os estabelecidos e os outsiders
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OS ESTABELECIDOS E
OS OUTSIDERS:
Sociologia das relações de
poder a partir de uma
pequena comunidade. –
Norbert Elias e John
Scotson.
Prof. Msc. Araré de Carvalho Júnior
Norbert Elias
Norbert Elias nasceu emBreslau em 1887 e morreu emAmsterdam em 1990.Sociólogo, estudou medicina,filosofia e psicologia nasUniversidades de Breslau eHedelberg. Trabalhou comKarl Mannheim em Frankfurt.Elias Abandonou a AlemanhãNazista em 1933, indo para aFrança e depois para aInglaterra, onde foi professorna Universidade de Leicester;lecionou mais tarde, comoprofessor visitante, emuniversidades na Alemanhã,Holanda e Gana.
Elias desenvolveu uma abordagem a que deuo nome de “sociologia figuracional”, a qualexamina o surgimento de configuraçõessociais como conseqüências não-premeditadas da interação social e foi descritaem seu livro O que é Sociologia?(1970). Suaobra mais conhecida é O Processo Civilizador(2. vols., 1939), que analisa os efeitos daformação dos estados na Europa sobre osestilos de vida individuais, a personalidade eas moralidades.
Sociologia Figuracional
Elias foi um dos principais precursores dachamada "Sociologia Figuracional", através daqual se estuda as relações humanas de formaprocessual (micro e macro social). O sentidofiguracional é usado para ilustrar redes deinterdependência entre indivíduos e a distribuiçãode poder nas mesmas. É importante apontar queElias não tem uma visão estática dessasconfigurações e busca captá-las em contínuoprocesso de constituição e transformação. Nessesentido, configurações não podem serplanejadas, programadas ou previstas porque sãoconstruídas e redimensionadas o tempo todo
Para Elias, o "saber" é desenvolvido através deconfigurações sociais ao longo da evolução dasociedade, também o tempo aparece como produtoda evolução de nossa sociedade. Evolução que nãosignifica progresso, mas que é formada porprogressos e retrocessos e que, no caso do tempo,está fundamentada no desenvolvimento dacapacidade humana de síntese e representaçãosimbólica. Também é importante como os homens seinserem nas relações sociais. Elias não utiliza ostermos "desenvolvimento", "evolução" e "progresso",no sentido de uma necessidade automática ouintrínseca à sociedade Ele refere-se a tais termos nosentido de explicitar, empírica e teoricamente,mudanças estruturais que aconteceram na sociedadea longo prazo.
O conceito de configuração se refere a um padrãomutável criado na relação entre indivíduos emsociedade. Eles podem ser considerados comojogadores vistos pela totalidade de suas ações nasrelações que mantêm entre si, formando uma teiaflexível de tensões. As configurações se formamnecessariamente pela interdependência dos indivíduosem sociedade e podem ser marcadas por umafiguração de aliados ou de adversários. Asconfigurações de seres humanos interdependentes têmduas características fundamentais na obra de Elias:são modelos didáticos que devem ser interpretadoscomo representações de seres humanos ligados unsaos outros no tempo e no espaço; e servem pararomper com as polarizações clássicas dentro dasociologia, que tendem a pensar o „indivíduo‟ e a„sociedade‟ como formas antagônicas e diferentes.
Os Estabelecidos e os Outsiders:
Sociologia das relações de poder.
Nesse trabalho Norbert Elias apresenta uma raraoportunidade de encontrar um estudo focado emuma pequena comunidade reflexõesmetodológicas e teóricas de amplo espectro paraa pesquisa em ciências sociais. Trata-se de umestudo das relações de poder na comunidadede Winston Parva (nome fictício), próxima deLeicester – Inglaterra. Realizado no final dos anos50 e início dos 60 pelo professor John L. Scotson,interessado em tratar do problema dadelinqüência juvenil naquela localidade, o estudopassou a ter outras perspectivas com NorbertElias.
De um problema associado a altos índices dedelinqüência juvenil, os pesquisadores foramlevados a refletir sobre questões que dizemrespeito à própria sociedade. No centro desuas discussões estavam as relações depoder e de status no interior de umacomunidade. A investigação os levou abuscar explicar o porquê das diferenças destatus e poder, enfrentando os desafios elimitações de um trabalho empírico numdeterminado microcosmo.
Quais são os aspectos comunitáriosespecíficos de uma comunidade? A resposta aesse tipo de pergunta, à primeira vista, é bemsimples e, talvez óbvia. É evidente que seestá fazendo referência à rede de relaçõesentre pessoas que se organizam como umaunidade residencial – de acordo com o lugarem que normalmente vivem. As pessoasestabelecem relações quando negociam,trabalham, rezam ou se divertem juntas, eessas relações podem ou não seraltamente especializadas e organizadas.
As unidades sociais dotadas de um núcleo de
famílias que constroem seus lares ali levantam
problemas sociológicos específicos. Estes são o
que se costuma chamar de „problemas
comunitários.
Os tipos de interdependências, estruturas e
funções encontrados nos grupos residenciais
de famílias que constroem lares com um certo
grau de permanência suscitam problemas
próprios, e que o esclarecimento desses
problemas é central para a compreensão do
caráter específico da comunidade como
comunidade.
Entre os problemas centrais figura aquelereferente às distinções do valoratribuído, nessas redes comunais defamílias, a cada uma das famílias.Invariavelmente, algumas famílias ou talvezgrupos delas em uma mesma comunidade, tãologo são ligadas umas às outras pelos fiosinvisíveis da vizinhança, passam a se ver e aser vista pelos outros como “melhores”ou, alternativamente, como “menosagradáveis”, “menos boas”, “menosdignas”, ou seja qual for a denominação que seuse. Em termos acadêmicos, falamos da“hierarquia classificatória” das famílias ou da“ordem de status”.
A classificação das famílias de WinstonParva, desempenhava um papel central em todosos setores da vida comunitária. Influenciava o rolde membros das associações religiosas epolíticas. Desempenhava um papel noagrupamento das pessoas em bares e clubes.Afetava a reunião dos adolescentes epenetrava nas escolas. As diferenças destatus e classificação são freqüentementedemonstradas como dados factuais, masraramente explicadas. Em Winston Parva, foipossível ver com um pouco mais de clareza deque modelo elas eram produzidas e que papeldesempenhavam na vida das pessoas.
Elias apresentou nesse estudo, visto de perto, umepisódio de desenvolvimento de uma áreaindustrial urbana. Esse desenvolvimento trouxeatritos e perturbações. Os que já se haviamfixado na região e que, em condiçõesfavoráveis, tinham tido tempo de criar, umavida comunitária bastante estável, umatradição provinciana própria, viram-se diantedo fato de que chegava um número maior depessoas para se estabelecer em suasimediações e em seu seio, pessoas estas queaté certo ponto, tinham idéias, maneiras ecrenças diferentes das que eram costumeirase valorizadas em seu círculo.
Durante a guerra, o maior grupo de novos
operários chegou juntamente com a fábrica de
que eram empregados e, de modo, geral, a
indústria e as oportunidades de emprego na
região estavam em crescimento.
As tensões, relatadas por Elias, entre velhos enovos moradores foram de um tipo peculiar. Onúcleo dos residentes antigos atribuía um valorelevado aos padrões, às normas e ao estilo devida que eles haviam criado entre si. Tudo issotinha uma estreita ligação com seu respeitopróprio e com o respeito que eles julgavam ser-lhes devido pelos outros. A ascensão de umaminoria, para o nível de classe média, exercia umpoder considerável na antigacomunidade, era, em termos dos valores públicoscoletivos, motivo de orgulho para a maioria dosresidentes mais antigos.
Os recém-chegados que se fixaram no“loteamento” foram vistos como umaameaça a essa ordem, não porquetivessem qualquer intenção de perturbá-la,mas porque seu comportamento levava osvelhos residentes a achar que qualquercontato estreito com eles rebaixaria seupróprio status, que os arrastaria para baixo,para um status inferior em sua própria estimae na do mundo em geral, e que reduziria oprestígio de seu bairro, com todas aspossibilidades de orgulho e satisfação que lheestavam ligados.
Nesse sentido, os recém chegados foram
vistos como uma ameaça pelos antigos
moradores. Elias afirma que em ordens
sociais de extrema mobilidade, é comum que
as pessoas sejam extremamente sensíveis em
relação a tudo o que possa ameaçar sua
posição. É comum que desenvolvam
angústias ligas ao status.
Os mexericos (pride e blame gossip)
agarraram-se prontamente a tudo o que
poudesse se mostrar os recém-chegados sob
um prisma desfavorável e confirmar a
superioridade da moral e dos costumes dos
velhos residentes, símbolos de sua
respeitabilidade.
Assim, na pequena Winston Parva, criou-se umadeterminada figuração marcada pela existência de umgrupo de moradores antigos da “aldeia” que secolocavam como pessoas de valor humano maiselevado que o dos moradores do “loteamento”construído em época mais recente e, porisso, estigmatizados pelos primeiros. Osestabelecidos contra os outsiders . Da figuraçãoestabelecidos-outsiders, Elias identifica umaconstante universal: o grupo estabelecido atribuía aosseus membros características humanas superiores;excluía todos os membros do outro grupo de contatosocial não profissional com seus próprios; e o tabu emtorno desses contatos era mantido através de meiosde controle social como a fofoca elogiosa no caso dosque o observavam, e a ameaça de fofocasdepreciativas contra os suspeitos de transgressão.
O estudo das relações entre as famílias “antigas” e“novas” de Winston Parva pode contribuir um poucopara solucionar o problema de que por que o “tempode residência” e a “idade das famílias” são capazes deafetar profundamente o relacionamento entre aspessoas. Ainda mais porque nesse caso, aantiguidade não estava associada à riqueza, passadaou presente. O fato de os dois grupos de WinstonParva serem quase iguais, sob muitos aspectos quecostumam combinar-se com “antiguidade” e a“recenticidade”, permitiu evidenciar algumas chancesde poder, ao alcance dos “antigos” grupos depessoas, que passam facilmente despercebidasquando também estão presentes outraschances, como as que provêm riqueza, do poderiomilitar, de maior conhecimento, de etnia, religião ouvisão política.
Mais do que a identificação de um determinadomodelo figuracional, este estudo apresenta doisaspectos de grande relevância para as ciênciassociais. O primeiro está colocado pelo desafio dapesquisa empírica ao operar com algumas categoriasanalíticas tradicionais, como as das diferençasétnicas, de classe social e nacionalidade. Não haviaem Winston Parva nenhum componente que levassea esses diferenciais – longe disto, pois ali todosfaziam parte do mesmo grupo étnico e nacional, semdiferenciais significativos em termos do tipo deocupação, renda ou nível educacional. Nenhum dosfatores de distinção, do arsenal clássico depreconceitos, se encontrava naquela cidade.
Ocupações dos residentes de duas ruas de
elite e duas ruas comuns da Zona 02
Rua Elite A Rua Comum
A
Quantidade Ocupação Quantidade Ocupação
01 Jornalista -
01 Empregado de
Escritório
-
02 Balconista 01 Balconista
03 Operários Mecânicos 03 Operários mecânicos
- 01 Motorista de Caminhão
02 Ferroviários 02 Ferroviários
05 Operários de Malharias 02 Operários de
Malharias
02 Op. Fábrica de
Calçados
05 Op. Fábrica de
Calçados
03 Trabalhadores Braçais 05 Trabalhadores Braçais
- 05 Op. Fáb. Biscoitos
Rua de elite
B
Rua comum
B
Quantidade Ocupação Quantidade Ocupação
03 Empregados de
escritório
-
03 Balconista -
01 Dono de Garagem -
03 Operadores de
Máquinas
01 Operador de Máquinas
01 Corretor de Seguros -
01 Motorista de caminhão 01 Motorista de Caminhão
01 Maquinista -
01 Ferroviário -
01 Pedreiro -
01 Bombeiro hidráulico -
02 Operários de Malharias 02 Operários de Malharias
01 Op. Fáb. Calçados 03 Op. Fáb. Calçados
01 Trabalhador Braçal 07 Trabalhador Braçal
05 Viúvas -
Aqui encontra-se o primeiro grande legado deElias. Pensamos constantemente a partir dofoco das diferenças – sexo, cor, classe, nação– como diferenciais estruturais das relaçõesde poder. Dificilmente chegamos aproblematizar questões em que estãocolocados os termos da igualdade, ou que odiferencial de poder possa estar associado,como é o caso deste estudo, ao tempo deresidência naquele lugar e ao maior ou menorgrau de coesão e organização de cada grupointer-relacionado.
O segundo ponto que deve ser evidenciado é arelação entre Coesão dos Estabelecidos e a faltada mesma por parte dos Outsiders. O estudo deWinston Parva colocou para Elias a possibilidadede reflexão sobre a anomia quando observou quena relação de interdependência entre osestabelecidos e os outsiders havia um elementode constância pela existência de uma “minoriados melhores” entre os estabelecidos – umaminoria nômica – e uma “minoria dos piores”entre os outsiders – minoria anômica – quemarcava o status de superioridade e deinferioridade de ambos os grupos.
No entanto, para Elias, as tensões entre grupos“nômicos” versus “anômicos” revelam outra faceta sobrea própria maneira como as ciências sociais passam atratar os problemas sociológicos. Desmontando umalonga tradição durkehimiana, na qual fatores “nômicos”e de coesão grupal eram entendidos como fatoresmorais, e sua ausência desenhava um quadro de“anormalidade” e de condenação moral. Para Elias, “nãohá justificativa para considerar as investigaçõessociológicas do que se julga serem formas de „maufuncionamento‟, ou como se diz, de „disfunção‟, comoum grupo distinto do que é formado por aquilo que sejulga „funcionar bem‟(...). Não se pode esperar encontrarexplicações para o que se julga „ruim‟, para um „maufuncionamento‟ da sociedade, quando não se é capazde explicar, ao mesmo tempo, aquilo que se avalia como„bom‟, „normal‟ ou „funcionando bem‟, e vice-versa”.
Assim, em Winston Parva, as pessoas que pertencem a um círculo de “famílias antigas” são providas de um código comum por seus vínculos afetivos específicos: uma certa união das sensibilidades subjaz a todas as suas diferenças. Assim, elas sabem onde se situar em relação umas às outras e o que esperar umas das outras, e o sabem “instintivamente” melhor, como se costuma dizer, do que onde se situar em relação aos outsiders e o que esperar deles.
As “famílias antigas”, nunca se formamisoladamente, sempre se aglutinam ou seagrupam em redes de famílias com sua própriahierarquia interna de status e, em geral, com umalto índice de casamentos endogâmicos.
O fato das “famílias antigas” se conhecerem eterem sólidos vínculos entre si, no entanto, nãosignifica necessariamente que elas se estimem.É, apenas em relação aos intrusos que elastendem a se unir. Entre si, podem competir equase invariavelmente o fazem, de maneirabranda ou acirrada conforme as circunstâncias.
No círculo dos Estabelecidos, há uma boa
dose de tradições familiares comuns,
enriquecidas a cada nova geração que surge.
Como outros aspectos da tradição comum,
isso cria uma intimidade – até entre as
pessoas que não se gostam – da qual os
recém chegados não conseguem participar.
O poder, como tantos outros conceitos,apresenta-se freqüentemente ligado a um lugar, aum atributo específico de quem o detêm – pelocontrole material de objetos, de coisas e pessoas.Nestes termos, o poder é algo fixo, estático. Eliasdestaca a necessidade de pensarmos nosaspectos figuracionais dos diferenciais de poderque se devem puramente a diferenciais no graude organização dos seres humanos implicados.Nele, o conceito de poder deixou de ser umasubstância para se transformar numa relaçãoentre duas ou mais pessoas e objetos naturais;assim, o poder é um atributo destas relações quese mantêm num equilíbrio instável de forças.
O poder ocorre no interior das figurações em que os gruposestabelecidos vêem seu poder superior como um sinal devalor humano mais elevado; os grupos outsiders, quando odiferencial de poder é grande e a submissão inelutável,vivenciam afetivamente sua inferioridade de poder como umsinal de inferioridade humana. Estigma, evitações e o medo docontágio reforçam o tabu imputado aos outsiders, que nãodispõem de nenhuma possibilidade de revidar o grupoestabelecido com os mesmos termos depreciativos querecebem como desordeiros das leis e normas e sujos. Nessequadro, a delinqüência juvenil passa a ser uma manifestaçãoreativa dos jovens do “loteamento” frente ao sentimento deexclusão e coerção por parte dos estabelecidos. Delinqüênciae atos de vandalismo passam a ser a forma particular quealguns jovens do “loteamento” encontraram para manifestar osentimento de inferioridade social largamente enraizado desdea sua infância, no interior de suas famílias e nas inter-relaçõescom as outras crianças de sua comunidade.
A maioria dos Outsiders não entendiam
porque os velhos moradores os tratavam com
desprezo e os mantinham à distância. Mas o
papel de grupo de status inferior em que foram
colocados, bem como a segregação
indiscriminada de todos os que se instalaram
no loteamento em pouco tempo devem ter
desestimulado qualquer tentativa de
estabelecer contatos mais estreitos com os
grupos dos estabelecidos.
Segundo Elias, se olharmos para o mundo emgeral, não poderemos deixar de observar muitasconfigurações de natureza semelhante, emboraelas sejam quase sempre classificadas sob outrasdesignações. No mundo inteiro podemosdescobrir variações dessa mesma configuraçãobásica, encontros entre grupos de recém-chegados, imigrantes, estrangeiros e grupos deresidentes antigos. Os problemas sociais geradospor esses aspectos migratórios da mobilidadesocial, conquanto variem no que tange aosdetalhes têm uma certa semelhança.
Nesses casos, o “outsider” têm que se
acostumar com o papel de recém-chegados
que tentam fazer parte de grupos com
tradições já estabelecidas ou que são
forçados a uma interdependência com eles,
tendo que lidar com os problemas específicos
desse novo papel. Muitas vezes lhes é
atribuído o papel de outsiders em relação aos
grupos estabelecidos e mais poderosos, cujos
padrões, crenças, sensibilidade e costumes
são diferentes dos seus.
Quando os migrantes têm a cor da pele e outrascaracterísticas físicas hereditárias diferentes das dosmoradores mais antigos, os problemas criados porsuas formações habitacionais e por seurelacionamento com os habitantes dos bairros maisantigos costumam ser discutidos sob o rótulo de“problemas raciais”. Quando os recém-chegados sãoda mesma “raça”, mas têm língua e tradiçõesdiferentes, os problemas com que eles e o s antigosmoradores se confrontam são classificados comoproblemas das “minorias étnicas”. Quando eles nãosão de “raça” nem “grupo étnico” diferentes, masapenas de outra “classe social”, os problemas damobilidade social são discutidos como “problema deClasse”.
Não há nenhum rótulo pronto que se possapespegar nos problemas surgidos nomicrocosmo de Winston Parva, porque ali osrecém-chegados e os antigos residentes, pelomenos na “aldeia”, não eram de “raça” nem“ascendência étnica” diferentes, nem tãopouco de outra “classe social”. No entanto,alguns dos problemas fundamentais surgidosdo encontro entre os grupos estabelecidos eoutsiders em Winston Parva não diferirammuito dos que podem ser observados emencontro similares em outros universos.
Independente do caso, os recém-chegados
empenham-se em melhorar sua situação,
enquanto os grupos estabelecidos esforçam-
se por manter a que já têm. Os primeiros se
ressentem e, muitas vezes, procuram elevar-
se do status inferior que lhes é atribuído,
enquanto os estabelecidos procuram
preservar o status superior que os recém-
chegados parecem ameaçar.
Postos no papel de outsiders, os recém-
chegados são percebidos pelos estabelecidos
como pessoas “que não conhecem seu lugar”;
agridem-lhes a sensibilidade, portando-se de
um modo que, a seu ver, traz claramente o
estigma da inferioridade social; no entanto, em
muitos casos, os grupos de recém-chegados
tendem inocentemente a se conduzir, ao
menos por algum tempo, como se fossem
iguais a seus novos vizinhos.
Os mais antigos levantam sua bandeira, lutam
por sua superioridade, seu status e poder,
seus padrões e suas crenças, e em quase
toda parte utilizam, nessa situação, as
mesmas armas dentre elas a fofoca
humilhante, as crenças estigmatizantes sobre
o grupo inteiro, com base em observações
sobre seu pior setor, os estereótipos verbais
degradantes e, tanto quanto possível, a
exclusão de qualquer oportunidade de acesso
ao poder.
Como os estabelecidos costumam ter uma integraçãomaior e ser mais poderosos, eles conseguem, atravésda indução mútua dar uma sólida sustentação a suascrenças. Muitas vezes, logram induzir até mesmo osoutsiders a aceitarem uma imagem de si modeladapela minoria dos “piores”, bem como uma imagem dosestabelecidos modelada pela “minoria dos melhores”.Os mais “antigos” muitas vezes conseguem impor aosrecém-chegados a crença de que estes são inferioresao grupo estabelecido, não apenas em termos depoder, mas também “por natureza”. E essainternalização da crença depreciativa do gruposocialmente superior pelo socialmente inferior, comoparte da consciência e da imagem que este tem de si,reforça vigorosamente a superioridade e a dominaçãodo grupo estabelecido.
A construção do sentido social do poder em WinstonParva obedece a dois critérios-chave. Primeiro, o daafirmação da superioridade e excelência"psicológica", "humana" e „social" dos que chegaramantes ao local. A esses caberia, sem mais, o primadonatural quanto ao status, à dignidade grupal e àlegitimidade dos direitos adquiridos. Eles são oscidadãos de primeira classe. No outro polo faz valer-se a estigmatização dos chegados por último, tidoscomo inferiores. Esses, naturalmente, no início não seconheciam, pois vinham de vários locais do país.Eram menos coesos e não dispunham de armas parase defenderem da maneira com que os nativos osetiquetavam em resposta à ameaça e ao desequilíbrioprovocada por sua chegada a Winston Parva.
Elias e Scotson demonstram com acurado
apuro um emaranhado de dependências e
interdependências entre os indivíduos e as
instituições do lugarejo. Mostram como as
normas de atribuição de status e a distribuição
de papéis e tarefas dentro das instituições
sociais e políticas do lugarejo obedecem "a
padrões díspares de união interna e controle
comunitário". Esses padrões se traduzem
"numa prática política que consiste, por
exemplo,
em reservar para as pessoas do grupo cargosprestigiosos em organismos locais – oconselho, a escola e o clube --, excluindo osmoradores da outra área". Tudo estáimbricado naquele emaranhado cuja lógicapsicológica é compreensível só para quemestá bem situado dentro do universopsicossocial da pequena aldeia. Umverdadeiro outsider teria dificuldade ementender o porque das distinções eargumentos daquela lógica de “pertencer a umgrupo".
Os membros do grupo estabelecido e até osrecém-chegados, talvez, são indivíduoscriados com uma rigidez particular de visão ede conduta; muitas vezes, foram criadosacreditando que todo o mundo tem ou deveriater, essencialmente, os mesmos sentimentos ecomportamentos que eles. Em geral, o limiarde tolerância a formas de conduta e a crençasdiferentes, quando se tem que conviver emestreito contato com seus representantes,continua a ser excepcionalmente baixa.
De suas numerosas observações, Elias e Scotson, concluíram queem grupos sociais muito próximos e homogêneos, como é o casodos dois estudados, se criam diferenças, largamente idealizadas,que os dividem internamente e os colocam em luta pelo controlesocial, gerando, no plano das relações, estereótipos e preconceitossociais recíprocos. Por mais que sejam "iguais", quando vistosdesde os critérios da sociologia mais clássica funcionalista oudialética, eles não logram explicar de maneira satisfatória o queacontece no plano das imagens sociais que modelam as reaisrelações de dominação/subordinação que se fundam de fato nasrepresentações, crenças e valores que cada grupo julga possuir,diferentemente do outro, sentido como de nível inferior. Penso nãoser difícil se perceber a importância dessa constatação para oestudo dos conflitos religiosos e dos fundamentalismos que, cadavez mais, – para lá do discurso politicamente correto doecumenismo -- caracterizam algumas religiões e igrejas em suastendências doutrinais, rituais, crenças e objetivos de ação pastorale política
O trabalho de Elias e Scotson traz muitas novidades. Depois deuma detalhada descrição dos estilos de vida dos dois "bairros", dasestruturas familiares, das instituições comunitárias e redes deapoio, do modo de viver dos jovens, dos conflitos entre as geraçõesquanto à autoridade, da sexualidade e da religião -- em tudo muitoparecidos -- eles mostram que as relações de poder não estavamancoradas em diferenças sociais gritantes como as que seriamprovavelmente buscadas e discutidas por um psicólogo ou umsociólogo interessado só em categorias analíticas auto-explicativase, por isto, pouco atento ao cotidiano real da vida das pessoas. Aatenção dos dois pesquisadores não esquece o nível macro-teórico, mas se volta em especial àquele micro, das relações entreas pessoas e grupos. Esse é para eles o „ubi‟ gerador dasubjetividade, especialmente em culturas de corte fortementeindividualista como as da sociedade neo-liberal globalizada. Ocomportamento e a vivência das pessoas nasce é aí, embora –evidentemente ! -- possam sofrer e sofram as influências de outrasmatrizes contextualizadoras.
Como mesmo evidência Elias, a meta do estudoem Winston Parva não teve como intuitoenaltecer ou censurar um lado ou o outro ouestudar o que se poderia considerar “disfuncional”por exemplo: estudar a minoria de famíliasdesestruturadas do loteamento num isolamentointeiramente artificial. A meta do autores, foiexplicar seres humanos em configuraçõesindependente de sua bondade ou maldaderelativas, em termos de suas interdependências.A configuração das pessoas do loteamento teriasido incompreensível sem um claro entendimentoda observada entre as pessoas da “aldeia”, evice-versa.
Nenhum dos grupos poderia ter se
transformado no que era independentemente
do outro. Eles só puderam encaixar-se nos
papéis de estabelecidos e outsiders por serem
interdependentes. É pelo fato de as ligações
na vida social, muitas vezes, serem ligações
entre fenômenos que, no mundo do
observador, recebem valores diferentes, ou
até antagônicos, que seu reconhecimento
exige um grau razoável de distanciamento.
Será que os grupos de pessoas apresentados podemser vistos como uma soma dos atos de “eus” e“outros” inicialmente independentes, que seencontram numa terra de ninguém e começaram ainteragir e a formar comunidades, ou padrões,situações ou configurações novas, que seriamfenômenos secundários somados à sua puraindividualidade não social? Para Elias a pesquisasociológica deve partir do estudo dos indivíduos comotaís, ou de elementos ainda menores, - as “ações”individuais -. Segundo Elias não podemos ser pegosna armadilha da polaridade, de falar e pensar comose só fosse possível escapar de postular indivíduossem sociedade postulando sociedade sem indivíduos.