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OS DIREITOS DA PERSONALIDADE IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, Professor Emérito da Universidade Mackenzie da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária - CEU. No livro em homenagem ao eminente jurista Miguel Reale --hoje, de longe, a maior expressão da Filosofia e do Direito no Brasil-- foi me atribuído o tema “Os direitos da personalidade”, inserido no Capítulo II, do Título da Parte Geral do Livro I e dedicado às pessoas, a saber: os artigos 11 a 21 do Código Civil 1 . A matéria tem sede constitucional, estando o artigo 5º incisos V, VI, IX, X, XI e XII, assim redigidos: 1 Honrado pelo eminente mestre a escrever para as orelhas do excelente “O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, Ed. Saraiva, 1998, disse: “Insaciável e profundo pesquisador da alma e do comportamento humano, Miguel Reale, que oferendou ao mundo a teoria tridimensional do direito em sua perspectiva dinâmica e revelou insuspeitados horizontes no estudo da fenomenologia husserliana, mostra, agora, em admirável reflexão, a tendência de uma possível conjunção do liberalismo e da social democracia, em nova corrente político-econômica, a que nominou social-liberalismo, com acurada percuciência. Demonstra, em seu livro, quais são, na realidade, os limites das aspirações ideológicas num Estado Democrático de Direito e como a ideologia influenciou a Constituição brasileira de 88. Examina os sistemas de poder (parlamentarismo e presidencialismo), com pertinente análise das raízes do presidencialismo brasileiro e seu conflito com o parlamentarismo. Neste quadro, não deixa de refletir sobre os impactos da globalização, que gera convergências, e os embates ideológicos que a seguem. O fortalecimento do Estado Nacional é, muitas vezes, conseqüência de tais desafios e confrontos. Por fim, medita sobre a pessoa humana, que é o valor referencial de todas ideologias”.

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Page 1: OS DIREITOS DA PERSONALIDADE 04 - Direito... · Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, Ed. Saraiva, 1998, disse: “Insaciável e profundo pesquisador da alma

OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS,

Professor Emérito da Universidade Mackenzie da Escola de Comando e Estado

Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação

do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária -

CEU.

No livro em homenagem ao eminente jurista Miguel Reale --hoje, de

longe, a maior expressão da Filosofia e do Direito no Brasil-- foi me

atribuído o tema “Os direitos da personalidade”, inserido no

Capítulo II, do Título da Parte Geral do Livro I e dedicado às

pessoas, a saber: os artigos 11 a 21 do Código Civil 1.

A matéria tem sede constitucional, estando o artigo 5º incisos V, VI,

IX, X, XI e XII, assim redigidos:

1 Honrado pelo eminente mestre a escrever para as orelhas do excelente “OEstado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, Ed. Saraiva, 1998,disse: “Insaciável e profundo pesquisador da alma e do comportamento humano,Miguel Reale, que oferendou ao mundo a teoria tridimensional do direito em suaperspectiva dinâmica e revelou insuspeitados horizontes no estudo dafenomenologia husserliana, mostra, agora, em admirável reflexão, a tendência deuma possível conjunção do liberalismo e da social democracia, em nova correntepolítico-econômica, a que nominou social-liberalismo, com acurada percuciência.Demonstra, em seu livro, quais são, na realidade, os limites das aspiraçõesideológicas num Estado Democrático de Direito e como a ideologia influenciou aConstituição brasileira de 88. Examina os sistemas de poder (parlamentarismo epresidencialismo), com pertinente análise das raízes do presidencialismobrasileiro e seu conflito com o parlamentarismo. Neste quadro, não deixa derefletir sobre os impactos da globalização, que gera convergências, e os embatesideológicos que a seguem. O fortalecimento do Estado Nacional é, muitas vezes,conseqüência de tais desafios e confrontos. Por fim, medita sobre a pessoahumana, que é o valor referencial de todas ideologias”.

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“V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,

além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo

assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na

forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

.....

IX- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica

e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X -são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a

imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo

dano material ou moral decorrente de sua violação;

XI -a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo

penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de

flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante

o dia, por determinação judicial;

XII- é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações

telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no

último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a

lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução

processual penal”,

além de ser contemplada em outros dispositivos espalhados pelo

texto constitucional como, por exemplo, o § 4º, do artigo 199, que

impede a comercialização de órgãos e sangue, estando assim

veiculado:

“§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem

a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins

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de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta,

processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo

vedado todo tipo de comercialização”.

Teve, o constituinte, a preocupação de preservar direitos

fundamentais, que são cláusulas imodificáveis do texto

constitucional, por exteriorizarem aqueles direitos que nem por

emenda constitucional podem ter seu perfil modificado (art. 60, § 4º,

inciso IV), e que conformam leque de garantias a ser

instrumentalizado pela legislação infraconstitucional 2.

2 Escrevi sobre o artigo 60, § 4º, inciso IV, assim redigido: “Art. 60 ....§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ......IV. os direitos e garantias individuais”, o seguinte: “Os direitos e garantiasindividuais conformam uma norma pétrea. Não são eles apenas os que estão noartigo 5º, mas, como determina o § 2º do mesmo artigo, incluem outros que seespalham pelo texto constitucional e outros que decorrem de uma implicitudeinequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensão não se encontra emtextos constitucionais anteriores.Tem-se discutido se, de rigor, toda a Constituição não seria um feixe de direitos egarantias individuais, na medida em que o próprio Estado deve assegurá-lo esua preservação, de rigor, é um direito e uma garantia individual. Toda aConstituição não faz senão garantir direitos individuais, que decorrem,necessariamente, da existência do poder assecuratório (Judiciário), Legislativo(produção de leis), Executivo (executá-las a favor do cidadão).Por esta teoria, a Constituição seria imodificável, visto que direta ouindiretamente tudo estaria voltado aos direitos e garantias individuais.Tal formulação, todavia, peca pela própria formulação do artigo, visto que se osorganismos produtores, executores e assecuratórios do Direito representassemforma indireta de permanência dos direitos e garantias individuais, à evidência,todo o resto do artigo 60 seria desnecessário em face da imodificabilidade da leisuprema. O conflito fala por si só para eliminar a procedência dos argumentosdos que assim pensam.Em posição diversa, entendo que os direitos e garantias individuais são aquelesdireitos fundamentais plasmados no texto constitucional --e apenas nele--afastando-se, de um lado, da implicitude dos direitos não expressos ou deveiculação infraconstitucional, assim como restringindo, por outro lado, aquelesdireitos que são assim considerados pelo próprio texto e exclusivamente por ele.Os direitos e garantias individuais conformam uma norma pétrea. Não são elesapenas os que estão no artigo 5º, mas, como determina o § 2º do mesmo artigo,incluem outros que se espalham pelo texto constitucional e outros que decorremde uma implicitude inequívoca. Trata-se, portanto, de um elenco cuja extensãonão se encontra em textos constitucionais anteriores.Assim sendo, o artigo 150 faz expressa menção a direitos e garantiasindividuais, como tais conformados no capítulo do sistema tributário. Tal

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De rigor, neste particular, o constituinte, claramente, optou pela

valorização do indivíduo e de sua personalidade, sendo o Código

Civil, nada obstante seu projeto anteceder a Constituinte,

condicionador e condicionado à lei suprema.

Condicionador, na medida em que, sendo projeto anterior à

Constituinte, alguns dos seus conceitos e princípios, debatidos no

Congresso Nacional, influenciaram a formulação do texto maior de

1988. Condicionado, porque, a partir de outubro de 1988, toda

legislação inferior passou a estar subordinada ao perfil da

Constituição.

Em verdade, a “Constituição cidadã” foi, em parte, gerada a partir

do projeto do Código Civil, na medida em que incorporou idéias, que

se encontram no “substratum” do projeto original, e deu respaldo à

sua aprovação posterior 3.

conformação, à evidência, oferta, por este prisma a certeza de que está ela noelenco complementar do artigo 150 e, por outro, que é tido pelo constituinte comofundamental.Por tal perfil, apenas os direitos e garantias individuais expressamente expostosno artigo da Constituição, seriam cláusulas pétreas.O Supremo Tribunal Federal parece ter hospedado tal exegese no momento emque não acatou como cláusula pétrea, o direito individual do contribuinte a estarassegurado por um sistema tributário inelástico, com a válvula de escapedecorrente da competência residual da União, visto que não era expressa acláusula” (Comentários à Constituição do Brasil, 4º vol., tomo I, Ed. Saraiva, 3a.ed., 2002, p. 417/419).

3 Celso Bastos, ao comentar o artigo 5º, inciso X, lembra: “O inciso ofereceguarida ao direito à reserva da intimidade, assim como ao da vida privada.Consiste na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão deestranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso ainformações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejamdivulgadas informações sobre essa área da manifestação existencial do serhumano.

Tal proteção encontra, como visto, desdobramentos em outros direitosconstitucionais que também se preocupam com a preservação das coisas íntimas

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Assim é que o artigo 11 declara:

“Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da

personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não

podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.

O princípio conforma a lista dos direitos individuais indisponíveis e

intransmissíveis, exceção feita àqueles previstos em lei, desde que,

implícita ou explicitamente, autorizados pela Constituição.

Em outras palavras, a lei não pode alterar, ao bel-prazer do

legislador, direitos indisponíveis ou disponíveis, mas apenas aqueles

cuja disponibilidade decorra de princípio geral flexível, admitido pela

lei suprema. O que for, explícita ou implicitamente, indisponível na

Constituição, não poderá tornar-se disponível por força de lei.

A vedação à limitação voluntária é decorrência natural da

indisponibilidade e do pleno exercício de quem os detém.

e privadas, como, por exemplo, o direito à inviolabilidade do domicílio e dacorrespondência, do sigilo profissional e das cartas confidenciais e demaispapéis pessoais.

Não é fácil demarcar com precisão o campo protegido pela Constituição. É precisonotar que cada época dá lugar a um tipo específico de privacidade. Nos temposatuais, seria tomar o dispositivo constitucional muito fraco o considerar que eleabrangesse o só ocorrido nas casas dos particulares. Isso porque cada vez maisse impõem as modalidades semicoletivas de habitação, como se dá noscondomínios de apartamentos e nos de casas formados por conjuntos dehabitações fechadas ao acesso público. Cremos ser também um prolongamentoda vida particular a atividade levada a efeito em clubes recreativos e de lazer.São verdadeiros prolongamentos da casa tradicional, que, por já não podercontar, como outrora, com áreas próprias à recreação e ao esporte, conduznecessariamente o indivíduo para formas associativas cujo fim entretantoremanesce o mesmo: o de reforçar as comodidades ao seu alcance nos momentosde ócio e de lazer” (Comentários à Constituição do Brasil, ob. cit., 2º vol., 2a. ed.,2001, p. 71).

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Não se deve confundir, por outro lado, a intransmissibilidade com o

direito do sucessor de defesa dos direitos do sucedido, em vida ou

após o falecimento, nestes casos admitindo-se, inclusive, que a lei

torne um direito indisponível “transmissível”, como, por exemplo, o

direito à imagem, pelo menos no que diz respeito à sua defesa 4. A

titularidade dos filhos para defender a imagem paterna é exemplo de

transmissibilidade de um direito indisponível.

O artigo 12, cuja dicção é a seguinte:

“Art. 12 Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito

da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de

outras sanções previstas em lei.

§ único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer

a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou

qualquer parente em linha reta, ou colateral até o 4º grau”,

por outro lado, na linha do artigo anterior e dos incisos V e X do

artigo 5º da Constituição Federal, garante o direito de exigir que a

4 “O Código Civil português nos oferece uma conceituação do que seja o direito àimagem:

"Art. 79: 1 -O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido oulançado no comércio sem o consentimento dela, depois da morte da pessoaretratada, a autorização compete às pessoas designadas no n. 2 do art. 71segundo a ordem nele indicada.

2- Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim ojustifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia oude justiça ou culturais ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada nade lugares públicos ou na de fatos de interesse público ou que hajam ocorridopublicamente.3- O retrato não pode porém ser reproduzido, exposto ou lançadono comércio se do fato resultar prejuízo para a honra, reputação ou simplesdecoro da pessoa retratada” (Comentários à Constituição do Brasil, ob. cit., 2ºvol., p. 69/70).

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ameaça de lesão ou a própria lesão ao direito de personalidade seja

interrompida, afastando-se a primeira ou estancando-se a segunda,

quando detectada, podendo, ainda, gerar direito a perdas e danos,

sem prejuízo de outras sanções de natureza patrimonial ou penal.

À evidência, tal procedimento ressarcitório deverá ocorrer, pela via

judicial, se inútil a tentativa de paralisar o processo, com as

conseqüências punitivas para o autor da lesão ou da ameaça 5.

Falecida a pessoa, seus herdeiros são os legítimos titulares para

tomar as medidas previstas no artigo, estando legitimados, além do

cônjuge, os sucessores, a saber: parente em linha reta ou colateral

até o 4º grau.

O artigo 13 coloca questão delicada, já solucionada pelo

constituinte, ao não permitir a comercialização de órgãos (199, § 4º)

6.

5 “Dor moral - A agressão aos bens imateriais configura prejuízo moral. Sãoinvioláveis a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenizaçãopelo dano material ou moral conseqüente a sua violação (STJ, 2.8 T., REsp37374-3-MG, rel. Min. Hélio Mosimann, j. 28.9.1994, DJU 24.10.1994- n- 28737)”(Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, Nelson e Rosa Maria Nery,ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 19).

6 Escrevi: “O § 4º do art. 199, segundo o deputado Roberto Campos, introduziuno País a "sanguebrás". Proibindo qualquer tipo de comercialização sobre aremoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante etratamento, assim como o processamento e a transformação de sangue e seusderivados, determinou o constituinte que a lei estabelecesse as condições erequisitos para facilitar a sua ocorrência, dentro desses parâmetros.Nitidamente, o dispositivo objetivou evitar o comércio ilegal de órgãos e sangue,assim como a possível exploração de pessoas sem recursos, que as pudesselevar a disporem de seus órgãos mediante negociação.O texto, todavia, é absolutista, pois, ao dizer que é vedado qualquer tipo decomercialização, nitidamente proibiu até que os medicamentos feitos à base desangue pudessem ser comercializados, o que vale dizer, o constituinte proibiuqualquer tipo de comercialização de qualquer tipo de medicamento que derivassedireta ou indiretamente de substâncias humanas, inclusive as auto-vacinas.

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Tem a seguinte dicção:

“Art. 13 Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição

do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da

integridade física, ou contrariar os bons costumes.

§ único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de

transplante, na forma estabelecida em lei especial”.

O dispositivo é claro em seguir o ditame constitucional da

indisponibilidade do corpo humano, podendo, todavia, por

recomendação médica, haver exceção à regra, como, por exemplo,

em face do DNA, o pai dispor de um órgão não vital para a

sobrevivência de seu filho. O pai pode ofertar um de seus rins a filho

necessitado, mas não poderá ceder seu coração, em vida, pois tal

Em outras palavras, a vedação absoluta pretendida, se seguida fosse,paralisaria as investigações para desenvolvimento de medicamentos à base desubstâncias extraídas do próprio organismo humano, hoje segmento importanteda medicina naturalista.Por outro lado, os hospitais, de rigor, não podem cobrar o sangue que destinam aseus pacientes, mesmo que haja custos adicionais, pois a transfusão mediantepagamento representa alguma espécie de comercialização.Como os doadores nem sempre são em número suficiente, compreende-se odrama que vivem todos os hospitais, sempre com plasma insuficiente, pordeterminação constitucional. Estavam, pois, os constituintes mais interessadosem "princípios" do que na vida da população.

Por outro lado, nada obstante a vedação absoluta, compreende-se que talproibição jamais será eficaz, pela impossibilidade de se controlarem os custosoperacionais dos hospitais mais especializados em transplantes ou pesquisas,razão pela qual a inquantificabilidade dos valores exigidos nas transfusões etransplantes pressupõe sempre, o que é normal, alguma espécie decomercialização.

Resulta, portanto, que o referido princípio ético mais prejudica que beneficia apopulação, sendo absolutamente impossível de ser cumprido, visto que não há"medicina grátis". Nem mesmo a "medicina oficial" pode ser assim considerada,visto que é paga, inclusive em seus desperdícios, por todos os contribuintesbrasileiros, ou seja, pela sociedade, por meio de seus tributos.A Lei n. 9.434/97 disciplinou a matéria, tendo sido regulamentada pelo Decreton. 2.368, de 30 de junho de 1997” (Comentários à Constituição do Brasil, ob. cit.,8º vol., 2a. ed., 2001,p. 183/185).

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cessão implicaria sua morte. A própria eliminação permanente da

integridade física é considerada elemento impeditivo (cessão de um

rim), a não ser que, por determinação médica, seja admitida, nos

limites do artigo 13.

O que contrariar, todavia, os bons costumes, nem por determinação

médica poderá ocorrer, como seria o do transplante de órgãos

genitais, se tal tipo de transplante possível fosse.

Tenho, inclusive, dúvidas se o Código Civil admitiria operação de

alteração de sexo, se não ficar demonstrado, claramente, que tal

operação objetiva, apenas, CONFIRMAR o sexo do paciente e não

ALTERÁ-LO. Parece-me que nada ofende tanto os bons costumes

quanto tal tipo de medicina aética e de conveniência.

O parágrafo único, claramente, impõe, que apenas para questões de

transplante tal disponibilidade seja possível.

Embora o advérbio “somente” não conste do parágrafo, não vejo

como se possa dispor de partes do corpo se não para transplante. E

transplantes que não afetem os bons costumes. Nitidamente, a

mutilação ou amputação por necessidades terapêuticas

(mastectomia, esterectomia) não representa dispor do corpo para

terceiros, mas a eliminação de parte dele para sobrevivência do

paciente.

Não se deve confundir a hipótese com a de disposição do próprio

corpo em prol da realização de experiências que possam beneficiar o

paciente. Admitindo-se um paciente com moléstia incurável, para a

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qual há possibilidades de cura por medicamento ainda em fase de

experiência, a meu ver, tal disponibilização é viável.

Não o mesmo quando a disposição do próprio corpo, com

comprometimento da integridade física é feita de forma contrária

aos bons costumes. Não pode ninguém alugar o seu corpo para que

seja utilizado contra os bons costumes, a meu ver, assemelhando-

se, tal exploração, àquela do lenocínio, cuja figura penal continua

em nosso direito e que implica sempre o aluguel do corpo para

relações sexuais.

A lei civil vem apenas valorizar a dignidade da pessoa humana,

vedando explorações indevidas por interesses vis ou desumanos 7.

O artigo 14, cujo discurso segue:

7 Wagner Balera ensina: "A remoção de órgão, tecido ou substância do corpohumano. tanto pode se dar em pessoa viva como “post mortem”. Em ambas assituações, evidentemente, é a título gratuito que se deve cogitar da disposição arespeito.

O corpo humano, desde sempre considerado “res extra commercium” não podeser objeto de nenhum tipo de exploração comercial.

Numa perspectiva transcendental, trata-se de algo sagrado ou, como o hortocerrado do Cântico dos Cânticos, não pode ser violado por qualquer significaçãoeconômica.

A legislação que venha a cogitar dessa importante matéria, fundada na diretrizconstitucional, deve observar critérios atualmente recomendáveis pela ciênciamédica para o trato do assunto. Ao estabelecer procedimentos despidos deformalismo -que poderiam dificultar e impedir a plena utilização desses recursos -, não pode deixar de lado o rigor necessário à verificação dos casos de mortecerebral. Aqui, a autorização para a remoção de órgão, tecido ou substânciasomente pode ser dispensada quando impossível a identificação da pessoa. E,nesse caso, o dirigente do hospital ou da clínica que realizasse a remoçãopoderia suprir a autorização, ficando pessoalmente responsável pelasconseqüências" (A seguridade social na Constituição de 1988, Revista dosTribunais, 1989, p. 88).

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“Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a

disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para

depois da morte.

§ único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a

qualquer tempo”,

vem pacificar a tese da disponibilidade do próprio corpo, no todo ou

em parte para depois da morte.

Valoriza o direito à vida e a sua indisponibilidade. Garante que o

corpo pode servir à humanidade, após a morte, com utilização de

órgãos ou de todo o organismo em prol de pessoas necessitadas de

transplante ou da pesquisa científica.

É, todavia, direito disponível do indivíduo, que jamais poderia, como

se tentou no passado, entender-se haver autorização tácita à

disposição de órgãos ou do corpo, depois da morte, relativamente

àqueles que não manifestassem expressamente a vontade em

sentido contrário.

Repõe, o artigo, a questão, em seus devidos termos. Disponível o

direito de ceder, após a morte, o corpo ou parte dele, só com

expressa autorização pode-se admitir tal disponibilização 8.

8 Pinto Ferreira ensina: “Na idade presente é permitida a utilização pacífica docorpo humano, como salienta Nélson Hungria, desde que seja para fim lícito enão imoral, tal como para a preservação da vida e da saúde de terceira pessoa,para fins didáticos ou científicos.

A lei permite a disposição gratuita de parte do corpo. O ato de dispor é gratuito,porque o cadáver não é coisa que possa ser objeto de comércio. Não sendo coisa,é de perguntar-se: é pessoa? Também não é pessoa, porém é protegido pela leipenal especial, atribuindo-lhe restos de personalidade.

Preceitua o art. 11 da Lei n. 5.479: "a) a disposição gratuita de uma ou váriaspartes do corpo “post mortem” para fins terapêuticos é permitida na forma da lei".

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E essa disponibilização, conforme o § único, poderá ser revogada a

qualquer momento.

O artigo 15, assim redigido:

“Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de

vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”

está na linha de todo o capítulo da personalidade, pois valorizando

o direito do indivíduo em ser o real titular de seu corpo.

Sob risco de vida, ninguém pode ser obrigado a submeter-se a

tratamento médico ou intervenção cirúrgica.

A linguagem médica corrente é a de que a pessoa tem o direito a

viver com dignidade e morrer com ela. Nitidamente, deverá, todavia,

a própria pessoa, ser alertada sobre os riscos e benefícios que terá,

em decorrência de operação ou tratamento.

É que, muitas vezes, por ignorância, a pessoa decide mal. E passa a

correr risco maior do que o tratamento ou a cirurgia que se lhe

O paciente receptor deve atender a uma necessidade terapêutica; assim o futurocadáver não pode ser disposto para ser aproveitado em experiências industriaisou químicas.

A dita lei de transplante, em seu art. 3º, I, II, determina as seguintes condiçõespermissivas do uso de cadáver: a) manifestação expressa do disponente; b)manifestação de vontade, mediante instrumento público, nos casos dedisponentes relativamente incapazes e de analfabetos.

No que diz respeito aos absolutamente incapazes, como os menores, eles nãopodem dispor de seus corpos, nem se lhes pode suprir o consentimento mediantesubstituição da manifestação de tutores, curadores e de seus pais” (Comentáriosà Constituição Brasileira, 7º volume, Ed. Saraiva, 1995, p. 26/27).

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propõe. Se, após o esclarecimento, a pessoa recusar submeter-se a

tais procedimentos, ninguém poderá obrigá-la a aceitá-los 9.

O artigo 16 objetiva assegurar a dignidade do próprio nome. Ao bom

nome.

À evidência, o artigo 16, assim redigido:

“Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o

prenome e o sobrenome”,

tem o mérito de garantir aos cidadãos a linhagem paterna e familiar,

assim como a decorrencial do casamento.

Como o direito é individual, entendo que não só pode negar-se a

usá-lo como não querer, nos casamentos, usar o nome do outro

cônjuge ou ainda terem os dois cônjuges simultaneamente o direito

ao uso do nome do outro.

9 Nelson e Rosa Maria Nery esclarecem: “1. Disposição constitucional. CF 5º II eIII.2. Prevalência do direito à vida. A disposição legal nos convida, imediatamente, aduas reflexões a) no choque entre direitos fundamentais (vida x liberdade), aopção do legislador é a de prestigiar a vida que corre perigo. A predominância dovalor vida norteia a ação de quem se encontra, v.g., por dever legal, nacontingência de proceder manobras médicas para salvar o que carece detratamento médico ou de intervenção cirúrgica imediata; b) a escolha detratamento médico ou cirúrgico que imponha risco de vida ao paciente deve ser aele comunicada pelo médico responsável, com minuciosa descrição dasconseqüências danosas, especialmente daquelas que possam impor ao pacienterisco de vida. Ainda que o diagnóstico médico da doença aponte para tratamentoou intervenção cirúrgica arriscada, não ser o paciente constrangido a suportá-los”(Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, ob. cit. p. 20).

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O Código Civil fala em direito e não em obrigação. E não há que se

falar em direito público subjetivo, que implicaria uma obrigação

(poder-dever).

Trata-se, portanto, de faculdade que implica ter o nome, prenome e

sobrenome a que tem direito ou negar-se a tê-lo, desde que não seja

prejudicada sua identificação pessoal.

Em outras palavras, o direito de ter nome, prenome e sobrenome é

um direito pessoal e vinculado à imagem, honra e identidade da

pessoa 10.

10 Escrevi: “É bem verdade que houve uma grande evolução na doutrina sobre odireito à imagem, à honra e à identidade, só não tecendo maiores comentários arespeito em face da brilhante palestra de Carlos Alberto Bittar. De qualquerforma, não se pode deixar de lembrar a obra de Gotrama Gonzalez publicada na"Nova Enciclopédia Jurídica" (tomo XI, pgs. 301 e segs., Ed. Barcelona, 1962), emque se refere a sete teorias sobre o direito à imagem (1) negativista; 2) vinculadaà honra; 3) expressão do corpo; 4) direito à identidade; 5) direito à intimidade; 6)direito à liberdade e 7) patrimônio moral).É reconhecida a evolução de um direito à honra para um direito à imagem efinalmente à identidade do ser humano com suas circunstâncias e meio em quevive, que conformam o denominado direito à personalidade. A doutrina evoluiupara mostrar que o direito à honra, não compõe, por inteiro, a personalidade, nema própria imagem, ou mesmo a identidade, sendo esta o complexo de atributosinternos, externos e naturais que esculpem a pessoa humana.Fábio de Matia historia: "Os especialistas alemães, na segunda metade doséculo XIX, cognominaram os direitos da personalidade como"Individualiatsrechte" e "Personlichkeitsrechte".Outras denominações usadas são: "Direitos essenciais ou fundamentais dapessoa, Direitos da própria pessoa, Direitos de Estado, Direitos personalíssimos".Uma denominação bem antiga é a de direitos inatos, utilizada pela Escola doDireito Natural.Arturo Valencia Zea os chamou de "derechos de personalidad o humanos".A expressão consagrada é "direitos da personalidade" ou então "direitos privadosda personalidade".Simón Carrejo afirma que a expressão “direitos da personalidade” é aceita nadoutrina da atualidade por "ser más comprehensiva" (Estudos de Direito Civil,Ed. Revista dos Tribunais, p. 102)” (Estudos de Direito Econômico, ed. IBCB Inst.Bras. de Ciência Bancária, 1994, p. 130/131).

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À nitidez, o direito de dispor do nome, de alterá-lo, não pode

implicar transformar-se o cidadão em um “Capitão Nemo”, das

aventuras de Júlio Verne, nas “Duzentas Léguas Submarinas” e na

“Ilha Misteriosa”, em que seu herói dizia chamar-se “Ninguém”

(Nemo).

A pessoa pode escolher o nome, mas não pode deixar de adotar um,

para servir de identificação pessoal.

O artigo 17, por outro lado, tem a redação que se segue:

“O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em

publicações ou representações que a exponham ao desprezo

público, ainda quando não haja intenção difamatória”,

vem aquecer o debate sobre a indenização por danos morais a que

está sujeita a mídia em geral ao divulgar notícias.

Claramente, o dispositivo impede tal exposição, razão pela qual

maior cautela deverá ter a imprensa, a partir de 2003, em expor ao

crivo público a imagem de pessoas “não governamentais”.

O nome é a vanguarda da personalidade. No passado, a honra

vinculada estava ao “bom nome”. Hoje, menos na prática e mais na

lei. Muitas vezes, esse conceito tem servido, inclusive, para valorizar

o “quantum indenizatório”, em ações por danos morais. Distinguir o

“justo” do “conveniente” é a tarefa mais árdua do juiz. Lembro-me

de episódio, ocorrido durante palestra que proferi sobre danos

morais, em que um dos participantes perguntou se muitas vezes

não seria um excelente negócio ter a honra atingida, para se

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ganhar, à custa dela, um bom dinheiro. A identificação da

ocorrência e da dimensão do dano moral é a grande tarefa do juiz 11.

À evidência, não se pode explorar o nome alheio em publicações e

representações, de forma jocosa, devendo, inclusive, os programas

de auditório, ser mais cautelosos no humor que pretendem

transmitir.

Mesmo sem intenção difamatória, a imprensa --que deve veicular

notícias, quase sempre sobre o insólito ou sobre acontecimentos

políticos-- pode desfigurar a imagem de um cidadão, rompendo com

sua privacidade.

11 Nesta palestra tinha dito que: “Limongi França elenca os seguintes direitosprivados da personalidade:“1. Direito à Integridade Física:1.1. Direito à vida e aos alimentos1.2. Direito sobre o próprio corpo, vivo1.3. Direito sobre o próprio corpo, morto1.4. Direito sobre o corpo alheio, vivo1.5. Direito sobre o corpo alheio, morto1.6. Direito sobre partes separadas do corpo, vivo1.7. Direito sobre partes separadas do corpo, morto;2. Direito à Integridade Intelectual:2.1. Direito à liberdade de pensamento2.2. Direito pessoal de autor científico2.3. Direito pessoal de autor artístico2.4. Direito pessoal de inventor;3. Direito à Integridade Moral3.1. Direito à liberdade civil, política e religiosa3.2. Direito à honra3.3. Direito à honorificiência3.4. Direito ao recato3.5. Direito ao segredo pessoal, doméstico e profissional3.6. Direito à imagem3.7. Direito à identidade pessoal, familiar e social” (Revista do Advogado, p. 5,transcrito na palestra no 2º Ciclo de Estudos de Direito Econômico, livro “Estudosde Direito Econômico”, ob. cit. p. 132).

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Tenho para mim que as notícias sobre os homens públicos devem

ser sempre veiculadas, na medida em que o eleitor ou o contribuinte

tem o direito de conhecer a integridade das pessoas que exercem

“munus” público.

Não me parece, entretanto, que a imprensa possa desventrar a

privacidade das pessoas que não exercem tais funções, visto que a

Constituição garante, nestes casos, a privacidade 12.

Ora, o grande vilão das desfigurações da individualidade é a mídia,

que invade, sob a capa do direito de preservação das fontes, a

privacidade das pessoas.

12 Escrevi: “A primeira delas diz respeito ao art. 5º, IV, assim redigido: "é livre amanifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".

Se, de um lado, é garantida a liberdade plena, sendo, pois, nesse particular,reprodução do § 1º, de outro lado, o anonimato é proibido, com o que todos osmeios de comunicação, quando dão informação ou se manifestam livremente, nãose podem esconder atrás do anonimato, que não deve, todavia, ser confundidocom o sigilo de fontes, este sim preservável.

O inc. V ("é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além daindenização por dano material, moral ou à imagem") garante o direito deresposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moralou à imagem.

A matéria está regulada na Lei n. 5.250/65. É de se lembrar que o abuso nasindenizações por dano moral, que desmoralizou a advocacia nos Estados Unidos,por ter-se tornado uma "autêntica indústria", com advogados à procura declientes para forjar danos morais ciclópicos -tenho para mim que o cidadão cujamoral tem preço não tem moral -, principia, graças à justiça de alguns Estados daFederação, a também desmoralizar a advocacia e a Magistratura do País, vistoque a concessão de indenizações tem sido sempre desproporcional ao pretendidodano.

O inc. X do art. 5º, por outro lado, tem a seguinte dicção: "são invioláveis aintimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado odireito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

E continua na mesma linha de liberdade com responsabilidade, que deve orientaro trabalho da imprensa. É de se lembrar que não é permitido à imprensa agredira honra e a imagem das pessoas, não sendo possível, a não ser em questõespúblicas, desvendar a intimidade da vida privada de qualquer cidadão”(Comentários à Constituição do Brasil, ob. cit., 8º vol., 1998, p. 805/808).

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De qualquer forma, o texto não oferta dúvidas de que o nome deve

ser preservado, por integrar a personalidade e, mais do que isto, ser

a vanguarda da honra. Sua desfiguração, voluntária ou

involuntária, pode ser objeto de ações indenizatórias por danos

morais.

O artigo 18 contém o seguinte discurso:

“Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em

propaganda comercial”,

preceito que decorre do artigo 17. Sendo o titular do nome o único

com direito a dele dispor, apenas com sua autorização pode ser

usado em propaganda comercial.

Por interpretação abrangente, entendo mesmo que propaganda de

outra natureza, como circulares expedidas por prestadores de

serviços elencando nome de clientes que deles se utilizam, ensejaria

o direito a ação de perdas e danos e danos morais, por utilização

indevida do nome.

Tem o artigo 19 a seguinte dicção:

“O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção

que se dá ao nome”.

Na mesma linha, é de se tratar o pseudônimo. Quantos não ficaram

famosos na história? George Sand, os quatro heteronôminos

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adotados por Fernando Pessoa, Malba Tahan são apenas alguns

exemplos da importância do nome literário 13.

Nada mais lógico que a mesma proteção dispensada ao nome seja

estendida ao pseudônimo, com a titulação de direitos indenizatórios,

em caso de desrespeito e violação.

O artigo 20 vem coroar a gama de disposições protetoras do nome,

da imagem e da honra das pessoas, que têm direito constitucional à

privacidade e a sua proteção, ao prever:

“Art. 20 Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração

da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de

escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição

ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas,

a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se

lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se

destinarem a fins comerciais.

§ único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes

legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes

ou os descendentes”.

A exceção é a disponibilização do nome pelo próprio titular ou no

interesse da administração da justiça ou da ordem pública. Alguém

procurado pela polícia, por ter fugido de um presídio após

condenação judicial, pode ter sua imagem difundida para que

aqueles que o localizarem, comuniquem o fato às autoridades.

13 “Pseudônimo notório. Utilização sem autorização. A utilização de pseudônimonotório sem autorização do legítimo titular implica perdas e danos (RJTJSP-LEX-98 232-234)” (Novo Cód. Civil e Legislação extravagante anotados, ob. cit. p. 23).

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Objetiva manter e preservar a ordem pública, em face, por exemplo,

da fuga de fascínoras.

Da mesma forma, se um magistrado autorizar a divulgação do nome

de alguém, no interesse da administração da Justiça, a proteção

constitucional e civil pode ser afastada, à luz de um interesse maior

da coletividade.

Fora estas hipóteses,

a) a divulgação de escritos,

b) a transmissão da palavra,

c) a publicação da imagem,

d) a exposição da imagem,

e) a utilização da imagem,

poderão ser proibidas por requerimento do interessado,

independentemente de preservação do direito à indenização por uso

indevido se

a) sua honra

b) boa fama

c) respeitabilidade

tiverem sido atingidas 14.

14 “Direito à própria imagem. Publicação sem autorização. É devida aindenização quando da publicação em revista de imagem própria semautorização (RT 531/230).

Exibição de imagem em publicação diversa da avençada. Tem o condão deviolar o decoro, a exibição de imagem nua em publicação diversa daquela comquem se contratou, acarretando alcance também diverso, quando a vontade dapessoa que teve sua imagem exposta era a de exibi-la em ensaio fotográficopublicado em revista especializada, destinada a público seleto (STJ, 3 .aT , REsp270730- RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, m.v.,j. 19.12.2000, DJU 7.5.2001)” (Nelson

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O legislador civil estende a proteção aos brasileiros (ascendentes e

descendentes) e ao cônjuge. O direito de impedir a divulgação

desfigurada de notícia que afete a imagem do morto ou do ausente,

pertine também a cônjuges, ascendentes e descendentes, fazendo

jus, inclusive, ao ressarcimento judicial.

O último dos artigos assegura, em nível de legislação codificada , o

princípio constitucional da privacidade (art. 5º, inciso X), estando

assim redigido:

“Art. 21 A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a

requerimento do interessado, adotará as providências

necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta

norma” 15.

e Rosa Maria Nery, Novo Cód. Civil e legislação extravagante anotados, ob. cit. p.23).

15 Nelson e Rosa Maria Nery elencam a seguinte bibliografia sobre o dispositivo:“Artigos: André Gustavo Corrêa de Andrade - Dano moral e pedido genérico deindenização (RT 781/33); Artur Oscar de Oliveira Deda - A controvérsia teóricasobre a reparabilidade dos danos morais (RDC 1/15); Carlos Alberto Bittar-Reparação civil por danos morais: Tendências atuais (RDC 74/13); Clayton Reis– O dano moral (RDC 28/64); Clóvis do Couto e Silva - O conceito jurídico de danono direito brasileiro e comparado, in Fradera, Dir. Priv. Bras., p. 217; Ives Gandrada Silva Martins -Quantificação nos arbitramentos das ações por danos morais(RDC 69/138); Lucas Kouji Kinpara - Dano moral e a determinação do valor daindenização (RDPriv 4/248); Maria Helena Diniz- O problema da liquidação dodano moral e o dos critérios para afixação do quantum indenizatório, in Diniz,Atualidades2, p. 237; Mário Moacyr Porto - Algumas notas sobre dano moral(RDC 37/9); Pedro Paulo Teixeira Manus - O dano moral e o direito do trabalho, inDiniz, Atualidades2, p. 237; Sílvio Henrique Vieira Barbosa - Informação XPrivacidade -O dano moral resultante do abuso de liberdade de imprensa (RDC73/70)” (Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, ob. cit. p. 24).

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Da norma deflui o direito à inviolabilidade e a garantia de

provimento jurisdicional protetivo, que a requerimento do

interessado, deverá o juiz determinar, com as providências

necessárias e pertinentes para impedir ou fazer cessar ato que

atinja sua privacidade.

Como se percebe, os direitos à personalidade são fundamentalmente

de duas naturezas, a saber: os que dizem respeito à vida, corpo e

integridade física e aqueles que dizem respeito à imagem, honra,

dignidade. E a linha é uma só, a de tornar os princípios

constitucionais da honra, dignidade humana, privacidade e

respeito, que todo o cidadão merece, protegidos pela Constituição e

pelo Código Civil. Parece-me ter, neste particular, o Código Civil de

2002, avançado consideravelmente e bem, sobre o desenho do

código anterior, onde não tão claramente tais direitos estavam

conformados.

É certo que podiam ser considerados direitos implícitos na lei civil

pretérita, visto que a evolução doutrinária e pretoriana, que levou à

formulação daqueles perfilados no artigo 5º e em outros dispositivos

da lei suprema, não impediu a recepção do texto de Clóvis e da

própria formulação de legislação extravagante, a complementar o

sólido arcabouço do Código Civil de 1917 16.

16 Manoel Gonçalves Ferreira Filho lembra que: “Ênfase - Tradicionalmente nodireito brasileiro, o enunciado dos direitos e das garantias fundamentais vinhaapós a organização do Estado e a organização dos Poderes. A nova Constituiçãoaltera esta posição, pois coloca os direitos e garantias fundamentais antes daorganização dos Estados e da organização dos Poderes. Sem dúvida, com isto sequis enfatizar a importância de tais direitos e garantias fundamentais. São elespostos como básicos para o Estado brasileiro. Refletem, com efeito, a dignidadeda pessoa humana que já foi apontada como fundamento da República brasileirano art 1°, III” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1, Ed. Saraiva,2000, 3a. ed., p. 23).

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Para um operador de direito público, em homenagem a um dos

maiores filósofos e civilistas da história humana, restou-me, apenas,

fazer estas pálidas considerações sobre tema que, felizmente, tem

sede constitucional expressa, o que me facilitou a análise. Ficaram,

todavia, em face da grandeza do homenageado, com a singeleza

provinciana de um seu permanente admirador e aluno.

São Paulo, 22 de novembro de 2002.

IGSM/mos

A2002-115 HOMENAGEM MIGUEL REALE