os índios e a natureza na conquista colonial do centro da américa do...

24
Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do sul: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 1 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães UFMT-Universidade Federal de Mato Grosso Ao observarmos antigas representações cartográficas ou ao navegarmos pela internet nas imagens de nosso planeta captadas por satélite, visualizamos a América do sul. E ao focalizarmos o olhar mais ao centro deste continente, podemos localizar o atual estado de Mato Grosso, no Centro-Oeste brasileiro. Para caracterizar um pouco mais a região de estudo onde se constituiu a Capitania de Mato Grosso 2 , interessa destacar os biomas Pantanal, Amazônia e Cerrado com suas belas paisagens e expressiva biodiversidade ecológica, e as diversas etnias indígenas hoje “reservadas” em suas terras, desenhando complexas fronteiras interculturais 3 . Antes mesmo do “descobrimento” do que veio se chamar de Brasil, as terras centrais da América do sul já estavam definidas como de domínio da Coroa de Espanha, de acordo com o tratado de Tordesilhas (1494). Mas só da primeira metade do século XVI que expedições espanholas, em busca de lendárias riquezas, deram início ao processo de conquista colonial européia destas terras, águas e gentes. Nas primeiras representações cartográficas coloniais, são freqüentes as denominações de “Lagoa ou Mar dos Xarayés”, evidenciando tanto a abundância das águas, quanto a numerosa presença ameríndia 4 . No decorrer do século XVII sertanistas paulistas intensificam as penetrações de caça aos índios no sul do continente americano. Mas interessa aqui destacar a expansão bandeirante paulista nos sertões centrais durante as décadas finais dos seiscentos e primeira metade do XVIII, que desencadeou a expansão colonial lusitana na fronteira oeste, mobilizados pela continuidade da prática do apresamento de índios - os negros da terra -, e vislumbrados com as possibilidades de novos “descobrimentos” de ouro 5 . 1 Contei com o apoio da FINATEC - Fundação de Apoio Científico e Tecnológico da Universidade de Brasília-UnB e da FAPEMAT - Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso -, para apresentação desta Comunicação no Congresso Internacional “O Espaço Atlântico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades”- Lisboa , 02 a 05 de novembro de 2005. 2 Os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e parte de Rondônia correspondiam ao território da antiga Capitania de Mato Grosso, criada em 1748. Antes de sua criação, as Conquistas dos sertões e minas do Cuiabá e Mato Grosso, vincularam-se juridicamente à Capitania de São Paulo e ao Termo da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, fundada em 1727. (Ver Anexo - Mapas 1, 2, 3: A Capitania de Mato Grosso e distritos). 3 No território onde foi a Capitania de Mato Grosso existem atualmente 82 etnias (somente no estado de Mato Grosso são 42 etnias! Ver em Anexo: Mapa 4 – Terras Indígenas no estado de Mato Grosso (MT) A população total atual nos 3 estados é de 63.956 índios, que habitam em 135 terras indígenas. Diversas destas terras são também áreas de preservação ambiental. Cf. em www.funai.gov.br-mapas. 4 Cf. Maria de Fátima COSTA, História de um país inexistente. O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII, São Paulo, Estação Liberdade/Kosmos, 1999. 5 John M. MONTEIRO descreve a prática dos apresamentos nos sertões interiores para a manutenção da escravidão indígena no planalto paulista e trata da crise desta mão de obra no início do XVIII. Os apresamentos nos sertões do

Upload: trinhnhu

Post on 09-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do sul:

a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 1

Thereza Martha Borges Presotti Guimarães UFMT-Universidade Federal de Mato Grosso

Ao observarmos antigas representações cartográficas ou ao navegarmos pela internet nas

imagens de nosso planeta captadas por satélite, visualizamos a América do sul. E ao focalizarmos o olhar mais ao centro deste continente, podemos localizar o atual estado de Mato Grosso, no Centro-Oeste brasileiro. Para caracterizar um pouco mais a região de estudo onde se constituiu a Capitania de Mato Grosso 2, interessa destacar os biomas Pantanal, Amazônia e Cerrado com suas belas paisagens e expressiva biodiversidade ecológica, e as diversas etnias indígenas hoje “reservadas” em suas terras, desenhando complexas fronteiras interculturais 3.

Antes mesmo do “descobrimento” do que veio se chamar de Brasil, as terras centrais da América do sul já estavam definidas como de domínio da Coroa de Espanha, de acordo com o tratado de Tordesilhas (1494). Mas só da primeira metade do século XVI que expedições espanholas, em busca de lendárias riquezas, deram início ao processo de conquista colonial européia destas terras, águas e gentes. Nas primeiras representações cartográficas coloniais, são freqüentes as denominações de “Lagoa ou Mar dos Xarayés”, evidenciando tanto a abundância das águas, quanto a numerosa presença ameríndia 4.

No decorrer do século XVII sertanistas paulistas intensificam as penetrações de caça aos índios no sul do continente americano. Mas interessa aqui destacar a expansão bandeirante paulista nos sertões centrais durante as décadas finais dos seiscentos e primeira metade do XVIII, que desencadeou a expansão colonial lusitana na fronteira oeste, mobilizados pela continuidade da prática do apresamento de índios - os negros da terra -, e vislumbrados com as possibilidades de novos “descobrimentos” de ouro 5.

1 Contei com o apoio da FINATEC - Fundação de Apoio Científico e Tecnológico da Universidade de Brasília-UnB e da FAPEMAT - Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso -, para apresentação desta Comunicação no Congresso Internacional “O Espaço Atlântico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades”- Lisboa , 02 a 05 de novembro de 2005.

2 Os atuais estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e parte de Rondônia correspondiam ao território da antiga Capitania de Mato Grosso, criada em 1748. Antes de sua criação, as Conquistas dos sertões e minas do Cuiabá e Mato Grosso, vincularam-se juridicamente à Capitania de São Paulo e ao Termo da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, fundada em 1727. (Ver Anexo - Mapas 1, 2, 3: A Capitania de Mato Grosso e distritos).

3 No território onde foi a Capitania de Mato Grosso existem atualmente 82 etnias (somente no estado de Mato Grosso são 42 etnias! Ver em Anexo: Mapa 4 – Terras Indígenas no estado de Mato Grosso (MT) A população total atual nos 3 estados é de 63.956 índios, que habitam em 135 terras indígenas. Diversas destas terras são também áreas de preservação ambiental. Cf. em www.funai.gov.br-mapas.

4 Cf. Maria de Fátima COSTA, História de um país inexistente. O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII, São Paulo, Estação Liberdade/Kosmos, 1999.

5 John M. MONTEIRO descreve a prática dos apresamentos nos sertões interiores para a manutenção da escravidão indígena no planalto paulista e trata da crise desta mão de obra no início do XVIII. Os apresamentos nos sertões do

Page 2: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

2 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

Apresento neste artigo os primeiros resultados de minha pesquisa nos registros históricos da expansão colonial luso-paulista nos sertões e minas do Cuiabá e do Mato Grosso, região central da América do sul onde se constituiu a Capitania de Mato Grosso 6. Para conhecer as percepções de agentes da conquista acerca dos índios e do mundo natural, busco extrair das narrativas de cronistas, de algumas Notícias 7, e de trechos da documentação oficial, descrições que permitem revelar tanto a densidade e diversidade do povoamento ameríndio quanto às práticas (os usos e costumes) estabelecidas no ambiente. Também destaco caracterizações da terra, das águas, do clima, das plantas e animais nos olhares da conquista.

Concentro o enquadramento espaço-temporal nos trechos dos rios da bacia do Alto Paraguai - o Pantanal no decorrer da primeira metade do século XVIII (1718-1748) -, quando a região está sob controle político da capitania de São Paulo. Trato também da expansão em ambiente amazônico, margem oriental do rio Guaporé, quando sertanistas devassaram os sertões dos Pareci e exploraram as minas do Mato Grosso, na fronteira com as missões jesuíticas espanholas de Mochos e Chiquitos. Após a criação da Capitania (1748), adentro a segunda metade do século XVIIII e acrescento cenários da conquista lusitana na fronteira oeste, tendo como pólo a Vila Bela da Santíssima Trindade (1752). Importa lembrar neste contexto as discussões do Tratado de Madrid e as expedições demarcatórias, as reverberações da política pombalina, tais como o Diretório dos Índios e abertura do comércio e navegação pelos rios Guaporé-Madeira com a presença da Companhia do Grão-Pará e Maranhão. Finalmente, para compreender as transformações em curso quanto às percepções e projetos voltados aos indígenas e à natureza, recorto algumas descrições da Viagem Filosófica do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira através da Capitania de Mato Grosso e Cuiabá, nas décadas finais do século XVIII.

É de notar que a ocupação humana neste ambiente vem se dando há pelo menos 8 mil anos, conforme já demonstraram escavações em sítios arqueológicos no vale do rio São Lourenço, que trazem evidências da “complexa rede de territorialidades, estudos elucidativos das apropriações de espaços territoriais na exploração dos recursos e os aspectos sócio-políticos correlatos” 8.

Há ainda registros de que há pelo menos 2 mil anos, nas extensas áreas ocupadas pelos ameríndios ancestrais da nação que ficou conhecida como Bororo 9, existiram grandes aldeias circulares com até mil indivíduos, com espaços caça, pesca e plantio. Também em pesquisa etno-arqueológica referente aos Guató em sítios no Pantanal, há evidências que os aterros de bugre 10 Cuiabá demonstram as últimas tentativas para amenizar esta crise. Cf. em Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. (Capitulo 7, pp. 209-26). Outro fator que motivou esta expansão foi a descoberta de ouro nas Minas Gerais e o conflito conhecido como a Guerra dos Emboabas, que impulsionou grupos paulistas irem em busca de novos descobrimentos de ouro.

6 Trato aqui de minha pesquisa de doutorado na UnB - Universidade de Brasília, sob orientação o Prof. Dr. Corcino Medeiros dos Santos, com o tema «Sociedade e Natureza na parte central da América do Sul: a capitania de Mato Grosso (séc. XVIII)».

7 O padre jesuíta português Diogo Soares, naturalista e cartógrafo, foi um dos "astrônomos matemáticos" contratado em missão secreta a partir de 1722 pelo rei D. João V. Chega à América portuguesa em 1729. Seu objetivo era refinar a cartografia da América portuguesa e, preparar definições de limites entre as coroas ibéricas. Reuniu um conjunto de informações acerca das conquistas portuguesas: as Notícias Práticas. Cf. Jaime CORTESÃO, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, Parte I, Tomo I (1695-1735), Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, 1952, p. 299. Os originais estão na Biblioteca de Évora em Portugal, e algumas cópias no IHGB – (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Biblioteca Nacional (RJ) e acervos de São Paulo. Consultei as “Notícias Práticas” publicadas com anotações de Afonso Taunay nos Relatos Sertanistas e Relatos Monçoeiros, Itatiaia / Edusp, Belo Horizonte / São Paulo, 1981.

8 Irmhild WUST, «A pesquisa arqueológica e etnoarqueológica na parte central do território Bororo, Mato Grosso: primeiros resultados», Revista de Arqueologia, n.ºs 30/31/32, São Paulo, USP, 1987/88/89, pp. 21-22.

9 Renate B. VIERTLER, «A vaca louca: tendências do processo de mudança sócio/cultural entre os Bororo-MT», Revista de Arqueologia, (33), 1990, p. 20.

10 Os aterros de bugre são áreas de grande incidência no Pantanal e nas cheias assemelham-se a ilhas, pois livres das inundações. Jorge E. de OLIVEIRA, Guató: argonautas do Pantanal, EdiPUCRS, Porto Alegre, 1996.

Page 3: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 3

foram construídos e manejados por indígenas antes da conquista, pois há inúmeros vestígios cerâmicos e diversas espécies de plantas para usos alimentares e medicinais, denotando territorialidades onde realizavam as suas “montarias” (caça e coleta).

Na década de 80 do século XX, pesquisas de D. Posey no campo da etnobiologia 11 permitem avançar análises quanto às práticas indígenas no ambiente. Destaco o estudo sobre o uso e manejo das florestas e savanas tropicais por índios Kaiapó no Pará. Ao examinar o entorno das aldeias, percebeu que as florestas secundárias ou capoeiras “concentram recursos altamente diversificados, incluindo plantas alimentícias, medicinais e caça”. A complexidade dos usos materiais e imateriais dos diversos tipos de floresta ou apêtês permitiu constatar que uma percentagem considerável (75%) é, na realidade construída pelos Kaiapó, apesar de um exame superficial indicar que sejam “naturais” 12. Estudos de Balée também afirmam a forte influência dos nativos na composição da diversidade da paisagem amazônica, pois comprovam que boa parte das florestas fluviais de terra firme são antropogênicas. É nas “velhas capoeiras” que a população coleta maior número de espécies úteis. A terra-preta de índio, freqüente ao longo de rios e riachos, resulta de uma longa ocupação e atividade humana. Explica-se que tal processo se deu devido às adaptações diante de forças sociais e políticas, tais como a necessidade do deslocamento constante por pressões de outros grupos, fugas das perseguições escravistas e doenças epidêmicas; influenciando a regressão de sociedades agrícolas sedentárias para o nomadismo da caça-coleta. Portanto, a atual biodiversidade seria fruto da influência de povos agricultores que ocupavam as áreas de atuais capoeiras velhas; o que permite compreender as transformações e usos das paisagens por sociedades indígenas, em dimensões históricas, de longa duração 13. Mais recentemente, o antropólogo Paul Little ao refletir questões conceituais a respeito do etnoconhecimento atribuído às populações tradicionais, afirma de que “toda a ciência é etno, porque socialmente construída e parte de uma tradição etno-cultural". Sendo assim, cada sociedade mantém múltiplas tradições de conhecimento, pois nas articulações históricas entre grupos sociais ocorrem interações múltiplas entre distintos conhecimentos 14.

Ao inserir esta questão no quadro da colonização do extremo oeste da América portuguesa, merece destaque estudos de Sérgio Buarque de Holanda, - particularmente Monções -, onde trata das práticas sócio-culturais cotidianas daqueles que percorriam os sertões por rios e florestas. Tais práticas como a produção das canoas, o sustento alimentar extraído da natureza e tantas outras experiências construídas nas viagens, roças, minas, arraiais e vilas, permitiram trocas e sínteses de saberes entre paulistas, portugueses, escravos africanos e indígenas. Mas são os indígenas os reconhecidos “conhecedores” da natureza e guias para vencer as adversidades do meio estranho. Buarque avalia que a mobilidade dos paulistas esteve condicionada, em grande parte, a certa insuficiência do meio em que viviam sem as condições de nutrir os mesmos ideais de vida estável no litoral atlântico, em contato mais direto com o mundo europeu, através da atividade mercantil. Se incapacitados para participar do comércio de

11 Darrell Posey define etnobiologia como “o estudo do papel da natureza no sistema de crenças e de adaptação do homem a determinados ambientes.” Avança ainda mais ao reconhecer que “o conhecimento indígena não se enquadra em categorias e sub-divisões precisamente definidas como as que a biologia tenta, artificialmente, organizar”; e a “embricação entre os mundo natural, simbólico e social, exige uma abordagem interdisciplinar de caráter cross-cultural no estudo de diferentes culturas.” D. POSEY, «Introdução. Etnobiologia: Teoria e Prática», in B. RIBEIRO et alii (org.), Suma Etnológica Brasileira, v. 1 – Etnobiologia, 1987, pp. 15-25.

12 D. POSEY, «Manejo de Floresta Secundária, Capoeiras e Campos Cerrados», in B. RIBEIRO et alii (org.), Suma Etnológica… cit, pp.175 e 181-85.

13 W. BALÉE, «People of the fallow: A historical ecology of foraging in lowland South America», in Conservation of Neotropic Forests: Working from traditional resource use, New York, Columbia Univ. Press, 1992. pp. 35 e 57.

14 Paul E. Little é professor do Departamento de Antropologia (DAN) na UnB e apresentou o tema “Conhecimentos Ambientais, Populações Tradicionais e Interculturalidade” (Seminário do DAN em 17/11/2004).

Page 4: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

4 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

africanos, “deverão se contentar com o braço indígena - os “negros” da terra; e para obtê-lo é que são forçados a correr sertões inóspitos e ignorados” 15.

A conquista: “eram tantas nações de gentes que não cabem nos arquivos da

memória”. Diversos reinos ou sertões de gentios foram devassados no processo da conquista colonial

da parte central da América do Sul. A partir das primeiras décadas do século XVIII, sertanistas paulistas apresadores de índios intensificam a penetração neste extenso território, que passou a ser nomeado de “sertões do Cuiabá”, em referência ao rio Cuiabá, afluente do rio Paraguai. São esclarecedores alguns significados construídos durante a colonização lusitana, referindo-se à palavra sertão:

Com certeza desde o século XIV os portugueses empregavam a palavra sertão ou certão para referir-se às áreas situadas dentro de Portugal, porém distantes de Lisboa. A partir do séc. XV, usaram-na também para nomear espaços vastos, interiores, situados dentro das possessões recém conquistadas ou contíguos a ela, sobre o que pouco ou nada sabiam. Sertão foi ainda bastante utilizado até o final do século XVIII pela Coroa Portuguesa e pelas autoridades lusas nas colônias. O rei D. João V cita estes sertões como lugar de minas de ouro, prata e pedras preciosas [1721]. (...) Se para o habitante de Lisboa, o Brasil todo era um grande sertão, para o habitante do Rio de Janeiro, no século XVI, ele começaria além dos limites da cidade (...) no obscuro, desconhecido espaço dos indígenas, feras e espíritos indomáveis; para o bandeirante paulista do século XVII e XVIII, o sertão eram os atuais Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, interiores perigosos, mas dourados (...). Variando segundo a posição espacial do enunciante, “sertão” pôde ter significados tão amplos, diversos e aparentemente antagônicos. (...), configurou uma perspectiva dual, contendo em seu interior, uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependia do lugar de quem falava 16.

Portanto, tão importante quanto o lugar de quem falava, visto este ‘lugar’ em sua dimensão

social, política e cultural, é buscar conhecer quem olhava para o sertão, os motivos de estar “devassando” estes sertões, porque e para quem registrava o que via. As percepções do sertão, com foco nos gentios e suas relações com a natureza, merece atenção neste texto.

O ano de 1719 é o marco inicial da conquista colonial portuguesa na região, momento em que o paulista Pascoal Moreira Cabral descobre ouro às margens do rio Coxipó, afluente do Cuiabá, e comunica ao rei D. João V do “novo descobrimento das minas dos sertões do Cuiabá”17.

A primeira referência em discurso historiográfico a esta parte da América, é de Sebastião da Rocha Pita, onde faz uma breve caracterização das novas minas do Cuiabá:

Pouco tempo antes havia descoberto estas novas minas, Pascoal Moreira Cabral (...). Estão em altura de vinte e oito até trinta graus ao poente de São Paulo, declinando para o sul. (...) trânsito desde a vila de Itu em grandes canoas, por continuados rios de perigosa e dilatada navegação (...), levando os mantimentos de que se haviam de sustentar naquele país inculto, enquanto o não cultivasse das plantas e sementeiras precisas para a numerosa gente daquela

15 Monções, São Paulo, Brasiliense, 3ª ed., 1990. Ver nota da 1ª ed., p. 13 e p. 16 ( itálicos meus). 16 Janaina AMADO, «Região, Sertão, Nação», in Estudos Históricos: História e Região, Goiânia, UFG, 1995, pp. 145-

151 (os itálicos são meus). 17 Ver Thereza Martha Borges PRESOTTI, O novo descobrimento das minas e sertões do Cuiabá: a mentalidade da

conquista, Dissertação de Mestrado, Brasília, Universidade de Brasília (UnB), 1996.

Page 5: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 5

expedição que ia, assim para lavrar as minas, como para se defender do gentio bárbaro que habita aqueles distritos 18.

Os aspectos salientados por Pita na História da América Portuguesa 19 são recorrentes na

documentação: a dificuldade para se chegar às minas pelos caminhos dos rios; a visão de um sertão inculto e a numerosa presença do gentio bárbaro a ser vencida. Percebe-se no conjunto de sua obra a construção de uma história pelo engrandecimento do Império português na missão da conquista da América, correspondendo às orientações e estilo da Academia Real da História Portuguesa 20. Um dado intrigante é que a localização das minas está incorreta, indicando desconhecimento geográfico ou que teria ocultado o local do cobiçado ouro, já que área de expansão e conquista portuguesa em terras de Espanha, período em que se iniciaram negociações preparatórias ao Tratado de Madri assinado em 1750.

O cronista José Barbosa de Sá, morador na Vila Real de Cuiabá escreveu na década de setenta dos setecentos, a Relação das povoações do Cuiabá e do Mato Grosso desde os princípios até os presentes tempos, onde ele mesmo diz ser dos “segundos que cultivaram estes sertões e que examinou tudo que nele havia”21. Nesta narrativa se pode ler a respeito das primeiras versões das paisagens e das sociedades ameríndias. Ao relacionar anualmente os acontecimentos, evoca o sentido original daquelas povoações como frutos da missão jesuítica em “semear a Divina Palavra” pelos sertões, conduzida por paulistas “americanos, operários desta Santa Lavoura, de onde colhiam almas para Deus e utilidades humanas”. Estes mesmos paulistas, ao promoverem a “expugnação das barbaridades que aqueles lugares ocupavam”, foram “se estendendo aos longes, tiraram muita soma de indivíduos, reduzindo-os do agreste estado ao do cristianismo” 22.

Ao narrar as entradas pelos rios que levaria aos sertões do Cuiabá, revela a numerosa presença indígena e a paisagem, em linguagem que faz recordar o Paraíso:

Correndo os tempos e continuando aqueles aventureiros [paulistas] as suas conquistas, chegaram a navegar o rio Paraguai, descendo uns pelo [rio] Coxim, outros pelo Embotetei [atual rio Miranda-MS], (...) e entrando pelas grandes baías, foram achando tantas nações de gentes que não cabem nos arquivos da memória e só me lembro as seguintes: Caroyas, Taquasentes, Xixibes, Xanites, Porrudos, Xacororés, Aragoarés, Coxiponés, Pocuris,

18 Sebastião da Rocha PITA, História da América Portuguesa, Edusp/Itatiaia, S. Paulo/B.Horizonte, 1976, p. 283. 19 Esta obra foi concluída entre 1724 e 1728 e publicada em Lisboa no ano de 1730. Rocha Pita nasceu em 1660 em

Salvador na Bahia, onde estudou no Colégio jesuíta, ali obtendo o título de Mestre em Artes. Foi senhor de engenho, fidalgo da Casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo, membro eleito do Senado da Câmara de Salvador por cinco vezes e coronel da companhia de Ordenanças. Escreveu a obra em Salvador, como sócio fundador da Academia Brasílica dos Esquecidos; era também sócio da Academia Real da História Portuguesa, fundada em Lisboa em 1720, e que esteve ativa entre 1721 e 1736. (Ver: José Honório RODRIGUES, História da História do Brasil-1ª parte, Historiografia colonial, São Paulo/Brasília, Nacional/INL, 1979, pp. 494 - 495.

20 Íris KANTOR, Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1750), São Paulo, Hucitec; Salvador, BA, Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, pp. 67 e 99

21 José Barbosa de SÁ, Relação das povoações..., Cuiabá, Secretaria de Educação e Cultura/UFMT, 1975, p. 10. (todos os itálicos que destaco na obra são meus). O local de nascimento deste cronista é até hoje ignorado. Parece ter chegado à Cuiabá na época de sua elevação à categoria de Vila (1727). Foi sertanista, observador oficial das missões hispânicas limítrofes do rio Guaporé, Procurador do Povo e advogado licenciado na vila do Cuiabá. Além dos relatórios sobre as Missões hispânicas e Santa Cruz de la Sierra, escreveu uma obra ‘enciclopédica’, os Diálogos históricos, geográficos... (datado de 1769). Primeiro cronista do Cuiabá, letrado autodidata com a maior livraria de Cuiabá, onde constavam João de Barros e Antônio Vieira. Cf. Carlos A. ROSA, A Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá: vida urbana colonial em Mato Grosso (1722-1808), Tese de doutorado, São Paulo, USP, 1996; Carlos ROSA e Neuza Bini ROSA, Do indivíduo ao grupo: para uma história do livro em Cuiabá, Cuiabá, Empresa Gráfica Correio da Imprensa, 1975.

22 José Barbosa de SÁ, Relação das povoações... cit., p. 10 (Obs: todas as transcrições estão na ortografia atualizada)

Page 6: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

6 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

Arapoconés, Mocos, Goatós, Araviras, Buripoconés, Arapares, Hytaporés, Ianés, Aycurus, Bororos, Payagoas, Xaraés, Penacuícas, e outros. Divertidos com estas gentes e fertilidade das terras, donde se colhem os frutos sem semear, esquecidos das pátrias, mulheres e filhos, e sobretudo das obrigações de católicos, passavam as vidas anos e anos 23.

Ao continuarem os sertanistas navegando pelo rio Paraguai em suas “largas e dilatadas

baías”, sobem o rio Cuiabá. O cronista, ao comentar da denominação dada ao rio, constata ter gente habitante nas suas margens, onde cultivavam e faziam uso de uma espécie de planta - a cabaça, da qual se faz a cuia, conforme narra:

(...) o rio Cuiabá, assim chamado dizem uns por acharem em suas margens cabaças plantados de que faziam cuias para seus usos, outros que o nome Cuiabá procedeu de uma cuia que os primeiros que subiram este rio acharam sobre as águas, que ia rodando; por onde inferiram que havia gente por ele acima e por esta inferência subiram em procura dela, outros disseram que é apelido do gentio que nas margens deste rio habitava 24.

Talvez o cronista não tivesse acesso às informações do sertanista Antônio Pires de

Campos contidos em sua Breve Notícia... 25, pois, naquele registro, há sim a referência a um lote de gentio – os cuiabases, como habitantes deste rio.

No entanto, Barbosa de Sá revelou em detalhes a prática do apresamento e destruição de aldeias do gentio coxiponé pelo mesmo sertanista Antônio Pires, “descobrimento do ouro” pela bandeira de Pascoal Moreira Cabral, bem como o cultivo de lavouras nas margens dos rios:

Foi o primeiro que subiu este rio, Antonio Pires de Campos, em procura do gentio Coxiponé; chegado a uma aldeia deles, (...), aí prendeu muitos e voltou para baixo, em procura das mais frotas que andavam por essas largas e dilatadas baías em procura das mais nações. No seguinte ano [1719] seguiu Pascoal Moreira Cabral o mesmo rumo em procura dos coxiponés e chegou ao lugar da aldeia velha já destruída. Não os achando subiu o rio Coxipó-mirim (...) acharam ouro em granetes cravados pelos barrancos. (...) Trataram logo de fabricar casa e lavouras de mantimentos pelas margens dos rios Cuiabá e Coxipó; extinguindo uma aldeia do gentio 26.

Interessante é ainda refletir etimologicamente a palavra Cuyabá. De origem tupi-guarani,

cuya é o mesmo que cabaça, fruto de uma pequena árvore, que quando madura e seca, retira-se as sementes e de sua casca forte e impermeável se faz uma espécie de vasilha para carregar ou reservar água e alimentos. Por outro lado, devido à sua semelhança sonora, pode-se examinar também a palavra ikuia-pá, da língua dos Bororo. Este é nome que foi dado ao local onde o córrego ikuiê-bo 27, deságua no rio Cuiabá, que significa lugar de pesca com flecha arpão28. Observa-se que as referências lingüísticas indicam práticas ameríndias seculares com recursos da natureza, e remete à micro-territorialidade Bororo. Ao permanecer como nome da capital do estado de Mato Grosso, identifica parte da memória da ocupação dita imemorial: territorialidades

23 Idem, Ibidem. 24 Idem, Ibidem, p. 11. 25 «Breve Notícia que dá o capitão (...) do gentio bárbaro que há na derrota da viagem das minas do Cuiabá e seu

recôncavo, (...)», Afonso de TAUNAY, Relatos Sertanistas, São Paulo, Edusp; Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, p. 191. 26 José Barbosa de SÁ, Relação das povoações... cit., pp. 10-12 (itálicos meus). 27 Na língua Bororo este é o “córrego das estrelas”, atual Prainha, já canalizado e o maior esgoto da cidade. 28 C. ALBISETTI & A. L. VENTURELLI, Enciclopédia Bororo, Vol.1, Museu Dom Bosco, Campo Grande -MS, 1962.

Page 7: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 7

ameríndias, espaços onde indígenas construíam práticas sociais, criando culturas, jeitos de fazer e de ser.

No ano de 1721, carta do primeiro capitão-general da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de Menezes, informa que “do novo descobrimento das minas e sertões do Cuiabá” as notícias lhe são mui gostosas e estão conquistando os gentios, que são muitos, e “alguns estão se reunindo aos paulistas, e outros espera que logo sejam conquistados”. Expressa sua satisfação dizendo que estavam achando ouro, para glória de Deus e aumentos da Fazenda Real e do bem comum dos Povos 29.

Em um roteiro de caminhos percorridos pelos paulistas para se chegar à província dos Coxiponé, pode-se constatar o projeto invasor em territorialidades ameríndias:

Está o tal sertão [do Cuiabá] também rodeado de bastantes nações de índios; e em pouca distância há uma grande aldeia, na qual esperam os paulistas nela fazerem uma habitação, por ser o lugar mais cômodo aos mineiros30.

Ao chegar às minas do Cuiabá em monção do ano de 1726, se lê a estratégia do capitão-

general para “reconduzi-los e metê-los de paz“, e as reações dos gentios: (...) achando-se [as minas do Cuiabá] cercadas de várias nações de

gentio, que não nos deixavam alargar pelo centro do sertão, matando e sustentando-se de carne humana, procurou reconduzi-los e metê-los de paz S.Exª. [Rodrigo César de Meneses], para o que lhes mandou alguns pombeiros, contentando-os e persuadindo-os com mimos (...), mas estes não só recusaram a nossa amizade, mas responderam que eles eram homens e que só à força de armas seriam mortos ou conquistados. Ouvida esta insolente resposta, mandou S. Exª. pôr logo pronto um cabo com bastantes soldados sertanistas, com ordem positiva que os atacassem em qualquer parte que os achassem: assim se fez e sem embargo de uma vigorosa resistência, mataram os nossos uma grande parte deles e trouxeram prisioneiro o resto, com toda a sua família. Espera-se que os mais cabos, que S. Exª. mandou a diferentes partes, consigam a mesma felicidade 31.

Em fins de 1727, Rodrigo César proibiu que bastardos e índios pudessem deixar as casas

de seus administradores, pois “seria injusto tirar estes homens do poder daqueles que os tinham trazido das brenhas do sertão” 32.

Nos caminhos das águas: “o Paraíso encoberto” e os usos e costumes dos gentios. A partir do descobrimento do ouro do Cuiabá, intensifica-se o movimento de frotas de

canoas, as monções, que pelos rios levavam pessoas e mantimentos. O embarque era no porto de Araritaguaba, atual Porto Feliz, no rio Tietê. Navegavam em trechos deste rio “vencendo” perigosas corredeiras e cachoeiras até o rio Grande (ou Paraná) por onde subiam pelo rio Pardo e

29 Carta de Rodrigo César de Meneses à Aires Saldanha. (São Paulo, 20/12/1721). Mss, Mfcha 1, nº 215. AHU, NDIHR/UFMT (Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da UFMT). (Itálicos meus).

30 Demonstração dos diversos caminhos de que os moradores de São Paulo se servem para os rios Cuiabá e província de Coxiponé, in A. de E. TAUNAY,. Relatos sertanistas, Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp,1981, p. 206.

31 Gervásio Leite REBELO, «Relação verdadeira da derrota e viagem que fez da cidade de São Paulo para as minas do Cuiabá o Exmº. Sr. Rodrigo César de Meneses, governador e Capitão General da capitania de São Paulo e suas minas(...)», in Afonso TAUNAY, Relatos monçoeiros, Edusp, São Paulo; Itatiaia, Belo Horizonte, 1981, pp. 116-117.

32 Apud Jovam Vilela da SILVA, A capitania de Mato Grosso: política de povoamento e população - século XVIII, Tese de Doutorado, USP, São Paulo, 1994. p. 217.

Page 8: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

8 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

outros rios. Depois de um percurso por terra nos campos da Vacaria seguiam pelo varadouro do Camapuã, onde os negros carregavam as cargas e canoas, e onde também se abasteciam de mantimentos das roças já plantadas. Daí passavam a navegar os rios Coxim e Taquari, indo subir trecho do rio Paraguai. Atravessavam lagoas e baías do Pantanal, até subir o rio Cuiabá por onde chegavam ao Porto Geral e às suas minas.

Ao acompanhar a descrição do “ânimo” e do movimento das gentes ao encontro “novos descobrimentos” do ouro nos sertões do Cuiabá, pode-se perceber algo como uma re-edenização do ambiente da conquista no centro do continente sul-americano:

Divulgada a notícia pelos povoados foi tal o movimento que causou nos ânimos que das Minas Gerais, Rio de Janeiro e de toda a Capitania de São Paulo se abalaram muitas gentes deixando casa, fazendas, mulheres e filhos botando-se para estes Sertões como se fora a terra da promissão ou o Paraíso encoberto em que Deus pôs nossos primeiros pais 33.

E também interessante observar a reapresentação de aspectos que se assemelham ao inferno, diante das dificuldades no novo ambiente que teriam a vencer e adaptar-se:

(...) Ano de 1720 partiram bastantes gentes para estas conquistas (...) padeceram grandes destroços, perdições de canoas nas cachoeiras (...).mortandade de gente por falta de sustento, doenças, comidos de onças e outras muitas misérias (...). Não sabiam pescar nem caçar nem o uso de toldar as canoas que tudo lhes apodrecia com as chuvas, nem o invento dos mosquiteiros para defesa dos mosquitos (...), pelo que padeceram os que escaparam da morte, misérias sobre misérias (...) chegaram gente de povoado [1722 ] com maior destroço que os anos antecedentes, morrendo muita gente, a fome, peste, comidos das onças, (...) pelas margens dos rios fazendas podres e corpos mortos (...) 34.

No ano de 1726 em um roteiro para as minas de Cuiabá, o alerta dos “enumeráveis

perigos” da viagem: Explicá-la é impossível, de tão infernal derrota que não são menos

horríveis que os do inferno os muitos e grandes rios que haveis de navegar, as cachoeiras que eis de passar, os saltos, as itaipavas, as pedras soltas em rio morto e a flor das águas em que haveis de perder miseravelmente a vida ou os negros e as canoas (...) 35.

No entanto, quando este mesmo viajante entra no rio Taquari, apesar do perigo “porque

corre com muita violência e tem pelos meios alguns paus caídos”, não esconde sua admiração quanto à fartura: “Deste rio por diante há mais fartura e menos fome, porque já há muito mel e caça, muito palmito e bastante peixe”. E mantém o alerta para o lugar abaixo da ilha da Prensa: “vigiai-vos em terra das onças bravas e bichos do mato que aqui não faltam”. Descreve que é aí que “principiam os Pantanais, que são uns campos alagados com vários sangradouros e lagoas, tem muito peixe e caça, e já se teme o gentio Guaicuru ou cavaleiro, e muito mais o Paiaguá” 36.

Em outro relato de monção do ano de 1727, um comerciante que seguia para as minas do Cuiabá, descreve o ambiente do Pantanal:

33 José Barbosa de SÁ, Relação das povoações... cit., p. 12 (Itálicos meus). 34 Idem, Ibidem, p. 13 (itálicos meus). 35 «Notícia da 8ª Prática - Exposta na Cópia de uma carta escrita do Cuiabá aos novos pretendentes daquelas minas

(Da coleção do Padre Diogo Soares)», in Afonso TAUNAY, Relatos monçoeiros cit., p. 170. 36 Idem, Ibidem, p. 189.

Page 9: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 9

(...) pelo Taquari abaixo se gastam 10 ou 11 dias, tem vários sangradouros, que forma grandes lagoas no Pantanal. Pantanal chamam os cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que começando no meio do Taquari, vão acabar quase junto ao mesmo rio Cuiabá. Este rio Taquari até o meio tem alguns matos, o mais tudo são campos; dizem que de uma e outra parte há gentios; mas supõe-se que são restos de algumas nações que os sertanistas conquistaram 37.

E continua descrevendo o rio Camapuam: “tem muitos excelentes matos” e no rio dos

Porrudos “abundância de peixe, caça, e que não faltam onças, que tem feito algumas mortes (...) e um formoso bananal, que foi do gentio, de onde foram as primeiras mudas para o Cuiabá(...)” 38. Pode-se observar no trecho desta descrição a introdução e circulação de espécies vegetais para consumo alimentar da sociedade colonial que se constituía nas minas do Cuiabá, como a banana, fruta já plantada por indígenas no ambiente do Pantanal.

O conde de Azambuja, no ano de 1751 quando segue para tomar posse como capitão-general da recém criada Capitania de Mato Grosso, registra sua admiração diante da paisagem:

Quanta terra e quanta água tenho passado depois que voz escrevi! Rios tão caudalosos, matos tão espessos e campos tão distantes, que fazem a admiração, principalmente a quem vem de uma terra tão apertada, como o nosso reino (...) 39.

Ao percorrer o rio Taquari, revela a fartura de alimentos ao longo deste trecho do caminho

ao tecer observações acerca dos animais de caça e do palmito: É este rio bastantemente largo, e como dá muitas voltas, parece aos que

navegam que estão sempre em baías fechadas. Quando leva pouca água, deixa várias praias descobertas as quais se enchem de caça, principalmente patos de extraordinária grandeza e outros mais pequenos, a que chamam marrecos. Há também pelos matos muita de jacu e jacutingas, que passam de bom gosto a agradáveis, de modo que se dão aos doentes, principalmente as aracoans, sempre tem o tamanho de nossas frangas. Há outros a que chamam mutuns, do tamanho de nossos perus novos, muito airosos e bem feitos, e de bom gosto. A caça de pêlo também é infinita, muito porco bravo, muito veado e capivaras. (...) me fui arranchar em um mato, que estava cheio de palmitos (...). É o palmito uma árvore de que se tira do tronco uma espécie de nabo, ou raiz branca e gostosa, a qual se come guisada de várias maneiras. E ainda crua há alguma que tem o gosto de castanha verde 40.

E comenta a respeito das nações de gentios caiapó, cavaleiros-guaicuru e paiguá “que

costumam perseguir os viandantes deste caminho”, e detalha as armas e modos como atacam: Três são as nações: a primeira é a dos Caiapós, são forçosos e ligeiros,

usam por armas arco e flechas e de porretes. (...) o seu modo de pelejar é atraiçoadamente; tomando sentido onde alguma tropa se arrancha, e parecendo-lhes que têm partido, a vem atacar quando a acham descuidada (...) O mais

37 «Notícias práticas das minas do Cuiabá e Goiases, na Capitania de São Paulo, que dá ao Pe. Diogo Soares o

capitão João Antônio Cabral Camelo, sobre a viagem que fez às Minas do Cuiabá no ano de 1727», in Afonso TAUNAY, Relatos monçoeiros cit., p.123 (itálicos meus).

38 Idem, Ibidem, p. 126 (itálicos meus). 39 «Relação da viagem que fez o conde de Azambuja, D. Antônio Rolim de Moura, da cidade de São Paulo para a

Vila de Cuiabá em 1751», in Afonso TAUNAY, Relatos monçoeiros cit., p. 194. 40 Idem, Ibidem, p. 208.

Page 10: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

10 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

comum é esperar os que saem ao campo a caçar, escondendo-se de modo que não é fácil vê-los, por se pintarem de modo que ficam da cor do mato, e de repente darem sobre os que vão passando, atirando-lhes primeiro com as flechas, e depois quebrando-lhes a cabeça de perto com os porretes; (...) a segunda é dos Cavaleiros, a que chamam assim por andarem sempre a cavalo; vivem à borda do rio Paraguai, da parte do poente, e vizinham com as povoações dos castelhanos, que experimentam deles alguns insultos (...) Pelo tempo que os rios estão baixos, vêm buscar o Taquari; atravessando-o vão fazer guerra ao gentio das vargens; assim chamados por terem nelas suas povoações; dos quais cativam muitos, e deles se costumam servir. As armas que usam são lanças compridas e laços; porém nunca nos rios se podem servir tão bem delas, pois os não ajuda aí a ligeireza dos cavalos. (...) A terceira e última é a do Paiaguá e de quem temos recebido mais e maiores danos; servem-se de arco e flecha e também de lanças pequenas, com pontas de ferro, muito agudas, com as quais ofendem de perto e de arremesso. Os seus ataques são se ordinário nos rios e em canoas, porque em terra não valem nada, (...) a sua povoação está muito perto da cidade de Assunção. Quando os rios enchem e fazem pantanais pelas suas margens, sobem então a vir buscar o nosso caminho, buscando sempre os mesmos pantanais e lugares difíceis às nossas canoas (...) e quando nos vêem descuidados, saem de repente com uma grande gritaria, e o seu empenho todo é molhar-nos as armas e abordar para se livrarem do dano que delas recebem, se nos dão lugar para isso 41.

Os paiaguá se auto-denominavam evuevi que significava ‘gente do rio’ ou ‘donos do rio`.42

Integraram a grande migração Guaycuru que em contato com populações canoeiras ribeirinhas passaram a adotar a canoa como um novo elemento cultural. Símbolo do ethos guerreiro, a canoa tornou-se também instrumento principal de deslocamento em área fluvial extensa, desde a desembocadura do rio Bermejo até o Alto Paraguai 43. Os paiaguá são retratados na historiografia como ameríndios que mais ofereceram resistências à conquista colonial portuguesa desta parte central da América.

O cronista Barbosa de Sá descreve o primeiro “ataque” dos paiaguá em 1725, quando vinha “uma conserva de canoas de povoado para estas conquistas, com muitos escravos e fazendas para negócio”, onde

acabaram as vidas todos (...), escapando só um branco e um negro (...); morreram seiscentas pessoas e levou o gentio vinte canoas, (...) Não se sabia que gentio era, onde habitava e que nome tinha, por não ser o nome Paiaguá até então conhecido; inquirindo-se dos índios domésticos naturais das vargens, cientes das nações circunvizinhas, (...) declararam que eram Paiaguá, gentio de corso que não tinha morada certa, viviam sobre as águas sustentando-se de montaria pelo Paraguai e pantanais, gente que já em outro tempo fora aldeada pelos padres missionários da Província do Paraguai de onde haviam fugido (...), e que enquanto os Guató tiveram forças, não fizeram os Paiaguá aventuras, por serem deles acossados e que como os brancos destruíram os Guató, fossem também destruir os Paiaguá. 44.

41 Idem, Ibidem, p. 209. 42 Max SCHMIDT, «Los payaguá », in Revista do Museu Paulista, vol. 3, São Paulo, 1949, pp. 129-137. 43 Cf em Carlos Francisco MOURA. Os Paiaguás: índios anfíbios do rio Paraguai, Separata do suplemento dos Anais

Hidrológicos -Tomo XLI, Rio de Janeiro, 1983. 44 José Barbosa de SÁ, Relação das povoações... cit., p. 18.

Page 11: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 11

Sérgio Buarque de Holanda ao comentar este mesmo evento, diz ser “o confronto de duas humanidades tão diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes, agora sim, uma da outra, que não deixa de impor-se entre elas uma intolerância mortal” 45.

Os conflitos dos paiaguá com os monçoeiros ocorreram com mais freqüência no trecho de rio Paraguai após o rio Taquari. Estão registrados 18 ataques, iniciando com o conflito relatado acima, onde morreram 600 pessoas em 1725. Apesar da “guerra justa” no ano de 1734 e outras “armadas” para destruí-lo, o derradeiro ataque destes “sanguinários e traidores bárbaros” parece ter ocorrido em 1786 46.

È no relato de Antônio Pires de Campos pode-se ver ter uma vaga idéia da diversidade étnica e dimensão incomensurável do povoamento ameríndio. Além de destacar os “infinitos reinos de gentios” apresenta aspectos bastante peculiares do ambiente e das relações destes com os recursos naturais. Ao longo da viagem, descreve os rios por onde passou, e ao fazer referências a determinados trechos “que foi do gentio” ou que em outros habitam alguns “restos” de gentios bárbaros, revela o extermínio e apresamentos em tempos antecedentes. Na maioria das descrições quanto aos usos e costumes, trajes e vantagens que fazem, relata viverem os gentios de corsos e montarias; que tanto podem significar trocas contínuas, pois corso era uma prática de saque entre os grupos; quanto pode revelar a biodiversidade e a capacidade de sustentabilidade no ambiente, pois montaria diz respeito à caça, principalmente, e ainda à coleta de frutos e raízes comestíveis e medicinais e tantos outros produtos da natureza de diversos usos para a produção cotidiana dos alimentos, armas, canoas, habitações, vestimentas etc.

Em trechos do rio Taquari, a evidência das lavouras ou “cultura” das terras: Por este rio habitou muito gentio, e habita parte por ele abaixo, tanto de

uma banda como da outra, (...) o maior lote que houve é chamado de Achihanes e o outro lote Escolhexes (...) assistem à beira do rio Taquari e pela terra a que chamamos vargens onde habitam várias nações de gentio (...) e no viver não diferem uns dos outros, vivem de montarias, algumas lavouras que têm de mandioca, e suas batatas coisa mui pouca, é gente sem aldeias, nem lugar certo, e andam sempre após boas montarias; os trajes é andarem os homens nus e as mulheres com seus reparos de palha 47.

Continuando a viagem, agora no rio Claro “onde habitam bastantes lotes de gentio”, surpreende a presença de plantas como a cana de açúcar e banana:

(...) estes vivem de seus mantimentos, mas mui poucos, o dito mantimento é mandioca e batatas, e pouco milho e alguma cana de açúcar que desta paragem veio no princípio para os engenhos que nestas minas se acham, e muitos bananais, vivem embarcados, a suas armas são arcos e flechas e lanças.48

Seguindo pelas “campanhas da Vacaria”, cita os rios onde muitos gentios viviam “embarcadiços”, até entrar no rio Boteteu [rio Miranda-MS] e rio Paraguai abaixo, habitado pelos Paiaguá, “cujas moradas são sempre andarem embarcados e não terem domicílio certo”. E observa a prática da tecelagem com o uso do algodão:

O vestuário dos Paiaguá é viverem os homens nus e as mulheres embuçadas com panos que fazem de algodão a modo de mantas que é o mesmo

45 O Extremo Oeste, São Paulo, Brasiliense/Secretaria de Educação e Cultura, 1986, pp. 58-59. 46 Beaurepaire ROHAN, «Anais de Mato Grosso», Rev. do Instituto Histórico e Geográfico de S. P, vol. XVI, p. 34. 47 Idem, Ibidem, p. 182 (Itálicos meus). Parece até ironia do destino, pois o rio Taquari atualmente vem sofrendo

sérios riscos causados pelo assoreamento devido à expansão do desmatamento das margens e cabeceiras para plantio do soja. Outro aspecto admirável foi a fartura de peixes, que já não existe mais.

48 Idem, Ibidem (Os itálicos são meus).

Page 12: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

12 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

que mantilhas. Estes vivem de montarias do rio, não tem aldeias, as suas armas são flechas e lanças, em que são destríssimos, (...)

Nas suas descrições “pelo dito Paraguai acima” descreve o arroz “natural”, a grandiosidade

do ambiente pantaneiro com abundância de águas que compara com o oceano e o estranhamento frente a animais que chama de “imundícies”:

(...) habitam muitos lotes de gentios, chamado primeiro lote Guato, outro Caracará, outro Guacharapos, (...) estes todos vivem embarcadiços, gente de corso e sem aldeias. Vivem de montarias, o seu maior sustento é do muito arroz que colhem no seu tempo de forma que lhe chega para passarem o ano, e o mais sustento é do rio pelo muito peixe que pescam e capivaras que matam que são porcos d`água, jacarés e sucuris, que são umas cobras de estranha grandeza, e todas mais imundícies que dão os pantanais, nos quais Deus cria o arroz sem mais cultura que a da natureza, e são estes pantanais tudo terra alagada, que fará de caminho mais de quinhentas léguas, e com as enchentes dos grandes rios que se vem ajuntar ao rio Paraguai, represam as águas, de sorte que faz um mar oceano, e se não conhecem as madres de tão caudalosos rios no tempo de seis meses, que dura a sua enchente, fazendo-se deste tempo a navegação para as minas do Cuiabá com mais gosto e brevidade havendo bons práticos, e no tempo das enchentes se colhe o arroz, crescendo a sua palha no tempo das enchentes enquanto não amadurece 49.

Também é digno de destaque o que vê e relata da nação Sarayes [ou Xarayés]:

(....) é reino repartido em muitas aldeias, em uma delas se contaram novecentas e tantas choças, gente mui limpa e asseada, no seu viver pouco ocioso e mui grande lavradores, assim viviam muito abundantes de mantimentos e outras farturas que lhe permitiam os seus países 50.

O conde de Azambuja Antônio Rolim de Moura, em viagem pelos rios em 1751, se admira

em ver com seus próprios olhos os arrozais pelos pantanais do rio Cuiabá: O rio Cuiabá no tempo das águas faz de uma e outra banda grandes

pantanais, e chega a tomar tanta água, que por eles se navega até junto da vila; porém nesta ocasião ainda em partes não tinha a altura necessária, e vi-me obrigado a buscar o rio, sempre tive o gosto de ver com os meus olhos o que já tinham me contado, mas não persuadido; e foi marchar com as canoas por cima de vastíssimos arrozais que, naturalmente, sem serem plantados, crescem por aquele pantanal, e ali vem colher todos os anos o gentio. Quando mais as águas crescem, tanto mais cresce o arroz; de sorte que sempre está cinco ou seis palmos fora d’água 51.

Nestes trechos extraídos de narrativas dos que viajavam pelos rios, já se pode ter uma

idéia da riqueza das informações reunidas. Ao informarem dos habitantes “naturais”, esclarecem importantes aspectos do mundo natural, bem como das territorialidades ameríndias estabelecidas ao longo dos rios e as estratégias para dificultar a conquista.

49 Idem, Ibidem, pp. 184-185 (Os itálicos são meus). 50 Antônio Pires de CAMPOS, «Breve notícia (...)» cit., p.186 (Os itálicos são meus). 51 «Relação da viagem que fez o conde de Azambuja, D. Antônio Rolim de Moura, da cidade de S.Paulo para a ila

de Cuiabá em 1751», in Afonso TAUNAY, Relatos monçoeiros cit., p. 215.

Page 13: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 13

O Mato Grosso: “matos virgens de arvoredo muito elevado e corpulento...” A partir do início da década de trinta dos setecentos, em busca de índios para escravizar e

de novos descobrimentos de ouro, sertanistas paulistas continuaram suas penetrações ao noroeste de Cuiabá chegando ao ambiente que hoje conhecemos como floresta de transição e Amazônia. Os sertões dos Pareci, passam a ser devassados, conforme se lê nesta Notícia:

(...) saindo uma tropa de gente da vila do Cuiabá a explorar as campanhas dos gentios chamados Pareci (...), [que] habitavam nas dilatadas planícies ao norte da grande chapada, e achando a referida tropa todo aquele continente destituído de tudo o que pudesse fazer interesse às suas diligências, se determinaram atravessar a cordilheira das Gerais de oriente para poente; e como estas montanhas são escalvadas, logo que baixaram à planície da parte oposta aos campos dos Pareci (que só tem algumas ilhas de arbustos agrestes), toparam com matos virgens de arvoredo muito elevado e corpulento, que entrando a penetrá-lo o foram apelidando Mato Grosso; e este é o nome que ainda hoje conserva todo aquele distrito 52.

No Anal de Vila Bela se vê relatado o princípio desta conquista pelos “naturais da Serra

acima chamados os Paulistas” no empenho de “cursar os sertões à conquista do gentio, de cujo serviço tinha ainda mais ambição do que do ouro”. Sertanistas de Sorocaba estão citados como os “descobridores”, em busca de apresarem o gentio Pareci “naquele tempo o mais procurado e já quase extinto, e depois de conquistarem alguns, nas suas vastas campanhas, cursaram mais ao Poente com o mesmo intento”. Ao arrancharem-se no ribeirão que deságua no rio Galera, afluente do rio Guaporé, que nasce nas Serra chamadas Chapadas de São Francisco Xavier de Mato Grosso, encontraram o ouro 53.

Em se tratando do Mato Grosso, retomo a Breve Notícia do sertanista Antônio Pires de Campos onde se ateve descrevendo mais detalhadamente no Reino dos Pareci nas “dilatadas chapadas, e todas as águas correm para o Norte”. E assim os aspectos de suas lavouras e da caça com o uso do fogo:

É essa gente em tanta quantidade, que não podem numerar as suas povoações ou aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se passam dez e doze aldeias, e em cada uma destas tem dez até trinta casas, (...) estes todos vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e é gentio de assento e as lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas, muito ananazes [abacaxis], e singulares em admirável ordem plantados, de que costuma fazer seus vinhos, e usam também cercar de rio a rio o campo, entre esta cerca fazem fogos em que caçam muitos veados, emas e outras mais castas54.

Bem interessante as práticas das mulheres em suas habilidades de tecer com penas de pássaros as suas vestes, - o que realmente causa admiração a habilidade dos usos dos recursos naturais:

Os trajes ordinários desses gentios é trazerem os homens uma palhinha nas partes verendas e as mulheres suas tipoinhas a meia perna, cujos panos fazem elas mesmas de teçume de penas e de ricas cores, com muita curiosidade

52 José Gonçalves da FONSECA, «Notícia da situação de Mato Grosso e Cuiabá, estado de umas e outras minas

[c.1740]», Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XXIX, parte 1a, 1866, p. 352-353 (itálicos meus). 53 Francisco Caetano BORGES, «Anal de Vila Bela da Santíssima Trindade desde o descobrimento do sertão de Mato

Grosso no ano de 1734», in Revista do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, Cuiabá(MT), 1(2)set/1982-fev/1983, p. 55.

54 Idem, Ibidem, p.187 (Os itálicos são meus).

Page 14: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

14 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

e lavores de várias castas e feitios,(...). Esse gentio feminino é o mais parecido que se tem visto por que são muito claras e bem feitas de pé e perna, e com todas as feições perfeitas. Costumam criar araras, papagaios e outros pássaros em casa como quem cria galinhas, e os depenam, e lhe dão com tintas, que fazem de diversa cor como querem que depois lhe saiam as penas, e em elas saindo, lhas tiram para as suas obras que fazem, e lhe tornam a pôr segundas tintas para criar novas penas, e de novas cores, e estas são tão vivas e singulares que parecem labirintos, sem que lhe levem vantagem nas cores as melhores sedas da Europa 55.

A tecnologia feminina Pareci para a produção de penas coloridas usadas na confecção de

tecidos ou teçumes, é realmente admirável! É neste momento que se pode afirmar que o texto foi ditado a alguém que lhe deu forma erudita, pois sendo Antônio Pires de Campos de uma família de sertanistas paulistas, um falante da língua-geral ou tupi-guarani, que nunca havia saído da América, não poderia ter comparado as cores dos tecidos das tipóias Pareci às das “melhores sedas da Europa’. Segundo consta na historiografia paulista, ele foi “ativo e audaz sertanista” e participou menino com seu pai, Manuel de Campos Bicudo, nas explorações dos sertões para caça de índios e riquezas. Há informações de ter formado um exército de índios bororos, e participado na guerra aos paiaguá em 1734 56. Pode-se afirmar ser a Breve Notícia... um texto confidencial¸ produzido no momento preparatório de estudos e futuras negociações para definições de limites dos domínios ibéricos na América do Sul 57.

A Coroa portuguesa recomendou povoamento na região do distrito do Mato Grosso desde o ano 1741, atraindo-os com privilégios e isenções a todos que se dirigissem para o local. As instruções régias enviadas em 1746 ao governador de São Paulo, para que fosse fundada uma vila no vale do Guaporé, deixa claro que se pretendia assegurar os domínios da fronteira lusa 58. Sem entrar nos detalhes do processo que resultou na criação da Capitania de Mato Grosso, é indispensável destacar em primeiro lugar que o Mato Grosso, designativo da região do Guaporé, traduzia um ambiente e uma paisagem diferentes do Cuiabá. A maior proximidade com possessões espanholas (as Missões de Moxos e Chiquitos e Santa Cruz de la Sierra), com as minas do Mato Grosso, fez com que a metrópole definisse aquela parte do Termo da Vila Real do Cuiabá como o lugar geopoliticamente mais adequado para sediar a vila capital da nova capitania: a Vila Bela da Santíssima Trindade, fundada no ano de 1752. A possibilidade de navegação pelos rios Guaporé, Mamoré e Madeira no sentido de estabelecer a comunicação e comércio com o Estado do Grão Pará e Maranhão, também deve ser considerada como fator preponderante naquela decisão.

A conquista dos sertões e minas do Cuiabá já estava consolidada, quando toparam com matos virgens de arvoredo muito elevado e corpulento, e passam a utilizar Mato Grosso (talvez uma tradução do tupi caá etê - mata verdadeira, fechada) para referir às margens orientais do rio Guaporé.

Para tornar mais explícitas as diferenciações da paisagem entre os sertões do Cuiabá e do Mato Grosso, o relato de uma Notícia com detalhamento geográfico e variações do clima:

55 Idem, Ibidem, pp 187-188 (Os itálicos são meus). 56 Cf. Thereza Martha Borges PRESOTTI, O novo descobrimento…cit. 57 Em 1730, Diogo Soares no Rio de Janeiro escrevia ao rei: “Tenho já junto uma grande cópia de Notícias, vários

Roteiros e Mapas dos melhores sertanistas de São Paulo, e Cuiabá, Rio Grande e da Prata (...).” Jaime CORTESÃO, Alexandre de Gusmão e o tratado de Madri -Parte I, Tomo I (1695-1735), Rio, Inst. Rio Branco, 1952, p. 299.

58 De acordo com essas instruções, todas as pessoas que fossem para a nova vila estariam isentos do pagamento de fintas, talhas e quaisquer outros tributos por dez anos e não poderiam ser executados por dívidas contraídas em outras vilas e distritos nos primeiros três anos. «Provisão de D. João V ao governador da capitania de São Paulo, Luís de Mascarenhas, 1746», in Carlos Alberto ROSA e Nauk Maria de JESUS. (orgs.), A terra da conquista. História de Mato Grosso Colonial, Cuiabá, Editora Adriana, 2003, p. 191.

Page 15: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 15

Entre as serras da cordilheira das Gerais e rio Guaporé (...) se levanta um agregado de montes de espessa construção de rochedos, que formam várias chapadas no mais alto da sua elevação e algumas lombadas nos seus declives, cujo composto se dilata em figura quase triangular lançada de leste a oeste, (...) É a positura desta chapada em 16 graus quatorze minutos de elevação austral (...), quase (...)com a entrada que faz o Madeira no grande rio das Amazonas. O clima desta região se averigua ser quente e seco e nele é sumamente irregular o tempo nas suas mutações, porque reduzido o ano somente a inverno e verão, é este tão intemperado, que desde o mês de abril em que principia, até o de setembro em que acaba, padece aquele território uma interpelação de calor como costuma haver de ordinário na zona tórrida, em que jaz, e frio tão desordenado, como em Portugal se experimenta no janeiro mais desabrido. Acha-se o dia claro de sol intenso e, de repente, se levanta do sueste um vento frigidíssimo com uma serração de neblina tão espessa, que apenas pelos campos e pelas ruas se divisam as pessoas quando chegam a encontrar-se. É preciso, com acidente tão estranho, desampararem os trabalhadores o serviço das faisqueiras e lavouras e fecharem-se nas casas, aonde só bem enroupados e com o benefício do lume podem resistir ao frio, que já em ocasiões foi tão grande, que apanhando em partes ermas alguns escravos, os privou da vida; razão porque logo que o horizonte austral dá os primeiros sinais de tão espantosa friagem, logo põem toda a diligência de se recolher a povoado todos os que se acham dispersos pelas chapadas 59.

Outro aspecto a salientar do ambiente das minas do Mato Grosso é ser citado como lugar

“pestilento”, onde as febres e sezões atacavam com freqüência. O capitão-general Rolim de Moura, no exame que faz para escolha do local mais

adequado para fundar a vila capital, comenta ser o Arraial de São Francisco de clima destemperado, resultando em contínuas sezões nos seus moradores. Outros aspectos foram a localização no alto de uma chapada que poderia dificultar a condução de lenha e madeira, e não possuir boas pastagens para criação de gado e cavalo. No arraial de Santa Ana, onde os poucos moradores estavam dispersos pelos sítios e lavras, observa os bons campos para a criação de gado e os fartos matos para lenhas, mas a água era pouca para uma grande povoação e o clima mais quente e temperado, menos sujeito às febres e catarrais. Seguiu até o lugar Pouso Alegre, à beira do rio Guaporé, e esperou todo o mês de fevereiro e março observando a altura das águas. Ao ver que o barranco do rio protegia o terreno das enchentes e que o ar e a água eram bons, o clima temperado e benéfico para a saúde dos moradores, decidiu por fundou aí a Vila Bela 60.

De acordo com o que se narra no Anal de Vila Bela, “com as notícias que já tinham de estarem perto destas minas as Missões das Índias de Espanha pela terra adentro”, moradores saíram no ano de 1742 para “fazer negócio e toparam do rio Verde para baixo ainda muito gentio, principalmente da parte ocidental”. Ao saberem pelos índios espanhóis das notícias de “que não havia muitos anos tinham subido do Grão-Pará pelo rio Mamoré acima umas canoas grandes carregadas de negócio para aquelas aldeias”, resolveram quatro dos aventureiros “a rodar para o Grão Pará, com o conceito de que podiam eles descer por onde aquelas canoas tinham subido.” E

59 José Gonçalves da FONSECA, «Notícia da situação de Mato Grosso e Cuiabá ....» cit., pp. 378-379. 60 «Carta de Antonio Rolim de Moura a Diogo de Mendonça Côrte Real 28 /05/ 1752», Antonio Rolim de Moura

(correspondências), vol. 1, Cuiabá, Editora da UFMT, 1982, p. 70; «Anal de Vila Bela…» cit., p. 61. Cf em Nauk Maria de JESUS, «Oposição à consolidação da vila-capital da Capitania de Mato Grosso», Texto nos Anais (CD-Room) do XXIII Simpósio Nacional de História/ANPUH, Londrina (PR), jul.2005

Page 16: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

16 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

foram estes que primeiro realizaram esta navegação até o Pará, mas foram presos e remetidos à Corte 61.

No ano de 1743 o ouvidor geral da Comarca do Cuiabá, João Gonçalves Pereira, manda tomar informações a respeito das Missões da Companhia de Jesus das Índias Ocidentais de Castela, chamadas Moxos, através de autoridades e pessoas que fizeram viagens saindo do Arraial de São Francisco Xavier. Neste documento, algumas informações interessantes dos percursos pelos rios: as distâncias, as condições e o tempo para percorrer seus principais trechos entre uma e outra missão, os gentios daqueles sertões, se bravios, de que parte estavam, e se tiveram algum choque com os sertanistas. Quando trata do caminho que se faz até a primeira Missão de São Miguel, uma descrição do rio Gruaporé:

É este limpo sem cachoeiras, itaipavas, nem correntezas e em partes parecem as águas sem movimento; tem o rio Guaporé de largura regular quinze, até vinte braças com muitas barras, sangradouros e baias; dois dias antes de chegar à barra de cima de S. Miguel, está um lugar que tem muitas ilhas (...) 62.

Ao tratar dos percursos navegáveis do rio Sararé, observa o porto da Pescaria, onde o rio

faz barra no Guaporé e “um ribeirão que os pescadores chamam Capivary e nasce de uma grande Serra”. Navegando por outros rios mais abaixo, a hidrografia e o gentio Guarayu:

(..) abaixo deste [Sararé] está o rio Galera, o qual é pequeno mais navegável até as cabeceiras;(...) e tem por uma e outra parte grandes pantanais. Abaixo uns dois dias o rio Verde(...) e para cima tem saltos medonhos. (...) dois dias de viagem abaixo (..) um grande sangradouro que expele água para a madre, por ele se comunica o gentio Guarayu com os índios dos padres da companhia das missões de Chiquitos, e junto do dito sangradouro se vê um grande alojamento já deixado do dito gentio 63.

Significativas são as descrições da conquista do vale do Guaporé. Inicialmente, através da

ação sertanista de caça aos índios, mais uma vez o intenso povoamento ameríndio, seus “usos e costumes” em permanentes relações com a natureza; que mais uma vez são violentamente obrigados a buscar outros sertões e participarem da exploração das novas lavras de ouro nos arraiais e outros serviços para “aumentos da Fazenda Real” nas povoações ou aldeias e mesmo nas fortalezas, Fortes e na Vila Bela.

A Capitania de Mato Grosso na Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira O naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira, considerado o maior cientista nascido

no Brasil, depois de percorrer por quase seis anos (1783-1789) as Capitanias do Grão Pará e Rio Negro, e após quase um ano de preparação, parte de Barcelos com sua Expedição em agosto de 1788 à Capitania de Mato Grosso e Cuiabá 64.

Após navegar pelo rio Madeira acima por longos meses, e passar um tempo no sítio dos Guajarus e no Forte Príncipe da Beira, chega a Vila Bela em 03 de outubro de 1789. Relata “o miserável estado em que toda a expedição desembarcou”. Tanto o naturalista quanto os

61 «Anal de vila Bela...» cit, pp. 57-58. Observa-se que a Coroa muito se interessou pelas informações dos sertanistas em momento que antecede as negociações para o Tratado de Madri.

62 João Gonçalves Pereira, Itens sobre os quais mandei tomar informações (...), Cópia manuscrita do Arquivo Colonial de Lisboa - Mato Grosso, Avulsos, 1743, in IHGB/RJ, Arq. 1.4-37-4, Lata 762-Pasta 16, 52p. p. 2.

63 Idem, Ibidem, p. 3. 64 Interessante observar que registrou a Capitania como Capitania de Mato Grosso e Cuiabá talvez pelo

reconhecimento das duas repartições, em bacias hidrográficas e ambientes diferenciados. (Ver Anexo, MAPA V-Roteiro da Viagem).

Page 17: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 17

desenhistas-riscadores, estavam muito doentes. O jardineiro botânico, acometido de uma forte corrupção, faleceu após o sexto dia na Vila. Nos primeiros cinco meses, “horrorosas epidemias de catarrais, sarampos, garrotilhos, pontadas e desinterias” se alastravam na região, causando temores 65.

A orientação quanto ao trabalho principal da Expedição neste distrito era percorrer as áreas de mineração, examinar os procedimentos usados nos serviços das lavras, recolherem amostras de ouro e de outras curiosidades destas minas. Para tal tarefa contou com o forte apoio dos governadores Luís e João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres.

Ao viajar para a Serra de S. Vicente no ano de 1790, tece comentários a respeito do trabalho dos mineiros e do método de minerar, onde constata o uso do mercúrio:

Aproveita-se muito a amalgamação do mercúrio e é certo que por este método bem pouco ouro se perde, como estão aproveitando os mineiros europeus. A fusão finalmente parece que deverá prevalecer ao menos naqueles sítios, onde não há falta de lenha para o carvão (...) 66.

E manifesta sua preocupação com o uso da lenha e “o que mais há perto dos Arraiais”, e

propõe uma “Polícia das Matas e do Corte das Madeiras”, conforme recomenda: Porém, perto dos arraiais é de recear que cedo não haja lenha, e o que

mais há, nem a madeira precisa para as tábuas e para os prédios rústicos e urbanos, se também não tiver lugar a Polícia das Matas e do corte das Madeiras, cada um corta o que quer, sem providência para o restabelecimento das Matas, úteis particularmente daquelas que mais perto ficam das povoações (...) 67.

Continua suas observações da região e salienta a respeito da abundância do ouro.

Expressa admiração de que “nestas minas a Natureza caprichou deveras” onde diz ser “também uma das muitas causas por que os trabalhos não passarem de superficiais”, pois a “necessidade por toda parte tem sido a Mestra da Indústria” e “de oitavas de ouro, dizem eles, não necessitamos nós, mas tão somente de arrobas”.

Para Ferreira “a verdade é que além desta profusão da Natureza, outras muitas coisas concorrem para não prosperarem estas minas”. A primeira causa é de “não se efetua anualmente uma numerosa introdução de escravos proporcionada ao consumo que eles costumam ter” 68. Além de citar o alto custo das despesas com "comboieiros, incluídos os direitos e despachos que pagam nos registros dos portos de mar e do sertão”, denuncia que os escravos comprados a tão exorbitantes preços raramente são tratados por seus senhores “com o pão e o pano preciso para desempenham as pesadas tarefas”, e por isso adoecem “em país tão pestilento”. Outro motivo “é que desertam ou aos centros dos matos ou para a fronteira da Espanha, e raros são apreendidos e voltam ao cativeiro”. Outra causa citada para a não prosperarem as minas é por estarem sendo “trocadas em canaviais e algodoais” e os mineiros a “mudar de ofício para lavradores e

65 Ofício de ARF a Martinho Melo e Castro dando conta de suas atividades na Capitania de MT. Vila Bela, 16 de abril de 1790. Ver: Américo Pires de LIMA, O Dr Alexandre Rodrigues Ferreira: documentos coligidos e prefaciados, Lisboa, Agência Geral do Ultramar/Divisão de Publicações e Biblioteca, 1953, p. 256. Apud. Leny Caselly ANZAI, Doenças e práticas de cura na capitania de Mato Grosso: o olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira, Tese de Doutorado, Brasília, UnB, 2004. p. 83.

66 Alexandre Rodrigues FERREIRA, Prospecto da Serra de São Vicente e seus estabelecimentos, Vila Bela, 16 de abril de 1790, Biblioteca Nacional (RJ ), Manuscritos I-11,2,2, n.º 12, fl.6.

67 Idem, Ibidem. 68 Segundo informa, entraram em Mato Grosso o total de 728 escravos de ambos os sexos, (1786 a 1789),

exportados das Capitanias do Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Ano de 1786: 143 escravos; em 1787, 182 escravos; em 1788, 143; em 1789, foram 258. Por cada escravo exportado da cidade da Bahia para as minas de MT, entre direitos e despachos o custo era de 9000; no registro de Goiás 3000 e no Registro do Jauru 3000, totalizando 15.000. (Cf. Alexandre Rodrigues Ferreira. Op. cit, Mss. BN, 1790)

Page 18: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

18 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

fabricantes”, bem como “os senhores de engenhos de açúcar e aguardente de cana, estão empregando seus escravos em fiar e tecer algodão” 69.

Em suas observações, pinta um quadro caótico destas minas como um cemitério do Brasil a que se dá o nome de Mato Grosso, ao tratar da situação causada pela peste do estio de 1789:

De agosto a dezembro na capital e nos Arraiais de Ouro Fino, Santa Ana e Pilar faleceram 154 homens, 47 mulheres e pelos matos morreram antas porcos e veados. Éguas, vacas e bestas muares desertaram do campo e se refugiaram nos Arraiais, trazendo as carnes prodigiosamente inchadas. A obstrução, a hidropezia, o escorbuto, o espasmo, as hemorróidas, a sarna, são professas de todo o tempo, e também vão sepultando este punhado de homens neste cemitério do Brasil, a que se dá o nome de Mato Grosso 70.

Porém, de maneira até contraditória, quanto aos aspectos da terra e da agricultura, a

situação é de inversão, conforme descreve: O terreno é tão fértil como se não houvera de servir para mais que para as

lavouras. Dão-se excelentemente o milho, o feijão, a mandioca, o arroz, as batatas, o café, a cana de açúcar, o algodão e o cacau. Comumente o milho não rende menos de 80 por l e o feijão 25 até 50. Contudo, no arraial do Ouro Fino, o feijão rende 40 e o milho 200. (...) rende aliás, sua Agricultura sem plano e sem direção. Não menos se dão as árvores de espinhos, pois ali vi grandes e excelentes cidras, laranjas, limas e limões azedos, além de todos os frutos ordinários do País. As hortaliças não deixam de recompensar o cuidado com que se tratam. Crescem para os gados excelentes pastos com que nutrem e engordam os bois, os cavalos, os porcos e as cabras. Criam-se outras plantas medicinais como são da classe dos amargos, febrífugos, a casca do arbusto a que se dá aqui por nome de Quina Peruana, que o parece ser no nome e na realidade a raiz da quina da terra; a pajanariobá do Pará que aqui se chama fedegoso,(...) 71.

O naturalista segue para Cuiabá por terra em junho de 1790, passa por uma gruta onde foi

até ela “tendo marchado a pé, entre matos e rochedos”. Logo a “febre perniciosa” o atacou e o capitão-general Albuquerque envia “sua própria botica e vigorosos medicamentos”. Continua viagem e chega ao final do mês de setembro em Cuiabá. Do Registro do Jauru solicitou ao governador que o liberasse da tarefa de coletar ovos de ema para o Real Gabinete de História Natural, pois estava difícil encontrá-los e propõe que os vaqueiros da região o fizessem enquanto pastoreassem o gado. Permaneceu em Cuiabá até fevereiro de 1791, quando saiu para o sul a explorar as minas do arraial de São Pedro d’ El Rey (atual Poconé). Seguiu até o arraial da Chapada (hoje cidade de Chapada dos Guimarães), percorrendo a Serra de São Jerônimo, e daí retornou à Cuiabá e em junho à vila Bela. Recolheram nesta viagem mais de 50 volumes de produtos naturais, fora os que já haviam sido enviados a Lisboa.

Dois índios alferes o acompanharam na viagem, com o emprego de prepararem os tais produtos. Com eles percorreu o rio São Lourenço ou Porrudos em 4 canoas grandes, com 20 índios remeiros e mais duas pequenas canoas de montaria “porque estas são as que fornecem

69 De aguardente e de açúcar contou no distrito de Mato Grosso 13 engenhos, sendo os de açúcar, apenas 3. 70 Alexandre Rodrigues FERREIRA, Prospecto da Serra de São Vicente e seus estabelecimentos, Vila Bela,

16/04/1790, Biblioteca Nacional (RJ), Manuscritos I-11,2,2, n.º 12, fl.14. 71 Alexandre Rodrigues FERREIRA, Prospecto da Serra de São Vicente e seus estabelecimentos, Vila Bela, 16 de abril

de 1790, Biblioteca Nacional (RJ ), Manuscritos I-11,2,2, n.º 12, fl. 7.

Page 19: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 19

produtos, exploram etc” 72. No caminho para o Forte de Coimbra, ao examinar a Gruta do Inferno fica deveras deslumbrado com o espetáculo da Natureza:

Eis aqui onde a Natureza me tinha preparado o maravilho espetáculo que recompensou dignamente tanto o perigo como o meu trabalho, (..) representou-me uma mesquita subterrânea, que observada por partes de cada uma delas, saltava aos olhos uma diferente perspectiva 73.

Algumas percepções reveladas... As diversas informações extraídas de olhares da conquista permitem refletir os contextos

das produções da escrita historiográfica e então perguntar o quanto é possível ver reveladas as relações dos indígenas nestas naturezas. Arrisco que existem tantas maneiras de ver, quantas são as possibilidades de experiências nos ambientes, sendo cada uma única, vividas por diferentes sujeitos, dependendo das mais diversas condições de produção das escritas da história e dos lugares que ocupavam para olhar a natureza.

O mundo natural em suas manifestações, que estou chamando natureza, creio tê-la re-visitado nas observações sobre a terra através das descrições de localizações geográficas que indicam sinais do relevo, da vegetação e da qualidade do solo para o cultivo. As águas estão frequentemente referenciadas nas caracterizações dos rios e cachoeiras, nos perigos de percursos e travessias, nos comentários de sua qualidade e salubridade, o sustento da pesca nas largas e dilatadas baías e outros usos e produtos de suas margens, bem como o povoamento ameríndio. Vale destacar a busca de sinais “naturais” demarcadores para a posse efetiva do território (uti possidetis), que poderiam tornar indicadores dos limites fronteiriços das coroas ibéricas.

São visíveis as plantas nas observações mais gerais acerca da vegetação, os locais de densos arvoredos ou largas campanhas, as roças cultivadas por moradores e gentios como a banana e a cana de açúcar ou plantações “naturais” como o arroz. Quanto aos animais, constata-se serem abundantes nas referências às constantes montarias e caçadas dos gentios.

Neste breve rastreamento de alguns dos olhares e que se constituíram em escritas historiográficas ou narrativas “dadas a ler” 74, creio ter apresentado algumas pistas que tornaram os índios e a natureza mais visíveis no conjunto de relações históricas nos “dilatados sertões” do centro do continente sul-americano.

Ao re-compor instantes de passado penso ter revisto o povoamento e as práticas indígenas na natureza, revelados nas admirações, medos e repulsas, nas misérias e abundâncias e em muitos outros sentimentos extravasados diante de “novos descobrimentos” e estranhamentos: ora o paraíso, ora o inferno, vivas interações ou “adaptações” nos sertões, terras e águas do centro da América do sul.

Se compararmos as paisagens descritas no século XVIII, com as deste tempo presente, certamente vamos nos deparar com “outras naturezas”. O êxtase ou o assombro diante da exuberância e diversidade talvez não seja mais possível. Mas, quem sabe, possamos entender um pouco mais das relações das sociedades com as naturezas, alguns dos caminhos percorridos, as alternativas possíveis que foram consideradas nas histórias das sociedades, indícios de significados dados às manifestações do meio natural e cultural, no contexto da conquista colonial do centro da América do sul.

72 Américo Pires de LIMA, O dr Alexandre Rodrigues Ferreira… cit., p. 256 Apud. Leny Caselly ANZAI, Doenças e práticas... cit., pp. 93-94.

73 Virgílio Corrêa FILHO, Alexandre Rodrigues Ferreira: vida e obra do grande naturalista brasileiro, São Paulo, Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, v. 144, 1939, p. 124.

74 Neste aspecto, a referência é Roger CHARTIER, História Cultural: entre práticas e representações, 1990, p.16.

Page 20: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

20 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

MAPA I– A Capitania de Mato Grosso e repartições do Cuiabá e do Mato Grosso.

FONTE: Carlos Alberto ROSA e Nauk Maria de Jesus (orgs.), A terra da conquista. História de Mato Grosso Colonial, Cuiabá, Editora Adriana, 2003, p. 62.

Page 21: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 21

MAPA II - Termo da Vila Real do Senhor Bom Jesus de CUIABÁ

FONTE: Carlos Alberto ROSA e Nauk Maria de JESUS (orgs.), A terra da conquista. História de Mato Grosso Colonial, Cuiabá, Editora Adriana, 2003, p. 63.

Page 22: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

22 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

MAPA III - O Distrito ou Repartição do MATO GROSSO

FONTE: Carlos Alberto ROSA e Nauk Maria de JESUS (orgs.), A terra da conquista. História de Mato Grosso Colonial, Cuiabá, Editora Adriana, 2003, p. 64.

Page 23: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Os índios e a natureza na conquista colonial…: a Capitania de Mato Grosso (século XVIII) 23

MAPA IV – Terras Indígenas de Mato Grosso

Fonte: Apud. Leodete MIRANDA & Lenice AMORIM, Mato Grosso: Atlas Geográfico, Cuiabá, Entrelinhas, 2000, pp. 22-23.

Page 24: Os índios e a natureza na conquista colonial do centro da América do ...cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/thereza_martha... · No decorrer do século XVII sertanistas

Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

24 Thereza Martha Borges Presotti Guimarães

MAPA V - Roteiro da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira na Capitania de Mato Grosso

Fonte: Leny Caselly ANZAI, Doenças e práticas de cura na capitania de Mato Grosso: o olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira, Tese de Doutorado, Brasília, UnB, 2004.