os Índios na história do brasil

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Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p. Até muito recentemente, os índios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados à condição de vítimas passivas dos proces- sos de conquista e colonização, seu destino inexorável era desaparecer à me- dida que a sociedade envolvente se expandia. Nas últimas duas décadas, porém, significativas mudanças teórico-metodológicas, associadas a criteriosas pes- quisas empíricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva so- bre as populações nativas. A trajetória da inserção dos índios em nossa historiografia, contemplan- do as mudanças conceituais e os avanços obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os índios na História do Brasil. A publicação, inserida na coleção FVG de Bolso, Série História, sem dúvida será de grande valia àqueles que têm interesse na temá- tica, cumprindo sua função de divulgação do conhecimento produzido na academia. Além disso, o lançamento também ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obri- gatoriedade do ensino da história indígena nas escolas de nível fundamental e médio, tanto públicas quanto privadas. Diante dessa exigência, muitos profes- sores encontram dificuldades para ministrar tal conteúdo, pois ele ainda não foi devidamente inserido nos cursos de graduação em história do país. A autora inicia o livro apresentando a mudança no lugar ocupado pelos índios na história do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos “basti- dores” ao “palco”. Debatendo em linhas gerais as principais modificações te- órico-metodológicas que possibilitaram tal mudança, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram funda- mentais para uma alteração no paradigma sobre as ações dos índios em dife- Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, nº 59, p. 279-282 - 2010 * Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus Gragoatá. Bloco O, 5 o andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. [email protected] Almeida, Maria Regina Celestino de. Os índios na história do Brasil Elisa Frühauf Garcia*

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Índios Na História Do Brasil

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  • Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 168p.

    At muito recentemente, os ndios eram sujeitos praticamente ausentes em nossa historiografia. Relegados condio de vtimas passivas dos proces-sos de conquista e colonizao, seu destino inexorvel era desaparecer me-dida que a sociedade envolvente se expandia. Nas ltimas duas dcadas, porm, significativas mudanas terico-metodolgicas, associadas a criteriosas pes-quisas empricas, proporcionaram o surgimento de uma nova perspectiva so-bre as populaes nativas.

    A trajetria da insero dos ndios em nossa historiografia, contemplan-do as mudanas conceituais e os avanos obtidos pelas pesquisas recentes, foi muito bem sistematizada por Maria Regina Celestino de Almeida em Os ndios na Histria do Brasil. A publicao, inserida na coleo FVG de Bolso, Srie Histria, sem dvida ser de grande valia queles que tm interesse na tem-tica, cumprindo sua funo de divulgao do conhecimento produzido na academia. Alm disso, o lanamento tambm ocorre em momento pertinente. Em 2008 foi sancionada pelo governo federal a Lei 11.645, que estipula a obri-gatoriedade do ensino da histria indgena nas escolas de nvel fundamental e mdio, tanto pblicas quanto privadas. Diante dessa exigncia, muitos profes-sores encontram dificuldades para ministrar tal contedo, pois ele ainda no foi devidamente inserido nos cursos de graduao em histria do pas.

    A autora inicia o livro apresentando a mudana no lugar ocupado pelos ndios na histria do Brasil, os quais, nas suas palavras, passaram dos basti-dores ao palco. Debatendo em linhas gerais as principais modificaes te-rico-metodolgicas que possibilitaram tal mudana, demonstra como as novas perspectivas sobre os significados de cultura e identidade foram funda-mentais para uma alterao no paradigma sobre as aes dos ndios em dife-

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 30, n 59, p. 279-282 - 2010

    * Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense. Centro de Estudos Gerais, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Campus Gragoat. Bloco O, 5o andar, Gragoat. 24210-350 Niteri RJ Brasil. [email protected]

    Almeida, Maria Regina Celestino de. Os ndios na histria do Brasil

    Elisa Frhauf Garcia*

  • Elisa Frhauf Garcia

    280 Revista Brasileira de Histria, vol. 30, n 59

    rentes conjunturas. Como demonstrado de forma clara e concisa no texto, a aproximao entre a histria e a antropologia, ancorada no dilogo entre os profissionais dessas reas, possibilitou que as antigas noes de cultura e iden-tidade, percebidas como fixas e imutveis (p.21), passassem a ser considera-das como fruto de processos histricos, resultado das interaes dinmicas dos diferentes agentes envolvidos em situaes especficas.

    Articulando as questes terico-metodolgicas s pesquisas recentes na temtica, a autora aborda aspectos fundamentais para a compreenso do lugar dos ndios na histria do Brasil, comeando com uma discusso sobre a din-mica das guerras. Sem negar a sua importncia para os grupos nativos, como demonstrado por autores como Florestan Fernandes, Regina Celestino enfa-tiza a impossibilidade de analis-las sem referncia ao seu contexto, pois, a partir dos primeiros contatos e das disputas pelo territrio americano, as guer-ras indgenas passaram a convergir com as guerras coloniais. Associada s guerras e construo da sociedade colonial, a autora enfrenta ainda a difcil questo da formao das etnias, uma das grandes discusses atuais nos estudos sobre os povos indgenas. Pesquisas sobre o surgimento e a operacionalidade dos etnnimos desenvolvidas em vrias regies das Amricas, inclusive no Brasil, demonstraram como muitas etnias, antes consideradas anteriores aos contatos com os europeus, originaram-se no decorrer do processo de conquis-ta e das diferentes formas de insero dos ndios na sociedade colonial. Para exemplificar a questo, a autora utiliza como base os dados de sua tese de doutorado, demonstrando como os teminins, aliados fundamentais dos por-tugueses na Guanabara, provavelmente nada mais eram do que uma dissidn-cia dos tamoios consolidada com o processo de conquista.1

    Ao analisar a formao dos etnnimos, a autora enfatiza como eles esta-vam entrelaados com o domnio dos povos indgenas por parte do Estado colonial. A criao e cristalizao de etnnimos e a rgida separao dos ndios entre aliados e inimigos eram uma forma de classificar a populao nativa e viabilizar o empreendimento colonial atravs da sua alocao em determinados lugares na hierarquia social. Regina Celestino, porm, demonstra muito bem como esse processo era mais complexo, pois aborda ainda os mecanismos atravs dos quais os ndios se apropriaram dessas categorias, utilizando-as como base para elaborar as suas prprias estratgias para interagir com a so-ciedade colonial. Afinal, como apontou John Monteiro, a tendncia de definir grupos tnicos em categorias fixas serviu no apenas como instrumento de dominao, como tambm de parmetro para a sobrevivncia tnica de grupos indgenas, balizando uma variedade de estratgias.2

  • 281Junho de 2010

    Os ndios na histria do Brasil

    Um dos espaos por excelncia de insero dos ndios na sociedade colonial e, consequentemente, de redefinio de suas identidades e culturas eram os al-deamentos, analisados com propriedade pela autora no captulo quatro. At muito recentemente, nossa historiografia abordava os aldeamentos pela tica do Estado colonial, dos moradores ou dos missionrios. Eles eram ento definidos como espaos de agrupamento de ndios de origens diversas, que deveriam ser-vir aos intuitos coloniais, possibilitando tanto a concentrao da mo de obra disponvel, a ser empregada em atividades variadas, quanto a implementao do projeto de catequizao dos nativos. Em tal perspectiva, os ndios eram sempre objeto de diferentes polticas e de disputas entre determinados agentes, mas nunca sujeitos atuantes na construo do espao dos aldeamentos. Para a auto-ra, porm, eles devem ser considerados tambm a partir das motivaes dos nativos. Pesquisas recentes permitem afirmar o seu interesse em tais estabeleci-mentos, pois eles participaram de sua construo e foram sujeitos ativos dos processos de ressocializao e catequese ocorridos naqueles espaos (p.72).

    Outra importante discusso contempornea abordada no livro, especial-mente nos captulos quatro e cinco, a relao dos ndios com as diretrizes coloniais, articulando polticas indgenas com polticas indigenistas. Novamen-te, Regina Celestino redimensiona certos pressupostos historiogrficos. De maneira geral, a poltica indigenista da Coroa portuguesa era apresentada co-mo inoperante, na medida em que no se fazia valer nas prticas coloniais, especialmente em relao condio de liberdade jurdica outorgada maio-ria dos ndios, ameaada diante das estratgias dos moradores interessados nessa mo de obra. Como j assinalado por Thompson, porm, mais do que um mero instrumento de dominao, a legislao tambm se configura como um campo de lutas.3 Assim, tal como outros sujeitos histricos, os ndios, ainda que em posio subalterna, aprenderam a utiliz-la em prol dos seus interesses. Como muito bem demonstrado pela autora, se fato que a legisla-o indigenista colonial era aplicada de acordo com conflitos e negociaes envolvendo vrios agentes (principalmente missionrios, funcionrios reais e moradores), imprescindvel considerar o papel dos ndios nesse processo. Em tal discusso, adquire importncia fundamental o captulo cinco, sobre a aplicao das polticas pombalinas, cujas linhas gerais se orientavam extino da categoria dos ndios aldeados, promovendo a sua diluio no conjunto da populao. Na anlise dessa legislao, uma das mais pesquisadas pelos histo-riadores da temtica, fica evidente como a constante negociao com os ndios foi uma das marcas da construo e manuteno da sociedade colonial.

    No ltimo captulo a autora aborda o sculo XIX, enfocando as diferenas

  • Elisa Frhauf Garcia

    282 Revista Brasileira de Histria, vol. 30, n 59

    entre as polticas imperiais em relao aos ndios do presente e o lugar a eles destinado na identidade nacional ento em construo. Os ndios do presente, especialmente aqueles que habitavam as aldeias fundadas durante o perodo colonial, deveriam ser rapidamente integrados ao conjunto da populao, con-sonante s linhas anteriormente estabelecidas por Pombal. J os ndios ainda no inseridos plenamente na sociedade imperial, comumente chamados sel-vagens, deveriam ser aldeados, tambm com o objetivo de preparar a sua diluio no conjunto da populao, ou implacavelmente combatidos, caso no aceitassem o aldeamento e resistissem expanso das frentes de ocupao. Assim, o Imprio projetava uma populao homognea, sem espao para a permanncia dos ndios como grupo diferenciado. Reservava, porm, lugar de destaque aos nativos no passado da jovem nao. Apesar de significativas di-vergncias, prevaleceu entre os intelectuais envolvidos na construo da iden-tidade nacional a proposta de atribuir aos ndios importante papel no momen-to fundador do Brasil, simbolizado na sua unio com os portugueses.

    Ao abordar o lugar dos ndios na histria do Brasil contemplando diferen-tes conjunturas, interesses e agentes, Regina Celestino oferece ao leitor uma importante iniciao na temtica. Aps a leitura, ficar evidente que no se tra-ta apenas de perceber as histrias especficas de diferentes grupos nativos, cer-tamente importantes, mas de consider-los agentes fundamentais no processo de construo da sociedade colonial e ps-colonial. Apesar de terem enfrentado situaes extremamente difceis e uma srie de restries jurdicas e sociais, eles ajudaram tambm a delinear os limites e possibilidades daquelas sociedades.

    NOTAS

    1 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indgenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.2 MONTEIRO, John. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de histria indgena e do indi-genismo. Tese (Livre Docncia em Antropologia) Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP), 2001, p.58.3 THOMPSON, Edward P. Senhores e caadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.358.

    Resenha recebida em agosto de 2010. Aprovada em agosto de 2010.