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Muitos professores de MatemcWca ja ouviram essa pergunta. Trata-se de uma simples brincadeira, mas talvez ela mostre que, para os alunos, 0 assunto nao tem muito significado. Pensando bem, sera que os primos (e outros conceitos relacionados, com 0 mdc e 0 mmc) SaD realmente significativos? Valera a pena gastar tempo com seu ensino? Esse capitulo da Matematica do 1'?grau, tao famoso quanta sub-esti- mado, e 0 tema deste artigo. CALCULO DO MMC PELA DECOMPOSIC;;AO EM FATORES PRIMOS 18,12 2 9,6 2 9, 3 3 3,1 3 1, 1 mmc (18,12) = 2 2 .3 2 = 36 Seja X urn professor de Matem,Wca, pertencente ao conjunto dos contestadores e seja Y urn outro professor de Matematica, pertencente ao conjunto daqueles que seguem a sequencia do livro ditatico sem jamais discuti-Ia. Considere agora uma breve con versa entre X eY. X: - Para que estudar os numeros primos? Y: - Ora, para decompor outros numeros em fatores primos. X: - E para que essa decomposir;;8.o? Y: - Bern, com eta podemos calcular 0 minima multiplo com urn (mmc) e o maximo divisor comum (mdc) de dois numeros. X: - Mas tudo isso pode ser calculado sem efetuar a decomposir;;8.o Y: - Claro. Mas seria mais demorado. X: - N8.o vejo porque ter pressa nesses casos, mas prefiro atacar noutra direr;;8.o. Para que serve 0 mmc? Y: - Para somar fra90es, fazer as redur;;oes ao denominador comum. X: - Essa resposta passa, apesar de podermos somar frar;;oes sem usar o mmc ... Mas e 0 mdc? Serve para alguma coisa? Y: -Agora voce me pegou. Bern ... 0 mdc serve para resolver alguns problemas ... X: - Muito artificiais. Podemos passar sem esses problemas. y.- Mas 0 mdc deve ser importante. Esta em todos os livros! a que pensar desse dialogo? Na opini8.o do professor contestador, os primos, a decomposir;;8.o em primos e 0 mmc SaD quase inuteis. Ja 0 mdc e completamente inutil. as argumentos de nosso amigo contestador SaD reforr;;ados pela organiza- r;;8.0 habitual do curriculo da 5 a serie. Q estudo dos primos serve apenas como ponte para chegar as tecnicas de calculo do mmc e do mdc. A preocupar;;ao com 0 mdc encerra-se no momenta em que se aprende a calcula-Io. Somente 0 mmc sobrevive mais tempo porque e aplicado na soma ou subtrar;;ao de frar;;oes. Em conseqiJencia, adquire-se uma vis8.o bastante pobre desses conceitos. Mas sera verdade que os primos e 0 mdc nao tern interesse? Nesse caso, por que teriam sido incluidos no curriculo? Para responder essas questoes, urn caminho consiste em examinar 0 pas- sado, para determinar em que momenta e por quais motivos esses assuntos comer;;aram a ser estudados.

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Muitos professores de MatemcWca ja ouviram essa pergunta. Trata-sede uma simples brincadeira, mas talvez ela mostre que, para os alunos, 0assunto nao tem muito significado.

Pensando bem, sera que os primos (e outros conceitos relacionados,com 0 mdc e 0 mmc) SaD realmente significativos? Valera a pena gastartempo com seu ensino?

Esse capitulo da Matematica do 1'?grau, tao famoso quanta sub-esti-mado, e 0 tema deste artigo.

CALCULO DO MMCPELA DECOMPOSIC;;AOEM FATORES PRIMOS

18,12 29,6 29, 3 33,1 31, 1

mmc (18,12) =

22.32 = 36

Seja X urn professor de Matem,Wca, pertencente ao conjunto doscontestadores e seja Y urn outro professor de Matematica, pertencenteao conjunto daqueles que seguem a sequencia do livro ditatico semjamais discuti-Ia.

Considere agora uma breve con versa entre X e Y.

X: - Para que estudar os numeros primos?Y: - Ora, para decompor outros numeros em fatores primos.X: - E para que essa decomposir;;8.o?Y: - Bern, com eta podemos calcular 0 minima multiplo com urn (mmc) e

o maximo divisor comum (mdc) de dois numeros.X: - Mas tudo isso pode ser calculado sem efetuar a decomposir;;8.oY: - Claro. Mas seria mais demorado.X: - N8.o vejo porque ter pressa nesses casos, mas prefiro atacar

noutra direr;;8.o. Para que serve 0 mmc?Y: - Para somar fra90es, fazer as redur;;oes ao denominador comum.X: - Essa resposta passa, apesar de podermos somar frar;;oes sem usar

o mmc ... Mas e 0 mdc? Serve para alguma coisa?Y: - Agora voce me pegou. Bern ... 0 mdc serve para resolver alguns

problemas ...X: - Muito artificiais. Podemos passar sem esses problemas.y. -Mas 0 mdc deve ser importante. Esta em todos os livros!

a que pensar desse dialogo? Na opini8.o do professorcontestador, os primos, a decomposir;;8.o em primos e 0 mmc SaDquase inuteis. Ja 0 mdc e completamente inutil.

as argumentos de nosso amigo contestador SaD reforr;;ados pela organiza-r;;8.0 habitual do curriculo da 5a serie. Q estudo dos primos serve apenas comoponte para chegar as tecnicas de calculo do mmc e do mdc. A preocupar;;ao com 0mdc encerra-se no momenta em que se aprende a calcula-Io. Somente 0 mmcsobrevive mais tempo porque e aplicado na soma ou subtrar;;ao de frar;;oes. EmconseqiJencia, adquire-se uma vis8.o bastante pobre desses conceitos.

Mas sera verdade que os primos e 0 mdc nao tern interesse? Nesse caso,por que teriam sido incluidos no curriculo?

Para responder essas questoes, urn caminho consiste em examinar 0 pas-sado, para determinar em que momenta e por quais motivos esses assuntoscomer;;aram a ser estudados.

o passado recente nao nos traz informayoes.Examinando a conteudo das primeiras series gina-siais de 30 anos atras (atualmente quintas series), ve-rificamos que nosso tema era tratado de forma bemmais extensa, mas nenhuma informayao era dada sa-bre a importancia dos primos au do mdc. Naqueletempo, as alunos precisavam decorar um maior nu-mero de regras e tecnicas. Deviam dominar a calculodo mdc pelo processo das divisoes sucessivas, a tec-nica para obter tad as as divisores de um numero etc.Parece, no entanto, que havia mais quantidade quequalidade nas informayoes. A prova e que boa partedessas regras, que eram consideradas importantes,acabaram no esquecimento. Nao fazem mais partedos livros didaticos e ate quem foi bom aluno de Mate-matica nao se lembra mais delas.

Viajemos entao a um passado remota, procuran-do as origens da teoria dos primos, mdc etc. Vamosencontra-Ia pronta, organizada de forma rigorosa, em

um livro escrito cerca de 2 300 anos atras. Esse livro,que se tornou a mais influente texto ja escrito sabreMatematica, e a famosa obra de Euclides, a Elemen-tos.

Muitos pensam que Euclides tratou exclusiva-mente da Geometria. Na verdade, as assuntos de seulivro foram tratados de maneira geometrica (as nume-ros, par exemplo, sao indicados par segmentos de re-ta). Mas varios capitulos sao dedicados a temas naogeometricos, como algebra au proporyoes. 0 trechoque aborda multiplos, divisores, primos, mdc e mmcabrange tres das treze partes da obra.

Quando examinamos as assuntos tratados parEuclides, percebemos que eles constituem mals dametade do conteudo de Matematica ensinado a aluriosentre 10 e 15 anos. Na verdade, ha seculos que boaparte do ensino elementar tem sido uma reproduyao,as vezes incompleta au mal feita, do Elementos.

Desse fato, obtemos uma primeira conclusao: ainfluencia e a prest/gio da obra de Euclides foram for-tes motivos para a inclusao de varios assuntos no cur-ricula de Matematica do 1° grau. Em outras palavras, acurricula reflete a forya de uma tradiyao.

Essa constatayao nos leva a uma outra pergunta:a que motivou Euclides a se preocupar com esses as-suntos?

A seguir sao apresentadas duas hip6teses que,se nao respondem a pergunta par campi eta, pelo me-nos fornecem algumas alternativas para a resposta.

Seculos antes de Euclides ja existiam socieda-des organizadas com atividades bastante desenvolvi-das, entre elas a comercio e a construyao. Tais ativi-dades exigiam, naturalmente, calculos variados e, asvezes, complexos.

Como sera que as pessoas dessa epoca efetua-vam as calculos? Os registros hist6ricos mostram queas sistemas de nUmerayaO eram menos eficazes doque a nosso, a que tornava as metodos de calculo bemmais complicados que as atuais. Par outro lado, re-presentar graficamente as calculos era dificil, paismateriais equivalentes a papel e tinta eram raros.

Elementos de Geometria, de Euclides, comentados por NasIal-Din-al Tusi (1201-1274). Manuscrito persa do seculo xv.

Nessas condiyoes, boa parte dos calculos erafeita mental mente, utilizando metodos nao completa-mente conhecidos por nos. Mas, podemos supor queum recurso importante para esses calculos deve tersido a fatorayao de numeros. Esse recurso independedo sistema de numerayao utilizado e acaba sendo de-senvolvido de maneira espontanea quando crianyasou adultos praticam 0 calculo mental.

A fatorayao pode auxiliar a execuyao de calculosmentais de inumeros modos. Vamos mostrar algunsexemplos bem simples.

-. Uma das possiveis fatorayoes de 20 e:

20 = 2 x 10. Entao, para dividir um numero por 20,voce pode dividi-Io por 2 e, depois, por 10:

440 ~ 20 = (440 -7- 2) ~ 10 == 220 -7- 10 == 22

• Como 12 = 3 x 4 podemos ter:

12 x 70 = 3 x( 4 x 70)= 3 x 280 == 840

480 -7- 12 = (480 -7- 4) ~ 3 == 120 -7- 3 == 40

A partir desses exemplos, percebemos como afatoray.ao pode ter sido importante no cotidiano de ci-vilizayoes antigas. Desse uso pratico da fatorayaosurge imediatamente a percepyao de que certos nu-meros nao sao fatoraveis. Por exemplo, considere 0numero 17. Nota-se de imediato que 17 = 1 x 17 = 17 x1. Eliminando essas fatorayoes obvias (que sao inuteisno calculo mental) nao ha outras fatorayoes de 17. Porisso, dizemos que 17 nao e fatoravel. Aqui comeya asurgir a nOyao de numero primo, ou seja, um numeroque nac tem fatorayoes alem das obvias.

o papel dos numeros so foi compreendido cercade do is seculos antes de Euclides. No seculo VI antesde Cristo, surgiram na Grecia os primeiros filosofosque lanyaram os fundamentos da cultura do Ocidente.Uma das preocupayoes fundamentais desses filosofosconsistiu em descobrir a natureza da materia. Isto e,eles se perguntavam de que sao feitas as coisas, deque elementos compoem-se uma flor, uma lanya, aagua ou os passaros. Esse questionamento foi conti-nuado e ampliado pelos seus sucessores, os filosofosdo seculo V a.C., em particular por Pitagoras e seus

Gravuras italianas entalhadas em madeira no seculoXV que representam Pitagoras provando suas teorias sabrea harmonia com varias experiencias com cordas e colunasde ar.

discipulos. Estes tambem investigaram a natureza damateria, mas relacionando-a com os numeros e asmedidas. Descobriram relayoes entre numeros e sonse entre formas e numeros (os numeros triangulares,quadrados etc., alem da famosa relayao entre os ladosde qualquer triangulo retangulo, conhecida como Teo-rema de Pitagoras). Embora nao tenham conseguidodizer nada sobre "de que sao feitas as coisas", esta-beleceram com clareza "de que sao feitos os numerosnaturais".

Tentemos esclarecer essa ideia. Se queremosformar numeros naturais a partir da adiyao, quase na-da ha para ser descoberto. Por exemplo, 7 pode serformado de varias maneiras:

7 = 3 + 4 7 = 2 + 5 etc.

Cada um desses "formadores" do 7 pode ser,por sua vez, formado por outros numeros:

/=3+4=

=1+2+2+2

7=2+5=

= 1 + 1 + 2 + 3

Continuando a decompor esses formadores emparcel as, rapidamente chegamos ao final da novela: aparcela basica, que nao e formada por outras, e 0 nu-mero 1.

7 =3 + 4 ==1 + 2 + 2 + 2 ==1 + 1+ 1+ 1+ 1+ 1 + 1

7=2+5=1 + 1 + 2 + 3 =

= 1 + 1 +1+1+1+1+1

Oeste exemplo, e facil chegar a uma conclusaogeral: qualquer numero natural (exceto zero e um) po-de ser obtido como soma de parcelas iguais a 1. Essae a parcela basica, pois nao e formada par outras.

Assim, 0 "problema" da forma<;:ao dos numeros,a partir da adi<;:ao, esta resolvido e e bem poucoatraente. A hist6ria e outra, bem mais interessante,quando pensamos na forma<;:ao dos numeros naturaisa partir da multiplica<;:ao.

Com a multiplica<;:ao, podemos formar um nume-ro, como 240, de varias maneiras:

Esses formadores podem ser decompostos emfatores. Vamos fazer isso em do is casos:

240 = 10 x 24=

= 2x5 x 4x6 =

= 2x5 x 2x2x2x3 =

= 24X 3 x 5

240 = 12 x 20 == 3x4 x 5x4 =

= 3x2x2x5x2x2 == 24

X 3 x 5

Nos dois casos, 0 final e 0 mesmo: os fatoresbasicos de 240, isto e, aqueles que nEW sac formadospor outros, sac 2, 3 e 5.

Oeste exemplo e impossivel chegar a uma con-clusao geral. Os fatores 2, 3 e 5 formam diversos nu-meros naturais, alem do 240, mas nao todos. Pode-seperceber, no entanto, que qualquer numero natural(exceto zero e um) ou e formado por fatores basicos oue ele mesmo um fator basico.

Foi dessa forma que os pitag6ricos mostraram"de que sac feitos os numeros": puseram em eviden-cia esses fatores basicos, como 2, 3 ou 5, os quaisformam os demais numeros.

Como caracterizar esses numeros que, por mul-tiplica<;:ao, formam os outros numeros? Podemos des-creve-Ios de varias maneiras, todas equivalentes. Porexemplo:

• eles nao tem fatores (exceto 01 e eles mesmos);

• eles nao tem divisores (exceto 01 e eles mesmos);

• eles nao sac multiplos de ninguem (exceto do 1 edeles mesmos).

Talvez a primeira das defini<;:6es esteja mais deacordo com 0 papel desempenhado por esses nume-ros, embora os livros didaticos adotem a segunda.

Seria muito justa chama-Ios de numeros atomi-cas porque atomo, em grego, significa indivisivel. Noentanto, eles chegaram a nossos dias batizados denumeros primos, porque primo, em latim, quer dizerprimeiro. Esse nome indica que tais numeros sac osprimeiros, no sentido de que, a partir deles, os outrosnumeros sac gerados.

A descoberta do papel gerador dos numeros pri-mos teve grande importancia em sua epoca. E 0 tipode fate que, embora destituido de valor pratico, sem-pre e estimulante sob 0 ponio de vista da busca doconhecimento.

Esse "valor te6rico" nao deve ser subestimado.Por exemplo, no seculo passado, a descoberta de umnovo planeta foi considerada tao maravilhosa que nin-guem se lembrou de sua inutilidade na ocasiao. Outroexemplo, mais forte: a teoria da evolu<;:ao trouxe umanova visao da vida e de suas multiplas formas, sempropiciar imediatas aplica<;:6es no cotidiano. Algo si-milar ocorreu com os primos: atraves deles ganhou-seuma nova visao do universe dos numeros.

Como se nao bastasse, os primos, por si mes-mos, tin ham outro atrativo. Oesafiaram os pensadorescom diversas quest6es intrigantes: problemas ou que-bra-cabe<;:as que atraem todos os que gostam de ra-ciocinar matematicamente. Nesse senti do, pode-se di-zer que eles sac fonte permanente de diversao.

o leitor encontrara exemplos dessa diversaomatematica no complemento que acompanha este ar-tigo. Por enquanto, voltemos a sequencia principal dasideias.

Nossas considera<;:6es, mesclando Hist6ria eMatematica, sugerem motivos suficientemente razoa-veis para justificar 0 esfor<;:o de Euclides em rela<;:ao afatora<;:ao e aos numeros primos. Em resumo: a fatora-<;:aoja era um recurso habitual dos calculistas, pos-suindo, portanto, relevancia pratica; os primos, poroutro lado, exibiam importancia te6rica, alem do inte-resse matematico que despertavam.

Oessa forma, respondemos parcial mente asquest6es colocadas no inicio do artigo: verificamosque os numeros primos tem seus atrativos, que suainclusao no curriculo atual foi parcial mente motivadapelo prestfgio do Elementos (um prestigio que dura hamais de 2000 anos) e, finalmente, que na epoca deEuclides 0 tema possuia notavel importancia. No cur-so de nossas reflex6es, compreendemos ate a razaodo nome primos.

No entanto, nossas conclus6es sac parciais e fa-zem surgir novas quest6es.

o leitor deve estar pensando: - Sobre os primos,tudo bem. Mas sera que nao ha nada a dizer sobre 0mdc?

Pois e. 0 papel do mdc continua um misterio.Nosso amigo, 0 professor contestador, diria: - E,

os primos tiveram importancia no passado. Aceito ain-da que eles continuem a ter importancia te6rica e ateprcHica (de acordo com 0 que se pode ler no comple-mento deste artigo). Mas sera que eles tem algumaimportancia para as crian<;:as de 5a serie? Acho que,para elas, os primos sac inuteis.

Tera razao 0 nosso amigo?

Bem, leitor, podemos tratar do papel do mdc ediscutir sobre ensino. Na verdade, tudo isso fazia par-te do projeto deste artigo. No entanto, com a vida cor-rida de hoje em dia, os textos longos nao sac bemvistos. Portanto, convidamos 0 leitor para um novo en-con1ro em um pr6ximo numero da revista.