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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6 Cadernos PDE OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Artigos

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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Artigos

Análise do Discurso Publicitário: o dito e o por se dizer nas propagandas de cerveja

Autora: Nelci Cassol

Orientadora: Professora Dra. Célia Bassuma Fernandes

RESUMO: O presente artigo apresenta os resultados obtidos com a proposta de estudo do PDE- Programa de Desenvolvimento Educacional – promovido pela Secretaria Estadual de Educação do Paraná, desenvolvida junto aos alunos do Ensino Médio, do Colégio Estadual Tancredo Neves, do município de São João. Nosso objetivo foi desenvolver a prática de leitura dos sujeitos-leitores da 1ª série C, do turno noturno, tendo como base a teoria da Análise de Discurso de vertente francesa, que busca compreender o funcionamento da ideologia na língua. Para essa teoria da interpretação, a linguagem não é transparente ou neutra, pois os discursos vêm carregados de sentidos, que são determinados pelas condições de sua produção e que dizem respeito, aos sujeitos, às circunstâncias da enunciação e ao contexto sócio-histórico ideológico em que eles foram produzidos. Também a memória discursiva faz parte das condições de produção dos discursos, tendo em vista que ela pode ser definida como o saber discursivo que torna possível que os discursos sejam atualizados. Para dar conta desse objetivo, escolhemos as propagandas de cerveja, por nós considerados textos, e que não raro colocam em funcionamento o dito e o não dito. Em outras palavras, este estudo teve por objetivo desenvolver a prática de leitura e de interpretação de textos publicitários de cerveja, mobilizando os conceitos fundadores da teoria discursiva, desenvolvida por Michel Pêcheux, na França, e por Eni Orlandi, no Brasil, e por demais pesquisadores que se ocupam do mesmo objeto teórico. PALAVRAS CHAVE: Leitura. Propaganda. Análise de discurso

1. INTRODUÇÃO

A questão da leitura e da interpretação tem sido muito discutida nas

escolas e também no meio acadêmico. Também não é raro nos depararmos

com resultados de exames como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio),

que apontam para o fato de que os nossos alunos não compreendem o que

leem.

Nas escolas, essa dificuldade pode ser verificada quando o texto é

interpretado por meio de perguntas, cujas respostas o sujeito-leitor vai buscar

na linearidade textual, no intradiscurso. O aluno não se aventura a ir além, em

busca dos não-ditos, constituídos pelo funcionamento da memória, ou seja,

pelo interdiscurso. Conforme Orlandi, (2007, p. 43), “[...] as palavras falam com

outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso

se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam

na memória”.

Nesse sentido, e em conformidade com a autora citada, é essencial

problematizar as maneiras de ler, isto é, de levar o sujeito-leitor a se colocar

questões sobre o que produz e o que ouve nas diferentes manifestações de

linguagem. Assim sendo, cabe ao professor propiciar o desenvolvimento da

prática de leitura na escola, levando o sujeito-leitor a compreender aquilo que

não está presente nos textos, mas que neles também significa. De acordo com

a autora citada, a leitura pode ser “ensinada”, “trabalhada”, na escola, a fim de

que se torne mais significativa (ORLANDI, 2007, p.9).

Com base nisso, o presente artigo apresenta os resultados obtidos com

a proposta elaborada junto ao PDE (Programa de Desenvolvimento

Educacional da Secretaria do Estado do Paraná), intitulada “Análise do

discurso publicitário: o dito e o por se dizer nas propagandas de cerveja”,

desenvolvida junto aos alunos da 1ª série C, do Ensino Médio, do Colégio

Estadual Tancredo Neves, do município de São João, com o objetivo de

desenvolver a prática de leitura dos alunos, principais consumidores das novas

tecnologias e demais bens de consumo, e que não estão suficientemente

preparados para realizar leituras reflexivas dos textos que os cercam, mais

especificamente de propagandas, tampouco para compreender os não-ditos

que as entrecruzam.

A base teórica que sustentou o trabalho foi a Análise de Discurso (AD)

francesa, fundada por Michel Pêcheux, na década de 60, na França, e trazida

por Eni Orlandi, para o Brasil, que busca verificar como os sentidos são

produzidos, levando em conta as condições de produção dos discursos e os

efeitos de sentido que deles irrompem. Para essa teoria da interpretação, a

linguagem não é transparente, logo, todo texto pode ter mais de um sentido.

Esperávamos assim, com o desenvolvimento da proposta, que os alunos

realizassem uma leitura menos ingênua das propagandas publicitárias, ou seja,

que fossem capazes de buscar não apenas pelos sentidos linearizados nos.

Mas também por aqueles que foram silenciados ou interditados. Procuramos

assim, destacar os mecanismos utilizados pela mídia, e que vão além do

convencimento para adquirir dado produto ou marca, mas atuam no sentido de

impor valores e comportamentos sociais associando o produto anunciado a

estilos de vida apurados, à obtenção do prazer, da alegria, da sofisticação, da

beleza e da ascensão social.

Partimos então, da necessidade de propor possibilidades de leitura e de

interpretação de anúncios publicitários, porque hoje, mais do que nunca,

sabemos do potencial de alcance dos meios de comunicação, da mídia, em

todos os segmentos da sociedade.

Além disso, a leitura de textos publicitários – entrecruzados pelo verbal e

pelo não-verbal – pelo frequente trabalho da língua na história, sinaliza para a

falha e para a falta. Nesse sentido, a língua é o lugar onde a ideologia se

materializa, mas está sempre sujeita ao equívoco, já que não tem apenas a

finalidade de transmitir informações, pois é um todo dinâmico e lugar de

conflitos, que se concretizam nos discursos.

Pela AD, a língua não é vista como estrutura, mas como acontecimento,

como o lugar em que a ideologia se materializa. Conforme Orlandi (2007, p.15),

a língua faz sentido, porque é “[...] parte do trabalho social geral, constitutivo do

homem e de sua história”. Ela é o lugar onde a ideologia se materializa e está

sempre sujeita ao equívoco.

No que se refere aos documentos oficiais, que regulamentam o ensino

de Língua Portuguesa, quais sejam os Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs) e, em nível estadual, as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCEs), têm

buscado repensar a prática pedagógica, com base em três eixos: a escrita, a

leitura e a oralidade.

As DCEs (2008, p.48), baseadas no sociointeracionismo bakhtiniano,

tomam “o discurso como prática social” (p.63), e enfatizam que “[...] é tarefa da

escola possibilitar que seus alunos participem de diferentes práticas sociais,

que utilizem a leitura, a escrita e a oralidade, com a finalidade de inseri-los nas

diversas esferas de interação”. Mais especificamente, no que se refere à

leitura, apontam para a proposição de uma metodologia e de práticas que

busquem explorar aspectos que uma leitura superficial não dá conta, pois

entendem que essa prática “[...] como um ato dialógico, interlocutivo, que

envolve demandas sociais, históricas, políticas, econômicas, pedagógicas e

ideológicas de determinado momento” (DCEs, 2008, p.71).

2. A ANÁLISE DE DISCURSO

É porque a língua é sujeita ao equívoco e a ideologia é um ritual com falhas que o sujeito, ao significar se significa. Por isso dizemos que a incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados (ORLANDI, 2007, p. 37).

A Análise do Discurso (AD) trabalha no entremeio da Psicanálise, da

Linguística e do Marxismo, mas não se reduz ao objeto da Linguística, não

trabalha puramente com a Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que

teoriza a Psicanálise. Esse dispositivo teórico da interpretação aborda a

confluência dessas áreas do conhecimento, constituindo um novo objeto de

estudo: o discurso, definido por Orlandi (2007, p. 10) como:

Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que não se dizem.

Essa noção de discurso se distancia, portanto, daquela proposta pela

Teoria da Comunicação, porque entende que não há uma disposição linear dos

elementos envolvidos no processo comunicativo, tampouco a língua é um

simples código. Para Orlandi (2007, p. 21), não se trata de simples transmissão

de informação, mas de um complexo processo de constituição de sentidos e de

sujeitos.

É pelo discurso que o homem se relaciona com a realidade natural e

social que o rodeia, uma vez que ele é a base da existência humana. Ainda

segundo a autora, “a linguagem serve para comunicar e para não comunicar”, e

as relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos

sempre podem ser outros (ORLANDI, 2007, p. 21). Segundo ela, a teoria

discursiva

[...] concebe a linguagem como mediação entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana (ORLANDI, 2007, p.15).

Assim, a AD compreende o discurso como efeito de sentido entre

interlocutores, nos termos de Pêcheux (1997c. p. 81), e procura remetê-lo a

sua exterioridade, procurando estabelecer a relação entre a língua, os sujeitos

que a falam e as condições de produção dos discursos, pois entende que não

existe uma separação rígida entre a linguagem e sua exterioridade constitutiva,

ou seja, que não é possível separar linguagem e sociedade. Assim sendo, ao

produzirmos nossos discursos, nos significamos a nós mesmos e ao próprio

mundo.

De acordo com a teoria discursiva, o discurso resulta do

entrecruzamento dos eixos da constituição e da formulação, que correspondem

respectivamente, à memória do dizer, evidenciada pelo contexto histórico-

ideológico mais amplo em que os discursos são produzidos e à enunciação, em

circunstâncias específicas. Conforme Orlandi (2008, p.9), é no eixo da

formulação que “[...] a linguagem ganha vida, que a memória se atualiza, que

os sentidos se decidem, que o sujeito se mostra (e se esconde)”.

Os processos discursivos resultam da confluência do eixo vertical ou

interdiscurso, no qual se encontram todos os dizeres já ditos e esquecidos e do

eixo horizontal ou intradiscurso, que pode ser definido como o eixo da

linearização. Daí a possibilidade de afirmar que o que dizemos sempre

apresenta relações com outros dizeres, com já-ditos em outros tempos, com

outros discursos. Orlandi (2008) assim explica esse movimento:

[...] na perspectiva discursiva dizendo-se que o interdiscurso (constituição: dimensão vertical, estratificada) determina o intradiscurso (formulação: dimensão horizontal, eu diria, o da linearização do dizer. Todo dizer (intradiscurso, dimensão horizontal, formulação) se faz num ponto em que (se) atravessa o (do) interdiscurso (memória, dimensão vertical estratificada, constituição). (ORLANDI, 2008, p.11)

Isso significa que, ao formularmos os discursos, temos a ilusão que eles

nos pertencem, mas os sentidos já estão inscritos na memória discursiva ou

interdiscurso e os mobilizamos conforme os acontecimentos sócio-históricos da

época e com as circunstâncias da enunciação. Segundo a autora, “[...] o

discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação

particular. Outras coisas foram ditas antes e outras serão ditas depois. O que

temos são sempre “pedaços‟, “trajetos”, “estados do processo discursivo”

(ORLANDI, 2008, p. 14). Isso significa que todo discurso estabelece uma

relação com um discurso anterior ou aponta para outros que ainda serão

produzidos, o que significa que há sempre “um já dito” que remete à memória

discursiva, ao interdiscurso, a uma filiação de dizeres, que se encontra

ancorada na historicidade. Porém, ainda assim, não sabemos como esses

sentidos que significam em nós e para nós se constituíram.

Isso se dá pelo trabalho da ideologia cuja materialidade específica é o

discurso que, por sua vez, se materializa na língua. Conforme Orlandi (2007, p.

17), “[...] o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre

língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por e

para os sujeitos”. Ainda nessa mesma esteira, Pêcheux apud Orlandi (2007,

p.17) assinala que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia:

o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz

sentido”. Por isso, nem os sujeitos nem os sentidos já estão prontos ou

acabados e podem sempre ser outros (ORLANDI, 2007, p.37).

Também há que se considerar, que todo sujeito que produz discursos e

todo sujeito que os ouve ocupa um lugar na sociedade e isso também significa

na produção dos sentidos. Assim sendo, todo sujeito é capaz de efetuar gestos

de interpretação, mas também está sujeito a ser interpretado pelos demais.

3. A LEITURA SOB O VIÉS DISCURSIVO

A Análise de Discurso pode ser definida como uma teoria que propõe

novas maneiras de ler, colocando o dito em relação ao não dito ou ao dito em

outro lugar. Ou seja, é uma teoria que busca problematizar as maneiras de ler,

expondo o olhar do leitor à opacidade do texto.

Pelo viés discursivo, não chegamos à compreensão do texto

respondendo à pergunta “o que o autor quis dizer”, tradicional nas análises de

conteúdo, mas procurando explicar “como” o texto significa, considerando a

relação que se estabelece entre o sujeito, a língua e a história,

Para a AD, o texto é não é entendido como uma somatória de frases,

mas como um “objeto sócio-histórico” (ORLANDI, 2007, p.16), que tem sua

natureza específica. Ele é a unidade empírica que o leitor tem diante de si,

repleta de sons, letras e imagens, com começo, meio e fim. De acordo com a

autora citada, ele é “[...] a unidade complexa de significação, consideradas as

condições de sua produção” (ORLANDI, 2006, p. 22).

Contudo, segundo ela, “a interpretação não é livre de determinação, pois

é garantida pela memória institucionalizada (o arquivo), e pela memória

constitutiva (interdiscurso – o dizível, o interpretável, o saber discursivo)”

(ORLANDI, 2007, p. 47). Para ela,

Saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da memória institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da memória constituída pelo esquecimento que é o que torna o diferente, a ruptura, o outro (ORLANDI, 2007, p.10).

A autora ainda afirma ainda, que ambos tanto podem estabilizar ou

deslocar os sentidos. Tanto é assim que um mesmo texto produz diferentes

efeitos de sentido em diferentes interlocutores.

Isso significa também, que a interpretação pode variar de acordo com os

diferentes sujeitos-leitores e até mesmo com o mesmo sujeito em épocas

diferentes, pois quando ele chega à escola, já possui uma história de leitura.

Nesse sentido, afirma que:

O mesmo leitor não lê o mesmo texto da mesma maneira em diferentes momentos e em condições distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes em diferentes épocas, por diferentes leitores. É isso que entendemos quando afirmamos que há uma história de leitura do texto e há uma história de leitura dos leitores (ORLANDI, 2008, p.62).

Além disso, assim como leitor, os textos também têm sua história de

leitura. Segundo Orlandi (2006, p. 41), “[...] para um mesmo texto, leituras

possíveis em certas épocas não foram em outras, e leituras que não são

possíveis hoje serão no futuro”. Ainda nesse sentido, enfatiza que:

Os sentidos estão sempre “administrados”, não estão soltos. Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretação. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar sempre lá. (ORLANDI, 2007, p.10)

Podemos dizer, portanto, que tanto a história de leitura do sujeito-leitor

como a história de leitura do texto é determinada pela ideologia, pois o sentido

está sempre relacionado aos modos de leitura de cada época e segmento da

sociedade.

Por essa perspectiva, o trabalho do professor é o de administrar práticas

de leitura que problematizem as maneiras de ler, já que conforme afirma a

autora, “a leitura é uma questão de natureza, de condições, de modos de

relação, de trabalho de produção de sentidos, em uma palavra: de

historicidade” (ORLANDI, 2006, p. 9).

A autora salienta ainda, que quando o aluno chega ao espaço escolar, já

convive com diferentes formas de linguagem. De acordo com ela:

A relação do aluno com o universo simbólico não se dá apenas por uma via – a verbal -, ele opera com todas as formas de linguagem na relação com o mundo. Se considerarmos a linguagem não apenas como transmissora de informação, mas como mediadora (transformadora) entre o homem e a realidade natural e social, a leitura deve ser considerada no seu aspecto mais consequente, que não é o de mera decodificação, mas de compreensão (ORLANDI, 2006, p. 38).

A interpretação está presente, portanto, em todas as manifestações da

linguagem, mas está sujeita ao equívoco, já que, de acordo com Pêcheux

(1997b, p. 53), “[...] todo enunciado é intrinsicamente suscetível de tornar-se

outro, diferente de si mesmo, de se deslocar discursivamente de seu sentido

para derivar para um outro”.

Assim sendo, segundo Orlandi (2007, p.18), a interpretação é o vestígio

do possível. É o lugar próprio da ideologia, “materializada” pela história. Diante

disso, entendemos a AD como um dispositivo de interpretação que tem por

objetivo

[...] colocar o já-dito em relação ao não-dito”, bem como o que se diz em determinado lugar e o que se diz em outro, o que se diz de um modo com o que é dito de outra forma, buscando aquilo que não se diz, mas que também constitui sentidos no interior do discurso (ORLANDI, 2007, p. 59).

Para atingir esse objetivo, o professor deve alterar as condições de

leitura na escola, pois é preciso propiciar que o sujeito-leitor construa sua

própria história de leituras, e ao mesmo tempo, estabeleça relações

interdiscursivas, buscando observar como os sentidos se constituem.

Se isso for feito, a leitura deixará de ser entendida como simples

decodificação, ou seja, é a partir da desnaturalização, da desautomatização

entre língua e história que o sujeito-leitor poderá chegar à compreensão dos

sentidos.

4. PRODUÇÃO DE SENTIDOS DOS TEXTOS PUBLICITÁRIOS

Ao participar do PDE e na elaboração da Unidade Didática optamos por

trabalhar com a 1ª série C, do ensino noturno, do Ensino Médio, também por

sugestão da direção do colégio. O objeto de estudo selecionado para o estudo

do ensino da prática de leitura foram propagandas de cerveja, porque

constatamos que os alunos leem apenas aquilo que está linearizado nos

textos, ignorando os silenciamentos, ou seja, os não-ditos, mas que também

neles significam.

Para dar sustentação às análises, optamos pela Análise de Discurso de

vertente francesa, que visa compreender como um objeto simbólico produz

sentidos, isto é, como ele está investido de significância para e por sujeitos

(ORLANDI, 2007), pela relação que se estabelece entre o sujeito, a língua e a

história.

Compreender um texto, por esse viés, implica compreender como ele

organiza os gestos de interpretação que relacionam a língua, o sujeito e a

história, produzindo, assim, novas práticas de leitura. Para tanto, são

consideradas as condições de produção dos discursos, bem como os efeitos

de sentido que deles derivam.

As propagandas selecionadas para análise foram entendidas como

textos em que os elementos verbais e não-verbais se entrecruzam na produção

de sentidos, e que vão além de persuadir o sujeito/leitor/consumidor a vender

determinado produto, mas funcionam de modo a disseminar ideologias.

Nosso intuito, na seleção dessas materialidades, foi propor gestos de

interpretação, buscando pela desnaturalização dos sentidos, com relação aos

efeitos do álcool no organismo, à violência e imprudência no trânsito e aos

problemas físicos, emocionais e mentais causados por ele. Ou seja, buscamos

auxiliar o aluno a desenvolver os gestos de interpretação, a partir da análise

dos ditos e também daquilo que não foi linearizado nos textos, mas que

também colabora para a produção de sentidos.

Nas materialidades selecionadas, as imagens e/ou os textos verbais

funcionam de modo a convencer os sujeitos consumidores/leitores que a

aquisição e consumo de determinado produto lhes proporcionará a felicidade, a

juventude, o amor, a ascensão e o reconhecimento social, dentre outros.

Segundo Fernandes,

[...] o discurso publicitário vem apresentando outros objetivos que não apenas aquele que lhe é considerado primordial: o de divulgação de um produto visando a promover-lhe um maior consumo, mas também, e, principalmente, o de impor um sistema de valores aos sujeitos-consumidores, levando-os à modificação de antigos hábitos e à transformação de comportamentos, de modo a promover uma categorização de grupos sociais em função dos produtos que consomem (FERNANDES, 2010, p. 126).

Para a teoria discursiva, o sentido não equivale apenas ao que o sujeito-

anunciante quis dizer, ou disse, mas também ao que não foi dito, silenciado.

Isso significa que “o não dito” também produz sentidos. Assim, podemos dizer

que o sentido é um efeito de sentido. Além disso, um enunciado pode apontar

para sentidos diferentes, dependendo da história de leitura do texto e também

do sujeito-leitor, conforme já mencionamos anteriormente.

No início do trabalho, ao apresentarmos a proposta de leitura com peças

publicitárias, alguns alunos ficaram desconfiados, se entreolharam com ar de

surpresa e perguntaram com curiosidade: “Você vai trabalhar sobre a

cerveja?”. Nas primeiras aulas, durante a interpretação da primeira

materialidade intitulada “Dia do Amigo é dia de ACERTOS DE CONTAS SKOL”

(disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx - Revista Veja,

edição 2278 - nº29 – Ano 45, 18 de julho de 2012) surpreenderam-se ao

constatar quantos não-ditos podem ser empregados em sua formulação.

Ao irmos ampliando as análises, outras questões sobre a origem da

cerveja foram surgindo e mais curiosidades sobre ela também: “Como a

cerveja é fabricada? Quais ingredientes são utilizados? O que acontece com as

pessoas quando a utilizam descontroladamente?”, entre outras.

Na sétima aula, com a propaganda referente à FAMÍLIA BOEMIA

(disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx - Revista Veja

(edição 2154 - nº9 – Ano 43, 3 de março de 2010), buscamos analisar a relação

entre os já-ditos com o que se estava dizendo e também dos ditos em relação

aos não-ditos, importantes no estabelecimento dos sentidos dos discursos, já

que o que é “silenciado” complementa e constitui o sentido do que realmente

foi dito.

Nas aulas seguintes, abordamos a Lei nº 11.705, de 19/6/2008, que

proíbe, em todo o país, a veiculação das propagandas de cerveja entre as 18 e

às 21 horas e como outros países coíbem a mistura álcool e direção.

Na sequência, realizamos debates com o tema: álcool-

direção/acidentes-vítimas. Ao abordarmos a Lei Seca no Trânsito, constatamos

que muitos dos alunos tinham apenas uma vaga noção sobre essa ela e suas

consequências.

Na propaganda “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”

(disponível em:

http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/noticias/2013/10/04/Mi

nist-rio-da-Justica-processa-Devassa.html) foram abordados sentidos

referentes às mudanças dos padrões de beleza ao longo do tempo impostos

pela sociedade, especialmente no que se refere ao corpo feminino; os lugares

que a mulher ocupa na sociedade; como a mídia (televisão, cinema, revistas)

propaga ideais de beleza; as mudanças ocorridas quanto à representação da

mulher ao longo dos séculos e como essas representações se sedimentam no

imaginário coletivo.

A publicidade, com frequência, se utiliza de “já-ditos” para formular seu

discurso. Nesse sentido, muitas delas se utilizam dos provérbios, fórmulas fixas

da língua, que buscam produzir dados efeitos de sentido no sujeito

leitor/consumidor. Nas materialidades analisadas, buscamos então,

compreender que relações se estabelecem entre o intradiscurso (eixo da

formulação) e o interdiscurso (eixo da constituição).

Para a teoria discursiva, um texto se constrói a partir de outros dizeres,

de outros textos, embora o sujeito tenha a ilusão de que aquilo que está

dizendo é novo e que nunca havia sido dito antes. Assim sendo, discursos

diversos estão a todo o momento se entrelaçando.

Nas propagandas de cerveja circulam ainda, discursos relacionados à

pátria, bem como outros que sentidos que nelas ressoam, como o carnaval, o

futebol, o clima tropical e as cores da bandeira. Dessa forma, selecionamos

duas materialidades voltadas a Copa de 2014. A primeira circulou na Revista

Veja, de dezembro de 2011 (edição 2248 – nº 51- Ano 44) e sinaliza para

sentidos acerca do futebol como paixão nacional, para a torcida. A outra

também foi retirada da Revista Veja (Abril de 2006, edição 1951 – nº 14 – Ano

39) e foi veiculada no ano em que o Brasil tornou-se Tetracampeão. Para dar

conta das materialidades em análise, foram debatidos temas referentes ao

consumo ou não de álcool nos estádios e à história das copas.

Destacamos também, que a legislação, por meio do DIP- Departamento

de Imprensa - cujo objetivo é ampliar as atividades do Departamento Nacional

de Propaganda e também do CONAR – Conselho Nacional de

Autorregulamentação Publicitária exige que todas as propagandas de bebidas

alcoólicas alertem sobre o perigo que o consumo indevido do álcool pode

causar, mas dizeres como “Beba com moderação, Aprecie com moderação ou

Se beber não dirija” geralmente ficam em segundo plano. Por serem grafados

em letras menores, passam despercebidos ao olhar da maioria dos

leitores/consumidores e seus sentidos são silenciados.

Tendo em mente que um discurso sempre aponta para outros, para

compreender como as materialidades produzem sentidos, trouxemos, a seguir,

para discussão, o problema dos acidentes causados pela utilização do álcool

na direção e a Lei Seca. Para tanto, foi apresentada a entrevista realizada por

Dráuzio Varella, ao Dr. Ronaldo Laranjeira, médico, coordenador da Unidade

de Pesquisa em Álcool e Drogas na escola Paulista e também o vídeo da

entrevista realizada por Ana Paula Lima, ao jornalista Alexandre Garcia, sobre

os acidentes no trânsito causados por embriaguez ao volante. Esses foram

textos essenciais para compreender os sentidos das propagandas que tratam

do consumo do álcool e os efeitos dele no organismo, bem como as

consequências e as mortes no trânsito causadas pela dobradinha

álcool/direção.

Ao apresentar o projeto para alguns colegas que trabalham na área da

saúde municipal, foi proposta uma parceria entre escola e posto de saúde, pois

o mês de fevereiro é o mês de combate ao alcoolismo. Nesse sentido, a

Secretaria Municipal de Educação, representada pelo Dr. Paulo Marcio Limas

Machado, ministrou palestras aos alunos do Ensino Médio do turno vespertino e

noturno referentes aos efeitos do álcool no organismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso objetivo, neste trabalho, foi desenvolver a prática de leitura dos

alunos da 1ª série C, do Ensino Médio, do Colégio Estadual Tancredo Neves,

do município de São João, problematizando as maneiras de ler, de modo que

fossem menos ingênuos diante dos textos, buscando pelos não-ditos que

atravessam as propagandas que circulam na mídia.

Para dar conta dele, desenvolvemos uma proposta didática de leitura de

textos publicitários, mais especificamente aqueles relativos à cerveja, já que o

consumo dela é frequente entre os alunos e que, não raro, elas apagam os

sentidos sobre os males do seu consumo no organismo humano e também as

consequências nefastas que dele decorrem.

Para desenvolver a unidade didática, utilizamos o respaldo teórico da

Análise de Discurso de orientação francesa, que busca compreender como os

textos significam, por meio da análise das condições de produção dos

discursos e pela relação que se estabelece entre o sujeito, a língua e a história.

Para essa teoria da interpretação, o sujeito está sempre produzindo sentidos

pelo discurso, cuja forma material é a língua, passível de falta e falhas. É por

meio do discurso que o sujeito se significa e significa o mundo.

No decorrer das atividades, procuramos compreender os processos de

formulação dos sentidos, nas materialidades selecionadas, bem como as

múltiplas possibilidades de leitura que delas irrompem. Isso porque, para a AD,

o sentido sempre pode ser outro e isso implica compreender a leitura como um

processo de produção de sentidos, que envolve tanto o sujeito que lê, quanto

as condições sócios-históricas em que o discurso irrompeu.

Além disso, implica também relacionar um discurso a outros que já

circularam ou que ainda estão por vir, porque essa vertente teórica entende

que todo texto remete para outro, que também o constitui. Trata-se, portanto,

de observar como os discursos já feitos e esquecidos retornam, no

intradiscurso, produzindo o efeito do novo.

Buscamos ainda, levar o sujeito-leitor a “ler” os não-ditos que constituem

as materialidades selecionadas, ou seja, aquilo que não está sintagmatizado no

fio do discurso, mas que também colabora para o processo de constituição dos

sentidos. Dizendo de outro modo, antes do desenvolvimento da proposta,

observamos que os alunos não eram capazes de gestos de interpretação que

fossem além daquilo que estava linearizado nos textos, pois buscavam apenas

por aquilo que o autor disse ou “quis dizer”, como se houvesse um único

sentido grafado no texto. Contudo, de acordo com Orlandi (2007, p. 26), ”não

há uma verdade oculta atrás do texto”, mas gestos de interpretação que o

constituem e que o dispositivo teórico da AD permite compreender.

Pensamos que a Análise de Discurso propicia aos sujeitos uma leitura

que supera a análise da materialidade linguística, já que defende a não

transparência da linguagem e a possibilidade de haver mais de uma leitura

para cada texto, resultante da história de leitura do leitor e também do texto, já

que se volta para as condições de sua produção e para o sujeito que a produz.

Assim sendo, cremos que a prática de leitura e de interpretação

embasada na Análise de Discurso proporciona ao aluno uma leitura menos

ingênua, levando-o a compreender que a propaganda constitui um tipo de texto

que alia discursos verbais e não verbais na produção de sentidos e que todo

discurso se estabelece na relação de um já-dito e aponta para outros possíveis

de serem formulados. Ou seja, é uma teoria da leitura que inaugura outros

e/ou “novos” gestos de interpretação, na qual além do dito, o não-dito também

se faz presente no texto e nele significa.

REFERÊNCIAS:

FERNANDES, Célia Bassuma. Entre o mesmo e o diferente: trajetos dos enunciados proverbiais no discurso publicitário. 2010. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Paraná. Disponível em http://www.uel.br/cch/ppgel/index.php?option=com_k2&view=item&id=448:entre-o-mesmo-e-o-diferente-trajetos-dos-enunciados-proverbiais-no-discurso-publicit%C3%A1rio. Acesso em 14-05-2013.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná. Curitiba: SEED, 2008. ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso. Princípios e Procedimentos. 7ª edição. Campinas, São Paulo: Pontes, 2007. ______. Discurso e texto: Formação e Circulação dos Sentidos. 3ª edição. Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2008. ______. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5ª edição. Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 2007. ______. Discurso e Leitura. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2006. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi. 3ª edição. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997a. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997b.

______ e FUCHS, Catherine. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1997. p. 163-252.