os ensinamentos de gandhi, pelos olhos de lia diskin

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44 | 29HORAS | de 29 de novembro a 29 de dezembro de 2011 45 > PERSONAGEM “TUDO QUE VIVE É TEU PRÓXIMO POR CHANTAL BRISSAC FOTOS ÉRICO HILLER ESTE E OUTROS ENSINAMENTOS DE MAHATMA GANDHI SÃO OS PRINCÍPIOS PELOS QUAIS SE MOVE LIA DISKIN, A MULHER QUE TRAZ O DALAI LAMA AO BRASIL E QUE ESTÁ POR TRÁS DE ALGUMAS DAS MAIS CONCRETAS E PERSISTENTES INICIATIVAS PELA PAZ E PELA CONVIVÊNCIA ENTRE AS PESSOAS NO PAÍS E NO MUNDO Lia contempla uma estatueta de Gandhi: afinidade de ideias e ideais

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Lia Diskin, seus aprendizado e ensinamentos a partir de Mahatma Gandhi. Sua proximidade com Dalai Lama e sua busca pela pacífica convivência entre todos os povos.

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Page 1: Os ensinamentos de Gandhi, pelos olhos de Lia Diskin

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“Tudo que vive é Teu próximo”

Por Chantal BrissaCFotos ÉriCo hiller

EstE E outros EnsinamEntos dE MahatMa Gandhi são os princípios

pElos quais sE movE Lia

Diskin, a mulhEr quE traz o dalai laMa ao brasil E quE Está por trás dE

algumas das mais concrEtas E pErsistEntEs iniCiativas pEla paz E

pEla ConvivênCia EntrE as pEssoas no país E no mundo

Lia contempla uma estatueta de Gandhi: afinidade de ideias e ideais

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Com o Dalai Lama: em 2011, Lia o trouxe pela quarta vez ao Brasil

é ela quem cuida da agenda do dalai lama no Brasil desde a pri-meira visita, em 1992 – neste ano, em setembro, ele com-pletou sua quarta visita ao país, sempre sob seus auspícios. Seguidora dos ideais do líder indiano Mahatma Gandhi, a argentina Lia Diskin é um dos nomes mais importantes da cultura de paz aqui e lá fora. Palavras como cooperação, desapego, economia sustentável e mobilização soam com sentido ditas por Lia. Ela não fala da boca para fora: desde 1972, quando ajudou a fundar a Associação Palas Athena, que promove, agencia e incuba programas e projetos nas áreas de educação, saúde, meio ambiente e promoção so-cial, Lia Diskin vive com simplicidade e verdade, valores gandhianos que ajuda a divulgar. “Tudo o que vive é teu próximo”, dizia Gandhi. “Hoje, essa reconexão com o vivo, seja árvore, rio ou pessoa, é o mais urgente e importante”.

Com a Palas Athena, que já trouxe para seminários e workshops algumas das mentes mais brilhantes do mundo – como o filósofo francês Edgar Morin, a economista inglesa Hazel Henderson e o biólogo chileno Humberto Maturana, entre outros – Lia comemora 38 anos de estrada.

Nascida em Buenos Aires em 27 de outubro de 1950, ela chegou ao Brasil em 1971, com 21 anos, formada em jor-nalismo e já casada com o filósofo argentino Basílio Pawlo-wicz. O clima de tensão da ditadura militar na Argentina motivou o jovem casal a emigrar. Em São Paulo, onde se fixaram, fundaram a Palas Athena e também o Centro Pe-dagógico Casa dos Pandavas, em Monteiro Lobato. A Palas inclui cursos, gráfica e editora. Já a Casa dos Pandavas nas-ceu como lar para crianças órfãs e hoje é uma escola referên-cia no Vale do Paraíba, formando gratuitamente, e de for-ma holística, crianças e jovens. Ganhadora do Prêmio Trip Transformadores e do Prêmio Internacional Jamnalal Bajaj, este concedido a quem dissemina os princípios de Gandhi, Lia recebeu a 29HORAS na antiga sede do Paraíso (acabam de se mudar para os Jardins) para falar sobre o líder indiano, educação, política e futuro. A seguir, seu depoimento em itens temáticos, começando por Gandhi hoje, sua atualidade e presença: se ele vivesse em nossos dias, qual seria sua luta?

um homem conTra o consumo “Se Gandhi vivesse hoje, sua maior luta, sem sombra de dúvida, seria parar a onda tresloucada de consumo. ‘Todo aquele que tem coisas de que não precisa é um ladrão’, ele dizia. Obviamente não porque roubou, mas porque, por não necessitá-la, está inviabilizando a utilidade de uma matéria-prima e de algo. “Mottainai!” é uma expressão japonesa – significa “Que desperdício!” – resgatada pela ambientalista e bióloga Wangari Maathai, ministra do Meio Ambiente do Quênia e primeira africana a receber um Prêmio Nobel da Paz, que morreu em setembro deste ano deixando um

exemplo maravilhoso. Gandhi voltaria com esse Mottainai! e faria da expressão o grande mantra do século 21. Precisa-mos dessa inspiração no Rio + 20, em junho de 2012.”

o ciclo do usufruTo“A gente tira a dignidade das coisas não sabendo utilizá-las, ou não dando todo o rendimento que essa matéria-prima poderia ter. Cortando o ciclo do usufruto, nós perdemos também o sentido da origem. A gente se esquece de que qualquer papel foi uma árvore, que ocupou lugar na terra, que logicamente absorveu nutrientes da terra, que absorveu umidade, luz solar, que se alimentou também da lua e da noite. A gente se esquece de que qualquer pinheiro ou eu-calipto demorou no mínimo cinco anos de crescimento para poder ser cortado e se tornar celulose e virar papel.”

ser feliz é consumir?“A associação de felicidade e consumo é um binômio explo-sivo, porque você está condenando três quartas partes da humanidade à infelicidade. É muito cruel. Além disso, com-prometemos gerações mais novas: vamos deixar um planeta muito mais pobre e muito mais precário do que a gente re-cebeu. Eu pertenço a uma geração em que a gente escovava os dentes com a torneira aberta e ninguém via nenhum tipo de problema nisso. Hoje, sabemos que a água doce vai ser e já é motivo de confrontos e de guerra.”

a gente tira a dignidade das coisas não sabendo uTilizá-las ou não dando todo rendimenTo que essa matéria-primapoderia Ter

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e o consumo da classe c?“Justo agora que eles podem consumir, vamos dizer que não consumam? Essa é uma questão perversa. O que temos que fazer é agir na outra ponta. Como temos consumido mui-to, precisamos começar a partilhar, distribuir, minimizar o impacto. Quer alegria maior do que partilhar? Quem quer ter um lauto jantar, com as iguarias mais extraordinárias, sozinho? De onde nos veio a ideia de que o usufruto de algo somente para nós é causador de felicidade, de prazer? Precisamos dos outros, e o Natal é essa fonte de celebração coletiva, de regozijo.”

indignação que leva à ação“Temos uma quantidade de desperdício de alimentos que poderia resolver perfeitamente os problemas mais graves da miséria humana. Poderíamos, mas a nossa indignação ainda não adquiriu o transbordamento que nos leva à ação, ainda está num plano intelectual. Ainda não conseguimos nos mo-ver, nos mobilizar. A indignação tem dois passos, o primeiro é a tomada de consciência, e o segundo é a reparação do que entendemos injusto e não solidário.”

mirem-se na Tunísia“Veja o que os meninos da Tunísia fizeram. Eles se indigna-ram com as extorsões de propinas da polícia e começaram uma revolução. E essa meninada estava simplesmente em contato com um livrinho que está disponível na internet – Da ditadura à democracia, do pacifista Gene Sharp –, obra tradu-zida em mais de 30 línguas e que se tornou a base de ação não violenta que eles utilizaram para derrubar um governo de três décadas.”

ausTeridade saudável“Confúcio, 2500 anos atrás, dizia: ‘nada é bastante para quem considera pouco o que é suficiente”. Tem tanta sabe-doria aí. Se você não consegue celebrar, agradecer e utili-zar de maneira digna o que é suficiente, nada vai conseguir atender a sua insaciabilidade, sua insatisfação. A questão de como se irá sustentar a comunidade europeia e sua moeda, tem a ver com isso, com a austeridade saudável. Austeridade com abundância de compreensão de onde estamos.”

como pode ser“No mundo empresarial hoje se fala muito mais em acessi-bilidade de produtos do que em propriedade de produtos. A experiência bem-sucedida da Dinamarca, Holanda, Suécia e Noruega mostra o que vem por aí. Lá não só os carros e bi-cicletas são compartilhados – as bikes ficam à disposição do público nas ruas, você usa mediante uma moedinha – como também os eletrodomésticos nos edifícios. Qual é o sentido de ter em seu apartamento um aspirador, uma enceradeira, uma batedeira, um processador, um liquidificador, quando não usamos esses aparelhos nem mesmo diariamente?”

sinais de mudança 1 “Você vê a meninada: parte dela está descartando a ideia de ter um carro, prefere ter uma bicicleta; também prefere passar as férias em uma aldeia yanomami ou xavante, ou ainda num país africano, do que fazer aquelas viagens escandalosamente caras. Conheço jovens que pensam em morar em ecovilas, ou ainda transformar seus bairros em ecobairros. Hoje há uma compreensão muito mais orgânica da vida, de que realmente estamos todos dentro de um macroprojeto chamado vida.”

sinais de mudança 2“Há uma rede de 80 instituições no Brasil inteiro que estão fazendo coisas extraordinárias, desde recuperar comunida-des esfaceladas pelo narcotráfico até trabalhar nas escolas públicas e também nas do primeiro escalão – e nestas es-tão sensibilizando alunos muitas vezes supermimados, para que compreendam que a vida não se resume a usar um ipad ou passear no shopping. Há muita coisa boa acontecendo. Acho importante mostrar isso porque inspira, motiva, con-vida as pessoas a se envolver, participar.”

sinais de mudança 3“Nunca se plantou tanta árvore e nunca teve tanto projeto que se contempla o meio ambiente como hoje. Nos últimos cinco anos temos quase duplicado a quantidade de parques de São Paulo. O projeto é que até o final de 2013 se chegue até 100 parques dentro do centro de SP. E as coisas estão andando mais rápido porque as próprias redes sociais conse-guem esta fluidez, esta articulação e mobilização. Você não precisa criar uma ONG para melhorar a vida do seu bairro, pode congregar as pessoas pelo facebook, pelo twitter, e ter uma ação eficiente.”

o dalai lama e a consciência“Na quarta visita de Sua Santidade ao Brasil, em setembro, talvez o que tenha sido mais importante de seus encontros foi aquele que resultou num debate com neurocientistas brasileiros e estrangeiros sobre os estados de consciência e os conhecimentos de práticas como a meditação e seus efei-tos positivos no cérebro. Foi um encontro extraordinário. Também foi marcante a sua primeira visita ao Brasil, duran-

te a Eco 92. Nunca vou esquecer o encontro do Dalai Lama com Dom Hélder Câmara, no Aterro do Flamengo, uma noite de vigília em que todas as tradições religiosas estavam ali, cada uma em uma tenda.”

o exemplo de gandhi, sempre“Gandhi terminou a vida lavando privada para mostrar que o trabalho feito pelos “intocáveis”, como eram chamados os párias da sociedade indiana, era digno como qualquer outro. Ele inclusive mudou o nome dos intocáveis, que passaram a ser chamados de harijan (significa “filhos de Deus”). Um homem forte e determinado, que lutava de forma inteligen-te e não violenta, Gandhi ganhou a confiança da população da Índia e nunca desanimou diante de um não.”

o projeTo Terra“De tempos em tempos a humanidade tem esses arroubos apocalípticos, de que o mundo vai acabar. Isso não é novo, está se apostando o fim do mundo há muito tempo. Mas o final do mundo não vai coincidir com o final da nossa espé-cie, aliás foram milhares de espécies que não vingaram no macroprojeto Terra. Sem dúvida, esse projeto vai continuar. Minha percepção é que esta é uma belíssima oportunidade para nos reconectarmos com nossas bases reais e concretas. Este descolamento que temos tido da realidade, pensando que podemos ser autônomos das forças da natureza, inde-pendentes de nossas bases naturais, biológicas, isso é uma fantasia. Nenhum Einstein, nenhum Beethoven, nenhum Mozart poderia ter feito tudo o que eles fizeram se não tives-sem almoçado, jantado, tido algum tipo de refeição, mini-mamente. Temos total dependência do meio ambiente.”

A Índia, país visitado tantas vezes por Lia, está em obras expostas na Palas Athena; já Gandhi é inspiração e referência, sempre A professora Lia, como é conhecida na Palas e fora dela, é também coordenadora do Comitê Paulista para a Década de Paz, da ONU