os gÊneros dos escritos apologÉticos cristÃos … · sentido atribuído à “apologia” é o...
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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03006
OS GÊNEROS DOS ESCRITOS APOLOGÉTICOS
CRISTÃOS ANTIGOS
ARZANI, Alessandro (Capes/UEM-GTSEAM)
VENTURINI, Renata L. B. (DHI/UEM-GTSEAM)
Introdução
O conceito de “apologia” parece ter se fixado devido principalmente aos escritos de
Eusébio de Cesareia (1999). Ele é empregado na passagem de sua História Eclesiástica
(H.E.) quando faz referência à Apologia aos cristãos, escrita por Tertuliano e endereçada
ao Senado. O termo também é utilizado para referir-se aos escritos de outros seis
escritores: Quadratus e Aristides (H.E.III.1-3); Justino (H.E.IV.18.2); Mileto de Sardis e
Apolinário de Hierápolis (H.E.IV.26.1-2); e uma obra de Miltiades (H.E.V.17.5). O
trabalho de apenas três desses ainda sobrevive.
Mas qual seria o critério para reconhecer uma “apologia” cristã? Responder a essa
questão implica reconhecer a constituição literária dos textos cristãos chamados de
“apologias” em algum momento. Essa discussão envolve a indagação sobre a possível
existência de um gênero apologético. De qualquer modo, por se compreender que a forma
do discurso influencia significativamente o seu conteúdo, o estudo das apologias torna-se
relevante para sua compreensão histórica. Para isso, pode-se buscar os padrões para o
reconhecimento da “apologia”.
Sara Parvis (2007, p. 115-127) aponta o que parece ser a trajetória principal para a
fixação da ideia comum de “apologia” cristã, atualmente difundida num sentido pouco
restrito. Ela parte da forma como Eusébio reconhece esse tipo de texto e passa pelos
critérios da coleção do Arethas codex de 914 A.D. Esse manuscrito, preservado na
Bibliotequè de France como Parisinus Graecus 451, inclui a Apelação pelos cristãos de
Athenagoras, Contra os gregos de Taciano, Exortação aos gregos e Tutor de Clemente de
Alexandria, bem como, Preparação para o Evangelho e Contra Hierocles de Eusébio. As
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obras de Justino e Tertuliano foram preservadas graças ao manuscrito hoje conhecido
como Parisinus Graecus, do século XIV, preservado pela mesma Bibliotequè de France. A
coleção seguinte a conseguir destaque é a de Fédéric Morel, acadêmico francês, que reuniu
em 1615 muito da coleção de textos que ainda controla o gênero como é mais conhecido
hoje. Ele inclui Apologias de Justino, o Diálogo com Trifão e os escritos pseudo-
Justianianos; Atenágoras e Taciano, a obra de três livros de Teófilo de Antioquia
conhecida como A Autólico; e o Irrisio de Hermias. Parvis nota ainda que a transmissão da
obra de Teófilo se deu através do manuscrito veneziano Marcianus graecus 496. Nesse
também aparecem os seguintes escritos de Eusébio: Contra Marcellum e De Ecclesiastica.
Por sua vez, Johann Karl Theodor von Otto teria usado estas coleções anteriores como base
para a sua Corpus apologetarum christianorum saeculi secundi de 1851. Com isso, teria
subordinado esse tipo de textos ao termo “apologia” apoiando-se em Eusébio. Ele
acrescentou ainda, com observa Parvis (2007), os fragmentos dos apologista do historiador
de Cesareia, Quadratus, Aristides, Miltíades, Mileto e Apolinarius de Hierápolis,
adicionando o Diálogo de Jason e Papiscus. Também foram acrescentados muitos dos
escritos pseudo-justinianos, com exceção da Carta a Diogneto. Não há razões para
discordar de Sara Parvis quando ela diz que com essa coleção Otto fornece o que mais se
aproxima do conceito de “apologia”, ou melhor, dos “apologistas gregos do segundo
século”, mais ou menos como são conhecidos e estudados.
Mas essas coleções não apresentam uma explicação sobre o critério usado para
distinguir uma “apologia”. Também não fica claro se “apologia” é um gênero ou uma
característica do conteúdo. Não há qualquer resposta para a divergência entre as coleções
de apologias. Aliás, essa questão merece uma discussão específica em outra ocasião.
A análise do conceito de apologia – no sentido cristão do termo – deve partir de
quem parece ter afixado um fundamento para esses escritos: Eusébio de Cesareia.
O conceito de “apologia” cristã
As apologias mencionadas por Eusébio são endereçadas àqueles que têm o poder de
decidir concernente ao controle da execução dos cristãos, tanto no amplo-império, como no
nível local. São cinco para o Imperador e outras duas para o Senado.
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Ele conhece as obras de Taciano e Teófilo, mas as chama de logos [discurso] e
siggrama [tratado] respectivamente. Esses autores são posteriormente chamados de
apologistas, como no Corpus apologetarum de Johann von Otto. Tão desafiador quanto
olhar a formatação desse tipo de texto no período posterior a Eusébio, é olhar para o
conceito “apologia” antes de Eusébio.
Platão (1903) escreveu sua Apologia de Sócrates pouco depois da morte de seu
mestre em 399 a.C. Esse escrito compreende o julgamento e condenação de Sócrates.
Trata-se de uma versão do discurso de Sócrates em sua própria defesa diante das acusações
de destruir a juventude, de não acreditar nos deuses da cidade e de inventar outros deuses.
As acusações são denominadas “kategoria” [acusação, imputação] do verbo “kategorew”
[denunciar, apresentar acusações] e o acusado pode fazer uma “apologia” [defesa,
autodefesa através de discurso] derivada do verbo “apologeomai” [falar em defesa
própria]. Esses são os significados básicos, mas esses termos podem sofrer variações nos
textos antigos. O outro escrito que trata especificamente da defesa desse filósofo é de
Xenofontes (1971), com o mesmo título Apologia de Sócrates. Em ambos os textos o
sentido atribuído à “apologia” é o que se opõe à “categoria”, ou seja, “apologia” é um
discurso de defesa.
Segundo os rastros desse tipo de texto, nota-se que é justamente um discurso de
“defesa” que F. Josèpho (1930) dirige a Ápion em prol dos judeus. Josèpho defende a
religião judaica salientando a sua antiguidade e contrastando a pretensão da cultura grega
no campo cultural. O caráter “apologético” do texto como um “discurso de defesa” fica por
conta da resposta a algumas alegações antijudaicas atribuídas ao escritor grego Ápion e os
mitos acreditados por Manetho.
Portanto, até o final do século I d.C. o conceito de “apologia” dizia respeito ao
discurso de defesa. Com a perseguição a judeus e cristãos na segunda metade desse século,
multiplicam-se os motivos para o desenvolvimento de “apologias”. No entanto, ainda é
preciso observar mais proximamente essas condições e averiguar se essa leva discursiva do
II século, principalmente, chegou a constituir um “gênero” específico ou se permaneceu
apenas como nome atribuído a discursos de defesa dos cristãos em suas diferentes formas.
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Forma e conteúdo das Apologias cristãs
Para compreender os aspectos constitutivos das apologias cristãs do século
segundo, é interessante considerar que há várias formas de entender os “gêneros” textuais
ou do discurso.
Os autores da Apologetics in the Roman Empire ampliaram o conjunto de gênero
por buscarem nas expressões literárias de defesa de uma religião contra oponentes entre os
pagãos, judeus e cristãos nos primeiros três séculos no Império. Buscaram para além dos
apologistas gregos do segundo século os Atos dos Apóstolos, Tertuliano, Minucius Felix,
Cyprian, Eusébio, Lactâncio, Arnobius, a Oração aos Santos de Constantino, e ainda
Josefo e Philostratus (GOODMAN; ROWLAND, 1999). Chama a atenção de Sara Parvis
(2007, p.117) que Martin Goodman analisando o suposto “gênero” da Apologia judaica
argúi que o mesmo se resume a um autor, ou um texto: “Contra Ápio de Josefo”. Ele não o
considera uma espécie de um gênero inteiro de uma literatura judaica pré-existente, mas
“uma resposta dada por um autor a pressões particulares num tempo particular”. Valendo-
se desse tipo de argumento, Sara Parvis (2007) procura arguir sobre as Apologias de
Justino. Ela constata que Justino não recorreu a um “gênero” apologético cristão
anteriormente estabelecido. Segundo a autora, Justino foi capaz de apresentar um tipo de
apologia que “fundaria” um gênero de sua autoria, se isso é possível.
Desde séculos as discussões sobre os gêneros textuais são calorosas. Não cabe aqui
fazer uma história do gênero literário, mas serão apontados alguns aspectos relevantes
desse problema. Desde a época de Platão (República, Livro III) os padrões de escrita
despertam reflexões sobre as formas textuais. Aristóteles (Poética) propõe uma teoria
sobre os gêneros literários. Com essas primeiras ideias surgem as classificações da obras
literárias suas diferenciações. Dentre os romanos alguns aspectos dessa reflexão aparece
com Horácio (Epistola ad Pisones) e Quintiliano (Institutio Oratoriae). Na Idade Média as
discussões não são tão veementes. Diomedes (século IV d.C.) fixa e transmite uma
classificação das espécies poéticas (CURTIUS, 1957, pp. 463-464). A renascença, por sua
vez, redescobre a paixão e empolgação por grandes códigos para servir a arte literária e
reacende a discussão sobre os gêneros. O neoclassicismo dedica-se sobre a “pureza dos
gêneros literários” e repudia a variação dos gêneros. No Romantismo a noção clássica de
gênero é substituída por gêneros “impuros”, mistos ou comunicantes. Nesse período não há
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imposições demasiadamente restritivas dos gêneros e eles passam a ser considerados como
descritivos. O século XIX é marcado pelos estudos de Ferdinand Brunetière (2008) e de
Benedetto Croce. O primeiro interpreta os gêneros como um ser vivo que nasce, vive e se
desenvolve e depois morre. Croce (1978) repudia as classificações dogmáticas dos velhos
tratadistas que se perdem em abstrações sem sentido. Ele considera aceita a utilidade dos
gêneros literários na sistematização da história da literatura, desde que não sacrifiquem a
individualidade da obra de arte. O III Congresso Internacional de História Literária, em
1939, evidenciou o problema que continua aberto para novas proposições.
Dentre todas essas propostas e divergências, a questão parece evidenciar dois
prismas de interpretação: um “realista”, que acredita na pré-existência de gêneros como
uma realidade única antes da obra em si; e uma corrente “nominalista”, que encara essas
ideias como simples denominações da verdadeira obra literária. O conceito de gênero não é
empregado de forma unívoca. Ele é empregado para se referir ao conjunto de
características comuns entre obras comparadas. Wellek e Warren (1984) apresentam uma
discussão literária em 1942 que aponta alguns caminhos para as reflexões sobre os gêneros
atualmente. Eles consideram que os critérios para se definir um gênero sempre foram
subjetivos e o dinamismo do universo da produção de discurso leva a uma constante
revisão dos gêneros. Mas como observou Jacques Derrida (1980) não há texto sem gênero.
A atribuição de um gênero a um texto é uma necessidade. Um texto literário não pode
escapar da lógica do gênero, mas por outro lado pode desafiar a lógica da contextualização.
O texto não é prisioneiro da classificação, os parâmetros para a classificação são
arbitrários, pois obedecem a critérios que podem variar no nível de estabelecimento de
relações comuns entre discursos.
Em suma, os gêneros orientam quando servem como referência para se pensar o
que se pretende transmitir. Por isso, servem para fins específicos. Conteúdo e forma
interagem segundo as circunstâncias, segundo o caráter instrumental e operatório da
capacidade de comunicar.
Ao invés de cair nas abstrações do estudo do gênero como exame da literalidade,
uma tendência atual significativa é analisar os gêneros do discurso. Bakhtin (1992, p. 282)
considera que
ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo lingüístico
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leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.
A enunciação é, nesse sentido, a unidade real da cadeia verbal que está em
constante evolução, já que as relações sociais estão também sempre em transformação. A
enunciação como um todo se realiza no discurso como atividade de linguagem ininterrupta,
que atende aos objetivos sociais de comunicação. Dessa forma, ela só se realiza no curso
da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram
pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal,
isto é, outras enunciações.
Sendo o enunciado um ato de fala, entendido como discurso, tende a ser produzido
sempre dentro de um determinado contexto, para que seu sentido tenha uma relação de
significação entre os interlocutores. Conforme Fiorin (1999, p. 30), o enunciado não é uma
frase, mas “um todo de significação”. O discurso, portanto, não é uma grande frase, nem
um aglomerado de frases. Para que uma frase qualquer seja um enunciado, deve conter um
sentido, e este, por sua vez, realizado em uma dada situação, possuir uma significação para
os interlocutores. O contexto, segundo Cervoni (1989, p. 19), contribui para o sentido do
enunciado. Ele afirma que a frase em contexto torna-se enunciado. Desse modo, “o sentido
do enunciado é determinado essencialmente pelo contexto situacional”.
O enunciado, produto de uma enunciação, constitui o discurso, seja ele uma frase
ou várias. Os gêneros do discurso são definidos como “tipos relativamente estáveis de
enunciados” que uma determinada comunidade utiliza no processo de interação verbal.
Para Bakhtin, “a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a
variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade
comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à
medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (1992, p. 279). Os
gêneros primários são fenômenos da vida cotidiana. Os gêneros secundários – o romance,
o discurso científico, o discurso ideológico – são aqueles que “durante o processo de sua
formação […] absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies,
que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal espontânea” (1992, p.
281).
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Portanto, uma análise do que pode ser o gênero apologético cristão implica a
análise das características discursivas das obras, muito mais do que uma simples
comparação de padrões de linguagem. É necessária uma comparação das obras produzidas
em determinado período, em consideração das condições de sua produção e da produção
do seu discurso para que sejam identificadas as propriedades discursivas comuns.
Discursos apologéticos
A partir dos indícios a respeito do conjunto de textos denominados “apologias” é
que se torna viável investigar sobre as propriedades discursivas desse que pode ser um
gênero específico.
Como já foi visto, Eusébio é quem primeiro consagra o termo “apologia” como
referência a alguns escritos de defesa aos cristãos. As apologias mencionadas por Eusébio
são endereçadas àqueles que têm o poder de decidir concernentemente ao controle da
execução dos cristãos no Império. Não é novidade que para ele “apologia” é uma “fala do
discurso de defesa”. Esse parece ser um conceito relacionado ao uso comum do termo
“apologia”. A questão principal agora é compreender quais foram os critérios para
enquadrar alguns textos nesse conjunto. Os textos de Taciano e Teófilo, por exemplo, não
foram enquadrados entre as “apologias”.
Parvis (2007) considera que a forma de uma apologia pode de fato ser uma carta ou
um tratado meramente modelado sobre a oratória forense, mas uma apologia endereçada
como que a uma corte é, todavia, sempre o seu conteúdo. Mas empreende uma busca pela
origem de uma tradição apologética específica a partir de Justino. Ela considera que o
vínculo estabelecido entre Aristides e Quadratus com o governo de Adriano mencionado
por Eusébio pode ser uma dedução. Tenta argumentar que, na História Eclesiástica,
Eusébio pode ter confundido Aristides com Atenágoras. Isso porque no texto Armênio,
assim como nas Crônicas de Eusébio, a Apologia de Aristides é vinculada ao reinado de
Adriano, enquanto a tradição siríaca o relaciona com Antonino Pio. Além disso, não há
referências à revolta de Bar Kokhba 132-135 na secção judaica. Também não há
referências à destruição do templo sob Vespasiano e Tito, que seria apropriado para um
período mais antigo. O discurso de Aristides não foi pronunciado nem na presença de
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Adriano, nem de Antonino Pio. Ela considera que o vocativo “O rei” pode ser removido
sem que se altere o sentido do texto, o que indicaria um acréscimo posterior.
Outra hipótese apontada por Sara Parvis (2007, p. 121) é a de que Eusébio teria lido
o texto anônimo antimontanista endereçado a Abercius Marcellus (H.E.v.16.3-17.4), que
menciona outro Quadratus como parte de uma sucessão de profetas da província da Ásia
(v.17.4). Ela adverte que Eusébio não deixa claro se Quadratus e o profeta são as mesmas
pessoas. Ele discute sobre o profeta Quadratus primeiro, no império de Trajano, depois de
sua discussão sobre Inácio de Antioquia e Policarpo, sublinhando sua antiga data e o fato
de que ele ocupa posição principal na sucessão apostólica. Parvis mantém no campo da
possibilidade a aposta de que talvez Eusébio considere Quadratus, o profeta, e Quadratus, o
apologista, a mesma pessoa.
Devido ao fato de Mileto of Sardis, Apolinarius de Hierápolis e Miltiades serem
também teólogos da Ásia e todos terem se envolvido em disputas entre 170 e 180 sobre
profecias em geral e Montanismo em particular, a autora considera razoável a associação
de Aristides a uma época mais tarde.
Parvis (2007) advoga que como o manuscrito de Aristides assinala no reinado de
Antonino Pio, que tem como primeiro título Aelius Hadrianus, não haveria dificuldades de
pensar em subir Quadratus também até o período de Antonino Pio. A relação dos dois com
Adriano teria sido uma estratégia de Eusébio para relacioná-los ao rescrito de Adriano em
favor dos cristãos.
A análise de Sara Parvis (2007) é bastante interessante principalmente porque tenta
explicar a divergência entre os textos armênio e siríaco com relação ao destinatário da
apologia de Aristides. Mas, além disso, fica clara a intenção da autora em enxergar em
Justino o fundador de um “gênero”. É claro que a Parvis não tem em mente a criação
intencional de um gênero; ela está mais preocupada em notar as Apologias de Justino como
referenciais para uma “tradição” apologética que se desenvolve segundo as suas
propriedades discursivas.
No entanto, para que Justino fosse considerado referência para uma “tradição”
apologética, não seria necessário que ele fosse o primeiro cristão a apresentar uma
apologia. Não existe nenhuma regra nesse sentido. Além disso, é bem provável que
Eusébio tente relacionar Quadratus e Aristides com o Imperador Adriano, mas isso não
coloca em dúvida a sua narrativa.
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Justino foi seguidor do platonismo e do aristotelismo antes de se converter ao
cristianismo. Nas suas Apologias ele parece acreditar na existência do que se pode chamar
de “cristãos antes de Cristo”, uma proposição decorrente de suas ideias a respeito da
revelação de Deus através do logos spermatikos. Além disso, ele lembra como Sócrates
tentou livrar os gregos da ignorância e foi condenado, fazendo assim comparação com a
atividade dos cristãos para proclamação da “razão” libertadora dos homens em Cristo. Há
vários traços da filosofia platônica que permitem estabelecer alguma relação, mas Justino é
mais cristão do que filósofo em seus escritos. Seu interesse é defender sua fé, pois para ele
o cristianismo é a filosofia “verdadeira” que completa aquilo que foi revelado apenas em
parte, anteriormente (MINNS; PARVIS, 2009). Certamente ele conhecia a Apologia de
Sócrates de Platão e possivelmente a versão de Xenofontes.
Tanto o texto de Platão (1903) como o de Xenofontes (1921) sobre o julgamento de
Sócrates não são textos para a poder mudar a sua condição do acusado; são escritos sobre a
defesa do filósofo que morreu depois do seu julgamento cumprindo a sua sentença. A
apologia não é o gênero, é o assunto. Xenofontes dedica-se a compor um texto menor para
legar à memória a determinação de Sócrates no que tange ao seu julgamento. Ele toma
algumas informações extras de Hermógenes, filho de Hipônico e amigo de Sócrates.
Assim, nenhuma dessas duas apologias podem ter servido de modelo para que Justino
escrevesse seu texto, mas elas apresentam a ideia de que uma apologia é um discurso que
visa mudar a condição dos acusados em termos jurídicos.
No texto de Flávio Josefo (2003) escrito por volta de 97 conhecido como Contra
Ápio, o autor enumera uma série de argumentos no Livro I contra aqueles que, de forma
geral, duvidam da antiguidade dos judeus, tema que ele defendia alguns anos antes,
em Antiguidades Judaicas. No início do Livro II, Josefo ataca os argumentos de Ápio.
Esses textos começam a se parecer com o tipo de apologias cristãs que serão escritas pelos
cristãos no século II por constituírem uma defesa à cultura judaica, que naquele momento
sofria rejeição no Império.
O Imperador Nero (37-68 d.C.) está no topo da lista de Eusébio (1999) sobre os
Imperadores perseguidores de cristãos. Depois deste vem Domiciano (51-96 d.C.), que
“dando morte sem julgamento razoável a não pequeno número de patrícios e de homens
ilustres, e castigando com o desterro fora das fronteiras e confisco de bens a outras
inúmeras personalidades sem causa alguma” (EUSEBIO, 1999). Sob o Imperador Trajano
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“voltaram a ocorrer perseguições contra nós [os cristãos], parcialmente e por cidades,
devido a levantes populares” (H.E.4.32).
Em sua correspondência com o Imperador Trajano, Plínio (1953), o Jovem, pede
orientações sobre como proceder no julgamento das pessoas acusadas de cristianismo. Na
resposta de Trajano, Plínio é elogiado por ser relativamente brando, exigindo apenas que
os acusados neguem o cristianismo. Trajano orienta que não cabe formular regra dura e
inflexível, de aplicação universal, mas se houver persistência nas denúncias, alguns
castigos devem ser aplicados aos cristãos. As denúncias anônimas deviam ser ignoradas.
Essas perseguições que seguirão até meados do século II, quando as Apologias são escritas,
não são gerais. Nesse sentido, pode-se concordar com a constatação de Renata L. B.
Venturini (2006, p. 211-212) de que tanto as decisões tomadas por Nero em 64 d.C. e as de
Trajano, em 112 d.C. “não se constituem como precedente para o estabelecimento de uma
regra geral aos governadores provinciais”. A perseguição generalizada ocorrerá com o
estabelecimento posterior de editos imperiais.
O primeiro apologista cristão apontado por Eusébio é Quadratus. Segundo Eusébio
(1999), ele endereçou uma apologia ao Imperador Adriano em favor dos cristãos quando o
Imperador esteve em Atenas, por volta de 124 e 125 A.D. Dessa Apologia restou apenas a
passagem citada por Eusébio.
Aristides também encaminhou uma apologia ao Imperador Adriano. Disposta em
17 breves capítulos. Começa com um proêmio sobre o conhecimento, a existência, a
natureza e os atributos divinos. Há uma exposição sobre a origem das quatro principais
religiões que são tratadas nos capítulos seguintes: a dos bárbaros ou caldeus; a dos gregos;
a dos judeus e a dos cristãos. Na verdade é uma apresentação do contraste das religiões,
principalmente entre gregos e cristãos. Ele explica com sua obra o que é ser cristão e
procura defender o cristianismo das más interpretações. Embora Sara Parvis (2007) ache o
texto distinto para um período durante o governo do Imperador Adriano, parece haver uma
certa razoabilidade em dirigir um texto que apresenta os contrastes entre várias religiões a
um Imperador que há pouco havia se convertido a uma religião de mistério, como alguns
consideram.
Segundo o rescrito de Adriano a Minucio Fundano, em resposta a carta de Serenio
Granjano, anexado à Apologia de Justino e citado por Eusébio, o Imperador foi moderado
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com os cristãos, aconselhando que as calúnias infundadas contra os cristãos não fossem
passadas impunes.
Justino apresentou Apologias diferentes. A primeira ao Imperador Antonino Pio e a
segunda ao Senado e ao povo romano. Ele escreve em defesa dos cristãos que são
incomodados simplesmente por serem cristãos, de modo que não têm um julgamento que
considere o proceder das denúncias nem a verdadeira conduta dos acusados. Essa condição
é que move o autor a produzir seu texto almejando convencer seus destinatários. Seu
discurso em defesa dos cristãos é amplo, pois ele pede que, se possível, seja publicado o
texto para que outros sejam convencidos. Sua fala aborda as acusações feitas aos cristãos,
buscando desfazer as incompreensões sobre os mesmos.
Paul Keresztes (1965) analisou especificamente o gênero da apologia de Justino.
Ele questionou a supervalorização do conteúdo do escrito e acentuou a comparação das
estruturas do texto com as proposições retóricas, principalmente às de Quintiliano. Ele
conclui que se as chamadas apologias de Justino são escritos de defesa dos cristãos,
certamente não foi essa uma escolha de Justino. Segundo sua teoria, o pensador de Flávia
Neápolis não tinha essa opção de gênero. No entanto, ele teria recorrido às formas retóricas
disponíveis. Desse modo, seu discurso não seria um tipo forense, mas uma retórica
epiditica real ou ficcional. Mas parece que Keresztes não se preocupou em analisar se esses
elementos retóricos poderiam aparecer na estrutura do texto sem a pretensão de ser
retórico. A questão aqui não interfere na análise mais ampla que pretende ser desenvolvida,
a saber, a do reconhecimento das apologias cristãs, quer seja por gênero ou não.
No caso de Justino, ao mesmo tempo em que seu discurso é de defesa, ele também
informa. É um texto de caráter informativo, pois é a incompreensão, em parte, que tem
dado origem ao combate aos cristãos (MINNS; PARVIS; 2009).
Sara Parvis (2007) vê nas Apologias de Justino a referência para uma tradição
apologética distinta. Ela percebe essa influência sobre os escritos de Atenágoras. Ele
(provavelmente ateniense) endereçou sua Suplica em favor dos cristãos ao Imperador
Marco Aurélio e a seu filho Lucio Aurélio Cômodo, por volta dos anos 177 e 178 A.D. Os
cristãos são defendidos das acusações de ateísmo, antropofagia e incesto. Demonstra-se
muito hábil com as palavras, bem como, firme e vigoroso com as ideias. Atenágoras
começa clamando por justiça para os cristãos, perseguidos simplesmente por serem
cristãos, assim como Justino argumenta. Como Justino, ele explica o mal e a desordem no
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mundo pela presença do demônio e o diabo. Diz que os demônios se agradam do sangue
oferecido aos ídolos. Também rebate as acusações de canibalismo e incesto, as quais
Justino também se refere. Para ele os filósofos também foram úteis para conduzir à
verdade.
As apologias de Melito, Apolinarius e Miltiades escritas nos reinados de Marco
Aurélio e Commodus podem ter seguido Justino endereçando aos governantes reclamações
sobre a anomalia das punições pelo mero fato de se declarar cristão, e refutando as
atribuições de ateísmo, incesto e canibalismo. Pelo menos seguiram Justino na ideia de
endereçá-las ao imperador ou às autoridades terrenas.
Tertuliano também é identificado por Sara Parvis como influenciado (2007, p.126).
Ele começa seu apelo pela discussão da injustiça da punição dos cristãos pelo mero nome
de cristianismo (1.4-3.8). As atribuições de ateísmo, canibalismo e incesto são discutidas.
A prostituição de crianças no império não escapa a sua observação. Fazendo jus ao caráter
informativo do texto, ele descreve o Deus cristão.
Sara Parvis parece estar correta ao identificar uma correlação entre as
características das apologias desses autores e as de Justino, mas e as outras apologias?
Taciano que foi discípulo de Justino escreveu seu Discurso aos gregos. Ela é bem
distinta dessa que pode ser chamada tradição apologética justiniana. Trata-se de um escrito
polêmico de desapreciação da cultura grega, inclusive das belas artes. Ele ataca o
helenismo, afirmando que a literatura grega é fonte de erros e frente a esta destaca a
superioridade da moral cristã. Esta obra não foi chamada apologia por Eusébio, porém isso
não significa que não seja um discurso de defesa dos cristãos.
Segundo Eusébio (1999), Aristón de Pella escreveu a Disputa entre Jason e
Papisco. Papisco representa um judeu alexandrino. O texto foi perdido e só restou uma
introdução nas obras latinas de Cipriano de Cartago. Aristón parece ter escrito sua obra
contra os judeus entre os anos 135 e 145 d.C.
Um apologista um tanto quanto exótico é Hérmias. Viveu provavelmente entre fins do
século II e início do III d.C. e nada se sabe sobre sua vida. Escreveu uma obra chamada
Escárnio dos filósofos pagãos, em dez capítulos onde alude ironicamente a temas da
filosofia grega como a natureza do corpo, a alma, o mundo. Ele busca evidenciar as
contradições pagãs. Devido a sua temática, ao grego com que escreve e o período no qual
escreve, ele é enquadrado entre os apologistas.
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Por volta de 180 d.C. é Teófilo (1885) de Antioquia quem escreve sua apologia. O
escrito denominado A Autólico é uma obra de três livros. Através desses escritos o Bispo
de Antioquia defende o cristianismo das objeções de Autólico. O primeiro livro trata da
essência de Deus. Ele fala da fé, da ressurreição, da necessidade e da idolatria, bem como,
do louvor tributado ao Imperador e da adoração devida a Deus. No segundo livro,
compara-se à mitologia grega e à essência dos filósofos inspirados pelo Espírito Santo,
sobre a criação do mundo e do homem. No terceiro, são refutadas as acusações dos pagãos
contra os cristãos quanto aos costumes.
A Epístola a Diogneto (1885) é muitas vezes considerada um texto anônimo que é
enquadrado entre as apologias. Mas quem é Diogneto? Segundo a teoria de Paul
Andriessen (1946), esse texto não outra coisa senão a apologia que Quadratus apresentou
ao Imperador Adriano e que foi dada por perdida. Segundo essa teoria, Diogneto seria um
título honorífico comum em Atenas entre os arcontes. Adriano era ali um arconte desde
112 d.C. Ele fora iniciado nos mistérios Eleusis. O texto discute quem é o Deus dos
cristãos e as particularidades da religião cristã em contraste com a religião dos gregos e dos
judeus. É feita uma dura repreensão tanto ao politeísmo quanto ao judaísmo. O apologista
afirma o que a religião dos cristãos em contrapartida não é uma invenção humana.
Acredita-se que seja um escrito do segundo século.
Minúcio Félix (2001) foi um advogado rico do século II que escreveu sua apologia
na forma do diálogo Otavio. A conversa entre Cecílio e Otávio se desenvolve a caminho de
Óstia. Ao passarem pela imagem de Serápide surge a discussão sobre a religião cristã.
Otávio é quem defende os cristãos dos ataques de Cecílio, que por fim se converte ao
cristianismo.
Por fim, Arnôbio e Lactâncio por várias vezes são considerados autores de
apologias. O primeiro escreveu uma apologia longa e diferente distinta Adversus naciones,
onde critica o politeísmo; o segundo, seu discípulo, escreveu De mortibus persecutorum
(entre 318 e 321), por meio da qual critica os perseguidores dos cristãos.
Um texto ou outro pode surgir buscando afirmar-se como apologia. A classificação,
como foi visto, é algo arbitrário. Desse conjunto de textos é possível notar alguns padrões
discursivos. Desse modo, sem querer estreitar os critérios classificatórios, é observável que
em todos esses textos existe: um discurso de defesa dos cristãos em função de sua religião
e outras propriedades subordinadas a essa principal funcionalidade.
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Considerações finais
Até aqui foi possível constatar que assim como o gênero em si mesmo nem é um
fato puramente discursivo nem puramente histórico, a questão da origem sistemática dos
gêneros não poderia manter-se na pura abstração. Uma apologia que poderia significar o
ato de defesa para os gregos num período anterior ao II século d.C., passará a servir como
nome para as propriedades discursivas que caracterizam os escritos de defesa dos cristãos e
de sua religião nos dois séculos seguintes. Esses padrões são: um discurso de defesa dos
cristãos em função de sua religião; os adversários podem ser autoridades político-
administrativas; os adversários podem ser filósofos ou intelectuais; ou, simplesmente, o
discurso pode se impor contra as calúnias da plebe pagã; a temática é sempre uma resposta
à cultura oposta; não há uma elaboração minuciosa dos textos e nem um método
sistemático; suas obras obedecem à lógica da contestação às objeções embora seja possível
identificar alguns elementos retóricos; suas obras lançam mão de uma linguagem culta,
mas nem sempre com muito refinamento. Alguns padrões podem se aproximar mais uns
dos outros, como nos casos dos textos que se aproximam mais das características das
Apologias de Justino, porém, todos esses escritos podem ser considerados pertencentes ao
gênero discursivo apologético cristão. Eles foram concebidos dentre os séculos II e III
(talvez alguns até no início do IV) devido à realidade social em que os cristãos viviam.
Esse gênero discursivo aparece nesse período como forma de comunicar a resposta cristã
aos incômodos provocados por aqueles que se constituem os seus “outros”.
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