os fins e os meios: a natureza ideolÓgica da tese … · os fins e os meios: ... a autora lembra...

15
OS FINS E OS MEIOS: A NATUREZA IDEOLÓGICA DA TESE DO FIM DO FORDISMO Cláudio Anselmo de Souza Mendonça 1 UFMA - [email protected] GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO. RESUMO A ideologia do fim do fordismo é marcada por diversas similaridades, a exemplo do fim do trabalho, fim das ideologias e fim da história, tese hegemônica na academia brasileira. Buscamos nos contrapor a esta tese caracterizando o bojo da questão a partir de uma apreensão de elementos que ajudam a explicar a crise dos anos 1970, seus impactos na força de trabalho, objetiva e subjetivamente, dentro da perspectiva marxiana da contradição e da totalidade. Através de pequenas notas, demonstraremos que com a mundialização do capital, assistiremos a um processo ideológico da não-ideologia, fundamentando diretamente as inúmeras teses dos inúmeros fins (fim da ideologia, fim do trabalho, fim do fordismo), o que a nosso ver reforça os meios de ampliação da expropriação do trabalhador. Dessa forma, aquilo que é apresentado de forma fragmentada como fim do fordismo é no fundo algo extremamente ideológico, pois desconsidera a capacidade do capitalismo de através de formas velhas e novas de gerenciamento científico fazer a reprodução do capital. Assim, em vez de uma ruptura, parece mais razoável analisar as continuidade e descontinuidade do metabolismo social fetichizado. Palavras-Chave: Ideologia. Pós-fordismo. Capitalismo. INTRODUÇÃO Pensar fora do curso linear da história, manter um distanciamento pedagógico do pensamento hegemônico acadêmico, é uma tarefa fundamental nestes tempos. Transpor, 1 Docente da Universidade Federal do Maranhão e doutorando em Políticas Públicas do PPGP-UFMA. Membro do GEPOLIS Grupo de Estudos e Pesquisa em Política, Ideologias e Lutas Sociais do PPGP-UFMA e Grupo de Estudos sobre a Reestruturação Produtiva, a Mundialização do Capital, os Movimentos Sociais e o Estado Contemporâneo do PPGP-UFMA.

Upload: vuongque

Post on 12-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

OS FINS E OS MEIOS: A NATUREZA IDEOLÓGICA DA TESE DO FIM DO

FORDISMO

Cláudio Anselmo de Souza Mendonça1

UFMA - [email protected]

GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO.

RESUMO

A ideologia do fim do fordismo é marcada por diversas similaridades, a exemplo do fim do

trabalho, fim das ideologias e fim da história, tese hegemônica na academia brasileira.

Buscamos nos contrapor a esta tese caracterizando o bojo da questão a partir de uma

apreensão de elementos que ajudam a explicar a crise dos anos 1970, seus impactos na força

de trabalho, objetiva e subjetivamente, dentro da perspectiva marxiana da contradição e da

totalidade. Através de pequenas notas, demonstraremos que com a mundialização do capital,

assistiremos a um processo ideológico da não-ideologia, fundamentando diretamente as

inúmeras teses dos inúmeros fins (fim da ideologia, fim do trabalho, fim do fordismo), o que a

nosso ver reforça os meios de ampliação da expropriação do trabalhador. Dessa forma, aquilo

que é apresentado de forma fragmentada como fim do fordismo é no fundo algo

extremamente ideológico, pois desconsidera a capacidade do capitalismo de através de formas

velhas e novas de gerenciamento científico fazer a reprodução do capital. Assim, em vez de

uma ruptura, parece mais razoável analisar as continuidade e descontinuidade do metabolismo

social fetichizado.

Palavras-Chave: Ideologia. Pós-fordismo. Capitalismo.

INTRODUÇÃO

Pensar fora do curso linear da história, manter um distanciamento pedagógico do

pensamento hegemônico acadêmico, é uma tarefa fundamental nestes tempos. Transpor,

1 Docente da Universidade Federal do Maranhão e doutorando em Políticas Públicas do PPGP-UFMA. Membro

do GEPOLIS – Grupo de Estudos e Pesquisa em Política, Ideologias e Lutas Sociais do PPGP-UFMA e Grupo

de Estudos sobre a Reestruturação Produtiva, a Mundialização do Capital, os Movimentos Sociais e o Estado

Contemporâneo do PPGP-UFMA.

assim, nos coloca em um terreno fértil para sem negar a caráter imaginativo do novo-amanhã,

dos sonhos diurnos, (BLOCH, 2006), continuar compreendendo dialeticamente a realidade

como ela se apresenta, com suas complexidades e suas contradições, superando o dogmatismo

da aparência.

A partir dessa premissa filosófica buscaremos caracterizar neste artigo aquilo que

identificamos como ideologia do pós-fordismo. Para isso, nos parece acertada a posição de

Kosik (1976. P. 49) que sabiamente alerta que o “princípio metodológico de investigação

dialética da realidade social é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo

significa que cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo [...]”, ou como

o mesmo Kosik (1976, p.44) nos alerta, “[...] totalidade significa: realidade como um todo

estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fato, conjuntos de

fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido [...]”.A unidade metodologicamente não

seria uma totalidade abstrata a atomizada, mas dialética, envolta ontologicamente pela

contradição.

Como alertava Lefebvre (2013, p. 33), ao tratar do marxismo, que a descoberta

natural e lógica das contradições foi uma das grandes descobertas de Marx e seus seguidores,

e prossegue lembrando que “a teoria lógica das contradições não permite dizer quais

contradições se encontram neste ou naquele objeto, nesta ou naquela realidade particular, no

coração deste ou daquele movimento real [...]”. Então tal qual Kosik (1976), Lefebvre (2013)

nos aponta uma metodologia fundante para que no caso aqui analisado, não seja a

particularidade uma explicação geral.

De qualquer forma, este artigo é uma mediação teórica, preliminar e inconclusa, já

que ele faz parte de uma perspectiva que é constituinte dos estudos sobre a força de trabalho

no mundo, ideologia e tempo livre. Avançar assim na caracterização daquilo que definimos

como ideologia do pós-fordismo é essencial para compreender de que forma os mecanismos

ideológicos contemporâneos são fundamentais para que a perspectiva relativa do caráter

emancipatório do tempo livre se definha.

Para isso, urge analisar o processo de impactantes mudanças com a reestruturação

produtiva dos anos 1970 e como isso gerou necessários debates em torno da mediação do

trabalho na vida social. Na correia disso, trazer para o centro do debate a ideologia, que

conseguiu durante o século XX atingir um status diferente da negatividade do século XIX,

entretanto, se tornou natimorto, sem a missa de corpo presente. Em fim, procurar entender

como a cerimonia do culto pelo fim enxerga a gênese de algo novo sem entender o apocalipse

do algo antigo.

1. A ECLOSÃO DO INÍCIO E A GÊNESE DO FIM

As transformações econômicas, sociais e culturais do mundo capitalista pós anos 1970

impactaram profundamente as relações entre os sujeitos e a dimensão material e imaterial da

sociedade. Estas mudanças não apenas alteraram a forma, mas o conteúdo da mercadoria-

trabalho, podendo ser percebidas através do avanço estratosférico da automação, com

enxugamento da força-humana em alguns parques produtivos (ANTUNES, 2009), a

intensificação do trabalho (ROSSO, 2008) e ampliação das formas de precarização do

trabalho (BRAGA, 2012)2.

Autores de grandes envergaduras filosóficas como Habermas3 (2012), Gorz

4 (1982) e

Offe5 (1989) convergem para o entendimento que o trabalho perdera seu caráter estruturante

na sociedade. Habermas substitui a centralidade ontológica do trabalho por uma centralidade

na esfera da comunicação, apontando que a sociedade deveria ser pensada a partir da esfera da

intersubjetividade. (CARCANHOLO E MEDEIRO, 2015). Gorz escrevera um célebre livro

intitulado Adeus Proletariado, afirmando que existia um claro crescimento da esfera da

2 Cabe lembrar que o processo de intensificação e precarização da força de trabalho só efetivamente atingiu

escala planetária graças ao papel central dos Estados. Como bem destaca Farias (2015, p.17), “[...] o

desenvolvimento do capitalismo na escala global se realiza combinando formas, cada vez mais intensivas e

amplas, de dominação, exploração e humilhação, o que assegura, no próprio ser social do imperialismo global,

na atualização concreta da opressão econômica, social e política de classe, a relação efetiva, ainda imediata,

entre os elementos estatais e capitalistas globais reais, relativamente autônomos [...]”. É interessante observar

que até o Estado virou defunto na narrativa acadêmica hegemônica dos dias atuais.

3 Cabe lembrar, como bem destaca Carcanholo e Medeiros (2015, p. 141), que “o argumento de Habermas de

que o trabalho não seria mais central na sociedade contemporânea vem acompanhado da proposta de pensá-la a

partir de uma esfera da intersubjetividade, i.e., pela centralidade da esfera da comunicação (ou da ação

comunicativa, como prefere o autor.) [...]”.

4 A tonalidade central apresentada por Gorz no livro Adeus ao proletariado: Para além do socialismo, é já

expressa no prefácio da edição de 1982, quando o mesmo diz “o trabalho não é a liberdade porque, para o

assalariado como para o patrão, o trabalho é apenas um meio de ganhar dinheiro e não uma atividade com fim em si mesma [...]”. (1982, p. 10). Já em Imaterial, Gorz (2005, p. 30) afirma que “a crise da mediação do

trabalho engendra inevitavelmente a crise da mediação do valor. Quando o tempo socialmente necessário a uma

produção se torna, incerto, essa incerteza não pode deixar de repercutir sobre o valor de troca do que é

produzido. O caráter cada vez mais qualitativo, cada vez menos mensurável do trabalho, põe em crise a

pertinência das noções de „sobretrabalho‟[...]. A crise da mediação do valor põe em crise de definição da

essência do valor. Ela põe a crise, por consequência, o sistema das equivalências que regula as trocas

comerciais”.

5 Offe (1989, p.18), afirma que a pesquisa social “[...] também busca seus temas cada vez mais nas estruturas

sociais parciais e nas esferas específicas da ação social, localizadas nas bordas ou mesmo à margem da esfera do

trabalho, isto é, em áreas como a família, os papéis dos sexos, a saúde, o comportamento divergente [...]”.

Carcanholo e Medeiros (2015, p. 141) lembram que “[...] Offe conclui que a teoria social não deve mais se ater à

“sociedade do trabalho”, o que, na verdade, significa que as categorias associadas à teoria social de Marx devem

ser rejeitadas [...]”.

autonomia em relação à heteronomia6, onde o tempo livre

7 se apresentava como importante

substituto do tempo de trabalho. Já Offe aponta certa implosão da categoria trabalho. 8

Entretanto, quais mudanças efetivamente ocorrem com a última grande reestruturação

capitalista? Antunes (2009, p.31-2), ao analisar o quadro crítico em que se encontra o

capitalismo na década de 1970, apresenta alguns traços da crise, que são: (1) a queda da taxa

de lucro, (2) aumento do preço da força de trabalho, (3) controle social da produção, (4) a

hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais

produtivos, dentre outros.

Harvey observa que “em geral, as crises periódicas devem ter o efeito de expandir a

capacidade produtiva e de renovar as condições de acumulação adicional [...]” (2005, p. 45).

Dessa forma, as crises devem inevitavelmente buscar a elaboração de uma nova demanda

efetiva, e sem dúvida, como Harvey aponta, um elemento fundamental se dar pela “expansão

geográfica para novas regiões, incrementando o comércio exterior, exportando capital e, em

geral, expandindo-se rumo à criação do que Marx denominou „o mercado mundial” (2005, p.

46).

Como apontamos até o momento, o capitalismo mundial se territorializou como

nunca9 atingindo diretamente o hemisfério sul (Brasil, Argentina, Venezuela, México, Índia e

6 Importante lembrar que para Gorz, a heteronímia não é um fenômeno apenas do capitalismo. Como bem

destaca Prieb (2005, p. 46-7), “Gorz não considera a heteronímia um fenômeno típico do capitalismo, pois

acredita que o problema se manifesta, de igual maneira, no socialismo. A diferença seria a dominação sobre o

trabalhador, no capitalismo, ocorre por intermédio do capital, enquanto no socialismo sobrevém pelas mãos do

Estado [...]”

7 Linhart lembra que “ao quebrar a continuidade do tempo, o trabalho carrega-o de significado. Ele destila o

tempo livre por meio de rupturas e referências que ele introduz no tempo. O tempo livre não existe, ele só se

manifesta por oposição, em contraste com o tempo obrigatório que caracteriza a atividade profissional” (2007,

p.43). Em outra parte do livro, a autora lembra que “para todos os outros, que representam a maioria

esmagadora, o mundo do trabalho e o mundo do tempo livre, com seus pilares lazer e consumo, constituem dois

pólos atrativos, mas igualmente repulsivos, entre os quais eles se dividem numa busca incessante de identidade e

de inserção social. Os dois são indispensáveis para viver, mas também são fontes de decepção e de frustração.

(2007, p. 49)

8 É notório que estas mudanças alteraram a força de trabalho, mas bem distante de dê-la diminuída, o que é

possível constatar foi sua ampliação, como bem destaca Antunes (2009). O capital se universalizou. Sua

racionalização adentrou em territórios até então marginais. E com esta ampliação, novos mercados surgiram,

com novos postos de trabalho. No mesmo momento, assim, que mais o trabalho abstrato atinge o planeta, autores

pós-marxistas apontam para a sua diminuição ou até seu fim. Parece-nos apropriado lembrar uma importante

observação de Lukács (2012, p.37), quando afirma que “[...] os modos de manifestação imediata encobrem o

realmente essencial no plano ontológico [...]”. Partindo dessas manifestações imediatas, o aparente quadro de

crescimento do tempo do não trabalho pode conduzir a confirmação de que o tempo do não trabalho se constitui

como centro da sociabilidade atual.

9 Ianni (2010, p. 55) reflete que a expansão do capitalismo mundialmente se deu em primórdio após a Segunda

Guerra Mundial, ou seja, “[...] muitos começaram a reconhecer que o mundo estava se tornando o cenário de um

vasto processo de internacionalização do capital [...]”. De todas as formas, este processo apenas se aprofunda

com a crise dos anos 1970 e com a busca por novos mercados pelo capital internacional. Paulani (2008, p. 88)

Sudoeste Asiático) e o leste europeu10

, numa busca de reafirmar sua própria natureza

ontológica.11

É justamente neste ambiente que as relações do capital também se aprofundam

na República Popular Chinesa, o que contribuiu para um salto de crescimento, tendo entre

1980 e 1990 um crescimento econômico na casa de 9,5% e entre 1985 e 1995 uma taxa média

de 10,2%. (MEDEIROS, 2013).12

Sabemos, em concordância com Mészàros (2011, p.100), que “[...] o sistema do

capital é orientado para a expansão e movido pela acumulação [...]”. Em nome desse projeto,

a expansão do metabolismo do capital mundialmente se processa reafirmando o novo e o

velho não como campos opostos, mas como complementares no bojo da ressignificação do

mundo estranhado e de seres reificados. Ou seja, em vez de superar algumas formas de

expropriação social, o capital certamente se aprimorou para através de seu caráter expansivo

se adaptar13

ou fazer com que as regiões se adaptassem aos seus interesses.

A expansão das racionalizações científicas da produção de mercadoria, entretanto, não

se efetivaria sem um componente fundamental, a ideologia. Num ambiente de profundas

transformações no mundo capitalista, defender os fins da história, da ideologia, do trabalho,

destaca que “a industrialização da periferia, portanto, responde ao mesmo tempo aos anseios de um capital que

buscava novas praças de investimento produtivo, em razão das crescentes dificuldades de valorização observadas

no centro do sistema, e aos anseios de uma esfera financeira em vias de expansão e autonomização, que exigia,

portanto, não só a expansão dessas praças – afinal, a própria moeda fiduciária envolvida no fluxo de renda de

investimentos diretos é, em si, uma forma de capital fictício – mas principalmente, a canalização de seus fluxos

para os mecanismos de valorização que ela própria começara a criar [...]”.

10

Farias (2013, p. 20) afirma apropriadamente que “desde o fim da guerra fria, impõe-se na escala mundial a

governança planetária orientada para a hegemonia estadunidense, como também a governança orientada para o

valor em favor do acionista, para a especulação na bolsa, etc., [...]”.

11

Sobre o sistema global do capital, cabe lembrar que a“[...] estrutura “totalizadora” de controle à qual tudo o

mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e assim provar sua “viabilidade produtiva”, ou perecer, caso não

consiga se adaptar. Não se pode imaginar um sistema de controle mais inexoravelmente absorvente - e, neste

importante sentido, “totalitário” - do que o sistema do capital globalmente dominante, que sujeita cegamente aos

mesmos imperativos a questão da saúde e do comércio a educação e agricultura, a arte e a indústria

manufatureira [...]” (MÉSZAROS, 2011, p. 96)

12

Não objetivamos artigo adentrar nos pormenores desse crescimento econômico, mas tal dado preliminar nos

possibilita compreender que tal boom se deu tanto pelo papel centralizador do Estado, quanto pela junção de

formas novas e primitivas na extração da mais-valia. Dessa forma, se na Europa ocidental, os parques produtivos

fordistas definhavam, tais parques se expandiam pela Ásia e pela América Latina.

13

Harvey, de forma precisa, lembra que uma forma de o capital estabelecer um novo nível de demanda se dar

pela “penetração do capital em novas esferas de atividade (1) a organização de formas preexistentes de atividade

ao longo de linhas capitalistas [...] ([...] agricultura de subsistência do camponês em agricultura empresarial), ou

mediante (2) a expansão dos pontos de troca dentro do sistema de produção e a diversificação da divisão do

trabalho [...] (2005, p.46)

dentre outros, se tornaram os mais eficazes meios de recomposição da força orgânica do

capital, destituindo de legitimidade qualquer caráter emancipatório para além do capital.14

2. OS FINS DAS IDEOLOGIAS COMO MEIOS IDEOLÓGICOS DE OUTROS

FINS

Notoriamente que com o discurso do fim do fordismo emerge similarmente a narrativa

dos tempos flexíveis, em que a principal força produtiva se encontra no conhecimento15

. Este

arcabouço ideológico parte de um caráter especulativo e eurocêntrico, pois previa que a

redução dos parques fabris ligados à organização fordista, em algumas partes da Europa

ocidental, representa a própria superação em esfera mundial do fordismo. De início, podemos

encontrar dois problemas latentes, isto é, (1) a redução real do trabalho fordista não implica

imediatamente na redução do trabalho e (2) e a redução real do trabalho fordista não

significa sua supressão no âmbito do capitalismo mundial.

A defesa acrítica dos fins tem ligação íntima com os meios, mesmo que isso não esteja

manifestamente determinado conscientemente. Estes meios são justamente os tentáculos reais

e formais do capital mundial que também se aproveitou de um quadro de crise do marxismo

para expandir-se, eliminando qualquer tipo de barreiras. Farias (2015, p. 16) lembra que “[...]

pouco a pouco, o marxismo deixou de ser uma análise concreta das conjunturas diferenciadas

no tempo e no espaço [...]”, o que nos deixou nus, desamparados filosoficamente.

Ora, mas sempre é importante lembrar que a escolha metodológica por análises cada

vez mais fragmentadas é também uma decisão política. Eagleton (1998, p.20) afirma que “[...]

não buscar a totalidade representa apenas um código para não se considerar o capitalismo

[...]” ou como já muito bem lembrou Mészáros (2011), quando trata dos movimentos

ambientalistas, que deixam indefinidas as causas socioeconômicas e as conotações de

14

Ao tratar de movimentos de protestos importantes, a exemplo do ambientalista, Mészàros (2011, p.94) lembra

que “[...] nas últimas décadas, os movimentos de protestos – de modo notável, as diversas nuances do

ambientalismo – emergiram de um cenário social bastante diferente, e até com uma orientação de valor distante

da socialista. Esses movimentos procuravam estabelecer uma base de apoio político em muitos países capitalistas

por meio da atuação de partidos verdes de tendência reformista, que apelavam aos indivíduos preocupados com a

destruição ambiental em andamento, deixando indefinidas as causas socioeconômicas subjacentes e suas

conotações de classe [...]”.

15

É sintomática a defesa de Gorz (2005, p.29), quando se referindo a “economia do conhecimento”, afirma que

“[...] o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que, consequentemente, os produtos da atividade

social não são mais, principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado [...]

o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não mais é determinado em última análise pela

quantidade de trabalho social geral que elas contém, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos,

informações, de inteligências gerais [...]”

classe.16

Em um ambiente de um culto ao localismo ou pautas específicas ou emancipações

focais, legítimas, que deixemos bem claro, a impossibilidade de analisar o capitalismo

mundial se tornou um mantra.

O debate acerca da ideologia ganha contornos dificultosos a partir da crise que atinge

o pensamento marxista e marxiano. Eagleton definiu o discurso da supressão da ideologia17

como uma farsa e relembra que tal posição encontra sustentação mais recente nos teóricos do

fim da história que consideram a “[...] ideologia inerentemente fechada, dogmática e

inflexível [...]” e no pensamento pós-moderno, que define a ideologia como “[...] teleológica,

„totalitária‟ e fundamentada em argumentos metafísicos” (1997, p.11-2)18

Se lembrarmos de Althusser, cabe observar que o mesmo afirma que “[...] a

reprodução da força de trabalho revela, como sua condição sine qua non, não apenas a

reprodução de sua „qualificação‟, mas também a reprodução de sua submissão à ideologia

dominante ou da „prática‟ dessa ideologia [...]”. (1996, p. 109). A formação cultural, ética e

moral baseada nos valores particulares da burguesia transforma a particularidade de classe em

um valor universal válido, comprovado e a priori. Dessa forma tanto qualificando, num ritual

de batismo, quanto em sua submissão à ideologia, numa inquisição sutil, delicada e recatada,

a reprodução burguesa se processa, se efetiva.

Mészáros (2012, p. 67) lembra que “[...] as principais ideologias levam a marca muito

importante da formação social cujas práticas produtivas dominantes [...] elas adotam como

definitivo quadro de referência [...]”, o que não quer dizer que todos monoliticamente se

ideologizam19

no referencial ideológico burguês. Esta defesa de Mészáros bebe da fonte

16

Ver nota 14

17 Observa-se que a narrativa de fim das ideologias sempre esteve intestinamente ligada a luta contra qualquer

perspectiva emancipatória ou utopismos concretos identificados aos movimentos de esquerda. Logicamente que

este fronte não surge nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, mas sempre esteve presente no

seio da luta política, principalmente a partir do momento em que o conceito ideologia assume uma dimensão

positiva. Em um livro-entrevista que tem Lukács como o entrevistado, o mesmo afirma “[...] Creio que os

chamados intelectuais desprovidos de vinculações sociais, como também o slogan, hoje na moda, do fim da

ideologia, seja uma pura ficção, que não tem propriamente nada a ver com a efetiva situação dos homens reais na

sociedade real”. (2014, p. 54)

18

Sobre esta visão ideológica da não-ideologia, Mészáros lembra que “a verdade é que em nossas sociedades

tudo está „impregnado de ideologia‟, quer percebemos, quer não. Além disso, em nossa cultura liberal-

conservadora o sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de modo a apresentar - ou

desvirtuar – suas próprias regras de seletividade, preconceito, discriminação e até distorção sistemática como

„normalidade‟, „objetividade‟ e „imparcialidade científica‟ (2012, p. 57).

19

Com este entendimento, caberia trazer novamente Mészáros (2012, p.67) que afirma que “devemos diferenciar

[...] três posições ideológicas fundamentalmente distintas [...]”, que inclusive convive atritamente na atual

formação social burguesa. Estas posições seriam (1) a que apoia e defende o status quo, a ordem estabelecida, o

que, contraditoriamente, encontra apoio em vários setores oprimidos, justamente pelo estado de coisa da

surgida a partir da perspectiva de Marx e Engels (2007). Silva (2013, p. 146), por exemplo,

lembra que “[...] entender a ideologia como uma formação social20

, isto é, como algo que

ocupa um lugar específico na sociedade e que se determina pela estrutura material dessa

sociedade, foi o que Marx fez [...]”.

A respeito do caráter ideológico de qualquer formação social, precisamente a

moderna, nela está embutido um processo de legitimação de discursos, de concepções de

mundo, a exemplo da ética ao trabalho, a meritocracia, o individualismo, produtivismo,

lucrativismo, gerenciamento da produção e da vida etc. Por isso, nos parece acertada a

posição de Therborn (2014, p. 02) quando diz que “[...] a formação dos seres humanos por

toda ideologia conservadora e revolucionária, opressiva ou emancipatória, segundo qualquer

critério, envolve um processo que é simultaneamente de sujeição e de qualificação. [...]”. 21

No capitalismo contemporâneo, não seria exagero afirmar que a atual etapa de

organização do capital tem uma carga ideológica nunca vista na história do capitalismo.22

Então, bem diferente do fim da ideologia, teríamos sua massificação, sua intensificação e sua

especialização. Sem desconsiderar este papel historicamente inerente ao capitalismo, Alves

(2011) lembra que as particularidades atuais do regime do capital nos colocam em um

sociedade do capital; (2) a que consegue constatar o anacronismo da sociedade de classe, mas que não

consegue ultrapassar a mera crítica, ficando em certa medida, em contínua interpretação do mundo e a que (3)

visa à superação concreta da sociedade de classes, ultrapassando assim a mera crítica, tentando não só

interpretar o mundo, mas transformar o mundo.

20

É preciso, entretanto, lembrar que em uma mesma formação social existem várias ideologias, por mais que

algumas sejam dirigentes ou dominantes, o que não implica que elas sejam quantitativamente maiores. Isso se

explica justamente por que quando se considera a ideologia, não se está relacionando a uma concepção

meramente ligada ao sentido da dominação ou controle, pois, como elemento intrínseco da luta de classe, as

classes subalternas tentam, a todo o momento, com diferenças de escalas e níveis, hegemonizar ou até mesmo

impor suas ideologias. Em síntese, então, podemos afirmar que os valores, por exemplo, sobre tempo de trabalho

e tempo de não trabalho, são categorias variáveis, e não absolutas. Elas são historicamente determinadas e

situadas. Como bem aponta Silva (2013, p. 151), “o que Marx expressadamente nos indica é que as relações de

produção que se dão no plano da produção material são as mesmas relações que se dão no plano da produção

ideológica. [...]”.

21

Dentro desse processo de sujeição e qualificação, nos é apresentado por Therborn (2014, p. 03) três questões

de grande relevância. De acordo com este autor, (1) é a partir desse processo que se adquire uma identidade; (2)

nos estruturamos e nos normatizamos a partir das concepções apresentadas como certo ou errado, bom e ruim (o

trabalho, por exemplo, de amaldiçoado pelo judaísmo assume um caráter libertador pelo protestantismo) e (3)

nos é permitido também, pela própria natureza dialética desse processo, definir o que julgamos possível e

impossível ou no que querem que julguemos. E, Therborn (2014, p. 04) ainda lembra que é “[...] a totalidade destes três modos de interpelação constitui a estrutura elementar do processo ideológico de sujeição –

qualificação [...]”.

22

Podemos, sem receio de cair em algum equívoco, afirmar que nunca o processo de subsunção subjetiva da

classe trabalhadora foi tão bem organizado e efetivado do que nestes tempos. Ora, se assim como Eagleton

(1997, p. 14) lembra que “[...] uma prova de que ninguém é, ideologicamente falando, um tolo completo, é o fato

de que as pessoas ditas inferiores devem realmente aprender a sê-lo [...]”, isso se faz de forma muito bem

aperfeiçoada e apaixonante.

contexto de intensificação da manipulação, o que ele define por capitalismo manipulatório23

,

tendo como grande ideologia orgânica, o toyotismo.24

Eagleton, se baseando nos ensinamentos de Althusser, afirma que a ideologia “[...]

refere-se principalmente a nossas relações afetivas e inconscientes com o mundo, aos modos

pelos quais, de maneira pré-reflexiva, estamos vinculados à realidade social. [...]”. (1997, p.

30).25

Esta capacidade de controle ideológico também se encaixa naquilo que Eagleton (1997,

p. 13) fala sobre a capacidade do opressor em fazer com que o oprimido se sinta amado, que

dialoga com as teses de Althusser e Therborn, já apresentadas nestas notas. Ou seja, “[...] o

opressor mais eficiente é aquele que persuade seus subalternos a amar, desejar e identificar-se

com seu poder [...]”. (EAGLETON, 1997, p. 30). Não é de se estranhar que inúmeros

intelectuais tenham abandonado a luta em torno de uma sociedade emancipada socialmente.

Enfim, podemos assim perceber que a defesa ideológica do fim da ideológica trilha na

estrada do abandono da dialética marxiana, optando por uma metodologia fragmentadora do

objeto que não deixa de ser uma opção política de radicalizar, no máximo, a/na ordem

burguesa, mas não de superá-la. Neste bojo, a caracterização precipitada do fim do fordismo

acaba por desprezar algo de grande importância na compreensão do capital, isto é, seu caráter

expansivo e totalitário, assim como a capacidade de contraditoriamente se reproduzir

combinadamente usando novas e velhas formas de organização científica.

3. QUE TEMPOS NOVOS SÃO ESTES?

23

Ao tratar da indústria e do consumo de massa, Lukács lembra que “[...] estou convencido de que todo o

sistema de manipulação, do qual estamos falando surgiu desta necessidade e depois se estendeu também à

sociedade e à política. Agora este mecanismo domina todas as expressões da vida social, desde as eleições do

presidente até o consumo de gravatas e cigarros [...]”. (2014, p. 66). Nada mais preciso para os dias atuais

quando a cultura do fetiche atingiu de forma mais intensa a subjetividade do ser social.

24 Alves (2011, p. 65) afirma que “[...] O cérebro dos operários e dos empregados não está mais livre, como no

taylorismo-fordismo [...]”. A sujeição ideológica, com as formas gerenciais modernas de extração da totalidade

do homem-que-trabalha, se processa em cada espaço das empresas, seja em um supermercado, seja em uma

fábrica de cerveja ou em uma agência bancária. Este caráter ideológico é bem verdade não é uma novidade

desses tempos, apesar de ter assumido particularidades e até ampliado sua capacidade manipulatória. Como bem

destaca Engels (2010, p. 69-70), ao refletir sobre a situação dos operários na Inglaterra no século XIX, dizia que

“[...] quem garante ao operário que, para arranjar emprego, lhe basta boa vontade para trabalhar, que a

honestidade, a diligência, a parcimônia e todas as outras numerosas virtudes que a ajuizada burguesia lhe

recomenda são para ele realmente o caminho da felicidade? Ninguém [...]”, mas é preciso a reprodução

ideológica desse mantra sagrado.

25

É justamente por isso que Alves traz a citação de Matheus E. May, um representante direto do arcabouço

toyotista, onde o mesmo afirma que um dos objetivos das empresas é “fazer o melhor para entender a natureza

humana e como a mente funciona [...]” (ALVES, 2014, p. 58). Isso, vale tanto para o cliente ou consumidor

quanto para o empregado ou trabalhador. Nada mais ideológico do que isso.

É bem verdade, como lembra Harvey (2012, p. 135) que “[...] o período de 1965 a

1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter

as contradições inerentes ao capitalismo [...]”. O referido autor lembra que uma palavra que

sintetiza bem esta forma de organização de produção é a rigidez.26

Assistimos assim nas

décadas seguintes, em resposta a certa rigidez da produção de mercadoria, ao aprofundamento

e à intensificação de novas formas de extração da mais-valia, como formas mais flexíveis.

Harvey (2012) afirma que as diversas mudanças ocorridas a partir das décadas de

1980contribuíram para a passagem do antigo regime para um regime de acumulação

inteiramente novo.

Harvey define este regime de acumulação “inteiramente novo” de acumulação

flexível. Aparentemente, instala-se uma batalha frontal entre a rigidez do taylorismo-fordismo,

representando o antigo, e a flexibilidade27

, representando o novo. Aparentemente, pois há

interseções cruciais ocorridas e tal categoria usada por Harvey não deve nos conduzir a uma

defesa equivocada do fim ou extinção do fordismo. De qualquer forma, a flexibilidade dos

processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos, dos padrões de consumo

(HARVEY, 2012) impactara; o que sem margem de dúvida, terá um enorme peso na forma de

gerir o capital no capitalismo contemporâneo.

A partir dessa definição de acumulação flexível nos é permitido perceber as mudanças

de uma forma mais totalizante, implicada em diversos espaços-vida e espaço-território. Ora,

mas como já alertamos esta pretensa ruptura com o padrão de desenvolvimento capitalista

passado não designa uma abrupta passagem, nem a anulação total de outras formas de gerir o

capital ou um novo capitalismo sem o velho capitalismo.28

Reconhecer que de fato existia

26

“Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em

sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento

estável em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos

contratos de trabalhos (especialmente no chamado setor “monopolista” [...] A rigidez dos compromissos do

Estado foi se intensificando à medida que programas de assistência (seguridade social, direitos de pensão etc.)

aumentavam sob pressão para manter a legitimidade num momento em que a rigidez na produção restringia

expansões da base fiscal para gastos públicos. [...]” (HARVEY, 2012, p. 135-6)

27 Uma importante observação acerca do termo acumulação flexível, ver Giovanni Alves, em Trabalho e

Subjetividade, onde o mesmo afirma que “[...] a produção capitalista é, em si, acumulação flexível de valor [...] e

[...] o novo complexo de reestruturação produtiva que surge sob a acumulação flexível apenas expõe, de certo

modo, nas condições da crise estrutural do capital, o em-si flexível do estatuto ontológico-social do trabalho

assalariado: por um lado, a sua precarização (e desqualificação) continua (e incessante), por outro lado, as novas

especializações (e qualificações) de segmentos da classe dos trabalhadores assalariados [...]”. (ALVES, 2011, p.

14)

28 Caberia lembrar que “[...] a acumulação flexível, que surgiu em meados da década de1970, não [é] uma

„ruptura‟ com o padrão de desenvolvimento capitalista passado, mas uma reposição de elementos essenciais da

uma incapacidade crônica em conter as contradições do capitalismo, como aponta Harvey

(2012), não significa que o fordismo e sua rigidez deixaram de continuar cumprindo um papel

no processo de acumulação.

Lessa (2011, p.311) converge com a reflexão até aqui desenvolvida ao lembrar que

“[...] crescem as evidências de que entre o fordismo e o toyotismo há muito mais linhas de

continuidade, e muito menos instâncias de ruptura, do que foi anunciado [...]”, o que não

significa que não se deve metodologicamente se apropriar das diferenças e similaridades das

distintas formas de organização de produção. De toda forma, cabe insistirmos na

caracterização que este novo regime de acumulação não cria essencialmente algo novo, mas

se apropria de intelectos sociais já existentes em períodos anteriores, pois tanto a rigidez

quanto a fluidez sempre foram elementos fundamentais do capitalismo mundial.

a. As continuidades e descontinuidade na produção de mercadoria.

Analisando assim precisamente tais características é notório que o fordismo não

sucumbiu diante da produção flexível29

, pois numa mesma mercadoria pode está embutida

nela tanto formas velhas quanto novas de produção, 30

tanto a verticalização fordista quanto a

horizontalização flexível. Da mesma forma que podemos concordar com Harvey que “[...] a

modernidade fordista está longe de ser homogênea. [...]” (HARVEY, 2012, p. 333), sem

dúvida a heterogeneidade dos tempos atuais é mais abissal ainda.

Sendo assim, o mais apropriado seria compreender de forma dialética estas mudanças

profundas na produção de mercadoria entre aquilo apresentado como velho e aquilo

apresentado como novo, como se tem buscado mostrar nestas notas. Por isso, tem-se

procurado demonstrar a partir das pequenas anotações até aqui desenvolvidas o quanto é

produção capitalista em novas condições de desenvolvimento capitalista e de crise estrutural do capital.

(ALVES, 2011, p. 15). Esta é a tese que defendemos nestas notas.

29 Ao tratar precisamente do que ficara conhecido por produção flexível, Sennett anota que os ingredientes

necessários para a especialização flexível, também aqui, não são desconhecidos. A especialização flexível serve

à alta tecnologia; graças ao computador, é fácil reprogramar e configurar as máquinas industriais. A rapidez das

modernas comunicações “[...]. Além disso, essa forma de produção exige rápidas tomadas de decisões, e assim

serve ao grupo de trabalho pequeno; numa grande pirâmide burocrática, a tomada de decisões perde rapidez

[...]”. (SENNETT, 2014, p.60)

30

Sennett afirma, por exemplo, que a “a especialização flexível é a antítese do sistema de produção incorporado

no fordismo [...]”. (2014, p.59). Aqui, parece-nos que o referido autor encontra muito mais descontinuidade do

que complementações, ou, obviamente, parta de uma análise a partir do capitalismo estadunidense. Dessa forma,

assim como Lessa (2011), Antunes lembra que o próprio “[...] Harvey reconhece a existência de uma

combinação de processos produtivos, articulando o fordismo com processos flexíveis, “artesanais”, tradicionais.

[...]” (2008, p. 29).

perigosa a tese do fim do fordismo, pois acaba não levando em consideração as complexidades

efetivas do regime do capital. Em vez, assim, de buscar perceber as continuidade e

descontinuidade na produção de mercadoria, sentenciou-se o fordismo, desconsiderando a

expansão do capital em regiões até então mata-virgem ou pouco dinamizada pelo mercado

mundial.31

Ianni 32

parece correto ao afirmar que “[...] ao lado do fordismo e stack-novismo, bem

como dos ensinamentos do taylorismo e fayolismo, desenvolve-se o toyotismo, a organização

do processo de trabalho e produção em termos de flexibilização, terceirização e

subcontratação [...”]. Ianni reconhece que em um mesmo estágio de acumulação do capital há

inúmeras formas de organização científica, ou seja, quando analisamos a processo em sua

totalidade, “[...] a rígida distinção categórica entre modernismo e pós-modernismo desparece,

sendo substituída por uma análise do fluxo de relações interiores no capitalismo como um

todo”. (HARVEY, 2012, p.305)

4. CONCLUSÃO

O percurso que buscamos apresentar aqui trata primeiramente de caracterizar o cerne

do problema, que ontologicamente está na própria dinâmica do capital, mas que em sua forma

externada, apresenta-se no bojo da crise do regime do capital nos anos 1970. Em segundo

lugar, que tal crise impactara na forma e no conteúdo da força-de-trabalho, desaguando num

conjunto de concepções ideológicas refinadas e cult do fim do fordismo que se encontra no

mesmo patamar dos declamadores poéticos do fim do trabalho. A narrativa ideológica do fim

31

“[...] Iniciamos, reiterando que entendemos o fordismo fundamentalmente como a forma pela qual a indústria e

o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos básico eram dados

pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos

tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em serei fordista; pela existência do trabalho

parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho;

pela existência de unidas fabris concentrados e verticalizados e pela constituição/consolidação do operário-mas-

as, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões [...]”. (ANTUNES, 2008, p. 24-5). 32

Esta posição de Ianni acaba sendo a tese defendida por Antunes que nos faz lembrar as diversas experiências

organizativas do regime de mercadorias, afirmando que “[...] o fordismo e o taylorismo já não são únicos e

mesclam-se com outros processos produtivos (neofordismo, neotaylorismo, pós-fordismo), decorrentes das

experiências da “Terceira Itália”, na Suécia (na região de Kalmar, do que resultou o chamado “kalmarianismo”),

do Vale do Silício nos EUA, em regiões da Alemanha, entre outras, sendo em alguns casos até substituídos,

como a experiência japonesa a partir do toyotismo permite constatar”. (ANTUNES, 2008, p.23-4)

da ideologia, fim do fordismo, fim do trabalho enaltece o capital como dogma sagrado, mas

também fragmenta uma real compreensão das contradições inerentes ao desenvolvimento do

capitalismo que sempre se apropriou de formas novas e antigas, até mesmo pré-capitalistas,

em nome da garantia do metabolismo social fetichizado.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Trabalho e Subjetividade. O Espírito do toyotismo na era do capitalismo

manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.

ALVES, Giovanni. A disputa pelo intangível: estratégicas gerenciais do capital na era da

globalização. In: ANTUNES, Ricardo. Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil III. São

Paulo: Boitempo, 2014.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho? São Paulo: Cortez, 2008.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do

trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Notas para uma

investigação), p. 105-142. In ZIZEK, Slavoj. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro:

Contraponto, 1996.

BRAGA, Ruy. A Política do Precariado. Do populismo à hegemonia lulista. São Paulo:

Boitempo, 2012.

BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol. 2. Contraponto. Rio de Janeiro: Ed.UERJ.

2006.

CARCANHOLO, Marcelo Dias e MEDEIROS, João Leonardo. Trabalho no capitalismo

contemporâneo. In: NEVES, Renake Bertholdo David (org.), MARX. Volume I. Trabalho,

Estranhamento e Emancipação. Rio de Janeiro: Consequência, 2015.

FARIAS, Flávio Bezerra. O Modo Estatal Global. Crítica da governança planetária. São

Paulo: Xamã, 2013.

________ ____________Crise Global: ampulheta fatal. São Paulo: Xamã, 2015.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Unesp, 1997.

________________. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo,

2010.

GORZ, André. Adeus ao proletariado. Para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense-

Universitária, 1982.

___________ Imaterial. Conhecimento, Valor e Capital. São Paulo: AnnaBlume, 2005.

HABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo. Volume 1. São Paulo: Martins Fontes,

2012.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 22ª Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

_______________. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: AnnaBlume, 2005.

IANNI, Otávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. (reimpresso em

2011).

LEFEBVRE, Henri. Marxismo. Porta Alegre: Pocket, 2013.

LESSA, Sérgio. Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Cortez,

2011.

LINHART, Danièle. A Desmedida do Capital. São Paulo: Boitempo, 2007.

LUKACS, Gyorgy e, KOFLER, Leo; ABENDROTH, Wolfgang e HOLZ, Hans Heinz

(entrevista). São Paulo: Instituto Lukács, 2014.

LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Editora Boitempo. 2007. São Paulo

MEDEIROS, Carlos Aguiar de. Notas sobre o Desenvolvimento Econômico na China.

Disponível em < http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/medeiroschina.pdf >. Último

acesso em: 20 fev.2017

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.

MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2012.

PAULANI, Leda. Brasil Delivery. São Paulo: Boitempo, 2008.

PRIEB, Sérgio. O Trabalho à beira do abismo. Uma crítica Marxista à tese do fim da

centralidade do trabalho. Ijuí: Editora Unijui, 2005.

OFFE, Claus. Trabalho e Sociedade. Volume I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

ROSSO, Sadi Dal. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea.

Boitempo. 2008. São Paulo: Boitempo, 2013.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo

capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2014.

SILVA, Ludovico. A Mais-Valia ideológica. Florianopolis: Insular, 2013.

THERBORN, Goran. A formação ideológica dos sujeitos humanos. 2014. Disponível em <

https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/18805> . Último acesso em: 09 fev.2014