueológico. Fecundo artista da escola ática, Meidias nos deixa um importante testemunho a respeito da execução da lira. Faón é retratado com precisão, acionando as cordas de sua lira com um plectrum, enquanto o dedo indicador de sua mão esquerda pulsa a corda mais grave da lira de sete cordas. À sua direita, uma mulher de Lesbos parece ajustar a palheta no bisel do aulos. [Foto: CVA, Itália, 13, III, I, Pl.64, No.2.]

Além da lira, existia o barbitos (figura 11) ou lira-baixo, que seguia as mesmas linhas

de construção da lira, exceto pelos braços mais longos, que exigiam, portanto, cordas

também mais longas. Era tocado em banquetes e cultos dionisíacos.

Figura 11. Reconstrução de uma lira grega pelo Museu Britânico, Londres.

IN: Helen ROBERTS. “The Technique of Playing Ancient Greek Instruments of the Lyre Type”, Music and Civilisation. Great Britain: British Museum Publications, 1980, p.63

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Figura 12. O poeta Alceo e a poetisa Safo tocando barbitos. Ânfora19 ática de figuras vermelhas, c. 480

a.C., Munique, Antikensammlungen. Dois poetas geniais são representados neste vaso ático – Alceo e Safo. A poesia de Alceo é vigorosa, terrena e a de Safo, de forte conteúdo emotivo, simboliza o mais alto grau de sensibilidade. Algo de sua delicadeza, embora sem a violência de sua paixão, é introduzido nesta pintura.

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Não há evidência do termo lira no tempo de Homero. O phórmix, entretanto, foi

mencionado com freqüência e era, aparentemente, um tipo de cítara. Platão menciona o

pektis, instrumento provavelmente semelhante à harpa, tocado somente por mulheres. O

trígonon, como está explícito em seu nome, possuía a forma de um triângulo, à

semelhança da harpa, como podemos observar em um vaso do Museu Britânico (figura

12).

6. A Kithara ou Cítara

Instrumento de cordas mais importante da Antigüidade greco-romana, a cítara

caracterizava-se pela ausência de escala (local fixo onde são ponteadas as notas) e, ao

invés desta, dois braços eram aplicados à base ou caixa de ressonância. Uma trave

cruzava a extremidade superior dos braços, onde eram atadas as cordas que partiam da

base.

A cítara diferia da lira em relação ao material usado em sua construção. A lira,

instrumento primitivo, era construída utilizando uma carapaça de tartaruga ou cabaça,

enquanto a cítara, instrumento evoluído, tinha seu corpo esculpido em madeira. Os

braços verticais da cítara, também de madeira, na maioria dos casos eram ocos,

servindo para expandir seu potencial de ressonância.

A caixa de ressonância da cítara poderia ter duas variantes: retangular (a mais comum);

um pouco menor que a primeira, com fundo arredondado, referida “cítara de berço”

[não sobrevivendo sua denominação em grego] . (Roberts, 1980, p.43).

A iconografia grega antiga retrata a cítara (inicialmente denominada phórmix) com três

a cinco cordas. Mesmo antes do período clássico, o instrumento de sete cordas tornou-

se padrão. Este desenvolvimento deve-se a Terpandro, a quem foi atribuída a adição das

cordas no século VII a.C. A partir do século V a.C. há evidência que o número de

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cordas aumentou novamente, fato comprovado por fontes literárias. No entanto,

observa-se que a representação iconográfica do instrumento preserva as sete cordas

acima mencionadas, provavelmente devido à convenção representativa das cenas

mitológicas.

As cordas de tripa ou nervos de animal eram estendidos a partir de um suporte, atado a

uma extremidade da caixa de ressonância, passando sobre uma ponte ou cavalete, para

daí serem estendidas até a trave transversal, na outra extremidade do instrumento, onde

se encontravam afinadores feitos de pedaços de madeira, atados com tiras de pano. As

cordas possuíam o mesmo tamanho, porém eram feitas de diversos calibres afim de

emitir notas diferentes.

A cítara, maior e mais pesada que a lira, era pressionada contra o lado esquerdo do

corpo do executante, que poderia permanecer de pé ou sentado, prendendo-a em uma

tira atada a seu pulso. A cítara de berço, usada exclusivamente por mulheres (devido ao

seu menor tamanho e peso), era comumente tocada pela executante sentada, que a

apoiava no colo (figura 13).

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Figura 13. Apollo e a musa Calliope com kithara de berço, que era tocada pela mulher sentada. Vaso

ático de figuras vermelhas. Berlim, Staatlische Museum

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Figura 14. Reconstrução de uma kithara grega pelo Museu Britânico, Londres.

IN: Helen ROBERTS. “The Technique of Playing Ancient Greek Instruments of the Lyre Type”, Music and Civilisation. Great Britain: British Museum Publications, 1980, figs 32 e 33, p.43. p.63

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Figura 15. Apolo tocando cítara de berço. Lekito20 de fundo branco do pintor de Aquiles (Ática, c.440–430 a.C.). Coleção privada. [Foto: Max Hirmer]

De acordo com representações em vasos gregos a técnica utilizada pela cítara e pela

lira era a mesma: a mão esquerda pulsava as cordas, arpejando ou abafando as notas,

sendo função da mão direita pulsar as cordas com o auxílio de um plectrum ou palheta,

que também podia escorregar levemente por todas as cordas, gerando o efeito hoje

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conhecido como glissando. A parte da mão direita era reservada exclusivamente para o

prelúdio, interlúdio e epílogo da peça (Roberts, 1980, p.46).

Apesar da ausência da escala, ao que parece era possível alterar notas em pequenos

intervalos, ao pressionar-se as cordas perto da ponte. Também era comum usar-se sons

harmônicos: ao pressionar a corda em pizzicato, por exemplo, em seu ponto médio,

obtinha-se o intervalo de oitava justa.

A cítara foi muito apropriada como instrumento de concerto (figura 14). Ao redor do

século IV a.C., tornou-se o instrumento preferido dos profissionais, sendo Lisândro de

Síquio o primeiro a instituir a nova arte de execução solística. Ao esticar as cordas para

se tornarem tensas, Lisândro tornou mais rica sua sonoridade.

Com o aumento das cordas do instrumento e da capacidade de produzir maior tensão,

chegou-se a obter uma gama sonora semelhante à do aulos. Com a extensão do plano

das cordas da cítara chegou-se a uma espécie de enaulos kitharisis

(), termo que serviu para designar essa nova prática.21

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Figura 16. Citarista [kitharodos]. Ânfora ática de figura vermelha, atribuída ao pintor Brygos, c. 480 a.C., Boston, Museu de Belas Artes. Nesta ânfora pode-se observar que o citarista, com sua cabeça voltada para o alto, entoa um hino enquanto se acompanha no instrumento. A cítara, sustentada por seu corpo, é tocada pela mão esquerda cuja função era a de produzir o acompanhamento. A mão direita segura um plectrum atado a uma tira de pano.

O estudo da estrutura e técnica de execução dos instrumentos musicais pode ser

realizada pela análise de imagens encontradas em vasos de figuras pretas e vermelhas.

Os artistas de figuras pretas não procuraram ressaltar a anatomia e suas figuras, quase

inflexíveis, provavelmente devido à técnica limitada de incisão do desenho no barro.

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Já nos vasos de figuras vermelhas, o método de incisão foi abandonado em favor de

uma técnica de pinceladas. Os artistas que se dedicaram a essa atividade eram dotados

de uma técnica excepcional e, atingiram domínio completo de seu medium no Império

Ateniense (477–404 a.C.), quando obtiveram melhor resultado na representação da

anatomia humana: mãos rijas tornaram-se maleáveis e o estilo mais fluente.

Estudando o movimento das mãos dos intérpretes dos instrumentos de cordas, pode-se

observar três formas de execução:

1) pulsando as cordas;

2) arpejando e abafando as cordas com a mão esquerda;

3) pulsando com o plectrum a mão direita, técnica complexa que exigia enorme

adestramento por parte de seus executantes. Talvez tenha sido por isso que

Platão combateu tão fortemente a arte e maestria da cítara, dando preferência ao

simples dedilhar da lira.

Evidências literárias concordam com as informações observadas nos vasos, permitindo

concluir que o uso da mão esquerda restringia-se ao acompanhamento do canto,

deixando a mão direita com o auxílio do plectrum para os interlúdios instrumentais,

assim que a voz terminasse sua parte.22 Platão, no entanto, deplorou os solos

instrumentais, pois estes dissociavam a melodia e o gesto das palavras sobre a qual a

música deveria ser subserviente (cf. Leis, II, 669e). Para ele, a música deveria ter como

meta levar o homem à justiça, temperança e moderação, porém jamais aos devaneios

das paixões.

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NOTAS:

1 A dança (orchesis) era praticada pelos coros em um lugar especial na frente do palco, denominado

orchestra. O termo passou a ser usado na Europa quando poetas e músicos italianos, com suposta

inspiração nas representações dramáticas gregas, deram nascimento à ópera por volta do início do século

XVII.

2 Em meados do século VI a.C., os pintores de vasos passaram a ser estimados na Antiga Grécia. Os

magníficos vasos áticos foram decorados primeiramente com o sistema de figuras pretas, isto é, pintando

de preto o desenho que se destacava sobre o fundo vermelho da argila cozida. Por volta de 500 a.C., o

esquema decorativo passou a obedecer um processo inverso: agora o fundo do vaso é preto e sobre este

fundo homogêneo destaca-se, em vermelho, a figura. Esta variante pôde dar aos artistas maior liberdade,

uma vez que um novo item entrou no ateliê – o pincel. Assim, os detalhes antes feitos por meio de

incisões, fazem-se agora com finas pinceladas, ganhando as figuras em volume e modelado. Finalmente

chegou-se à aplicação do escorço, ou seja, a representação, com simples linhas, da profundidade espacial.

3 Cf. Athenæus, Deipnosophistae, IV, 175e e 182d ; Teócrito, Idílios, 20, 29.

4 Cf. notadamente Pólux, Onomastikon, IV, 74.

5 Cf. Plínio, VII, 204 .

6 Cf. Athenæus, Deipnosophistae, I, 184a .

7 Teofrasto (c. 372–287 a. C. ), filósofo grego, discípulo de Aristóteles, a quem sucedeu no Liceu,

liderando a Escola dos Peripatéticos. Pesquisou e escreveu uma grande variedade de tópicos. Seu

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interesse pelos aspectos teóricos da música estão demonstrados no extrato preservado por Porfírio

(Comm. 6I. 22 f), que parece vir do livro II de seu Da Musica (a passagem é citada no v. 2). Uma de suas

obras que chegou a nós, de certa maneira completa, é a Historia Plantarum, uma substancial “flora” da

Grécia e algumas partes do Mediterrâneo. O autor acrescenta às suas descrições das plantas, o modo de

usá-las. A passagem acima citada faz parte do estudo da flora do Lago Copais ou Cephisos na Boécia,

onde fica a cidade de Orchomeno [cf. 27 Píndaro, Pythian, 12. 27]. Tradução nossa.

8 Zeugos, no aulos, é a palheta dupla que vibra nos lábios do executante, como no moderno oboé.

9 Bómbyx: tubo contendo orifícios

10 Sobre Antigenida (final do século V e início do IV a.C.) vide Plutarco, De Musica, 1138b. “Sem

elaboração” (aplastos): há referências posteriores a plasis e a tocar meta plasmatos na seção 5. Plasis é

“moldando” ou “formando”; parece referir-se à sofisticada elaboração das formas melódicas,

presumivelmente envolvendo ornamentações (kampai). Tocar aplastos é, portanto, tocar em estilo

simples, sem ornamentações elaboradas.

11 Prokataulesis: execução preparatória.

12 Symphonein, não, provavelmente, no sentido técnico de “soar uma consonância” (intervalos de 4a e 5a

Justa, por exemplo), mas no sentido de “soarem bem conjuntamente” ou talvez “soarem

simultaneamente”, cf. Platão, República, 617b, Aristóteles, Probls, XIX. 27.

13 Tradução nossa.

14 República III, 399d .

15 Ao que parece, nesta passagem há uma certa confusão entre a syrinx e a flauta doce.

16 “Due erant organorum familiae et . Chordai plurima habent nomina: lyra, cithara,

barbiton, chelys, psalterion, clepsiambe, pectis, phormix, phoenix, trigone, sambuca, epicone, iambuca,

etc. Citharæ multo implicator quam lyræ.”

17 Cratera – grande vaso de duas alças, utilizado pelos antigos gregos para misturar a água ao vinho.

18 A hidra [de ydor – água em grego] como já o diz seu nome, servia para carregar-se água. Tinha três

asas , uma vertical para a segurar enquanto corria a água da fonte, e duas outras horizontais para a erguer.

19 Ânfora – vaso de grandes dimensões com duas asas que servia para transporte de líquidos ou

armazenagem de grãos.

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20 O lekito era uma espécie de cântaro de grandes dimensões no qual se guardava óleos com os quais, nas

cerimônias funerárias, se ungiam os defuntos. Os lekitos funerários de fundo branco se tornaram célebres

pelas figuras que os decoravam.

21 De acordo com Barker, 1989, p.270, n.46, Epigonus (século VI) ficou conhecido como influente

músico. Parece ter sido um dos primeiros teóricos, além de exímio músico (cf. Aristoxeno, Elementos

Harmônicos, 3.23-4). Sua escola foi mencionada como a primeira a adotar um novo estilo de tanger as

cordas chamado de enaulos kitharisis. Inovações ligadas ao crescente interesse nas possibilidades

oferecidas pelos instrumentos de numerosas cordas, principalmente com a adição de uma corda extra na

própria cítara, durante o século V.

22 Para reforçar essa conclusão apoiei-me na seguinte passagem de Cícero, Verrines II, 1.20.: “Cum

canunt citharistae, utrisque manus funfuntur officio. Dextra plectro utitur et hoc est foris canere. Sinistrae

digidtis chordas carpunt et hoc est intus canere. Difficile autem est quod Aspendius citharista faciebat, ut

non uteretur cantu utraque manu, sed omnia i.e. universam cantionem intus et sinistra tantum manu

complecteretur.”