os crimes de napoleão

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Os crimes de NapoLeão ______ =. c Os crimes de Sapoleào é um desalio à visão tradicional de Xapoleão como um génio militar e fundador da França moderna." Le Monde Diplomatique Claude RIBBE ATROCIDADES QUE INFLUENCIARAM HITLER

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Cento e quarenta anos antes do holocausto nazista, Napoleão Bonaparte utilizou câmaras de gás embrionárias para exterminar a população das Antilhas, criou campos de concentração na Córsega e em Alba e restabeleceu o tráfico de escravos, provocando a morte de mais de 100 mil africanos nas colônias francesas. O livro descreve as atrocidades pioneiras usadas por Napoleão que vieram a ser empregadas por ditadores como Hitler.

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Page 1: Os Crimes de Napoleão

Os crimesde NapoLeão

•______ =. c

Os crimes de Sapoleào é um desalio à visão

tradicional de Xapoleão como um génio

m ilitar e fundador da França m oderna."

Le Monde Diplomatique

C l a u d e RIBBE

ATROCIDADES QUE INFLUENCIARAM HITLER

Page 2: Os Crimes de Napoleão

Cento e quarenta anos antes do Holocausto nazista,

Napoleão Bonaparte utilizou câm aras de gás e m b rio ­

nárias para exterm inar a população civil das A n tilh as,

criou cam pos de concentração na Córsega e em A lba

e restabeleceu o tráfico de escravos, provocando a

morte de m ais de 10 0 m il africanos nas colónias fra n ­

cesas. Neste polém ico Os crimes de N apoleão , o h isto ­

riador Claude Ribbe expõe as atrocidades p ion eiras

praticadas pelo im perador da França, anos depois a s ­

sim iladas por ditadores como A dolf H itler.

ISBN 978-85-01-07758-5

8 5 0 1 0 7 7 5 8 5

Page 3: Os Crimes de Napoleão

A partir de 1802, uma série de atrocidades

contra os africanos e as populações de origem

africana nas colónias francesas teve início.

Por ordem do imperador Napoleão Bonaparte,

milhares foram torturados, massacrados e

escravizados. Apesar de a Revolução ter tornado

ilegais a escravidão e 0 tráfico de escravos oito

anos antes, Napoleão não hesitou em mantê-

los em suas possessões antilhanas. E como a

resistência dos haitianos, após a luta heróica dos

guadalupenses, impossibilitou a aplicação de seu

programa na principal daquelas colónias, então

denominada Saint-Domingue. ele perpetrou

massacres cujo caráter genocida não somente é

inquestionável, como prefigura de modo óbvio

— em especial devido aos métodos empregados

— a política de extermínio executada contra

judeus e ciganos durante a Segunda Guerra

Mundial, quase um século e meio depois.

Ribbe argumenta que alguns dos homens de

Napoleão recusaram-se a seguir suas ordens e

mais tarde descreveram os massacres em jornais

e diários. Em Os crimes de Napoleão, o historiador

incorpora esses relatos relegados pela história

oficial e desenvolve uma tese polémica. Quando

foi lançado na França, onde a figura de Napoleão

é emblemática, o livro foi motivo de intenso

debate. "Quero que os franceses saibam

exatamente 0 que aconteceu naquele período” ,

esclareceu o autor em entrevista a um jornal

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britânico. "Quanto ao que Napoleão fez de bom,

isto é irrelevante. Hitler fomentou a construção

de auto-estradas e o desenvolvimento da

indústria automobilística; devemos por isso

desculpá-lo por seus crimes de guerra?"

Em Os crimes de Napoleão, Glaude Ribbe detalha

os métodos brutais empregados pelo soberano

francês para conter as revoltas de escravos.

O objetivo era "exterminar todos os negros

com mais de 12 anos” . Entre os expedientes

utilizados, 0 afogamento, a asfixia em câmaras de

gás embrionárias e os massacres em campos de

concentração. Em um relato perturbador, Ribbe

narra casos particulares e expõe 0 lado mais

sombrio de um dos baluartes da França.

C l a u d e R i b b e é historiador, filósofo e defensor

da memória dos escravos. Durante três anos.

integrou a Comissão Nacional dos Direitos do

Homem francesa.

CAPA: SÉKGIO GAMPANTE

I m a g e m d e c a p a : N a p o l e ã o B o n a p a b t e p o r A n d r e a A p p i a n i

Page 5: Os Crimes de Napoleão

Claude RIBBE

Os Crimes^deNapoLeao

Tradução de S. DUARTE

______________ A ______________E D I T O R A R E C O R D

R IO DE J A N E I R O • SÃO PAULO

2008

Page 6: Os Crimes de Napoleão

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Ribbe, Claude, 1954- R364c Os crimes de Napoleão / Claude Ribbe; tradução de S.

Duarte. - Rio de Janeiro: Record, 2008.

Tradução de: Le crime de Napoléon ISBN 978-85-01-07758-5

1. Napoleão I, Imperador dos franceses, 1769-1821 - Crime contra o escravo. 2. Napoleão I, Imperador dos franceses, 1769-1821 - Influência. 3. Imperadores - França - Biografia. 4. Escravos - Antilhas - História - Século XIX. I. Título.

CDD - 306.3620944 08-0228 CDU - 316.344

Título original em francês:LE CRIME DE NAPOLÉON

Copyright © Editions Privé, 2005 para Le crime de Napoléon

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasiladquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina 171 -R io de Janeiro, R J - 20921-380-Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-07758-5

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 EDITORA AFILIADA

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Aos que resistem, aos escravos fugitivos, aos que escaparam nos bosques de Guadalupe

e aos rebeldes antilhanos da liberdade.

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tu, posteridade! Dedica uma lágrima a nossas desgraças, e morreremos contentes.

Louis Delgrès

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I

Napoleão, criminoso? Imagine só! A idéia é tão cho­cante quanto a palavra. Dizem que o número de livros es­critos a respeito dele é igual ao número de dias que se passaram depois de sua morte. Será que nenhum desses li­vros trata de seus crimes? Muitas dessas obras se destinam às crianças. Seria possível que um criminoso lhes servisse de exemplo? E os tratados de história nada diriam a respei­to disso? E todos esses institutos, fundações e associações que se apegam ruidosamente à perpetuação da memória do imperador: seria possível imaginar que os eminentes académicos que os sustentam teriam coragem de louvar um culpado? E que dizer desses filmes, no cinema, na tele­visão, realizados com altas somas do dinheiro público proveniente de impostos ou de adiantamento sobre a re­ceita, que fazem de Napoleão um herói sem defeitos, um modelo para os franceses? Se Napoleão tivesse cometido algo grave, alguém ousaria negá-lo com tal impudência, com tanto desprezo por suas vítimas?

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No entanto, esta não é uma provocação. Nem sequer uma brincadeira. Napoleão, infelizmente, é mesmo um criminoso. E mais: um criminoso da pior espécie, porque o crime não é pequeno. É um crime contra a humanidade— um crime tríplice. Não nos equivoquemos, esta não é uma acusação contra os delitos de um homem já contro­vertido sob muitos aspectos: a quantidade de mortos que ficou nos campos de batalha, os crimes de guerra cometi­dos sistematicamente durante as campanhas, os assassina­tos, o enriquecimento pessoal. Escritores e artistas — e às vezes não insignificantes: Tolstoi, Goya— já desbravaram o caminho.

O crime de que falo é precisamente o que foi cometi­do a partir de 1802 contra os africanos e as populações de origem africana deportados, escravizados e massacrados nas colónias francesas. Nelas, Napoleão restaurou a escravidão e o tráfico que a Revolução havia colocado fora da lei oito anos antes. E como a resistência dos haitianos, após a luta heróica dos guadalupenses, tomou impossível a aplicação de seu programa na principal da­quelas colónias, a de Saint-Domingue,* ele perpetrou massacres cujo caráter genocida, como veremos, não so­

* Assim se chamava a colónia francesa estabelecida na ilha que é hoje compartilhada por dois países independentes: Haiti e República Domi­nicana. O tradutor conservou a denominação Saint-Domingue nas refe­rências à colónia, pois na época ainda não existiam aqueles dois países. Manteve também os topónimos originais, exceto os mais conhecidos no Brasil, como, por exemplo, Porto Príncipe. (N. do T)

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mente não pode ser posto em dúvida mas prefigura de maneira evidente — especialmente devido aos métodos empregados — a política de extermínio executada con­tra judeus e ciganos durante a Segunda Guerra Mundial. Sabe-se que em 1945 os estatutos do tribunal militar in­ternacional de Nuremberg qualificaram com clareza a escravização ou a deportação de populações civis como crime contra a humanidade e que o conceito de geno­cídio, forma extrema do crime, foi utilizado para designar a exterminação programada de um grupo humano. Mas o caráter imprescritível da escravidão e do tráfico já era percebido havia muito. Desde 1778, um magistrado bretão, Théophile Laennec, pai do famoso médico, não hesitou, em corajosa acusação, em denunciar esse vergo­nhoso tráfico, “contra o qual a humanidade reclamará em todos os tempos seus direitos imprescritíveis”.

No caso de Napoleão, retomando a definição de Nuremberg, trata-se portanto realmente de um crime tríplice, porque o genocídio se acrescenta à escravização e à deportação. O crime é de tal forma imperdoável que provocou mais de dois séculos de mentiras. Isso porque os fatos são bem conhecidos dos historiadores, porém mantidos voluntariamente em silêncio: medo de dizer a verdade, ou pior, aprovação. Nem a escravização e a de­portação de cidadãos franceses, nem a escravização e deportação de africanos, nem o genocídio perpetrado contra a população haitiana são explicitamente mencio­

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nados nos livros, nos manuais de história, nas obras audiovisuais, nas exposições e tampouco nos espetáculos dedicados a Napoleão. E se por acaso o restabelecimento da escravidão é mencionado, nunca se afirma que as pes­soas visadas eram cidadãos franceses. Quanto ao genocídio cometido por Napoleão no Haiti, trata-se de um tabu absoluto.

É verdade que desde a monarquia de Julho os regimes políticos adquiriram o hábito de impor à França o culto do ditador. Adolphe Thiers, por exemplo, que mandou fuzilar 35 mil parisienses da Comuna e tomou-se presidente da República graças à invasão prussiana, é também autor de uma volumosa História do Consulado e do Império. Quando foi primeiro-ministro de Luís Filipe, Foutriquet— esse era seu sobrenome — tratou de cercar Paris de fortes cujos canhões poderiam ser dirigidos tanto contra a cidade quanto para o exterior. Teve também a idéia dos três mo­numentos parisienses dedicados à glória do aventureiro negrófobo: uma estátua do tirano, cujo sucedâneo ainda se encontra no alto da coluna Vendôme, o Arco do Triunfo e o mausoléu dos Invalides que inspiraria os re­gimes autoritários do século XX, todos preocupados em santificar seus ditadores depois de mortos.

Para Thiers, além da ajuda por ocasião do nascimen­to do partido bonapartista na França, o qual, efetiva- mente, iria levar ao poder, durante 22 anos, o sobrinho do “herói”, era preciso dourar novamente a imagem de

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um regime desacreditado e, além das fronteiras, recordar a dimensão colonial de uma França escravista que já so­nhava em estender a todo o norte da África, custasse o que custasse, o domínio que pouco antes começara a exercer sobre a Argélia. Apesar do exemplo da Inglater­ra,jmdejijiboliçãohav^^França de Luís Filipe ainda se agarrava desesperadamen­te à escravidão.

A idolatria bonapartista atingiu naturalmente seu apogeu com a ditadura de Napoleão III.

Apesar do advento da República, o país não se curou dessa enfermidade. Hoje em dia, fundações e associações continuam a trabalhar, com apoio da Universidade, de recursos públicos e da televisão estatal, em prol da per­petuação da gloriosa lembrança do homem que restabe­leceu a escravidão na França. As associações particulares tampouco descansam. Assim, a herança deixada por Martial Lapeyre, o rei da madeira “exótica”, permitiu o lançamento da Fundação Napoleão, em 1987, que se instalou na suntuosa mansão do mecenas. A Fundação Napoleão é muito ativa na perpetuação da memória de seu herói. Mas os livros e os espetáculos aos quais ela atribui prémios nunca falam de crimes, e a palavra escra­vidão é geralmente banida ali.

É preciso saber que é na África que a empresa La­peyre encontra boa parte de sua madeira “exótica” e que — mediante uma de suas filiais na Amazónia — ela

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a revende até mesmo no Haiti, onde a derrubada das florestas começou com a expedição escravista de 1802 e cresceu a partir de 1825, quando a França exigiu, sob ameaça de reconquista, uma indenização de 90 milhões de francos-ouro pelos escravos que os colonos haviam perdido. A madeira era uma das principais riquezas do Haiti. Hoje não resta uma árvore sequer.

Como todos os franceses, fui educado no culto do imperador e, no meu curso escolar, o déficit das deso- nestidades impossíveis de dissimular era compensado com os lucros das instituições que teriam sido legadas por ele à França. Afirmava-se que, após o período con­turbado da Revolução, ele teria permitido a consoli­dação do país. E ainda por cima todos os manuais de história citam o ano de 1802 como um dos períodos mais felizes, o ano da “paz”. Quem não se recorda da imagem de Épinal, que ilustra os livros escolares e mos­tra o Primeiro Cônsul recolocando a espada na bainha, com o povo ao fundo entusiasmado por ver finalmente terminadas suas vicissitudes? Assim, todos se con­vencem de que 1802 foi pacífico, quando, nesse mesmo ano, houve uma guerra atroz, uma loucura genocida sem precedentes; quando, nesse mesmo ano, 250 mil franceses foram escravizados. Seus descendentes repre­sentam hoje uma parcela que poderia ser estimada em três a quatro por cento da população da França, o que não é insignificante. Mas convencionou-se que não se deve

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falar sobre isso. Não falar nem dos descendentes nem de seus ancestrais. Sua história é um dos maiores silên­cios franceses. O mesmo ocorre com a história do povo do Haiti, que ainda sofre na carne por haver ousado re­sistir ao restabelecimento da escravidão, triunfar e pro­clamar sua independência. Em 1802 o Haiti era uma parte da França denominada Saint-Domingue. Sua po­pulação era essencialmente composta de homens que se haviam libertado a si mesmos, onze anos antes, de ar­mas na mão. A Convenção fez deles cidadãos franceses integrais. Vários eram generais. Seu governador se cha­mava Pierre-Dominique Toussaint, apelidado Louver- ture. Mas para eles, como para todos os demais franceses “negros” das outras colónias, Napoleão havia resolvido retornar ao antigo regime: o convés do navio negreiro, o ferro em brasa, o chicote, o estupro, a morte rápida no trabalho sob o sol. Tudo isso devido à nostalgia dos ve­lhos tempos, quando cada um dos 500 mil escravos da­quela ilha, que era chamada de “pérola das Antilhas”, sustentava seis franceses.

Duzentos anos depois, a República finalmente reco­nheceu, pela lei de 10 de maio de 2001, que a escravidão era um crime contra a humanidade. Naturalmente, a lei votada não manteve a proposta inicial que previa uma comissão de personalidades qualificadas encarregada “de determinar o preconceito sofrido e examinar as condi­ções da reparação devida por esse crime”. A lei previa

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sanções penais contra quem contestasse o caráter cri­minoso da escravidão e do tráfico europeu. De fato, a comissão reunida em 14 de janeiro de 2004 em cumpri­mento da lei ocupou-se sobretudo — laboriosamente — de definir uma data para a comemoração da abolição da escravatura, aparentemente sem saber ou sem querer re­cordar-se de que essa questão já havia sido resolvida há muito por Pierre Thomany, “homem de cor” e deputado francês por Saint-Domingue no Conselho dos Quinhen­tos. Desde 3 de fevereiro de 1799, Thomany propusera a

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data de 4 de fevereiro (16 de pluvioso*) para comemorar a libertação geral. Essa data recordava o dia em que, cinco anos antes, a Convenção abolira incondicio­nalmente a escravidão. Tòussaint Louverture a mantive­ra e, para marcar a comemoração de 4 de fevereiro de 1801, ele anunciou seu projeto de Constituição para Saint-Domingue, ocupou a parte espanhola da ilha e aí proclamou a liberdade. Napoleão desprezava tanto essa data que, por provocação, seu cunhado Leclerc justa­mente a escolheu para restabelecer a ordem escravista no Haiti. Na noite de 3 para 4 de fevereiro de 1802 ele desembarcou no Cabo (Cap Haitien),** e o general

*A Revolução francesa abandonou o calendário gregoriano e deu aos meses novos nomes, relacionados ao clima e às colheitas típicas de cada época. (N. do T)* *A cidade de Cap Haitien é referida no original simplesmente como Cap. O tradutor optou por usar em português a palavra Cabo para desig- ná4a. (N. do T.)

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Henry Christophe, apesar de tudo, festejou a abolição in­cendiando a cidade.

A lei de 10 de maio de 2001 não deixou de estabe­lecer o caráter juridicamente imprescritível do crime. Portanto, o tempo não pode apagá-lo. Dois séculos? Pouco importa. Tanto mais quando os descendentes dos franceses que Napoleão devolveu, ou quis devolver à escravidão, continuam ainda a sofrer suas consequên­cias. E fácil verificar que os oriundos dos departamen­tos de ultramar descendentes de escravos não são cidadãos integrais, mas cidadãos integralmente à parte da cidadania, e são de fato cidadãos à parte, sem ver­dadeira representação numa sociedade mais do que nunca permeável aos preconceitos. Um duplo isola­mento os petrificou numa situação de inferioridade social e de abandono que seria inútil tentar negar: iso­lamento geográfico e isolamento devido à aparência. Isolados, na verdade, em suas ilhas ou em suas selvas. Não como os corsos, e sim muito longe, em algum lugar— não se sabe bem onde — do outro lado dos mares. Quanto à cor de sua pele, ela demonstra suficientemen­te que não foram assimilados ao povo colonizador. Mes­mo quando vêm à França, continuam a ser o que são: “negros”, “gente de cor”. São indesejáveis, exceto em certos prédios de caráter social do setor norte de Paris, onde já ficam outros franceses “diferentes”. Na melhor das hipóteses, contraem dívidas para construir casas.

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São funcionários públicos porque as empresas não querem ter empregados negros, e são proprietários de casinhas compradas a crédito porque na metrópole so­mente “brancos” conseguem alugar moradias.

Sabe-se que em diversas dessas ilhas que já foram escravistas — especialmente a Martinica — alguns des­cendentes de colonos consideram questão de honra conservar a pele branca, e portanto permanecem viven­do entre si. Chegam mesmo a exibir o estandarte de seus ancestrais, com quatro serpentes.* É um apartheid que vem desde o século XVII! Pelo menos trata-se de gente de convicções muito firmes.

Os descendentes de escravos são esquecidos, tanto mais porque seus passaportes os declaram cidadãos fran­ceses. Oficialmente, portanto, eles nada têm a reclamar: havendo-lhes sido “outorgada” uma liberdade que na verdade já haviam conquistado, já teriam obtido tudo. A prova é que a República, tão orgulhosa da abolição de 1848, sempre deixa de recordar que considerou legítimo entregar naquela ocasião 126 milhões de firancos-ouro aos senhores de escravos para indenizá-los de algo que alguns funcionários, ainda hoje, não se envergonham em chamar de “espoliação”. Os herdeiros dos africanos se­riam quase devedores do passaporte que os policiais da metrópole examinam com suspeita não dissimulada em

*A s quatro serpentes figuram no escudo de armas da Martinica desde o século XVIII. (N. do T)

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Orly ou Roissy. Decididamente, na França, a fim de ter os documentos em ordem, quase valeria mais ser sene- galês ou camaronês do que antilhano, guianense ou da ilha da Reunião. Quando se fala dos “negros” da França, raramente se trata de descendentes de escravos: são pre­feridos os filhos ou filhos de gente importante dos países subsaarianos dedicados à República, dispostos a reco­nhecer-se descendentes dos “verdadeiros” negreiros, pois a moda, a partir do século XVIII, nos países escra­vistas é dizer que esses foram os próprios africanos. Dos dois males, o menor, e a França, afinal de contas, tem menos vergonha de recordar a colonização do que a es­cravatura. Claro que esta foi abolida, mas o essencial per­manece: o racismo, isto é, a aplicação aos homens da noção agrícola de “raça”, que somente serve para a cria­ção de animais. Embora isto possa descontentar aqueles que desejariam inscrever esse flagelo na natureza das coi­sas e na substância dos homens, a verdade é que não foi o racismo que produziu a escravidão, e sim precisamente oinverso. Quem deseja acorrentar seu semelhante sempre o acusa de ser diferente, e portanto já inferior. Fala-se em “respeitar as diferenças”. Mas não serão os homens todos semelhantes?

O racismo tem uma história. Foi importado para a França pelos colonos das Antilhas na ocasião em que cres­cia a oposição à escravidão, isto é, exatamente na época da ascensão de Luís XVI ao trono. Na época a contestação

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era tão vigorosa que o próprio rei pensou em abolir essa monstruosa instituição. A reação não se fez esperar, e a de­bilidade do monarca não tardou em permitir a elaboração de um regulamento discriminatório que Napoleão apre­ciou gostosamente, a ponto de recolocá-lo em vigor e até mesmo reforçá-lo. Quanto ao racismo, ele lhe daria foros de nobreza e lhe abriria — explícita ou implicitamente — as portas da Universidade.

No entanto, faz pouco tempo que a escravidão é crime imprescritível na França. Mas um crime imprescritível muito peculiar. Não há culpados, e portanto não há castigo. Não há reparações para os descendentes das vítimas, dos quais um quarto é constituído de desempre­gados, enquanto os herdeiros dos 126 milhões de francos (alguns bilhões de euros de hoje) entregues pela Repúbli­ca aos senhores de 1848 não se queixam de uma vida de privações e estão bem representados nos meios dominan­tes da informação, da cultura e da política. E não só para eles o crime compensa. Que família francesa burguesa cuja opulência seja anterior à primeira metade do século XIX poderia orgulhar-se de não possuir algum ancestral negreiro ou detentor de ações de empresas negreiras, o que dá no mesmo? Que família de Bordeaux que viva honradamente com a produção de vinhos poderia asse­gurar que não haja alguns cadáveres de “negros” ocultos por trás das garrafas, no fundo de suas adegas? Que ban­co, que empresa de seguros não tem um pouco do sangue

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e do suor da África ou das Antilhas em seus pergaminhos? Seria interessante estudar as consequências económicas, sociais, culturais e morais da escravidão na França.

Um crime imprescritível, mas que não é proibido contestar nem mesmo negar. Hoje em dia alguns acadé­micos não deixam de fazê-lo, com absoluta impunidade e até com o apoio não dissimulado de mais de uma ins­tituição.

Em suma, porque viveu da escravidão e não quer admiti-lo, porque o Diretório se prostituiu diante de Bonaparte, a França permaneceu racista, como qual­quer descendente de escravos pode facilmente verificar ao transitar pelas ruas. No século XXI, nos bairros ele­gantes de Paris, onde se alinham ainda as antigas resi­dências dos colonos de Saint-Domingue, os “negros” são tolerados somente para atemorizar na entrada dos estabelecimentos comerciais de luxo e as “negras” so­mente para empurrar os carrinhos dos bebês “brancos”.

A escravidão e o tráfico de pessoas são crimes con­tra a humanidade, e portanto imprescritíveis. Mas por que acusar Napoleão, que talvez nada mais tenha feito a não ser restabelecer o estado de coisas, sem nada in­ventar? Sem dúvida, outros poderiam pagar, se não em seu lugar, pelo menos em sua companhia. Talvez quase fosse possível esquecer Napoleão se, à medida que o ra­cismo se banaliza devido à evolução das técnicas de co­

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municação e propaganda, não assistíssemos a um estra­nho renascimento de um fervor bonapartista que coin­cide exatamente com a admiração pela extrema direita e com o crescimento de seus ganhos eleitorais.

O fascínio dos fascistas pelo ditador francês não é novo. É tempo de advertir aqueles que, nas grandes ocasiões, gostam de colocar o chapéu dos soldados do Primeiro Império de que agora terão de assumir seus inconfessáveis antecessores. Isso porque os dois maiores admiradores de Napoleão foram Adolf Hitler e Benito Mussolini, os quais, como ninguém pode ignorar, fizeram do racismo um programa, mais do que uma doutrina.

Benito Mussolini distinguiu-se ao inspirar II Campo di Maggio (O campo de maio), uma peça de teatro que glori­fica Napoleão. Hitler a mandou traduzir para o alemão com o título de Hundert 1age (Os cem dias), para que fos­se representada com todo o fausto necessário. Em feverei­ro de 1932, durante a estréia, uma solenidade nazista como poucas, ele homenageou a irmã de Nietzsche levan­do-lhe no camarote uma cesta de rosas vermelhas. A peçaé tão convincente, sem dúvida, que em 1934 Hitler foi co­—-------- 7produtor de uma adaptação para o cinema em cooperação com a Itália, sempre com o título de Hundert 1age, dirigida por Franz Wensler, cineasta nazista que trabalhava em co­laboração com Goebbels. O próprio Mussolini participou da direção da versão italiana, da qual seu filho foi o produ­tor. II Campo di Maggb, segundo Mussolini, uma glorifica-

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Ção do fascismo em que Napoleão é explicitamente com­parado ao Duce, foi aliás projetado em Ajaccio com grande pompa, em 24 de junho de 2004, por ocasião do Primeiro Salão do Livro Napoleônico, organizado no qua­dro do bicentenário de sua sagração como imperador!

Poucos dias depois de haver posto a França fora de combate — não a França heróico-fascista de Napoleão que admirava, e sim a França republicana, parlamentar e “negrificada” que desprezava — Hitler deixou discre­tamente a Bélgica e aterrissou em Le Bourget numa madrugada de um belo verão. Qual era o objetivo dessa viagem? Visitar Paris, ao que se afirma. Sem dúvida, ele esteve na Opera e passeou pela esplanada do Troca- déro, acompanhado pelo arquiteto Albert Speer, adep­to da escravização dos judeus, e pelo escultor nazista Amo Brecker. A foto do sinistro bigodudo como turista é famosa. Na verdade, Hitler foi a Paris para realizar um sonho: reverenciar o túmulo de seu mestre, o homem que colocou os “negros” em seu lugar, isto é, os acor­rentou, o herói que entregou aos cães os que resistiam e fechou as fronteiras para os que eram livres, o homem glorioso que empreendeu a exterminação dos recalci­trantes usando gases venenosos. Numa palavra, o pre­cursor que, sem dúvida pela primeira vez na história da humanidade, dedicou-se racionalmente à questão de sa­ber como eliminar num mínimo de tempo, com um mí­nimo de despesas e um mínimo de pessoal, o máximo de pessoas cientificamente declaradas inferiores.

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Sem o precedente de Napoleão, não haveria as leis de Nuremberg. Hitler sabia disso. Sabia o que iria fazer mais tarde com os judeus, que segundo ele descenderiam dos “negros” e teriam utilizado estes últimos a fim de corrom­per o “sangue ariano”, que era preciso a qualquer custo preservar da mistura. Pois “nunca um homem com algu­ma instrução argumentou que as espécies não mescladas degenerassem”, como já dizia Voltaire, o mais virulento anti-semita e negrófobo da literatura européia. Hitler, que o lera (conhecemos os ecos através de seus vulga- rizadores, os teóricos do racismo francês), fez desse pre­conceito uma verdade histórica: “A história mostra com terrível evidência que sempre que um ariano misturou seu sangue com o de povos inferiores, o resultado dessa mestiçagem causou a ruína do povo civilizador.”1

Por isso, naquele 28 de junho de 1940 o Fiihrer en­vergou seu uniforme de gala e, vestido inteiramente de branco — símbolo revelador —, foi curvar-se, reveren­temente, sobre a tumba do imperador, aquele incom­preendido que teve a coragem de instaurar um racismo de Estado. Rendia homenagem a Napoleão, digno leitor de Voltaire, e apoiou-se em seu exemplo para concla­mar à purificação aquele país que se tomara decadente devido aos Rassenmischer, pois, “se a evolução da França prosseguisse no estilo atual durante mais trezentos

'Mein Kampf (Minha luta).

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anos, os últimos resquícios do sangue franco desapare­ceriam no estado mulato afro-europeu cuja constitui­ção se encontra em curso”. Para os que não tivessem compreendido essa mensagem, embora explícita, Hitler mandou repatriar alguns meses mais tarde, vindas de Schõnbrunn, as cinzas do Aiglon. Os restos mortais do filho do criminoso foram igualmente depositados nos Invalides, levados por nazistas com capacetes de com­bate. O Fiihrer foi imitado por dezenas de milhares de soldados da Wehrmacht que se dirigiram em peregrina­ção a fim de saudar o primeiro ditador racista de todos os tempos, a tal ponto que foi necessário instalar um assoalho falso para que as botas nazistas não estragassem o mármore dos Invalides, como atesta Jean Éparvier, com documentação fotográfica, numa obra publicada por ocasião da Libertação, À Paris sous la botte des nazis (Em Paris sob as botas dos nazistas).

O fato é que Hitler conhecia a história da França me­lhor do que muitos franceses. A prova é que foi dada or­dem de fazer desaparecer a única estátua de “negro” que jamais foi vista numa praça pública parisiense, a do gene­ral Dumas, herói da Revolução, nascido escravo no Haiti e primeiro descendente de africanos a tomar-se general do exército francês. Dumas, esse “macaco” que, em 15 de agosto de 1789, seduziu uma mulher “branca”, para cú­mulo loura de olhos azuis, no pátio do castelo de Villers- Cotterêts, exatamente onde 250 anos antes Francisco I

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conferiu à língua francesa foros de nobreza por meio do famoso édito. Dumas, esse “vil animal”, que ousou to­cá-la e gerar com ela um filho que se tomaria o escritor francês mais lido em todo o mundo. Dumas, que iria comandar sob as ordens de Saint-George a Legião fran­ca dos americanos e do Sul — isto é, de antilhanos e africanos —, um batalhão negro, precursor dos artilheiros senegaleses que a França teria enviado em 1918 para ocupar a Alemanha e violar as “arianas”. Os artilheiros senegaleses que Hitler, na mais pura tradição napoleô- nica, deu ordem para que fossem sistematicamente exe­cutados quando capturados vivos, a fim de vingar-se da “vergonha negra” imposta à Alemanha. “A França”, vo­cifera o admirador de Napoleão em Mein Kampf, “é e será o inimigo que mais temos a temer. Esse povo, que cada vez mais se rebaixa ao nível dos negros, coloca secretamente em perigo, por meio do apoio dado aos judeus em seu objetivo de chegar ao domínio universal, a existência da raça branca na Europa. Pois a contami­nação provocada pelo afluxo de sangue negro ao Reno, no coração da Europa, serve bem tanto à sede de vin­gança sádica e perversa desse inimigo hereditário de nosso povo quanto aos frios cálculos dos judeus, que vêem nisso a forma de iniciar a mestiçagem do conti­nente europeu, e assim, infectando a raça branca com o sangue de uma baixa humanidade, lançar os alicerces de sua própria dominação.”

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Dumas! Que símbolo insuportável da “negrifica- ção” francesa! A estátua daquele que os “arianos” da

Áustria, aterrorizados e humilhados por suas façanhas, chamavam de schwarze teufel, o diabo negro, seria des­montada e destruída pelas autoridades francesas por ordem de Berlim. E isso não é o mais vergonhoso. O mais vergonhoso é que foi preciso esperar mais de ses­senta anos após a libertação de Paris (aliás, por tropas vindas da África) para que fosse decidida — a ins­tâncias minhas — a recolocação da estátua em seu lu­gar. No entanto, em 2002, o escritor Dumas entrou no Panteão. Em certos discursos, porém, foi denominado “mulato” ou quartercm,* conforme a terminologia clas­sificadora de Moreau de Saint-Méry e de negreiros da mesma espécie, preocupados com a “proporção” de “sangue negro” de um indivíduo suspeito de ascendên­cia africana, quando esse indivíduo tem aparência eu- ropéia: suspeita doentia que se encontra nas teorias racistas e anti-semitas do III Reich.

Sim, Dumas entrou no Panteão sem que alguém se dignasse a render a seu pai a brilhante homenagem que ele, no entanto, bem merecia. Exceto no Senado, mas bem distante das câmeras de televisão do Estado, pois, ao que se dizia, os franceses não estavam “preparados”. Ao general Dumas, que arriscou sessenta vezes a vida pela

^Descendente de segunda geração. (N. do T.)

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França, a República recusou — apesar de minha reivin­dicação — a Legião de Honra a título póstumo. E ver­dade que a Legião de Honra foi criada por Napoleão na véspera do restabelecimento da escravidão e que, com perfeita lógica, a Quinta República, cuja Constituição, em seu artigo I, afirma solenemente a pertinência da noção absurda de “raça humana”, não poderia conde­corar um general negro nascido escravo, ainda que esti­vesse morto havia duzentos anos. Aliás, os guardiães do templo napoleônico trataram de apagar sua memória. Quando se lê, por exemplo, a maioria das obras dedi­cadas à expedição ao Egito, é possível questionar seria­mente se o general Dumas realmente participou dela e se era mesmo o comandante-em-chefe da cavalaria do Oriente. Quando, por acaso, ele é citado, sua origem não é mencionada. No máximo, fala-se de sua “força hercúlea”, sua “juventude tumultuosa” e seu “caráter in­quieto”. Em suma, uma espécie de primata fugido da jaula, difícil de dominar, sem dúvida adepto do sexo e particularmente malcheiroso, como exigem os estereóti­pos animalescos que fazem brilhar mais do que nunca na França contemporânea os histriões negrófobos e os tri­bunos populistas.

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II

Em 18 de brumário do ano VIII — 9 de novembro de 1799 pelo calendário gregoriano— NapoleãoBonaparte entrava para a história política. O homem sabia o que queria. Dois anos antes confessara a André-François Miot, embaixador do Diretório na Itália: “O que fiz até agora não é nada [...]. Estou apenas no início da carreira que percorrerei [...]. ANação precisa de um chefe!”1 Um chefe, um duce, um Fuhrer!

Já que havia um lugar a ser ocupado, o “chefe” aban­donou no Egito o exército que o Diretório lhe confiara— em condições mais do que discutíveis e aliás discuti­das por seus lugares-tenentes Kléber e Desaix, dois ar­dentes republicanos. Isso não lhes traria sorte. Ambos desapareceriam poucos meses apenas após o golpe de Estado. E no mesmo dia: um deles assassinado em cir­cunstâncias obscuras por um “fanático” evidentemente

‘Miot de Mélito, Mémoires.

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muçulmano e imediatamente empalado; o outro morto ao liderar um ataque na batalha de Marengo (com uma bala francesa pelas costas, dizem as más línguas). O “chefe” regressou à França a fim de tomar o poder da ma­neira mais brutal e mais grosseira possível. “Tirem essa gente daqui!”, gritaram os homens do caxd mediterrâneo, mostrando os eleitos pelo povo francês como alvos para seus artilheiros. Deve-se dizer que entre esses eleitos havia “negros”: Etienne Mentor e Jean-Louis Annecy. Também havia “homens de cor”: François Boisrond, Jean-François Pétiniaud, Jacques Tonnelier e Pierre Thomany, o homem que ousou solicitar que a data de 4 de fevereiro fosse feriado nacional nas colónias. O Diretório chegara até mesmo a enviar o quarteron Julien Raimond em missão a Saint-Domingue. Essa presença africana no parlamento francês não se reproduziria tão cedo. Desde a Revolução, no entanto, tinha havido uma relativa integração de ex-escravos e seus descendentes na sociedade metropolitana. A emigração de oficiais do Antigo Regime, os distúrbios em Saint-Domingue, a ne­cessidade de retomar Guadalupe aos ingleses possibili­taram a alguns deles carreiras rápidas e prestigiosas no exército republicano, no qual os generais “negros” ou “de cor” não são raros: assim foram os generais-de-divisão Alexandre Dumas e Pierre-Dominique Toussaint Lou- verture e os generais-de-brigada Martial Besse, Baptiste 1’Éveillé, Jean-Louis Villate e André Rigaud. Isso sem

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contar os oficiais superiores originários da África subsa- ariana. Era o início da França “negrificada” que causava náuseas igualmente em Hitler e em Napoleão.

Três antigos escravos marcaram especialmente esse final do século XVIII. Poucos meses antes de 18 de brumário, dois deles saíram de cena. Morreu Joseph de Bologne, o “Cavaleiro de São Jorge”, esgrimista e com­positor nascido escravo em Guadalupe que se tomou chefe-de-brigada no comando do 13s de Caçadores. Somente colocara a serviço da Revolução sua espada, e não seu arco de violinista. Mas a homenagem póstuma que a imprensa unanimemente lhe prestou em junho de 1799 revela claramente a opinião da época. Não se per­cebe nenhuma reserva quanto à origem africana do mú­sico, que no entanto ninguém poderia ignorar.

O amigo do Cavaleiro de São Jorge, o general-de- divisão Alexandre Dumas, nascido escravo no Haiti, foi feito prisioneiro pelo rei de Nápoles, na Itália.

Resta Toussaint Louverture, também nascido escravo dos franceses no Haiti. Esse homem realizou uma façanha que permaneceria fora do alcance de Napoleão: venceu os espanhóis e os ingleses. Estes últimos deixaram pelo me­nos 50 mil mortos em Saint-Domingue. Nomeado go­vernador da colónia pelo Diretório, Toussaint se opôs a Rigaud, rival desprezível que controlava o sul da ilha. Ven­cido Rigaud, Toussaint Louverture dominou o Haiti e, se não tomassem cuidado, seria o dono das Américas.

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Com o título pomposo de Primeiro Cônsul, assistido por dois insignificantes acólitos, Napoleão se trans­formou de desertor em “chefe” absoluto do país, cum­prindo a predição que fizera a Miot. A ditadura duraria quinze anos, mas a idolatria durou mais de dois séculos. Além da França e da Europa, o objetivo de Napoleão — como o de Hitler mais tarde — era dominar o mundo inteiro. A “inferioridade” dos africanos e sua utilização para a prosperidade do “reich napoleônico” eram a base do sistema sonhado por Bonaparte e que ele, infeliz­mente, procurou aplicar.

No momento do golpe de Estado, já fazia mais de oito anos que “todo indivíduo é livre no momento em que ingressa na França”, e “todo homem, de qualquer cor, goza na França de todos os direitos de cidadão, se tiver as qualidades prescritas pela Constituição para exercê-los” (lei de 16 de outubro de 1791). Nas colô- nias, a escravidão é proibida mediante a aplicação do decreto de 16 de pluvioso do ano II (4 de fevereiro de 1794), adotado por aclamação e sem tergiversações, ten­do o deputado por Eure-et-Loir Jean-François Delacroix decidido com nobreza a questão: “Presidente, não permi­ta que uma discussão prolongada desonre a Convenção! ”

Ainda que tenha sido preciso esperar 27 de julho de J 793 para a abolição das bonificações de estímulo pagas pela Nação ao tráfico negreiro, este foi oficialmente interrompido no sentido das Antilhas francesas e da

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Guiana, para grande desespero dos “negociantes” e armadores dos portos da França. Isso não impediu que em 1799 o negreiro Jean-François Landolphe, antigo ̂ —comandante do navio Pérou, que partira em 1785 de Rochefort para o Benin e que chegou ao Cap Haitien com 91 cativos vivos dos 313 embarcados, se transfor­masse em explorador e expedisse à força para uma “plantação nacional” da Guiana, na qualidade de livres, uns trezentos escravos africanos capturados de um bar­co negreiro inglês. Sem dúvida essas façanhas lhe vale­ram dar seu nome a uma rua de Auxonne (Yonne) onde Napoleão, que na época pertencia à guarnição local, es­creveu que seus futuros súditos eram “o povo mais hor­rendo que jamais existiu”. Landolphe!* Somente um caso, entre tantos outros, de um negreiro homenageado na atualidade por franceses “bem-pensantes”.

Desde 1793 a guerra contra os ingleses paralisava anavegação e afinal de contas o decreto adotado pelaConvenção para oficializar a situação insurrecional doHaiti não mudou grande coisa. Na noite de 22 para 23

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de agosto de 1791,50 mil escravos se rebelaram no Haiti. Dois anos depois, Sonthonax, o enviado pela República, enfrentando uma ameaça de invasão anglo-espanhola apoiada pelos revoltosos, foi obrigado a reconhecer sua

*Tean-Louis Landolphe, navegador e negreiro francês (1747-1825). (N. doT) ^

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emancipação de fato. Enquanto aparecia, na pessoa de Toussaint Louverture, o Espártaco negro anunciado pelo abade Raynal, a revolução haitiana universalizava os princípios da declaração dos direitos do homem, que, quando de sua adoção, não tratava absolutamente dos escravos, pobres bens móveis cuja sorte, desde 1635, era regida pelo Código negro, sem dúvida um dos textos jurídicos mais assustadores de todos os tempos. Mas se essa pressão das circunstâncias tomou heróica a revolta dos escravos haitianos, ela em nada prejudicou a von­tade declarada pelos membros da Convenção, em 16 de pluvioso, de abolir duas instituições tão lucrativas quanto abomináveis: o tráfico e a escravidão. Desde a metade do século XVII, a França, imitando a Inglater­ra, a Espanha, Portugal, os Países-Baixos, a Suécia e a Dinamarca, esforçava-se por obter sua fatia do bolo co­lonial e desenvolveu plantações na América, levando para lá centenas.de milhares de africanos, deitados uns sobre os outros, acorrentados no ventre de barcos freta­dos pelos principais portos franceses, principalmente Nantes, Bordeaux, Le Havre e La Rochelle. A intensi­dade do tráfico negreiro assumiu um ritmo realmente infernal: vinte mil cativos vendidos somente no porto do Cabo no primeiro ano da Revolução. Sabendo-se que os historiadores mais otimistas admitem a cifra de cinco africanos mortos para cada escravo desembarca­do, pode-se imaginar o quanto esse balanço é triste. Em

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150 anos, somente no que concerne à França, quase um milhão e duzentos mil escravos e seis milhões de mortos!

Mas desde o século XVIII havia vozes que se eleva­vam. Inicialmente para criticar o caráter genocida da escravatura, pois à deportação, à privação da liberdade e aos trabalhos forçados se juntavam, a fim de evitar revoltas, não apenas sevícias difíceis de descrever mas também condições de exploração concentrada que faziam do tráfico europeu um verdadeiro sistema de extermí­nio. A desnutrição permitia, na verdade, aumentar os lucros pela metade e acelerar a “amortização” do escra­vo. A exploração e o extermínio não eram absoluta­mente incompatíveis. E possível executar um genocídio e ao mesmo tempo encher os bolsos. É possível ser ho­mem de negócios cruel. Mais grave: a melhor maneira de enriquecer era o sistema deliberadamente genocida. Em Ingénue (Nascida livre), romance publicado em 1853, o escritor Alexandre Dumas, sob o pretexto de relatar as opiniões de um fazendeiro do século XVIII, que por prudência ele mostra como sendo anglo-saxão, revela as “vantagens” desse sistema misto de destruição e exploração que causava a prosperidade de Saint-Do- mingue. “Meus negros”, explica cinicamente o colono, “ [...] me custam em média 40 guinéus; cada um me proporciona aproximadamente, descontados os custos, 7 guinéus de lucros alimentando-os como se deve.” Se­gundo esse exemplo, portanto, cada escravo era “amor­

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tizado” em menos de seis anos. Mas não era “alimen­tando-os como se deve” que se ficava rico. Ao contrá­rio, “economizando na alimentação”, prossegue o fazendeiro, “somente em dois pence por dia, essa econo­mia por cada negro me dá anualmente [...] para cada um de meus escravos, dez guinéus de lucro, o que signi­fica uma renda líquida de minha fazenda de três mil libras esterlinas”. Afinal, já que as fronteiras da huma­nidade foram ultrapassadas, por que não ser suficiente­mente desumano e levar a rentabilidade a seus limites extremos? O escravo, portanto, somente receberá a nu­trição estritamente suficiente para que tenha forças para trabalhar. Isso, evidentemente, limita sua expecta­tiva de vida. “É verdade”, observa a esse respeito o ne­greiro, “ [...] que, seguindo esse plano de administração económica, meus negros não duram mais do que oito ou nove anos; mas que importa, se ao fim de quatro anos cada negro me rendeu os 40 guinéus que me custou? As­sim, se ele não viver mais do que outros quatro ou cinco anos, o problema é dele, pois os quatro anos suplementa­res são puro lucro. Se o escravo morrer, boa viagem! Com o lucro obtido com a economia de alimento durante sete ou oito anos, tenho com que comprar outro negro jovem e robusto, em lugar de um exausto que já não serve para nada. O senhor compreende por que, em trezentos es­cravos, essa economia é imensa!”

Além dos abusos que na verdade lhe eram intrínse-

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cos, a instituição começou a ser denunciada em nome dos princípios e especialmente do caráter inalienável da liberdade, à qual nenhum ser humano pode renunciar, como mostra Rousseau (aliás silencioso sobre a escra­vização dos africanos), sem renunciar simultaneamente a sua condição de ser humano, o que é absurdo. Mesmo assim, era preciso que os escravos fossem seres huma­nos, coisa que a legislação, como também às vezes os próprios filósofos pareciam implicitamente negar.

Diante dessas críticas, o partido colonial contra-ata­cava procurando desenvolver na metrópole preconcei­tos que eram ao mesmo tempo cimento e produto da instituição da escravatura. Assim como é mais fácil acorrentar os homens quando estamos convencidos de que eles são inferiores, também a condição particular­mente aviltante dos escravos dos europeus nas Améri- cas fazia com que seus carrascos afirmassem que esse aviltamento imposto na verdade fazia parte de sua subs­tância. Se o escravo africano é escravo, diziam eles para justificar-se, é por ser inferior por natureza e portanto nascido para ser acorrentado, se esse for o desejo ou o interesse de um europeu. Além disso, acrescentavam, a escravidão deixa uma marca indelével que afetaria não apenas o escravo, muito além de sua eventual alforria, mas também toda a sua descendência, até o fim dos tempos. Esse é o círculo em que se encerra a ideologia dos negreiros. O círculo do racismo, ainda que a pala­

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vra não seja realmente pronunciada: fala-se somente da “pureza do sangue”.

Apesar da abolição da instituição, suprimida oficial­mente desde 1848, o mal permaneceu. A maldição que se abatia sobre o africano era a de ser considerado inferior aos olhos dos franceses racistas. Aos antilhanos acres­centava-se o inconveniente de ter ancestrais escravos. O treinamento colonial, apresentado como uma forma de educação, fez com que eles interiorizassem essa pretensa falha, a ponto de a ascendência servil tomar-se incon­fessável nas Antilhas, onde as pessoas preferem inventar ancestrais aruaques* ou bretões.

A essas reprovações ignóbeis, os historiadores re­visionistas, proclamados mestres do pensamento num século sem memória, acrescentaram outra, esta inespe­rada: o africano é culpado de ser escravista. E, se não for ele próprio, será um dos seus. Essa culpabilidade se destina a refletir-se sobre o africano deportado. Em ou­tras palavras, todo escravo é necessariamente descen­dente de negreiros. Esse pecado original serve para impedir as queixas. Se a pretensa vítima é culpada, onde está o crime? Essa é a lógica do revisionismo fran­cês do século XXI, que procura relegar o reconheci­mento jurídico da escravidão como crime contra a humanidade ao nível de uma “aberração”. Uma aberra­

*Nação indígena que povoou o norte da América do Sul e as Antilhas, antes da chegada dos europeus. (N. do T.)

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ção, portanto, como a lei de 10 de maio de 2001, e tam­bém o decreto revolucionário de 16 de pluvioso Ano II, cuja memória nenhuma comissão oficial se preocupa em comemorar, eram aberrantes na opinião de Napoleão.

Que dizia esse decreto de 16 de pluvioso, tão admi­rável, mesmo se forçado pelas circunstâncias? Diz que “a Convenção nacional declara abolida a escravidão dos negros em todas as colónias [...] que todos os ho­mens, sem distinção de cor, domiciliados nas colónias, são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos as­segurados pela Constituição”. A Convenção foi extre­mamente longe, estendendo o princípio do jus solis o mais amplamente possível: pouco importava que a pes­soa fosse nascida no estrangeiro ou em uma fazenda. O simples fato de ser domiciliado nas colónias dava direi­to à nacionalidade e à cidadania. Ao palmilhar o solo colonial, o africano cativo se tornava legalmente es­cravo. Daquele dia em diante, até mesmo um escravo fugitivo de alguma terra estrangeira, ao chegar a um território dependente da França, se tomava livre e ci­dadão. Os ex-escravos se viam ao mesmo tempo plena­mente assimilados sem que houvesse compensação a seus antigos senhores por uma pretensa “espoliação”, como de fato seria o caso no Haiti em 1825 e nas coló­nias francesas em 1848. Porém certos deputados iriam chegar a exigir uma reparação para esses “novos france­

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ses”, como Jacques-Michel Coupé, representante do Oise, que propôs à Convenção uma distribuição de terras aos antigos escravos: “Não é suficiente haver restituído a li­berdade a nossos irmãos negros”, protestou ele no dia se­guinte à abolição da escravatura. “Ainda temos terras incultas nas colónias. Os bens dos emigrados desses terri­tórios somam dois bilhões. Proponho que os senhores de­cretem que esses bens sejam vendidos de maneira que os novos franceses possam comprar parcelas!”

Mas em 1799 o decreto de 16 de pluvioso somente foi aplicado nas colónias que não haviam sido invadi­das. E mesmo assim, não em todas. No momento da adoção do texto, as colónias francesas da América eram constituídas principalmente por Saint-Domingue, Gua- dalupe com suas dependências, a Guiana, a Martinica, Santa Lúcia e Tobago. Ora, a lei só foi aplicada em Saint- Domingue, em Guadalupe e na Guiana. A Martinica, Tobago e Santa Lucia estavam em mãos britânicas, e a escravatura, alimentada pelo tráfico britânico, foi man­tida nesses lugares.

Na África e no oceano Índico, onde os cinco bal­cões da índia estavam igualmente ocupados pela Ingla­terra, Saint-Louis-du-Sénégal e as ilhas Mascarenhas

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— Ile de France (depois ilhas Maurício) e as ilhas Réu- nion — permaneceram sob a autoridade da República. Ao menos em teoria, pois os colonos que as dirigiam eram refiratários à aplicação do decreto de emancipação

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dos escravos, que três anos antes dois emissários procu­raram em vão fazer valer.

Preocupados em eximir Napoleão de qualquer res­ponsabilidade pessoal quanto ao restabelecimento da escravatura e, ao contrário, glorificar um homem es­clarecido pelos princípios da Revolução, mas que seria enganado pelos que lhe estavam próximos, os hagiógra­fos procuraram fazer crer que ele não tinha idéias pre­concebidas sobre o assunto e que as circunstâncias e os maus conselhos — especialmente de sua esposa, segundo eles, puro produto da sociedade escravista — foram os únicos a impeli-lo a orientar-se para algo que o repug­nava. Pensando bem, mais vale um fraco do que um meticuloso assassino. Retrospectivamente, a fraqueza não confere ao político uma aparência de humanida­de? É um pouco como se alguém dissesse que Hitler, ao tornar-se chanceler, não tinha a menor intenção de exterminar os judeus, mas deixou-se levar. Da mesma forma, para citar apenas um exemplo recente, pode-se ler com todas as letras, num Dicionário do Consulado e do Império, publicado em 1995 por três historiadores de renome: Alfred Fierro, André Palluel-Guillard e Jean Tulard, um artigo muito curto que trata da escravidão: “Quando Bonaparte chegou ao poder” — assim está escrito — “não havia opinião firmada a respeito da escravidão nas colónias. Ele foi rapidamente cercado

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pelo partido créole* que se constituiu ao redor de José- phine de Beauhamais.” Trata-se de uma fábula que pros­perou suficientemente para que no passado, na praça principal de Fort-de-France, desconhecidos audaciosos, aplicando a palavra de ordem radical de Jean-Jacques Dessalines — Koupé tèt, bwilé kay! (Cortar cabeças, quei­mar casas!) — decapitassem a estátua da créole com uma pichação explicativa: “Respeito para com a Martinica!” A culpa seria de Joséphine? “Talvez em cinco ou seis dias a cada ano as mulheres possam influenciá-lo”, disse ela a respeito de seu despótico marido. “Mas com exceção des­ses poucos dias, elas nada significam.” Conforme veremos, o interesse de Napoleão pelas mulheres se limitava à libi­do, e sua libido era na verdade sazonal. Duvida-se que ele tenha sentido seus ardores precisamente entre 14 a 20 de maio de 1802 e que naquela ocasião Joséphine tenha tido oportunidade (o homem era infiel), vontade e poder para “cercá-lo” quanto a uma questão de tanta gravidade.

Então, talvez não fosse aquela a cabeça a ser corta­da. Talvez não fosse aquela a estátua a ser atacada pri­meiro. A Comuna de Paris não se enganara ao abater a efígie do tirano que ainda está no alto da coluna Ven-

* 0 substantivo créole tem o mesmo significado de criollo em espanhol, e em sua acepção mais estrita designa os colonos brancos nascidos nas Américas. Como adjetivo, qualifica tudo o que é relativo ao Caribe, es­pecialmente os aspectos culturais das colónias e ex-colônias francesas. (N. do T)

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dôme, “monumento de barbárie [...] símbolo de força bruta e de falsa glória”.1

Na realidade Napoleão considerava que somente a restauração da escravidão e do tráfico seria capaz de res­tabelecer o comércio, o que pressupunha a paz com as demais potências negreiras, que eram também potências marítimas. Isso já ocorria havia quatro anos em relação à Espanha e à República batava, ocupada de fato pela Fran­ça. Mas a Inglaterra, à qual Portugal abrira seus portos, continuava a ser uma feroz inimiga. A supremacia maríti­ma britânica, agravada pela quase completa destruição da frota francesa em Abuquir, impedia qualquer expedição e impunha o status quo. Além do restabelecimento do co­mércio, a tomada do controle da ordem escravista e seu desenvolvimento eram a chave do domínio do mundo, as­sim como o desenvolvimento da indústria alemã viria a ser a chave da expansão do III Reich. Napoleão sonhava com um império francês escravista, servido em grande escala pela mão-de-obra africana, cujo futuro esgotamento tinha pouca importância. As coisas já teriam mudado. Os “ne­gros” já não seriam mais necessários. Tanto melhor que fi­cassem extintos.

Tudo demonstra que a escravidão era capital no pensamento económico e geopolítico de Napoleão. Ela era parte necessária do programa que ele estabelecera e

Comissão de Belas-Artes da Comuna, presidida por Gustave Courbet.

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que pouco a pouco aplicaria metodicamente, como um geômetra, à medida que as circunstâncias o permitis­sem. Sua vontade de fazer a paz com a Inglaterra era principalmente motivada pelo desejo de que recome­çassem as expedições negreiras e os fazendeiros france­ses recuperassem a prosperidade.

Mas para ele o interesse nacional jamais se separava do interesse pessoal. Em vez de acusar Joséphine, sem dúvida proprietária de escravos na Martinica e em Saint- Domingue, tanto diretamente por sua família, a Tascher, quanto por sua união com o visconde Beauvit de Beau- hamais, deveria ser dito que o fato de casar-se. em 9 de marco de 1796T com uma créole, conhecendo perfeita­mente a origem da fortuna da família, bem revela os es­crúpulos daquele que Henri Guillemin, autor de Napoléon tel quel (Napoleão como ele é), chamou de “pequeno chacal”, que Barras chamou de “pequeno farsante” e que eu chamo de “pequeno negreiro”. É verdade que o general Vendemiário, cujo património, por ocasião do casamento, se limitava a “seu guarda-roupa e seus ins­trumentos de guerra”, e que acreditava que a viúva Beauhamais possuísse “um ou dois milhões na Martinica e casas em Saint-Domingue”, percebeu rapidamente que imaginara “fortuna maior do que a que ela tinha”. Não há dúvida de que, apressando sua entrevista com o advogado Raguideau, tabelião, aquele que era ainda so­mente Napolione Buonaparte acreditava unir-se a uma

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rica “americana” e tirar lucrativo partido da renda de suas fazendas na Martinica, isto é, do trabalho dos po­bres miseráveis que lá cortavam cana. Certamente as mil libras esterlinas que Joséphine recebia na época, por meio de banqueiros ingleses e apesar da guerra, prove­nientes de seus rendimentos na Martinica, tinham algo a ver com a escravidão. E é claro que a decepção de Napoleão quanto à fortuna de sua Rosa, transformada na circunstância em Joséphine, provocou-lhe com toda certeza, após o casamento, um grande interesse pessoal no restabelecimento do Código Negro em Saint-Do­mingue e em sua manutenção na Martinica.

No entanto, não se pode dizer que Napoleão não dispusesse a tempo de conselhos que pudessem tê-lo es­clarecido. O contra-almirante Jean-François Truguet, que quase foi morto em Savannah ao lado dos “homens de cor” do almirante d’Estaing antes de tomar-se mi­nistro da Marinha do Diretório, enviou-lhe nada menos de quatro memoriais com a menção explícita “exclusivo para seus olhos”, nos quais advoga extensamente em fa­vor da liberdade nas colónias e adverte o Primeiro Cônsul contra o retorno dos negreiros ao ministério. Obvia­mente ele temia os projetos de Bonaparte. Truguet era na verdade muito próximo dele. Haviam se encontrado em Toulon. Conhecendo bem o homem, ele se arriscou a escrever-lhe: “Os negros são o verdadeiro povo, o úni­co povo das Antilhas. Conquistemos por meio da con-

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fiança homens que sofreram o chicote, que quiseram ser livres e que agora o são, que ganharam a liberdade por si mesmos e que a defenderam contra os ingleses e os es­panhóis unidos!” Traindo sem pejo a confidencialidade solicitada por seu amigo, Bonaparte apressou-se em transmitir esses memoriais, como advertência, ao virulen­to escravista que era o almirante Antoine Ganteaume, seu assessor naval. Bonaparte não podia deixar de saber disso, pois fora Ganteaume quem o trouxera de volta do Egito, e o almirante terá tido tempo suficiente para ex­por-lhe suas opiniões a bordo de La Muiron. Não houve surpresa: o obsequioso Ganteaume, compreendendo o que dele se esperava, protegeu Bonaparte ao qualificar a liberdade defendida por Truguet de “sistema de destrui­ção”. Para a posteridade, assim como para seus contem­porâneos, Napoleão nada mais fez do que seguir os conselhos de Ganteaume, ceder às “lamúrias dos colo­nos”, como diria mais tarde. Bonaparte, satisfeito com esse álibi, passou a negar sistematicamente todas as reco­mendações de Truguet. Ganteaume acabaria por ser no­meado presidente da seção da Marinha no Conselho de Estado. E viajaria a Saint-Domingue onde se notabiliza­ria por transportar de Cuba ao Cabo cães treinados em devorar negros, o que lhe valeria a Legião de Honra.

Tudo começou com o golpe de Estado. Poucos dias depois, Bonaparte pensou em mandar prender Léger

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Sonthonax, republicano considerado instigador da liber­dade dos escravos. Mas foi obrigado a voltar atrás diante da indignação geral que essa medida poderia provocar. Em breve, a imprensa seria amordaçada: o decreto de 17 de janeiro de 1800 suprimiu 60 dentre os 73 jornais parisienses. Enquanto isso, era melhor ser prudente. Na­poleão mandou então reunir os representantes dos colo­nos de Sainte-Domingue a fim de consultá-los sobre as medidas a serem tomadas na ilha, o que provocou um boato de restabelecimento da escravatura. Estava lança­do o balão de ensaio; faltava ver até onde subiria.

Com efeito, a Constituição do ano VIII, que Bona- parte confeccionou sob medida e que colocou em vigor com rapidez, não deu espaço à Declaração dos Direitos do Homem de 1789, nem mesmo à “Declaração de direi­tos e deveres” do ano III. A nova Carta suprimiu o prin­cípio de assimilação das colónias, que eram até então “parte integrante da República” e “submetidas à mesma lei constitucional”. Dali em diante, segundo instruções pessoais de Bonaparte, “o regime das colónias francesas é determinado por leis especiais”. Para bom entendedor, era a primeira etapa do restabelecimento da ordem anti­ga para o ultramar. Evidentemente, já não havia lugar para a representação parlamentar das colónias no Legis­lativo. A era dos parlamentares “negros” ou “de cor” já havia passado.

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Logo em seguida, um alto funcionário do Ministério da Marinha, de nome Garnet, foi encarregado de redi­gir um relatório sobre o assunto, o qual, apesar das de­clarações tranquilizadoras de princípio no preâmbulo, continuou sendo muito ambíguo. Uma declaração dos cônsules, de 25 de dezembro de 1799, dirigida aos “bra­vos pretos de Saint-Domingue”, os quais, a 8 mil qui­lómetros de distância, obviamente não tinham como estar informados a respeito senão semanas depois, pro­metia a manutenção da liberdade e da igualdade na­quela ilha. Essa é a prova de que era preciso tranquilizar a opinião pública, muito favorável à emancipação dos escravos. Mas como nada estava claro a respeito das demais colónias, além de Saint-Domingue, a declara­ção não teve o efeito esperado e não deixou de inquie­tar os observadores mais atentos.

Outro sinal que não deixa dúvidas: ainda que Na­poleão estivesse obcecado pelos “negros com dragonas” de Saint-Domingue ou de Guadalupe, ele não teve a preocupação de mandar aplicar o decreto do 16 de plu­vioso às ilhas Mascarenhas, consolidando assim uma si­tuação de rebelião declarada dos colonos em relação à metrópole. Em troca, desde o início de 1800 o general Etienne Bizefranc de Lavaux, que era tenente-coronel do 69 Regimento de Dragões quando Alexandre Dumas recebeu ali seu primeiro grau de oficial, igualmente ami­go de Toussaint Louverture e finalmente agente do

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Diretório em Guadalupe, favorável aos ex-escravos, foi prontamente chamado de volta à França, onde o Primei­ro Cônsul mandou prendê-lo e em seguida reformá-lo, por não haver encontrado nenhuma sombra de motivo para prolongar a detenção arbitrária.

Não é fácil, porém, reinstituir a escravidão para cerca de 750 mil cidadãos franceses, dos quais várias dezenas de milhares eram soldados. Não adiantava imaginar que fos­sem homens inferiores; era preciso uma armada e portanto a concordância dos britânicos para levar os militares aos pontos necessários. Ou então fazer uma tentativa desespe­rada, usando a força bruta. Desde o fim do ano de 1799, o impaciente general pensava em mandar uma frota coman­dada por um homem “seguro”, o contra-almirante barão Jean-Raymond de Lacrosse, “para ficar à vista de Saint- Domingue, se não houver inconvenientes, a fim de mos­trar o pavilhão da República naqueles mares”. Poucas semanas depois, tranquilizado pelos cortesãos que afirma­vam que os africanos eram covardes e que debandariam ao primeiro tiro de fuzil, ele considerou a partida de uma for­ça de intervenção de 4.500 homens, comandada pelo mesmo Lacrosse. A empresa, no entanto, era irrealista. Lacrosse acabaria sendo enviado no ano seguinte a Guadalupe, com a missão de expurgar o exército de seus oficiais “de cor”.

Enquanto esperava o momento favorável para o grande golpe com o qual sonhava, Napoleão tratou me­

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todicamente de cercar-se dos reacionários mais noto­riamente ligados ao Antigo Regime e de todos os nostál­gicos do Código Negro que conseguiu encontrar. Após haver demitido o pouco dócil Marc-Antoine Bourdon de Vatry — homem de Sieyès* — ele convocou Pierre- Alexandre Forfait para o Ministério da Marinha e das Co­lónias, impondo-lhe gente marcada, como o barão Jean-Baptiste Guillemin de Vaivre, Élie Moreau de Saint- Méry, promovido a “historiógrafo”, ou o general Narcisse Baudry de Lozières, aos quais se juntaria o almirante con­de Thomas de Villaret-Joyeuse, Pierre Victor Malouet e o marquês François de Barbé-Marbois. Todos virulentos ne­greiros, todos nutridos pela ideologia racista dos colonos. Após ser deliberadamente difundida na metrópole no reinado de Luís XVI, a fim de contrapor-se às manobras abolicionistas, essa nova ideologia da “superioridade branca” começou a procurar justificativas científicas para o preconceito do “sangue”. Estas se encontram esboçadas numa pequena obra do barão Ambroise Palisot de Beauvois, publicada em Saint-Domingue no início da Revolução, e anunciam os sistemas mais sofisti­cados dos quais a França se tomaria grande exportadora e que parecem haver inspirado as leis de Nuremberg.

*Emmanuel loseph de Sieyès (1748-1836), político e escritor que, junto com Napoleão, teve participação no golpe de Estado de 18 de brumário. (N. do T )

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Élie Moreau de Saint-Méry: representante dos co­lonos da Martinica, feroz defensor da escravatura, que não hesitou, em 1791, antes de emigrar para a Filadélfia, em requerer explicitamente à Assembléia Constituinte a não-aplicação da Declaração dos Direitos do Homem às colónias; Malouet, outro emigrado que representava os colonos de Saint-Domingue em Londres e foi adversário declarado da Sociedade dos Amigos dos Pretos: que bela equipe!

Sob a proteção discreta do Primeiro Cônsul, o ge­neral Narcisse Baudry des Lozières foi encarregado de organizar um verdadeiro escritório de propaganda no Ministério das Colónias, em associação com o “historió­grafo” Moreau de Saint-Méry. Foi sem dúvida nessa oca­sião que Baudry des Lozières teve o lazer necessário para encetar a redação de uma obra-prima do pensamento pré-nazista, Les Égarements du nigrophilisme (Os desvios do negrofilismo), que seria publicada na ocasião propícia e era habilmente dedicada a Joséphine, a fim de não comprometer demasiadamente o grande homem. Simul­taneamente surgiu uma tradução para o francês de Via­gem de Mungo Park, famoso explorador escravista, a fim de divulgar a idéia de que de qualquer modo três quartos dos africanos já eram escravos em sua terra, e portanto o transporte para as Américas não agravava sua sorte. Ao contrário. Um velho argumento, já utilizado por Voltaire

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e que certos “historiógrafos” franceses do século XXI não hesitariam em retomar por sua vez, no mesmo sentido.

De seu lado, o negreiro Bélu dedicou a Bonaparte Des cokmies et de la traite des nègres (Das colónias e do trá­fico de negros), no qual se esforça por demonstrar que a fim de compensar as fadigas do corpo, o “repouso espiri­tual” dos escravos frequentemente tomava sua condição “igual em felicidade à do senhor”. Era de certo modo uma prefiguração dos trabalhos forçados “libertadores” que se tomaria o lema inscrito na entrada dos campos de extermínio.

Em uma carta de 25 de dezembro de 1799, dirigida a Jorge III, rei da Inglaterra, Napoleão se apressou em mos­trar-se indignado: “Como é possível que as duas nações mais esclarecidas da Europa [...] possam sacrificar a pros­peridade do comércio a idéias vazias de grandeza!” Falar em prosperidade do comércio era o mesmo que dizer a liberdade do tráfico, pois as nações mais “esclarecidas” eram também as duas grandes potências negreiras.

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III

Portanto, não há nenhuma dúvida: no momento em que tomou o poder, Napoleão já era escravista convic­to. Mas era também racista. Racista até à alienação. É conhecido seu ódio aos judeus, que a Revolução acaba­va de emancipar. A respeito destes últimos, o modelo inspirador de Hitler não hesitou em declarar que se tra­tava “de uma nação à parte, cuja seita não se mistura com nenhuma outra”, “uma raça que parece ter sido a única excluída da redenção”. E insistia: “Os males co­metidos pelos judeus não vêm dos indivíduos, e sim da própria constituição desse povo. São lagartas, gafanho­tos que assolam a França!”1 Ele explica claramente sua política de ódio aos judeus a seu irmão Jérôme: “Em-

‘Opiniões comunicadas a Mathieu-Louis Molé em 7 de maio de 1806 e citadas principalmente por Hubert de Noailles em Le Comte Molé, sa vie, ses mémoires (Vida e memórias do conde Molé), Paris, 1922-1930. Sobre o anti-semitismo de Napoleão, ver também Philippe Bourdrel, Histoire desjuifs de France (História dos judeus da França), Paris, 1974.

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preendi a obra de corrigir os judeus, mas não procurei atrair novos a meus estados. Longe disso, procurei evi­tar qualquer coisa que pudesse demonstrar estima aos mais miseráveis entre os homens.”

Assim, desejando “remediar os males aos quais mui­tos deles se entregam”, Napoleão multiplicou as medi­das discriminatórias em relação aos judeus, sem hesitar em suprimir as dívidas das quais eram credores ou em afastá-los do comércio para arruiná-los, e até mesmo em proibir sua presença em todo o território ou parte dele. Anti-semita notório, assim como Voltaire, Napo­leão era naturalmente também violento negrófobo, pois uma coisa nunca existe sem a outra.

Sua famosa profissão de fé perante o Conselho de Estado exprime um racismo dos mais primários: “Sou a favor dos brancos porque sou branco!”, decretou ele. “Não tenho outro motivo, e este é o melhor!”2

Para Napoleão, a liberdade não era um direito natu­ral, e sim uma recompensa que o homem “branco” pode ou não outorgar aos “inferiores”, desde que estes sejam “civilizados”. Mas sua concepção de civilização é pe­culiar. “Como foi possível conceder liberdade aos africanos”, explica ele, “homens que não possuíam civi­lização alguma, que sequer sabiam o que era uma colô-

2Declarações registradas por Antoine-Clair Thibaudeau em Mémoires sur le Consulat (Memórias sobre o Consulado), Paris, 1827.

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nia, o que era a França?” Ser civilizado significa ter a co­lonização em sua cultura. Os que não colonizam os de­mais são apenas selvagens. E os povos colonizados o são justamente devido a essa selvageria. E por que são selva­gens? Porque são eles os colonizados, e não o contrário. É um belo círculo vicioso, que sem dúvida alguma ho­menageia a força, mas cuja utilização não prova um grau elevado de civilização. “Simplesmente, aqueles que dese­jam a liberdade dos negros desejam a escravização dos brancos”, dispara ainda Bonaparte. Embora o efeito do es­tilo seja eficaz, a frase não tem sentido. Mas para Napoleão os imbecis eram os membros da Convenção. Incapazes de raciocinar, deixam-se levar pelo sentimento: “Mas os se­nhores ainda acreditam”, pergunta ele, “que, se a maioria da Convenção soubesse o que estava fazendo e conhecesse as colónias, teria dado a liberdade aos negros? Não, sem dúvida! Mas poucas pessoas tinham condições de prever os resultados disso, e um sentimento de humanidade sem­pre tem poder sobre a imaginação. Mas, hoje em dia, afer­rar-se ainda a esses princípios! Não há boa-fé! Há somente amor-próprio e hipocrisia!” Em outras pala­vras: os adversários da escravatura não podem ser se­não homens do passado, aferrados, por orgulho, a idéias cuja inutilidade a experiência já revelou.

Napoleão, portanto, estava a favor dos brancos e da escravidão porque era branco. Mas a fatalidade fazia com que o “homem negro” o rondasse. Não somente no

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emblema da Córsega, que desde o século XVI exibia “uma cabeça de negro rodeada de prata”. Embora seus fanáticos lhe creditem a libertação dos escravos muçul­manos quando da tomada de Malta em 1798, no mes­mo ano, no Cairo, aquele que se apresentava como libertador do povo egípcio não se preocupou em alfor­riar os africanos,2 que não podia deixar de ver, ainda que sua sorte — para tristeza de alguns revisionistas — nem de longe pudesse comparar-se à dos escravos nas Américas. Os oficiais, assim como seu general-em-che- fe, não se abstinham de ir ao mercado de escravos e às vezes ali encontravam concubinas efémeras ou recrutas suplementares.

Napoleão não procurou esconder o pânico que o invadiu quando ficou sabendo, em outubro de 1797, que a marquesa Marie-Françoise de Beauhamais, ex- cunhada de sua mulher, havia se casado com o membro da Convenção Charles-Guillaume Castaing, “homem de cor”, nascido escravo em Saint-Domingue, divorcia­do e pai de um filho “completamente negro”. Um negro na família do general Vendemiário! Marie-Françoise foi convocada. Para impressioná-la, o negrófobo explodiu em raiva. Mas a jovem se recusou categoricamente a

2Dirigindose a Truguet, Napoleão chegou a declarar: “Se tivésseis vindo ao Egito para pregar a liberdade dos negros ou dos árabes, nós vos tería­mos enforcado no alto de um mastro.” Antoine-Clair Thibaudeau, em Mémoires sur le Consulat, Paris, 1827.

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abandonar o eleito de seu coração. Bonaparte teve de resignar-se: “Evite a publicidade! Guarde silêncio!”, or­denou ele. “Teria sido melhor não se casar com ele. Mas já que está feito, fique com ele!” Evitar a publicidade? Guardar silêncio? Isso pressupunha esconder-se. Mas por que esconder-se? A época não era nada hostil às “pessoas de cor”. Um ano depois do casamento de Cas- taing, Saint-George foi aclamado ao chegar de braço dado a uma jovem que iria fazer uma ascensão num ba­lão com o navegador de aerostato Gamerin. Mas Bo­naparte, ainda general do Diretório, era animado por um ódio e um desprezo pelos africanos que destoava de seus contemporâneos. Que humilhação para ele quando por ocasião do casamento da filha “branca” de Marie- Françoise de Beauharnais foi obrigado a cruzar com o homem a quem ele só chamava de “o negro”. Mas isso não aconteceria novamente. Castaing, filho da escrava Catherine Champi, seria relegado junto com a esposa ao castelo de Sampigny, na Meuse, e mantido quase em segredo. Apesar de seu título de “diretor do parque im­perial”, obtido graças à intervenção de Joséphine, a si­tuação de Guillaume Castaing era “mais ou menos a de um prisioneiro político, porque não pode nunca sair do castelo ou dos jardins”, como observou espantado um visitante inglês^em 1812. Marie-Françoise de Beauhar­nais e seu incómodo consorte jamais iriam aparecer na

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corte e terminariam discretamente suas vidas em Sé- zanne, pequena aldeia no Mame.

Mais cruel ainda, por ser algo mais próximo, era a existência de uma jovem Rosa apelidada Marie-Joseph, nascida em 1789 durante a estada de Joséphine em casa de uma tia na Martinica. Claro que os guardiães racis­tas do templo napoleônico se esforçam por negar tudo, completamente. Oficialmente, Marie-Joseph seria filha natural de uma certa Marie-Louise Bénaguette. Mas um homem tão bem-informado quanto o Primeiro Cônsul não poderia ignorar que ela fosse na realidade o fruto dos amores de Joséphine com um “negro”. Joséphine, portanto, ao contrário do que nos querem fazer crer, não parecia ter prevenções, inclusive em sua vida sexual. Até mesmo Barras, seu ex-amante, é teste­munha: “Dizia-se”, conta ele em suas Mémoires, “que [...] superior ao preconceito de cor, ela teria tido rela­ções com negros. Bonaparte, que tal como nós não ignorava todas essas aventuras, havia muitas vezes ou­vido relatos delas diante de mim.”

Com Euphémie, a “mulata” que criou Hortense de Beauhamais em Paris, Joséphine manteve uma corres­pondência bastante amistosa. E esse à-vontade não se limitava a seus empregados. Frequentando assiduamen­te os salões parisienses, a viúva estava habituada a en­contrar homens e mulheres “de cor”. Sabe-se que, na Itália, a futura imperatriz iria simpatizar com o general

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Dumas e que recomendaria Charles-Guillaume Cas­taing — aliás, sem grande sucesso — ao Diretório. De resto, na família Tascher, como na de todos os colonos das Antilhas, a pureza de sangue não seria uma forma de reação, sob a forma de obsessão, às inevitáveis mis­turas impostas pela coabitação de senhores e escravos? Por ocasião da morte de sua mãe em 1807, Joséphine fez questão de alforriar seis cativos e obrigou Napoleão a conceder a sua filha “de cor” um dote de 100 mil fran­cos. O assunto foi resolvido pelo almirante Villaret de Joyeuse, capitão geral da Martinica. Mas é necessário manter esse caso em sigilo. Esse segredo de Estado lhe valeu muito o investimento quando ele capitulou dian­te dos ingleses.

Também não está demonstrada a “pureza de san­gue” na família Bonaparte. Isso não era certamente um problema para a eclética Pauline, a qual, assim como Joséphine, não parece ter tido o menor preconceito de cor na escolha de seus amantes e cuja afeição pelo ge­neral Dumas é conhecida. O mesmo quanto a Lucien, amigo e protetor do pintor guadalupense “de cor” Guil­laume Guillon, apelidado Lethière. Tanto é assim que na primavera de 1789, o mais velho, Joseph, investigou a genealogia da família e, por intermédio de um arqui­vista de Sarzane, na Toscana, descobriu que ela descen­dia em linha direta de um certo Francesco Buonaparte, chamado no século XVI de “o Mouro” ou “o Mouro de

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Sarzane”. Esse Buonaparte, mercenário em Ajaccio, es­tava a serviço da República de Génova, onde se sabe que os africanos eram apreciados. Um mouro, isto é, um africano! É verdade que esse ancestral mouro re­monta a dez gerações. Mas ninguém duvida que o Otelo corso assombrasse os sonhos do general, assim como o avô judeu de Adolf Hitler assombrava os do chanceler do III Reich. Os panfletários britânicos não se engana­riam. O pior insulto para “Boney” não era ser tratado de “mulato corso”?

Mas supondo que Napoleão soubesse que era ou que poderia — como todo mundo — ser de origem africana, o que motivaria tanta sanha? Talvez para mostrar que ele nada tinha a ver com aqueles que desprezava e que iria perseguir. Por trás de todo frenesi racista há sempre um segredo de família não assumido, origens incertas que é preciso esquecer.

Mais do que qualquer outro exemplo, as relações entre Napoleão e o general Dumas são especialmente edificantes. A fim de recolocar as coisas em seu con­texto, é preciso saber que quando o “negro” Dumas foi nomeado general de cavalaria, em julho de 1793, “Buonaparte” era apenas um obscuro pequeno capitão de artilharia. Dumas já era general-de-divisão quando o homem que seus camaradas apelidaram de “nariz de pa­lha” era somente comandante de batalhão. E quando o artilheiro finalmente conseguiu ser nomeado general-

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de-brigada a título provisório, o ex-escravo já obtivera o comando do exército dos Alpes, com 45 mil “bran­cos” sob suas ordens. Estamos a algumas semanas da abolição da escravatura. Dumas se tomou herói nacio­nal quando, como comandante-em-chefe do exército dos Alpes, e combatendo na neve, toma brilhantemen­te aos austro-sardos o monte Cenis e o Pequeno São Bernardo, salvando assim a República. Quando a Con­venção foi ameaçada por uma insurreição monarquista, em 6 de outubro de 1795, Dumas foi chamado para res­gatá-la. Napoleão não era ninguém. Tinha sido rebai­xado de seu posto. Nem seus negócios nem sua moral estavam em ponto alto: “Se isto continuar, meu amigo”, escrevera ele um mês antes a seu irmão Joseph, “acaba­rei por deixar-me atropelar por uma carruagem.” O sol­dado rebaixado e suicida morava em um pequeno hotel de má fama e, como nada tinha a perder, ia passear nas proximidades das Tulherias. Sua sorte foi que o eixo da precária carruagem de Dumas quebrou entre Villers- Cotterêts e Paris. O testemunho de um chefe de posto de correio e a fatura do conserto do cabriolé são a prova formal. Dumas somente chegaria em 7 de outubro, com 24 horas de atraso. Enquanto isso, o homem descalço que trotava atrás do cavalo de Barras, ex-amante de sua mulher, ficava famoso por ter tido a idéia de mandar a artilharia da planície de Sablons atacar a multidão. De pé sobre suas esporas, Napoleão, com um metro e cin-

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quenta e cinco centímetros de altura, não poderia sentir senão ódio ao ver chegar o colosso negro, que ainda era seu superior hierárquico numa arma prestigiosa. Dali em diante, Dumas vegetaria, enquanto Bonaparte organi­zava seus peões. Após algumas designações sem inte­resse, Dumas regressaria em posição subalterna ao exército dos Alpes, do qual dois anos antes era o vito­rioso comandante-em-chefe. Finalmente obrigado a servir na Itália sob as ordens de Napoleão, cujo racismo era atiçado pela inveja, Dumas multiplicou em vão suas façanhas, que o aprendiz de ditador apenas agradecia de má vontade e continuava a ofendê-lo com a cumpli­cidade de Berthier, seu chefe de estado-maior. Certo dia chegou a proibir a entrada do antilhano sob o pre­texto de que não havia pedido audiência da forma re­gulamentar. Nessa ocasião, Dumas, que não era tolo, protestou orgulhosamente: “Resolvido a não mais me apresentar a vós devido à maneira com que fui recebido por vosso porteiro e por um plantonista, por instruções vossas, ao que me disseram, peço-vos marcar-me uma audiência a fim de que não seja outra vez humilhado em público.” Nomeado comandante da cavalaria fran­cesa no Egito e desgostoso com a atitude colonialista e anti-republicana de Bonaparte, Dumas sem dúvida to­mou também consciência de seu racismo visceral. Duas semanas antes de chegar ao Egito ele já não tinha ilu­sões: “Seguirei cegamente minha carreira, como todos

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os meus camaradas,” confidenciou ele à esposa, “por­que neste caso se trata mais de deportação do que de expedição. Resigno-me a tudo porque não tenho nada de que me possa envergonhar. A moda aqui é somente destituir os que são conhecidos como patriotas, e isso ocorre todos os dias.” Dumas teve participação capital na questão da revolta do Cairo e na tomada da mesqui­ta Al-Azhar, em 21 de outubro de 1798. Adoentado, foi tirado do leito por seu ajudante-de-ordens. O general Dupuis, comandante do Cairo, acabava de ser linchado pela multidão. As pilhagens e a caça aos cristãos ha­viam começado. Bonaparte estava ausente, ou talvez, mais provavelmente, oculto em seu alojamento, acredi­tando-se perdido. Dumas estava pronto a cumprir seu dever, mas sem grande convicção, porque a repressão não era seu forte. Saltou sobre o cavalo, com o torso nu. Naquela noite, receberia ordem de tomar a Grande Mesquita, onde estavam refugiados os últimos insur- gentes que Bonaparte havia mandado bombardear durante quatro horas, apesar das súplicas de uma dele­gação que viera pedir negociações. O tirano não escondeu seus métodos: “Fui obrigado”, ria-se ele no dia seguinte à carnificina, “a mandar atirar bombas e obuses contra a grande mesquita a fim de conquistar um setor defendido por barricadas. Isso causou um efei­to considerável. Mais de quinze obuses entraram na mesquita [...]. A cidade recebeu uma boa lição, da qual

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se recordará por muito tempo, estou certo!” E por que mandou Dumas? Porque ele era, sem contestação, o melhor soldado do exército do Egito. E também porque era perigoso. Porém sobretudo por causa da aparência daquele atleta “negro”, capaz de desestabilizar os revol­tosos: no espírito classificador de Napoleão, Dumas bem poderia combater do lado deles, pois era nada mais do que um “negro”.

Uma vez derrubada a porta da mesquita a tiros de canhão, o herói, empapado por uma chuva torrencial, entrou a cavalo, à frente de seus dragões. “O acaso quis que diante da porta”, relataria em suas Memórias o filho do general, “isto é, no caminho que o cavalo de meu pai percorreria em sua corrida, havia um túmulo da altura de aproximadamente um metro e meio. Ao encontrar esse obstáculo, o cavalo se deteve imediatamente, em­pinou-se e deixando cair as duas patas dianteiras sobre o túmulo, permaneceu imóvel por um instante, com os olhos injetados de sangue e soltando fumo pelas nari­nas.” A aparição, naquele lugar sagrado, desse cavalei­ro de pele escura e escorrendo água causou, conforme previsto, uma forte impressão nos insurretos: “O anjo! O anjo!”, gritavam os árabes. Sua resistência nada mais foi do que uma luta de desespero por parte de alguns, mas para a maioria era a resignação ao fatalismo. Os chefes gritavam: “Amman!” (Perdão!) Sabe-se que a crença nos anjos faz parte dos dogmas fundamentais do

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Islã. Que o general Dumas tivesse sido confundido com um dos guardiães do inferno ou tomado por anunciador da ressurreição, é evidente que a cor da pele daquele francês teve a ver com a rendição final dos xeques re­beldes. Para os muçulmanos do Cairo, aliás, Dumas era uma espécie de irmão, conhecido por sua mansidão e tolerância. Mesmo que a versão do escritor Alexandre Dumas, baseada em princípio no testemunho de anti­gos companheiros de armas de seu pai, seja um tanto romanceada — o que não é certo —, o papel modera­dor do general Dumas, a quem os insurretos se rende­ram naquela noite, foi atestado pelos escritos de uma testemunha do Cairo, Abd Al Ramahn Al Jabarti (Journal d’un notable du Caire durant Vexpédition française) (Diário de um notável do Cairo durante a expedição francesa), que afirma que os franceses efetivamente en­traram a cavalo na Grande Mesquita. Porém Bonapar­te, embora mencionasse, em um relatório ao Diretório redigido cerca de uma semana depois dos acontecimen­tos, haver enviado na manhã do dia seguinte o general Dumas “com a cavalaria, para percorrer a planície”, minimizava evidentemente seu papel no próprio dia do levante. E com razão: a feroz repressão começou a par­tir da rendição dos insurretos, coisa que Dumas não perdoaria a Bonaparte. Os prisioneiros do general fo­ram todos massacrados, a Grande Mesquita foi pilhada e profanada por hordas de soldados. “Ateavam fogo aos

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livros e aos volumes do Corão e os pisoteavam”, relata Al Jabarti. “Emporcalharam o local com excrementos, urina e escarro. Havia garrafas de vinho, que eles que­bravam...” Assim foi o início do “papel positivo” da co­lonização francesa no Oriente.

O quadro de propaganda abertamente racista pinta­do por Girodet, pintor oficial naquela ocasião, que mais tarde (em 1810, por encomenda de Napoleão para o palácio das Tulherias) reconstituiria a cena da entrada na Grande Mesquita, mas não com Dumas no papel principal, e sim um jovem oficial dos hussardos, rodea­do por másculos dragões. O emblemático efebo louro, um anónimo imaginado por Girodet segundo as instru­ções imperiais, avança pelo jardim, intrépido, calmo, seguro de estar em seu direito, com a cimitarra já tinta de sangue dos “inferiores”. A seus pés, um africano rai­voso, com a boca torta, babando, rola os olhos. O pérfi­do, logo vencido e agarrado à coxa de um árabe que permanece de pé, agita uma faca com uma das mãos e com a outra a cabeça decepada de um “homem branco” pacífico, de cabelos encaracolados, um hussardo “aria­no” que bem poderia ser o Cristo. O assassino é repre­sentado sem outra vestimenta senão um turbante, para mostrar que se trata sem dúvida de um escravo e que não merece senão estar nu como animal daninho que re­almente é. Por trás, outro africano, pouco decidido, brande uma pistola. O pincel do pintor somente distin­

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gue um único insurreto, um mameluco delicado que se pode imaginar ser de origem circassiana. Esse precioso jovem de traços europeus, cujos ricos ornamentos enfati­zam sua ambiguidade, desfalece nos braços de um feroz árabe, cuja nudez e nariz adunco indicam selvageria. Nessa pintura edificante se encontra toda a teoria da hierarquia das “raças” que desabrocha graças a Napoleão. Um quadro que poderia servir como referência a todas as expedições coloniais baseadas na primazia do “homem branco”. Mutatis mutandis, a cena da Grande Mesquita poderia perfeitamente ter ocorrido, no início do século XXI, em Bagdá ou em Porto Príncipe.

A evolução de Girodet, evidentemente alimentar, é tanto mais interessante se levarmos em conta que ele, em 1790Jj :epresentava a si mesmo vestido como feroz sans-culotte* com um barrete frígio na cabeça, e que em1797 pintou o magnífico retrato de Jean-Baptiste Belley, no qual o elegante deputado de Saint-Domingue, cingi­do por um lenço tricolor e apoiado negligentemente a um pedestal de uma estátua do abade Raynal, afirmava- se em toda a sua dignidade, sem qualquer preconceito. Foi a primeira vez que um africano era assim retratado em suas funções oficiais.

A repressão da revolta do Cairo foi terrível e causou a execução sumária, conforme confessa o próprio gene­

*Designação dada aos republicanos mais ardentes, na época da Revolu­ção francesa. (N. do T.)

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ral-em-chefe, de vários milhares de prisioneiros, pre­viamente interrogados “de maneira eficaz”. Os milita­res franceses encarregados do setor de informações durante a batalha de Argel em 1957oitilizariam explici­tamente a tradição napoleônica. Assim, tal como no Cairo em 1798, o tenente-coronel Trinquier, ex-profes- ----- --- -sor apaixonado por Napoleão, mandou numerar as ca­sas de Casbah, a fim de identificar melhor os eventuais resistentes. Sendo Trinquier referência reconhecida pe­los serviços de informação norte-americanos em maté­ria de guerra colonial, a escola napoleônica viria a ter discípulos até Guantánamo e Abu Graib.

Tão logo a revolta amainou, Bonaparte mandou de­capitar todos os que haviam se rendido. “Vossa Senho­ria haverá por bem”, escreveu ele friamente a Berthier, chefe de seus matadores, “dar ordem ao comandante da praça para que mande cortar o pescoço de todos os pri­sioneiros capturados de armas na mão. Eles deverão ser conduzidos esta noite à margem do Nilo, entre Boulak e a cidade velha do Cairo. Os cadáveres sem cabeça serão jogados no rio.” Tal como na Argélia, os interrogatórios severos e as execuções sumárias com arma branca ocor­riam após o pôr-do-sol. Para os mutirões, o pequeno torturador tinha homens dedicados: o antigo mame­luco Barthélemy Serra, por exemplo. E ele se vanglo­riava: “Todas as noites”, escreveu, “mandamos cortar umas trinta cabeças.” Entre as cabeças cortadas, as pri-

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meiras são as negras. Em 28 de outubro de 1798, seis “negros”, dentre os quais três mulheres, pororden/pes- soai de Bonaparte, foram “interrogados” e em seguida liquidados.

Três meses depois desses horrores, Dumas, enojado, conseguiu ser enviado de volta à pátria com um pretex­to médico. Não transigia com os direitos humanos. De­monstrou isso ao pedir para retirar-se na Vendéia a fim de não participar de uma empresa genocida, ou quando mandou derrubar uma guilhotina em Bourg-Saint- Maurice. “Senhor da Humanidade”, chefe dos republi­canos descontentes, foi apoiado durante vários meses por seus amigos Desaix, Lannes e Kléber. O mata-mou- ros coxo ficou sabendo, o que já ocasionara em agosto de 1798 uma cena das mais violentas. Napoleão a re­latou, colocando-se em vantagem, a seu médico dr. Nicolas Dufriche, futuro barão Desgenettes, médico- chefe da expedição ao Egito: “Mandei chamar Dumas e lhe disse: ‘Sei o que estão dizendo. Se achasse que o se­nhor ou alguns outros homens de sua espécie pensas­sem por um só instante em executar as extravagâncias que lhes passaram pelas cabeças, eu os mandaria ime­diatamente fuzilar a meus pés por minha guarda; em se­guida reuniria os granadeiros do exército para julgá-los e cobriria de infâmia sua memória.’ Ele começou a cho­rar e percebi que era um homem bom que havia sido

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seduzido. Aliás, ele tem muito pouco talento. Afinal, há muito já me esqueci de tudo isso!” Na doxa, ou credo, racista convencionou-se dizer que os homens de pele negra, e entre eles, sobretudo, os rebeldes pobres, são sempre idiotas. Assim, lê-se numa nota nos arquivos militares de 1801 que os dois principais revoltosos de Guadalupe — Louis Delgrès e Joseph Ignace — eram, tais como o general Dumas em 1798, “sem fortuna e sem talento”. Para Napoleão, portanto, o “negro” Dumas era nada mais do que um imbecil, uma criança grande. A prova: era incapaz de conter sua emoção, o que não poderia ocorrer, sem dúvida, ao futuro impera­dor, cujo sorriso mecânico Mme de Staêl recorda: “Par­tindo do sério para a ele regressar, parecia mais uma mola do que um movimento natural.” Preso em Taranto por outro aventureiro corso, Matteo Boccechiampe, Dumas sobreviveria somente poucos anos devido ao arsénico que os carcereiros napolitanos o faziam engolir e ao rancor de Napoleão, o qual, ao contrário do que dissera a Desgenettes, nada esquecera. Ele era, antes de tudo, um ressentido. A carreira do herói do monte Ce- nis, do Pequeno São Bernardo e da ponte de Brixen havia terminado. Napoleão chegaria a recusar-lhe um pagamento atrasado de tratamento, que no entanto ha­via sido legitimamente reclamado. Não era a recom­pensa pelos inúmeros serviços prestados à França, e sim simplesmente como indenização por dois anos de cati­

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veiro nos quais contraíra enfermidades graves. Os cui­dados que lhe foram prestados ao regressar não o im­pediriam, antes dos quarenta anos, de “permanecer manco do pé direito, surdo do ouvido do mesmo lado, com a parte esquerda do rosto paralisada e com o olho direito quase perdido, sofrer de violentas dores de cabe­ça e um contínuo zumbido nos ouvidos, enfim, de estar sujeito a mil indisposições”. Napoleão não poderia ignorá-lo, pois em junho de 1801, assim que Desgenet- tes examinou o general, que acabava de ser libertado, lhe disse: “Como V.S. me diz que a saúde dele não o deixará mais passar seis semanas dormindo na areia nem coberto com uma pele de urso, já não preciso dele para comandar a cavalaria. O primeiro brigadeiro que chegar poderá substituí-lo.” Para compreender a recusa de pagar a Dumas os 28.500 francos que lhe eram devi­dos, é preciso saber que o general, três anos antes, no Egito, havia mandado entregar a Napoleão uma caixa que havia encontrado por acaso, com este bilhete: “Ci­dadão general: O leopardo não muda de pele. O ho­mem honesto não muda de consciência. Remeto-lhe um tesouro que acabo de encontrar que é estimado em cerca de dois milhões. Se eu for morto ou se morrer aqui de tristeza, lembre-se de que sou pobre e que dei­xei na França mulher e um filho.”

Por ocasião de seu casamento, Napoleão possuía so­mente as botas e as calças. Porém, ao regressar da cam­

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panha na Itália, conseguiu mandar reformar sua casa natal em Ajaccio, comprar terras na Bélgica e adquirir uma mansão em Paris, tudo por cerca de dois milhões. Compreende-se que considerasse “pouco talentoso” o escrupuloso general Dumas.

Em sinal de agradecimento pelos dois milhões, o di­tador mandou reformar Dumas — isto é, retirá-lo do serviço ativo — em 13 de setembro de 1802. Como era aplicável a ele uma regra que visava a purificação “ra­cial” do exército, o herói foi obrigado a solicitar uma autorização de residência para poder continuar a morar em sua casa, em Villers-Cotterêts. Ali morreria de ver­gonha e tristeza, sem nenhuma condecoração, pobre e esquecido, vítima do racismo e da inveja de Napoleão. O ódio do tirano se estenderia à viúva do general e a seus dois filhos, entre os quais o futuro escritor. Embora filho de um general republicano, porém inscrito junto com a irmã na lista de 1807 que continha “negros e ou­tras pessoas de cor”, o futuro autor dos Três mosqueteiros não conseguiu beneficiar-se de nenhuma bolsa para ad­missão ao colégio.

Trata-se sem dúvida alguma de racismo, como ates­ta o testemunho do furioso negrófobo que foi o general Paul Thiébault, o qual, mesmo reconhecendo qualida­des militares em seu antigo superior no exército da Itá­lia, começa por contestar a legitimidade de seu posto. “O bravo general Dumas”, escreveu ele no momento

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em que Thiers reabilitava o ditador, “foi nomeado ge­neral em 1793 ̂ isto é, em meio à confusão e às aber­rações de uma época terrível.” É claro que os direitos concedidos aos “homens de cor”, a supressão dos estí­mulos ao tráfico e sobretudo a abolição da escravatura figuram na cabeça da lista de “aberrações” e da “confu­são” mencionadas. Assim, “quaisquer que fossem o zelo e a coragem desse pobre Dumas, ainda que pudesse ser- lhe conferido o título de primeiro soldado do mundo, não era talhado para ser general”. Em suma, ele não pertencia à raça dos senhores da qual Thiébault, que se acreditava nascido para ser barão do Império, pensava ser modelo. Essa incapacidade se baseia, é evidente, so­mente na cor da pele de Dumas, reflexo de uma maldi­ção natural. E nessa lógica Thiébault justifica o racismo de Napoleão em relação ao ex-escravo nascido em Jére- mie (Haiti). De passagem, ele revela que esse racismo se inscreve num quadro segregacionista mais amplo: “Desde o Consulado”, observa ele em relação ao gene­ral, “sua cor fez o que sua pouca capacidade deveria ter feito.” Em outras palavras, se Dumas foi punido, como todos os seus semelhantes, por causa de “sua cor”, isso nada mais era do que a legítima reparação da aberração que fizera com que ele fosse nomeado general, quando não tinha sido feito para isso. A tentação é de pergun­tar, então, para que são feitos os “negros e outras pes­soas de cor”? Adivinha-se facilmente, no entanto, qual

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seria a resposta de um Bonaparte, de quem Thiébault, no caso, era fiel porta-voz: evidentemente, são feitos para servir ao “homem branco”. Aliás, Thiébault, mostrando a que ponto é embaraçosa essa sua simpatia por aquele ser teoricamente inferior, conclui seu elogio de maneira absolutamente assustadora: “Ele é o único homem de cor a quem perdoei o tom de sua pele.” Napoleão, por seu turno, foi ainda mais longe do que Thiébault, e não a perdoou. Nem a Dumas, nem aos demais.

A ironia da fortuna faria com que o duce deposto terminasse seus dias ao largo da costa da África, que tanto o tinha obcecado, numa ilha inglesa, parcialmen­te povoada por escravos melanodermas. Embora, para decepção de certos admiradores, ele os tivesse “mais na cabeça do que na cama”, sabe-se o quanto era românti­ca para o grande homem a idéia do amor físico. “Eu te­nho minha época, como os cães”, confessava ele com sua delicadeza natural, confirmando assim o que dizia Joséphine. “Uma mulher!... Uma mulher!... Depres­sa!... Tragam-me uma mulher!...”, gania o modelo do Fiihrer quando entrava em sua “época”. E bastava que a transeunte se comportasse bem, porque “a coisa é feita rapidamente”.3 Em Santa Helena, não havia dificulda­de em mandar vir escravas africanas para esse tipo de trabalho. Na urgência, Napoleão esquecia suas repug-

3Ver Jean Savant, Les Amours de Napoléon, Paris, 1956.

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nâncias. A encantadora Esther Vessey, “mulata” de 16 anos, filha de uma escrava e de um velho sargento in­glês, empregada como babá a serviço da família Montho- lon, no sítio de Longwood, era quem proporcionava ao negrófobo a oportunidade de satisfazer ao mesmo tempo sua libido “sazonal” e também, sem dúvida, o fascínio neurótico do colono impotente pela dominação sexual de sua cativa, simultaneamente desejada e desprezada. Já se disse que graças a seu papel de intermediária nesse as­sunto Albine de Montholon também serviu aos mesmos objetivos.

No outono de 1816, Esther ficou grávida. Em 28 de outubro, Napoleão ficou sabendo e deu ordem de pro­curá-la. Para evitar o escândalo, Marchand sugeriu ca­sar-se com a jovem. O dono de Longwood ordenou, então, com elegância perfeitamente imperial: “Quero que Esther saia imediatamente desta casa e que não permaneça sob o mesmo teto!”, sob o pretexto de que “vão aproveitar e publicar nos jornais que fui eu quem engravidou Esther e em seguida mandei que meu ca­mareiro se casasse com ela, segundo o costume dos grandes senhores”. Acrescentou que “essa será a opor­tunidade de fazer as contas com a imperatriz”. No dia seguinte, 29 de outubro de 1816, portanto. Esther dei­xou Longwood. Toda a ilha já sabia que ela estava grá­vida daquele que se intitulava grande senhor e que não se envergonhava em fazer estranhas comparações com

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a imperatriz, a qual era “realmente virgem”, porque “o sangue foi visto”. Mas no que se refere a Esther, “há muito tempo a canoa já furou”, afirmou Sua Majestade em linguagem de caserna. Em 1817 Esther deu à luz um

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filho, James-Octave, apelidado Jimmy. Foi reconhecido pelo camareiro Marchand, que sabia dobrar-se a todos os caprichos de seu amo, sem reclamar. “Os camareiros não têm heróis!”, dizia Bonaparte. Ele sabia muito bem do que estava falando. “Os serviços que ele me prestou foram de amigo”, reconheceria ele em seu testamento, a respeito de Marchand.

Obviamente, é preciso ser muito desnaturado para lançar à rua um filho e a mãe desse filho, por receio do que possa ser comentado. Mas o herói que restabeleceu a escravatura não tinha escrúpulos. Embora os prestimo­sos supressores de manchas negras repetissem incessan­temente que Esther só poderia ser amante de Marchand e que, portanto, Jimmy só poderia ser filho deste último, a semelhança entre o menino e o general Vendemiário* era evidente o bastante para que diversas pessoas notas­sem. Hoje em dia, os mais audaciosos, tendo de admitir que Marchand não era o único que poderia ter-se inte­ressado por Esther, sentem-se obrigados a explicar que

* 0 autor alude ao incidente de 13 de vendemiário (13 de outubro de 179fr), quando Napoleão, ainda militar obscuro, mandou disparar a arti­lharia sobre a multidão revoltada em Paris. (N. do T.)

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ela tinha “pele clara”, certamente a fim de tomar a histó­ria mais verossímil a seus próprios olhos.

Depois de ter sido expulsa de Longwood, a jovem continuou a gozar de salvo-conduto para regressar re­gularmente. Assim, em seu diário, afirma Gogaud, em setembro de 1817: “Esther está aqui desde ontem!” Em abril de 1821 ela daria à luz um segundo filho, desta vez declarado de pai desconhecido, que morreu pouco depois. Jimmy ganhou em 1837 um pequeno pecúlio deixado por Marchand e manteve sempre eloquente silêncio quando Napoleão Bonaparte era mencionado em sua presença. Dois anos depois da morte da mãe ele partiu discretamente de Santa Helena para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Ali seus traços desaparecem, em setembro de 1840, um mês antes da chegada do na­vio La Belle Poule que vinha buscar as cinzas do ditador a fim de transportá-las para os Invalides. Em vão Mar­chand procuraria encontrar o filho de cor de Napoleão, desaparecido em um país no qual os colonos em breve inventariam a horrível palavra apartheid.

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IV

Na primavera de 1800, Toussaint Louverture derro­tou seu adversário Rigaud, após um ano de guerra civil. Era agora o homem forte da América. Apesar de seu ra­cismo, Napoleão seria perfeitamente capaz de ajeitar-se com um “negro”, o qual poderia até mesmo tomar-se auxiliar precioso, caso aceitasse, por uma questão de rea­lismo político, o princípio do restabelecimento da escra­vatura. Pois o que contava era a escravatura. A partir de sua chegada ao poder, toda a política seguida por Bona­parte se dirigia não apenas a seu restabelecimento, mas também a seu desenvolvimento. A preparação da paz com a Inglaterra nada mais representou do que uma das condições para esse objetivo. O mesmo se pode dizer da aliança com Madri, que permitiu à França recuperar a Louisiana e a parte espanhola de Saint-Domingue. Bo­naparte evitou problemas com os norte-americanos. Co­meçou a sonhar com um grande império negreiro que poderia incluir até mesmo a Flórida.

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Mas as coisas se complicaram quando Toussaint Lou- verture, a fim de festejar dignamente o aniversário da abolição, tomou posse da parte espanhola, proclamando a liberdade geral e demonstrando assim que não transigi­ria jamais com seus princípios. O que fez Napoleão de­cidir-se por empregar a força não foi a Constituição anunciada naquele mesmo dia pelo haitiano, e sim a incompatibilidade entre Toussaint e a escravidão. Deci­didamente, aquele “africano dourado” era irrecupe­rável. Dali em diante, para abatê-lo, Napoleão não teria outro recurso senão a força. Por esse motivo, desde a primavera de 1801, riscando secretamente o general Louverture das listas do exército francês, ele passou a concentrar seus esforços na preparação de uma expedi­ção. Semelhante iniciativa pressupunha o acordo britâ­nico, ao menos implícito. O melhor seria um tratado de paz em boa e devida forma. Em 17 de setembro de 1801, Napoleão escreveu a Talleyrand: “O equinócio está próximo, todos os dias são preciosos [,..].É preciso por­tanto que os acordos preliminares sejam assinados a partir dos primeiros dez dias de vendemiário ou que as negociações sejam rompidas.” Antes mesmo da assina­tura de um tratado definitivo, a conclusão dos “acordos preliminares” se tornou possível. O ditador contava com a troca dos textos desses preliminares a fim de en­viar emissários, tranquilizadores ou ameaçadores, con­forme o caso, às colónias onde a escravatura seria

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mantida ou restabelecida. Para Saint-Domingue estava prevista uma força de proporções consideráveis. Con­forme ele fez questão de explicar: “Todas essas ex­pedições devem ser feitas secretamente, como se estivéssemos em tempo de guerra.” As relações com os britânicos se complicaram mais do que era previsto, e Napoleão, perfeitamente informado do risco de uma epidemia de febre amarela que chegaria a destruir uma parte de seu exército, pediu a Talleyrand, em 13 de no­vembro de 1801, que informasse os ingleses da impossi­bilidade de “retardar por mais um dia a expedição a Saint-Domingue, porque depois do mês germinal o cli­ma é impraticável para os europeus”. Deixando que os britânicos escolhessem entre a prosperidade militar da França e a sua prosperidade económica, agitou cini­camente o espectro do black power e acentuou que um acordo com Toussaint Louverture seria taticamente conveniente para a França: “Se eu tiver de adiar a ex­pedição para o próximo ano”, disse ele, “serei obrigado a reconhecer Toussaint, renunciar a Saint-Domingue e ali instalar franceses negros, o que sem dúvida não re­presentaria um ganho financeiro mas seria muito van­tajoso para a República do ponto de vista do poderio militar”, porque “o reconhecimento da liberdade dos negros em Saint-Domingue e sua legitimação pelo go­verno proporcionariam, em todos os sentidos, um pon­to de apoio para a República no Novo Mundo”. É claro

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que, “neste caso, o cetro do Novo Mundo [...] mais cedo ou mais tarde [cairia] nas mãos dos negros”. Estes, no en­tanto, seriam negros franceses, “e o prejuízo resultante para a Inglaterra [seria] incalculável, enquanto o abalo causado à França por um império de negros se confundi­ria com o abalo da Revolução”. Bonaparte estava dissi­mulando seus pensamentos. Ainda não se recompusera completamente do “abalo” provocado pela liberdade dos escravos. E ao evocar, a médio prazo, um risco de instabi­lidade para os britânicos, que poderiam ver suas próprias colónias — especialmente a Jamaica — ameaçadas por uma perspectiva de revolta, o que o amedrontava era a situação já conhecida pela Franca em 179L ainda que fingisse transcender os argumentos mercantis, invocan­do o interesse superior da “civilização branca”. “Na deci­são que tomei de aniquilar o governo dos negros em Saint-Domingue”, explicou ele, “fui menos guiado por considerações de comércio e dè finanças do que pela ne­cessidade de asfixiar em todas as partes do mundo qual­quer espécie de germe de inquietação e distúrbios.” Ao contrário, a intervenção em Saint-Domingue e o resta­belecimento da escravatura, embora servissem aos inte­resses económicos franceses, seriam, para a Inglaterra, a garantia de uma paz durável e da manutenção da prospe­ridade naquela zona: “Não posso deixar de dizer”, con­fessava Napoleão, “que Saint-Domingue reconquistada pelos brancos seria durante muitos anos um ponto fraco que necessitaria do apoio da paz e da metrópole.”

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O plano militar do Primeiro Cônsul já estava decidido desde janeiro de 1801, mas era preciso que fosse acom­panhado por um quadro jurídico que tinha de ser im­posto a uma França ainda mais comprometida com os princípios da Revolução do que com as exigências do comércio. Bonaparte se explicou veladamente em uma carta a Cambacères na qual declarava haver prometido aos representantes de interesses comerciais de Bordeaux (os negreiros, se preferirem) visitá-los “quando suas re­lações [estiverem] em plena atividade nas Antilhas eA

Ile de France”, isto é, quando o tráfico — e portanto a escravatura — fosse restabelecido.

Tão logo as esquadras zarparam para Saint-Domin- gue, Napoleão mandou preparar secretamente outra ex­pedição, de três mil homens, encarregada de restaurar a antiga ordem de coisas em Guadalupe. Comandada pelo general Richepance, essa força zarparia em março de 1802. Assim como Leclérc, Richepance tinha ordem ver­bal do Primeiro Cônsul para restabelecer a escravidão por todos os meios, antes da existência dos textos legais que não deixariam de ser adotados na metrópole.

A base jurídica para a empresa seria um decreto do Legislativo, de 30 de floreai do Ano X (20 de maio de 1802), sancionado por Bonaparte com o título de “Lei relativa ao tráfico de negros e ao regime das colónias”. Esse texto, certamente criminoso, merece ser integral­mente citado: “Em nome do povo francês, Bonaparte, Primeiro Cônsul, proclama como lei da República o se-

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guinte decreto, exarado pelo Corpo legislativo em 30 de floreai Ano X, conforme a proposta feita pelo Governo em 27 do referido mês [17 de maio de 1802] e co­municada ao Tribunato no mesmo dia.” Seguem-se os quatro artigos adotados pelo Corpo legislativo sob forma de decreto. “Artigo l2: Nas colónias restituídas à França em cumprimento do tratado de Amiens, de 6 de germinal Ano X J27 de março de 1802], a escravatura será mantida em conformidade com as leis e regulamen­tos anteriores a 1789. Artigo 2: O mesmo ocorrerá nas demais colónias francesas além do Cabo da Boa Esperan­ça. Artigo 3: O tráfico de negros e sua importação pelas mencionadas colónias serão feitos em conformidade com as leis e regulamentos existentes antes da citada época de 1789. Artigo 4: Não obstante todas as leis anteriores, o regime das colónias fica submetido, durante dez anos, aos regulamentos que serão elaborados pelo Governo.”

Esse projeto monstruoso conseguiu mesmo assim obter um quarto de votos negativos no Corpo legislati­vo, e um terço no Tribunato, ao qual competia apre­sentá-lo ao Legislativo. E muito, num contexto de ditadura. Deve-se dizer que quatro meses antes, a pre­texto de uma renovação prevista pela Constituição (mas que jamais deveria ser nominal, e sim segundo o princípio de sorteio), Napoleão se desfez sem pejo da oposição parlamentar provocando a exclusão de seus adversários mais ardentes: vinte no Tribunato e sessen­ta no Corpo legislativo. “Peço-vos zelar para que fique-

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mos livres exatamente dos vinte e dos sessenta maus membros que existem nas autoridades constituídas”, escreveu ele a Cambacères em 18 de janeiro de 1802. Seis dias depois, acrescentou, a respeito do Tribunato: “O mínimo que o Senado pode fazer é retirar os vinte membros dissidentes e colocar em seu lugar vinte ho­mens bem-pensantes.” Como Cambacères era homem eficiente, “as instruções do Primeiro Cônsul foram se­guidas literalmente”, observou ele em suas Memórias. “Todos os que criavam obstáculos foram afastados e substituídos por homens que, longe de se opor aos pro- jetos do Primeiro Cônsul, demonstraram vontade de apressar sua conclusão.” Sem essa depuração “dos que criavam obstáculos” e o concurso de “homens bem- pensantes”, o restabelecimento legislativo da escrava­tura, iniciativa pessoal do déspota e pedra angular de seu sistema, estava arriscado a não ser aprovado.

O texto não se contenta, como se costuma dizer, em manter a escravatura nas colónias devolvidas à França pela Grã-Bretanha. Não é possível manter por meio de uma lei algo que não é legal, e simplesmente se sustenta num fato (a invasão num quadro de guerra). De direito, desde 4 de fevereiro de 1794 todos os habitantes das colónias francesas eram livres e cidadãos, sem distinção de cor. Pouco importava que os ingleses não tivessem colocado em vigor na Martinica a lei votada pela Con­venção nacional; essa lei se aplicava a partir da restitui­ção daquela ilha à França por meio de um tratado. Era

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preciso portanto revogá-la, devido ao receio de que os escravos pudessem legalmente valer-se dela. Ao nego­ciar a paz com os ingleses, estando perfeitamente cons­ciente de que a Martinica não havia deixado de ser francesa, e que por conseguinte as leis francesas deve­riam ser aplicadas nesse território, Bonaparte declarou ao ministro dos Negócios Estrangeiros em julho de 1801: “Como a Martinica não foi conquistada pelas ar­mas inglesas, e sim colocada pelos habitantes em mãos inglesas até que a França dispusesse de um governo, ela não pode ser considerada possessão inglesa.”

Foi precisamente por esse motivo que um mês depois do tratado de paz Napoleão se apressou em fazer adotar esse texto que anulava a lei de 16 de pluvioso, não ape­nas nas colónias restituídas à França e nas demais “além do Cabo da Boa Esperança”, mas também nas outras co­lónias às quais se aplica o artigo 4: o regime das colónias ficava submetido dali em diante aos regulamentos do Governo, “não obstante todas as leis anteriores”.

Já se afirmou que Bonaparte havia apresentado um primeiro projeto que mantinha o status quo: escravatura onde não tivesse sido abolida e liberdade nos demais ter­ritórios. Assim, lê-se no artigo “escravidão” do Diction- naire du Consulat et de l'Empire que Napoleão “havia imaginado uma solução mista (escravidão na Martinica, liberdade para os homens de cor em Saint-Domingue e em Guadalupe)”. Qual é a verdade? E certo que em 27 de abril de 1802 Napoleão havia enviado um primeiro

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projeto ao Segundo Cônsul, Cambacères, que ele deveria “discutir com os cidadãos Regnier, Dupuy e Roderer”, membros do Conselho de Estado, a fim de tomar uma decisão que o Senado transformaria em senatus-consulto, o que exigiria uma maioria de dois terços. Nesse primeiro projeto, Napoleão distinguia entre as colónias onde a abolição da escravatura havia sido efetivamente aplicada e as demais. Onde tinha havido abolição, isto é, na Guiana, em Guadalupe e em Saint-Domingue, um capi­tão geral seria encarregado de preparar uma lista “dos indivíduos que gozavam de liberdade antes de 26 de pluvioso do ano II” e dos “indivíduos negros que acorre­ram à defesa do território da República contra seus ini­migos ou que, de outra maneira, tenham servido ao Estado”. Todas as pessoas que figurassem nessa lista se­riam declaradas livres. Porém a liberdade seria apenas formal para “aqueles, dentre eles, que não sejam proprie­tários, não tenham arte ou ofício capaz de assegurar sua subsistência”. Os mais destituídos — isto é, quase todos— “estarão sujeitos aos regulamentos policiais que lhes designarão proprietários a fim de que os ajudem nos trabalhos de agricultura, determinarão seus salários e aplicarão os dispositivos necessários para impedir a vaga­bundagem e a insubordinação”. Assim, portanto, os que não fossem proprietários nem artesãos seriam, com efei­to, colocados sob regime de trabalhos forçados e, caso re­cusassem, “os insubordinados e vagabundos obstinados serão, nos casos determinados por esses regulamentos,

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retirados da lista e privados dos benefícios consequen­tes”. Napoleão chegou a pensar, para esses teimosos, na deportação para outras colónias, aquelas “onde as leis sobre a alforria não tenham sido publicadas”. Excetuan- do-se, portanto, os antigos libertados e os que gozassem da estima do Primeiro Cônsul, “todos os indivíduos ne­gros não incluídos na lista mencionada no artigo l2 ficam sujeitos às leis e regulamentos que, em 1789, compu­nham o Código negro das colónias”. Evidentemente, o comércio triangular seria restabelecido “de conformida­de com as leis e regulamentos sobre o tráfico que esta­vam em vigor em 1789”. Isso significa que, segundo esse projeto, a escravidão seria restaurada — de fato ou de direito — salvo para um punhado de “indivíduos negros” proprietários ou artesãos que tivessem sido beneficiados pela lei de 16 de pluvioso e fossem especialmente apre­ciados pelo ditador. Pode-se imaginar por quê: por ha­verem ajudado a restabelecer a escravidão de outros. Estamos portanto muito longe, nessa primeira versão, da “liberdade para os homens de cor em Saint-Domingue ou em Guadaiupe”, como no entanto afirma o autor do artigo “escravidão” do Dictionnaire du Consulat et de VEmpire. Ele evita dizer que o restabelecimento do tráfico estava previsto para todas as colónias, quer nelas tivesse sido abolida a escravidão ou não.

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Lacrosse desembarcou em^Guadalupe na primavera de 1801 com o título de capitão geral. Seu ajudante-de- ordens era o comandante Louis Delgrès, “homem de cor”. As ordens secretas eram preparar com rapidez o restabelecimento da escravatura. Era coisa que Delgrès nem sequer poderia imaginar. Confiava em Lacrosse, que na época da Revolução o havia nomeado tenente. Mas os tempos mudam, e os homens também.

Para Lacrosse, a dificuldade era que mais da metade do exército em Guadalupe, que contava com 4 mil ho­mens, era composto de “negros” e mais um quarto era de “homens de cor”, inclusive um terço dos oficiais. Ele to­mou medidas imediatas para “clarear” o exército, tanto na tropa quanto na oficialidade. Outras iniciativas con­firmavam essa orientação reacionária: chamou de volta certos emigrados, levantou embargos sobre fazendas, anulou expropriações e mandou prender e deportar sus­peitos a pretexto de conspiração.

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Em 5 de agosto de 1801, por ocasião da morte do general Antoine Béthencourt, que acabava de chegar para assumir o comando das tropas em Guadalupe, o capitão geral se desmascarou definitivamente ao recu­sar-se a designar como sucessor, como no entanto era o sentido das regras militares, o coronel Magloire Pélage, comandante do distrito de Grande-Terre (Pointe à Pitre) e oficial mais antigo na ilha, do grau mais eleva­do. Segundo as instruções do Primeiro Cônsul, a cor da pele de Pélage tomava evidentemente impossível sua nomeação para o comando das forças armadas de uma colónia onde os “negros” e os “homens de cor” iriam ser desarmados e a escravatura em breve seria restabele­cida. Pélage, preocupado com sua carreira e incapaz de desagradar ao chefe “branco”, aceita humildemente. Lacrosse, atribuindo-se o título de comandante-em- chefe, imprudentemente mandou convocar uma mo­bilização geral. A população se inquietou. Depois da inquietação, em breve sobreveio a cólera. Lacrosse de­cretou estado de sítio em Basse Terre e demitiu o gover­no municipal. Os recrutas “negros” protestaram e foram submetidos a conselho de guerra. Alguns foram deportados. E quando o bravo Joseph Lagarde, apelida­do “Josie”, por haver gritado orgulhosamente a seu car­cereiro, do fundo de sua cela: “Não vamos ficar aqui para sempre!”, “não houve ninguém em Guadalupe que não sentisse, por assim dizer, estar sendo fuzilado junto

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com ele”.1 Lacrosse revelou sem demora o projeto de mandar deportar, se necessário, todos os homens de cor da colónia. Em outubro de 1801, surgiu uma denúncia de um complô de oficiais. Alguns deles, especialmente Joseph Ignace, abertamente favoráveis à secessão, pro­vocaram uma rebelião do exército e deram ordem de prender todos os “brancos”. Pélage conseguiu apaziguar os ânimos e reuniu os notáveis em Pointe-à-Pitre a fim de formar um conselho provisório. Lacrosse reúne en­tão tropas a fim de marchar contra eles. Finalmente, Ignace o aprisionou, mas na noite de 6 de novembro de 1801Pélage conseguiu embarcá-lo a bordo de um navio dinamarquês, evitando sua morte certa. Delgrès, aju­dante de ordens de Lacrosse, preferiu ficar em Guada- lupe. Sabia estar cometendo um ato de rebeldia, pois nada mais restava senão uma prova de força capaz de dobrar o ditador.

Em vez de regressar à França, Lacrosse fez o navio desviar-se para Dominique, onde foi acolhido pelos britânicos, que acabavam de assinar as preliminares da paz, enquanto o conselho provisório de Pélage pedia a Bonaparte, numa carta ao mesmo tempo lisonjeira e ri­dícula, que enviasse novo emissário. Acreditando asse­gurar para si próprio o reconhecimento futuro como “herói dos guadalupenses”, “astro benfeitor que acalen-

^uguste Lacour, Histoire de la Guadeloupe (História de Guadalupe),

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ta” e “cujas virtudes estão gravadas em todos os cora­ções”, Pélage tomou em pessoa medidas “raciais”, proi­bindo aos “negros” certas posições.

Ao ser informado dos acontecimentos, no início de janeiro de 1802, Napoleão naturalmente preferiu o en- frentamento e encarregou o general Nicolas Gobert, homem seguro e conhecedor do terreno, pois era créole de Guadalupe e havia sido designado por Marie-Ga­lante como suplente nos Estados Gerais, de preparar secretamente uma expedição cuja direção o déspota tentou confiar a Jean-Baptiste Bemadotte, comandan­te do exército do Oeste, por intermédio de seu irmão Joseph Bonaparte.

Bemadotte e Joseph haviam se casado com duas ir­mãs da família Clary, e Désirée, mulher de Bemadotte, havia sido anteriormente noiva de Napoleão. Aliás, Bemadotte era amigo de Victor Moreau, um dos adver­sários de Bonaparte. Afastar Bemadotte enfraqueceria Moreau. O Primeiro Cônsul se abriu com Joseph: “De­sejo que ele diga se lhe convém ir a Guadalupe na qua­lidade de capitão geral. Essa ilha está prosperando e sua cultura está em grande atividade; mas Lacrosse, que se indispôs com os habitantes e somente tem consigo qui­nhentos brancos, foi expulso de lá e um mulato se colo­cou na chefia da colónia. Na ocasião ainda ignoravam que havia sido celebrada a paz. Mandarei zarpar três vasos de guerra, quatro fragatas e três mil homens expe­

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rientes de infantaria, a fim de desarmar os negros e res­tabelecer para sempre a tranquilidade. É uma missão importante e agradável sob todos os pontos de vista, pois nas circunstâncias atuais poderá proporcionar gló­ria e permitir a prestação de um grande serviço à Re­pública, devolvendo a ordem à colónia para sempre.” Percebe-se com espanto até que ponto a visão do Pri­meiro Cônsul era “racial”. Para ele, a ordem das coisas havia sido subvertida pelo simples fato de que um “mu­lato” assumira o poder e que os “negros” estivessem ar­mados. Restabelecer a ordem e a tranquilidade era uma forma oblíqua de denominar o retorno à escravidão “para sempre”. A questão era inconfessável, e Napo­leão fez questão de assinalar: “Convém que guardeis segredo sobre tudo isto.” Bemardotte não se deixou en­ganar e recusou liminarmente essa missão tão deson­rosa. Richepance, que era de Lorena, afinal de contas valente soldado, não teve os mesmos escrúpulos e rece­beu oficialmente ordem de desarmar os “negros” e a missão secreta de restabelecer a escravatura. Em caso de resistência, Richepance recebeu carta branca, como Leclerc, e poderia chegar a uma transfusão completa de 93 mil “negros e homens de cor”. Nessa hipótese, seria necessário “desfazer-se” da população rebelde e subs­tituí-la por escravos recém-chegados. Além da depor­tação e da venda dos “bandidos” nas ilhas vizinhas, previa-se friamente o genocídio. Na verdade, desde a

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assinatura dos acordos preliminares, os navios negreiros de Nantes, Bordeaux e demais portos já haviam zarpa­do em direção à costa da África. Tinham todo o interes­se em trabalhar em tempo integral. Para eles, a solução final seria o melhor de tudo e garantiria alguns anos de prosperidade.

Richepance havia servido no exército do Reno sob as ordens de Moreau e num ataque audacioso obtivera a vitória de Hohenlinden, em 3 de dezembro de 1800. Esse êxito valeu a Moreau a glória, mas Richepance ganhou o rancor de Bonaparte. Moreau era, com efeito, um dos mais ferozes opositores do Primeiro Cônsul. A expedição a Guadalupe, como a dirigida a Saint-Domingue, serviu também para afastar os soldados do exército do Reno, considerados republicanos e certamente pouco favorá­veis a uma guinada monárquica do regime consular.

Além de Gobert, Richepance tinha como adjuntos homens dispostos a tudo para obter uma promoção: os insignificantes Pierre Dumoutier, proprietário de escra­vos na Martinica, Xavier de Ménard e Charles Sériziat. François-Joseph Bouvet, o almirante designado para transportar o exército, era natural de Lorient, porto negreiro, e havia servido inicialmente num navio da Companhia das índias. Naturalmente não teria escrú­pulos em “bater nos negros”.

No dia 6 de maio, ao meio-dia, Richepance surgiu na enseada de Pointe-à-Pitre, após haver comandado

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postos de combate. Bouvet organizou seu esquadrão num dispositivo de combate em linha. Os artilheiros das fragatas La Pensée, La Vohntaire, La Consolante, La Didon e La Romaine, encarregadas de forçar a passagem, colocaram-se em seus postos e os soldados se prepara­ram para desembarcar. Se Pélage tivesse reservado para Richepance a mesma acolhida que Toussaint e Chris- tophe proporcionaram a Leclerc no Cap Haitien, não há dúvida de que após o verão de 1802 Guadalupe não seria mais francesa. Mas, se Joseph Ignace era da têm­pera de Christophe, Pélage realmente nada tinha a ver com Toussaint. Preferindo a sabujice e a submissão, despachou uma embaixada cujos membros, diante da desconfiança de Richepance, chegaram a propor que se convertessem em reféns. Os barcos fundearam e as tro­pas começaram o desembarque. Do cais, viam-se os sol­dados levando os fuzis para os escaleres.

Em vez de deixar que os escravistas chegassem à moda haitiana, exclamando “Amigos, não atirem!” e em seguida, com uma única descarga, deixar duzentos mortos estendidos na praia, para mostrar como os “ne­gros” são idiotas e submissos, Pélage, lambe-botas ridí­culo, talvez já convencido desde Dominique por espiões de Lacrosse, espera o enviado de Bonaparte na praça, com uma guarda de honra e banda de música. Apesar de seu zelo, o puxa-saco foi humilhado publicamente. A guarda de honra foi dispersada, e Richepance, que se

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aproximava a bordo de uma chalupa e viu aquela alegre multidão negra a esperá-lo no cais, deu bruscamente meia-volta para ir refugiar-se em sua fragata. Tanta submissão lhe parecia inverossímil e portanto suspeita. Somente desembarcaria depois das tropas. Todos os sol­dados “negros” encontrados pelos homens da expedi­ção foram desarmados, despidos, espancados e içados para bordo das fragatas, onde foram acorrentados. Al­guns conseguiram escapar com suas armas.

Mas Ignace se retirou com sua unidade enquanto o lamentável Pélage, apesar de todas as provas que dera sobre sua disposição de colaborar, foi colocado em pri­são domiciliar vigiada.

A fim de controlar Guadalupe, Richepance precisa­va dominar Basse-Terre, comandada pelo coronel Louis Delgrès. Avisado da atitude das tropas de desembarque em Pointe-à-Pitre, Delgrès não poderia ter ilusões. Em nome da “humanidade” e do “direito natural”, tomou o partido da “resistência à opressão”. Liberdade ou mor­te! Em troca da honra de resistir à escravatura, esco­lheu a morte e deu aos europeus colocados sob suas ordens a possibilidade de escapar dela. Delgrès mandou imprimir uma declaração da qual foi signatário. Esse admirável testamento filosófico foi preparado por Mon- nereau, jovem créole “branco” da Martinica. Delgrès e Monnereau, perfeitamente conscientes de que “exis­tem homens [...] que não querem ver negros, ou ho­

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mens cujas origens são dessa cor, a não ser nos grilhões da escravidão”, dirigiram-se à posteridade. Somente se enganaram em um aspecto. Não ousando crer que Napoleão fosse o instigador do restabelecimento da es­cravidão, preferiram atribuir essa falta a subordinados in­significantes cujo poder estava em seu afastamento da autoridade da qual ele emanava, quando, na verdade, apenas executavam ao pé da letra as ordens do Primeiro Cônsul. Esse engano pueril ainda é compartilhado hoje em dia por não poucos franceses que preferem acusar os subalternos do Consulado em vez de seu chefe. Para os políticos, é também um compromisso cômodo: é mais fá­cil mudar o nome da rua Richepance, como fez o prefeito de Paris em 2001, do que o da rua Bonaparte. Napoleão sempre pensou em seu legado. Nunca ordenou o incon­fessável por escrito. Tudo foi sempre implícito. Hitler não esqueceria a lição.

Quando os navios negreiros apareceram diante de Basse-Terre, em 10 de maio de 1802, foram recebidos com uma descarga de todas as peças de artilharia do forte Saint-Charles e de todas as baterias da costa. A frota, a bordo da qual Magloire Pélage não teve vergo­nha de embarcar como ajudante-de-ordens de Gobert, foi obrigada a continuar a viagem e fundear além de Basse-Terre, entre Bailiff e Vieux-Habitants.

Por ordem de Richepance, Pélage escreveu uma car­ta de intimidação a seu antigo companheiro, na espe­

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rança de fazê-lo depor as armas. Em vão. As tropas de­sembarcaram apesar de uma feroz resistência em Bailiff, onde os antigos escravos, homens e mulheres que ha­viam se tomado cidadãos franceses graças à revolta de seus camaradas haitianos, atiravam contra o vencedor de Hohenlinden cantando a Marselhesa. Entre esses re­sistentes havia camponeses que haviam descido dos sí­tios de La Coulisse e de Saint-Robert, onde cinquenta anos antes o Cavaleiro de São Jorge havia dado seus primeiros passos.

Durante três dias, as tropas de Delgrès perderam terreno, porém resistiam. Em 12 de maio, Richepance foi obrigado a mandar imprimir uma declaração prome­tendo que a liberdade seria mantida e que os insurgen- tes seriam perdoados caso depusessem as armas. Teve, porém, a falta de tato de mencionar o retomo de La- crosse. Dois dias depois, uma nova proclamação, igual­mente mentirosa como a primeira, informava que Lacrosse fora efetivamente substituído por Richepance nas funções de capitão geral. Como Delgrès não reagis­se, armou-se o cerco ao forte Saint-Charles. Riche­pance mandou buscar artilheiros de morteiros e obuses junto aos britânicos. Os sitiados tentaram em vão di­versas saídas.

Tendo sofrido severas perdas, o emissário de Napo­leão começou a temer que a situação piorasse, quando Pélage, indo ao cúmulo de sua felonia, sugeriu-lhe

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rearmar seiscentos homens das “tropas negras” que ain­da estavam acorrentados nos navios. Esse reforço fez a situação mudar.

Enquanto esperava, recolhido em sua cidadela, Del- grès tocava estoicamente o violino sob as bombas que acabaram por destruir toda a sua artilharia. Após uma semana, conseguiu evacuar o forte Saint-Charles com Ignace, que, içando a bandeira vermelha, partiu para Pointe-à-Pitre com a intenção de levantar as oficinas de artesãos da Grande-Terre. Ignace foi perseguido por Gobert, o qual, para carregar suas bagagens, lançara uma ordem de requisição de “160 negros, homens ou mulheres”. Entrincheirado no forte de Baimbridge, Jo- seph Ignace foi vencido por Gobert com a ajuda do trai­dor Pélage, após gloriosa resistência, em 25 de maio de 1802. Deu um tiro na cabeça a fim de não cair vivo nas mãos dos escravistas.

Delgrès, que se retirara para o sopé do vulcão La Soufrière, acima do sítio Danglemont (município de Saint-Claude), esperou durante três dias o auxílio que Ignace prometera mandar-lhe. Mas nada aparece. Te­mendo o pior, mandou dinamitar a casa.

Em 28 de maio, decidido a acabar com a batalha, lançou-se ao ataque daquela última posição. A luta foi direta, corpo a corpo. Delgrès, ferido no joelho, instala­ra-se num sofá do salão da casa com seu ajudante-de- ordens. Esperou calmamente a chegada dos negreiros,

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rodeado por trezentos homens fiéis que não o haviam abandonado. Mesmo arriscando-se a morrer, os resis­tentes resolveram não se render e matar o maior núme­ro possível de escravistas. Um rastilho de pólvora partia do sofá e ia até as cargas de explosivos. Dois braseiros acesos foram colocados diante de Delgrès e seu aju­dante-de-ordens. Quando fossem avisados da chegada dos atacantes por um sinal convencionado, bastaria vi­rar as brasas com um pontapé para que a pólvora se incendiasse.

De fato, quando a primeira coluna de assalto entrou no terraço, toda a área desapareceu numa formidável deflagração.

Além da morte de um herói da liberdade a que a República francesa jamais dedicou a homenagem que merecia — pelo menos mencionando seu nome em to­dos os livros de história —, esse incidente final marcou, durante 46 anos, o retomo de Guadalupe a uma época que todos acreditavam ter passado para sempre e cujas sequelas ainda não estão apagadas.

Em uma carta a seu ministro da Marinha, Decrès, Bonaparte confessa haver dado a Richepance a ordem “de estabelecer a escravatura em Guadalupe, como era o caso na Martinica, tendo o cuidado de manter o maior sigilo sobre esta medida”, e deixando-lhe “a escolha do momento de publicá-la”. Mas como se a data tivesse sido combinada previamente, no momento em que um decre­

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to consular restabelecia, em 16 de julho de 1802, a escra­vidão em Guadalupe, no dia seguinte, a milhares de qui­lómetros de distância, Richepance lançou um decreto que restabelecia os “verdadeiros princípios”, invocando, como certos “filósofos” do século XXI, uma “conspiração geral [...] contra os brancos”. A escravatura voltava a vi­gorar, porém, em conformidade com as instruções, sem que a palavra jamais fosse pronunciada. Os 90 mil “no­vos franceses”, emancipados em 1794, tomaram-se no­vamente escravos, e os filhos que tinham podido ter ao longo desses oito anos e que tinham nascido livres sofre­ram a mesma sorte. Quanto aos “negros e “pessoas de cor” que já eram livres no momento da abolição, perde­ram a qualidade de cidadãos franceses que a lei de 28 de março de 1792, rubricada por Luís XVI, lhes havia con­cedido. O suplício do chicote foi novamente oficializado sob a nova denominação de “disciplina corretiva”. Em 29 de julho, coroando a obra de restauração que lhe havia sido confiada, Richepance anulou a lista de emigrados guadalupenses. Em 4 de agosto, reinstalou Lacrosse nas funções de capitão geral. E uma semana depois que Richepance foi levado pela febre amarela, Lescalier, pre­feito da ilha, colocou em vigor um inverossímil decreto relativo à situação das pessoas “de cor”. Dali em diante, não apenas os 90 mil cidadãos franceses de Guadalupe— libertados pelo decreto de 16 de pluvioso— voltavam a ser escravos, mas os três mil “negros” e “pessoas de cor”

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que se acreditavam livres passaram a ser obrigados a pro­var imediatamente o que, na prática, era impossível em muitos casos. Quando da ascensão de Luís XVI ao trono em 1774, o governador e o intendente da Martinica bem que haviam tentado tomar uma medida desse género. Mas o conselho superior de Guadalupe, que no entanto era composto essencialmente de colonos, havia se oposto com tanta emoção que recebeu o apoio de Versalhes. Com Napoleão, e com a ajuda do racismo, foi possível ir muito mais longe do que o Antigo Regime. O registro civil dos escravos seria feito à parte, a fim de apagar todas as lembranças dos antigos cidadãos franceses transfor­mados em vulgares bestas de carga pelos caprichos de um pequeno aventureiro racista. Dali em diante ver-se-iam crianças vendidas sem as mães, o que o artigo 47 do Có­digo negro proibia da maneira mais formal. Assim, em Basse-Terre, em 19 de dezembro deJjSOó, a pequena Ro­se, “de cerca de seis anos de idade”, filha de Praxelle, “fugitiva há muito tempo”, foi oferecida publicamente como “abandonada” pelo diretor dos Domínios “a quem desse mais no último lance”, mediante a aplicação do sis­tema infernal estabelecido pelo tirano.

Após a explosão do sítio Danglemont, alguns com­panheiros de Delgrès encontraram asilo na ilha de Saint-Barthélémy, de onde procuraram desesperada­mente preparar um desembarque, enquanto cerca de

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seiscentos resistentes agrupados em torno dos oficiais Palerme e Fourne se refugiavam nos bosques das mon­tanhas próximas a Basse-Terre, firmemente decididos a prosseguir a luta. Em breve iriam juntar-se a eles os novos fugitivos que o restabelecimento da escravatura inevitavelmente produziria. Os membros da resistên­cia guadalupense tentaram audaciosas operações, às vezes vestindo o uniforme do exército indígena que haviam criado.

Embora a busca já tivesse sido organizada por uma milícia de quatrocentos homens com métodos expedi­tos, os Caçadores dos bosques, cujo comando e guarnição foram confiados a colonos que voltavam da emigração, a resistência continuaria por muito tempo na clandesti­nidade, muito além da detenção de Fourne, último companheiro de Louis Delgrès, em novembro de 1805.

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Quando Napoleão recebeu, no dia 14 de outubro de 1801^0 coronel Vincent, emissário do governador “ne­gro” de Saint-Domingue, encarregado de informá-lo da aprovação de uma Constituição que transformava o Haiti em Estado associado e conferia a Toussaint poder vitalício sobre a ilha já reunificada, a decisão de enviar uma expedição já estava tomada vários meses antes, ape­sar da reserva de alguns espíritos lúcidos, como o de Fou- ché. Aliás, em Brest, as tropas já haviam embarcado e a conclusão das preliminares da paz com a Inglaterra tor­nava possível sua partida, tão logo Londres desse o sinal verde.

Napoleão estudou meticulosamente cada detalhe da operação. Pediu a Berthier que fizesse um resumo dos as­sentamentos pessoais “de todos os oficiais de artilharia e de engenharia que tenham estado em Saint-Domingue, de todos os oficiais de estado-maior que tenham servido com o general Hédouville e dos lugares onde estejam

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atualmente e de juntar no departamento de cartografia todos os planos das praças-fortes e fortalezas de Saint- Domingue”. A referência a Hédouville revela o pre­conceito do Primeiro Cônsul. O general-conde Joseph d’Hédouville, ex-pajem da rainha, notório escravista, havia de fato sido enviado a Toussaint Louverture pelos “reacionários” do Diretório antes do expurgo antimo- narquista de frutidor (4 de setembro de 1797). Ridicu­larizado, embarcara de volta à França em outubro de1798 sem haver conseguido um mínimo de ascendência sobre o ex-escravo. Para Bonaparte, isso equivalia ao início da rebelião.

Mesmo assim, ele não excluiu a possibilidade de que essa expedição, ainda que destinada a restabelecer a es­cravidão, pudesse apoiar-se em Toussaint. No mês de março de 1801 foi preparada uma carta que o nomeava capitão geral da colónia. Porém, a partir do momento em que Louverture demonstrou, por ocasião do sétimo aniversário da data de 16 de pluvioso, sua feroz hostili­dade a qualquer medida contrária à liberdade geral, a questão passou a ser desembaraçar-se dele e até mesmo suprimi-lo fisicamente.

A fim de conduzir a ação, Napoleão pensou ini­cialmente no general François Delaborde e acabou no­meando um membro de seu círculo mais íntimo, seu cunhado Victor-Emmanuel Leclerc. Com essa designa­ção, além de utilizar um homem dedicado de corpo e

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alma e disposto a tudo, a escolha permitia ainda resol­ver questões familiares complicadas. Napoleão desejava casar seu irmão Louis com Hortense, filha de Joséphi­ne. As más línguas diziam que Napoleão teria engra­vidado sua própria enteada. Percebendo dessa forma que a esterilidade de Joséphine não lhe era imputável, ele estaria procurando uma solução por meio da qual adotasse um possível “herdeiro”. Louis deve ter tido certas dúvidas. Mais tarde teria declarado que, se essa adoção ocorresse, ele “se jogar[ia] no Sena”. Seja como for, o importante é que na época Napoleão sonhava em subir ao trono e fundar uma dinastia. Mas Pauline, sua irmã mais moça, com o apoio de Lucien e da mãe Le- tizia, opôs-se categoricamente a esse casamento. Até aquele momento, o “herdeiro” era Dermide, filho de Pauline e — em princípio — de Leclerc. O próprio dita­dor havia escolhido aquele nome de batismo em home­nagem a um bestseller da época, os Poemas de Ossian, de MacPherson. O pai foi informado simplesmente por meio de uma nota de estilo militar que demonstra bem o funcionamento daquela tribo: “Meu sobrinho vai se chamar Dermide!”

Pauline dominava Napoleão, porque muito cer­tamente tinha relações incestuosas com ele, o que é tes­temunhado especialmente por uma carta na qual ela explica claramente o assunto a Talleyrand. Essa jovem livre não era adepta da discrição. Sua franqueza, suas

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travessuras, principalmente com o comediante Rape- nouille, cobriam de ridículo seu irmão, arrivista pouco respeitado. Ao receber ordem de acompanhar o mari­do, Pauline recusou categoricamente, utilizando todos os pretextos possíveis. Mas Napoleão usou a força. A jovem recalcitrante, acompanhada pelo filho de so­mente três anos de idade, foi praticamente raptada e levada sob escolta a Brest. Embora conhecesse perfeita­mente os riscos que os membros da expedição poderiam correr, o autocrata não hesitou em arriscar delibera­damente a vida do sobrinho que já não tinha utilidade para ele e a de sua própria irmã, cujo desaparecimento físico ele vislumbrava sem pestanejar. “Estou muito contente com a conduta [de Pauline]”, escreveria ele mais tarde, cinicamente, ao saber que ela tinha a possi­bilidade de não regressar viva. “Ela não deve temer a morte, pois morreria gloriosamente com um exército e sendo útil a seu marido.”

Após haver redigido pessoalmente o cenário políti- co-militar da campanha de Saint-Domingue, Napoleão o explicou longamente em instruções por escrito. As ordens mais importantes, no entanto, foram recebidas verbalmente por Leclerc: não apenas deveria restabele­cer a escravidão, custasse o que custasse, mas também seria preciso exterminar os cidadãos “negros”, os quais, como Napoleão corretamente acreditava, não pode­riam ser feitos novamente escravos após oito anos de li­

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berdade sem que fosse necessário mobilizar considerá­vel número de soldados para supervisioná-los, coisa im­possível em curto prazo, principalmente por causa da febre amarela que atacava seletivamente os recém-che- gados. Seria portanto melhor abater aquela “manada” contaminada pelo vírus da liberdade e substituí-la por novas cabeças sãs importadas da África e prontas a se­rem domesticadas como convinha.

O plano do restabelecimento da escravidão no Haiti exigia assim o massacre de boa parte da população. Al­gumas centenas de milhares de mortos seriam em breve substituídos por quinhentos mil africanos. Leclerc, con­vencido por Napoleão de que encontraria uma “boa ocasião para ficar rico”, aceitou essas ordens dementes em 24 de outubro de 1801.

O Primeiro Cônsul havia planejado apoiar-se em al­guns oficiais “de cor” que se encontravam na França. Em sua mente, isso apresentava diversas vantagens: seu conhecimento do terreno seria útil e eles poderiam sus­citar uma divisão capaz de terminar, como anterior­mente durante a rivalidade entre Toussaint e Rigaud, em uma luta fratricida dos “negros” do norte contra os “amarelos” do sul da ilha. Era também uma maneira de fazê-los deixar o território da metrópole, contribuindo assim para um início de purificação “racial”. Alexandre Dumas escreveu em suas Memórias que seu pai, o gene­ral, havia recebido a proposta de comandar a expedi-

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ção, e recusou-a. Isso é extremamente duvidoso. Na- poleão nunca pediria a um ex-escravo, e especialmente àquele, que fosse restabelecer a escravidão. Não pode­ria ordenar ao general que fosse matar sua própria mãe (que ainda vivia em Jérémie) nem suas irmãs. No en­tanto, é possível que Dumas tenha sido consultado para a preparação dos planos da expedição, e até que lhe te­nha sido proposto participar como subalterno, o que sem dúvida ele terá recusado. Ele não teria motivo para tomar parte, em sua ilha natal, em uma empresa co­lonialista como a que não desejou prosseguir no Egito. O certo é que o general viajou a Paris nesse período de preparativos e que foi informado da iminente partida da tropa. É possível que tenha tido contato com oficiais da expedição, especialmente Nicolas Duhamel, antigo ca­pitão da Legião dos Americanos e do Sul, em cuja casa Saint-George morreu. Também pode ser que haja se avistado com Pauline e que lhe tenha entregado uma procuração para sua mãe, Cessette, feita em 8 de no­vembro de 1801 (cinco dias antes da partida da jovem) por um tabelião de Saint-Germain-em-Laye: isso prova que ele ignorava os projetos escravistas de Napoleão. Este último havia preparado um plano de deportação de todos os oficiais “de cor” da expedição, principal­mente Chanlatte, Pétion, Rigaud e Villate. Por esse motivo ele mandou que todos esses embarcassem na Uha de Aix (que servia de quartel para as “tropas ne-

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gras”) no mesmo navio, La Vertu, cujo comandante, François Montalan, havia recebido ordem de manter-se na retaguarda do comboio. Caso Toussaint fosse domi­nado, La Vertu deveria imediatamente dar meia-volta, tomar o rumo de Madagascar e lá depositar os indesejá­veis. O general Dumas talvez tenha ouvido falar desse projeto, o que explicaria sua recusa em embarcar.

Tão logo a frota zarpou de Brest, da ilha de Aix e de Lorient, em meados de dezembro, Napoleão, rapida­mente informado pelo telégrafo Chappe, mandou pu­blicar os editais do casamento de Louis e Hortense.

A travessia foi feita sem dificuldade. Os 54 navios da expedição, que transportavam 21 mil homens, reu­niram-se a leste da ilha, ao largo do cabo Samana, onde foram avistados, certamente pelo próprio Toussaint, no final do mês de janeiro de 1802. O velho general não era tolo e declarou a seus íntimos que Napoleão chega­ra para “aniquilar” o Haiti.

Enquanto uma divisão se dirigia a Porto Príncipe, o grosso da frota surgia diante do Cabo. Havia passagens na entrada da enseada que era preciso conhecer a fim de não naufragar nos rochedos. Mau sinal: as balizas que permitiam a manobra sem piloto haviam sido reti­radas. Ora, o almirante Villaret de Joyeuse, responsável pela parte naval, não havia previsto essa eventualidade, na certeza de que a acolhida não seria hostil. Napoleão, que nada sabia de marinha, esquecera esse detalhe es-

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sencial. Imenso erro, sem dúvida. Após uma tentativa de conversações, graças ao “bravo negro” Télémaque, delinquente da categoria de Pélage que exercia as fun­ções de prefeito do Cabo, Leclerc desembarcou em 16 de pluvioso, data comemorativa do oitavo aniversário da abolição da escravatura. Mas como Christophe ha­via incendiado a cidade na noite anterior, o chefe da expedição nada mais conquistou senão cinzas. Mesmo assim ainda tentou parlamentar utilizando os filhos de Toussaint que estudavam em Paris e que haviam sido trazidos a fim de levar ao pai uma carta melosa do Pri­meiro Cônsul. Mas isso de nada adiantou. A guerra tinha começado. Uma “guerra das arábias” sob o sol escaldante dos trópicos, na selva, em terreno particu­larmente acidentado, propício às emboscadas.

Embora os principais lugares-tenentes de Leclerc, Do- natien de Rochambeau, Jean Boudet e François Périchou de Kerverseau tivessem assumido facilmente o controle de Fort-Dauphin, Porto Príncipe, Les Cayes e toda a parte oriental da ilha, em Port-de-Paix Amable Humbert en­controu forte resistência do general Maurepas, um dos mais valorosos subordinados de Toussaint.

Como a metade dos homens de que dispunha em breve se juntasse a Leclerc, o chefe da resistência con­centrou suas forças na região de Gonaíves. Enquanto as tropas comandadas por Dessalines se entrincheiravam no forte de Crête-à-Pierrot, posição que o general hai-

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tiano conseguiria defender em inferioridade numérica de um contra dez durante três semanas, infligindo uma perda de dois mil homens aos escravistas, Toussaint su­bia para o norte com a intenção de armar os campone­ses e juntar-se a Christophe, que permanecera próximo ao Cabo.

Após um mês de campanha e violentos combates, a situação continuava confusa. Leclerc perdera um terço de seu exército. Outro terço estava no hospital, já toma­do pelo terrível “vomito negro”. Visivelmente sem com­preender o que estava acontecendo, pois Napoleão não o havia informado do risco de epidemia, não teve outro recurso senão iniciar negociações com os rebeldes, que, por seu lado, tinham todo o interesse em ganhar tempo sem se arriscar a um combate frontal e sangrento. Tous­saint, fino estrategista da guerra revolucionária, condu­zia as operações de forma genial. No princípio do mês de

_maio_acabou aderindo aos franceses, junto com Chris­tophe e Dessalines, mas sem capitular. Estranha paz. Os generais indígenas conservaram seus postos, suas tropas armadas e seu prestígio. Leclerc, colhido nas malhas do sutil Toussaint, declarou uma anistia geral. Ei-lo agora no comando de um exército composto majoritariamente de “negros” e de soldados “de cor” potencialmente hostis, enquanto a febre amarela, como havia sido advertido Bonaparte, começava a fazer “estragos assustadores”. Sem dúvida, com um intervalo de três ou quatro sema-

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nas, Napoleão fora informado da evolução da situação, não somente pelos barcos mais rápidos da frota que fa­ziam o vai-e-vem para transmitir despachos e transpor­tar mensageiros encarregados de relatar de viva voz o que não podia ser escrito, mas também por toda uma rede de espionagem. O ditador, portanto, seguia de per­to os acontecimentos, esperando impacientemente um próximo restabelecimento da escravidão na grande co­lónia e uma transferência da população. Como o tráfico havia sido legalizado, os navios negreiros estavam a ca­minho. Ele deu o aviso. “O comércio está ativado e se dirige a Saint-Domingue”, preveniu febrilmente o pe­queno negreiro. “Protejam-no por todos os meios!”

Tampouco Napoleão deixou de recordar a Leclerc que deveria seguir suas ordens à risca. Tanto as disposi­ções escritas quanto as injunções secretas: “Siga exata- mente suas instruções”, ordenou o Primeiro Cônsul a seu cunhado em 16 de março. “Seja firme! Reprima toda sorte de banditismo!”

Enquanto aguardava o momento de firmeza e re­pressão quando poderia “desfazer-se” de Toussaint, de Dessalines e de Christophe, Leclerc enriquecia, como havia sido instruído. Os espiões do futuro Luís XVIII foram informados de que ele “por sua parte, trabalhava para aumentar [sua fortuna]: leva Saint-Domingue à ruína com os impostos. Tão logo os habitantes fabricam um pouco de açúcar, o produto é confiscado por seus

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agentes. O proprietário fica com um recibo. O açúcar é transportado para o Cabo, onde é vendido para atender às necessidades da colónia. O general-em-chefe, seu estado-maior e seus ajudantes-de-ordens se servem à vontade do dinheiro auferido, e como os proprietários somente seriam pagos após a evacuação, pode-se ima­ginar quanto iria sobrar para eles”. Naturalmente, Leclerc não se esquecera. Em 7 de maio de 1802, escre­veu ao cunhado: “Há um meio de me deixar arranjado para sempre. Concede-me a ilha de Gonave, a título de recompensa. Ela me renderá 200 mil. francos du­rante oito anos com o produto que retirarei das flores­tas.” Leclerc certamente não esperou autorização de Napoleão. No dia seguinte a essa carta, remeteu trezen­tos mil francos a seu irmão e encomendou obras de decoração de seu castelo em Montgobert. Por seu tur­no, uma amiga de Pauline, Mme de Saint-Maur, relata que “Leclerc não negligenciava seus interesses. Diver­sos navios, carregados de riquezas, aguardavam apenas suas ordens para zarpar, quando Bonaparte, que tinha espiões por todos os lados e, por conhecer o estado pre­cário de saúde do cunhado, previa seu fim próximo, deu instruções para que essa fortuna não fosse herdada pela viúva, e sim que lhe fosse enviada diretamente após a morte do general”.

Enquanto Leclerc “se arranjava”, Toussaint se reti­rou para sua casa. Sem ter qualquer ilusão, aguardava o

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momento favorável para retomar a ofensiva, desta vez armando todos os camponeses. Mas em 7 de junho, aplicando as ordens recebidas, Leclerc mandou prendê- lo à traição. Toussaint foi convidado a almoçar pelo odioso general Jean-Baptiste Brunet. Durante a refei­ção, seis vigorosos granadeiros e carabineiros, disfar­çados de empregados domésticos que serviam a mesa, atiraram-se contra o idoso haitiano e o jogaram por ter­ra como a um animal feroz. Mas esse grosseiro rapto de nada serviu. “Arrancando-me de meu país”, declarou sabiamente Toussaint a bordo do barco que o levava para a França, “nada mais fizeram do que derrubar em Saint-Domingue a árvore da liberdade para os negros. Essa árvore depressa renascerá, porque suas raízes são profundas e vigorosas.” Aliás, o próprio Leclerc concor­dava: “Raptar Toussaint não resolverá tudo. Há aqui dois mil chefes que seria preciso capturar!” O rapto do haitiano somente poderia ter sido eficaz caso ele fosse um ditador detestado, como certos “historiadores” de hoje gostariam de espalhar. Mas Toussaint encarnava uma nação inteira. Desse ponto de vista, raptá-lo fora um erro e somente poderia deflagrar os primeiros sinais de uma insurreição geral.

Quando Leclerc iniciou o desarmamento das tropas coloniais, ocorreram rebeliões em diversas partes da ilha, fazendo surgir novos chefes indígenas. A fim de dividir seus adversários, o comandante da expedição tratou de

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confiar a repressão aos generais “negros” que haviam se juntado a ele. Mas a legalização do tráfico e o estabele­cimento de facto da escravidão em Guadalupe não tar­daram a ser conhecidos pela população. Além disso, os jornais de Paris circulavam no Cabo e os negreiros dos portos franceses faziam arranjos para colocar naquela colónia, onde potencialmente a demanda seria maior, a carga humana trazida pelos navios que corriam as cos­tas africanas. Leclerc se queixou: “Eu havia pedido, ci­dadão cônsul, que nada fosse feito que pudesse fazê-los temer por sua liberdade até que eu estivesse preparado e estivesse próximo desse momento. De repente chegou aqui a lei que autoriza o tráfico nas colónias e cartas comerciais de Nantes e do Havre que perguntam se é possível mandar negros para cá! E mais do que isso, o general Richepance acaba de lançar um decreto para o restabelecimento da escravidão em Guadalupe!”

Com efeito, aquelas notícias inquietantes provoca­ram novos distúrbios. As tropas coloniais iam aos pou­cos se rebelando, os oficiais “negros” e “de cor” tinham motivos para temer a deportação. Mas embora Leclerc advertisse a Napoleão que já “seus planos sobre as coló­nias são perfeitamente conhecidos”, o ditador, recente­mente autoproclamado Primeiro Cônsul vitalício, não quis saber de nada, cego que estava por seu racismo. Numa revisão da anistia concedida por Leclerc, ele diri­giu uma nota ao ministro da Marinha a fim de limitá-la

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às pessoas e não a seu património. Resolveu, assim, que “todos os bens dos negros e das pessoas de cor que toma­ram armas e a quem foi concedida anistia segundo o artigo precedente serão incorporados à propriedade pú­blica”. Essa provocação nada mais fez do que reforçar a revolta dos indígenas vítimas do confisco, enquanto os oficiais da expedição iam morrendo uns após outros.

Compreendendo a extensão do desastre e começan­do a ter problemas de saúde, Leclerc solicitou repatria­ção. Como já havia enriquecido, passou a demonstrar repugnância, invocando sua consciência. “Por ocasião de minha partida”, escreveu ele a Napoleão, “a colónia estará pronta a receber o regime que quereis por bem conferir-lhe, mas caberá a meu sucessor dar o passo fi­nal, se estiverdes de acordo. Não farei nada contrário ao que disse aqui!” O general-em-chefe explicou-se melhor numa carta cifrada dirigida ao ministro da Ma­rinha: “Não penseis em restabelecer a escravidão aqui ainda por algum tempo! Creio poder fazer tudo o que seja necessário para que meu sucessor nada mais preci­se do que executar o decreto do governo, mas depois das inúmeras proclamações minhas para assegurar a li­berdade aos negros, não desejo entrar em contradição comigo mesmo. Assegurai, porém, ao Primeiro Cônsul que meu sucessor encontrará tudo preparado.”

Em meados de outubro, iâ enfermo, Leclerc nada mais controlava. Refugiara-se no Cabo. Dessalines e

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Christophe, que haviam se juntado a ele na primavera e cuja deportação Napoleão aguardava em vão, haviam passado para o lado dos insurretos. Os oficiais “de cor” que faziam parte da expedição os acompanharam. De­sesperado, Leclerc mandou três emissários a Paris para convencer seu obstinado cunhado da gravidade da si­tuação. Napoleão, um tanto abalado pelas informações, escreveu-lhe em 27 de novembro: “Tenho te acompa­nhado com viva solicitude e estou muito preocupado pelos males que sofres. Confesso que são mais fortes do que eu havia calculado.”

Longe de admitir seu erro, o “calculista” se espanta­va com o que no entanto era previsível: a tenaz resis­tência dos haitianos. “O que ocorreu este ano”, disse ele, “é realmente extraordinário!” Ainda não vira nada. Enquanto aguardava, no entanto, continuou aferrado a suas opiniões escravistas, convencido de que Leclerc iria restituir “a tranquilidade a essa bela e vasta colónia, que é objeto do interesse e das esperanças de todo o nosso comércio”.

Leclerc não leria essa carta. Havia morrido quase um mês antes, maldizendo o louco furioso que o havia envia­do àquele inferno. Segundo as instruções de Bonaparte, foi substituído por Rochambeau, que imediatamente pe­diu autorização para restabelecer a escravidão, mas não conseguiria reconquistar de forma durável as posições perdidas por seu antecessor, apesar dos vinte mil homens

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que Napoleão lhe enviaria como reforços entre fevereiroe junho de 1803.

i . 1Dessalines conseguira ser reconhecido na qualidade

de general-em- chefe. Adotando novo emblema, afir­mou sua clara vontade de obter a independência. Até aquele momento, o pavilhão tricolor sempre fora consi­derado pelos novos franceses de Saint-Domingue como símbolo da união dos “negros”(o azul), das “pessoas de cor” (o vermelho) e dos “brancos”. Era portanto possí­vel uma reconciliação com a França, por meio da ga­rantia da manutenção da liberdade. O novo estandarte adotado por Dessalines, somente azul e vermelho, dei­xava claro que dali em diante estavam rompidos todos os laços com a metrópole.

Em maio de 1803, o reinicio das hostilidades entre a França e a Grã-Bretanha precipitaria a vitória dos anti­gos escravos. Em breve, o bloqueio da Marinha britâni­ca ao Cabo e a Porto Príncipe impossibilitou o envio de reforços. Em agosto, a bandeira azul e vermelha foi iça­da em Jérémie, cidade natal do general Dumas. Em outubro, Dessalines entrava triunfalmente em Porto Príncipe. E em 16 de novembro, trazendo consigo 27 mil homens, bem armados mas quase nus, o ex-escravo surgiu no Cabo, onde Rochambeau se entrincheirara. O caminho para a cidade estava protegido por dois fortes considerados inexpugnáveis e cujo fogo cruzado transformava em suicídio qualquer tentativa de avan-

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ço. Diante de um desses fortes, em Vertières, iria travar- se uma das maiores batalhas da história, em 18 de no­vembro de 1803. A particularidade dessa batalha é que oficialmente, na França, ela jamais existiu. Nenhum li­vro dedicado a Napoleão a menciona. E com razão: sua existência é incompatível com a tese da febre amarela, que, para os propagandistas de Napoleão, seria a única causa da derrota de Saint-Domingue.

Mas a batalha começou ao raiar do dia. E que bata­lha! Compreendendo que a questão da guerra de inde­pendência iria resolver-se ao pé da colina de Vertières, Dessalines decidira tomar o forte, qualquer que fosse o preço a pagar. Estava pronto a sacrificar, se necessário, seus 27 mil homens. Rochambeau não havia previsto n uma batalha tão encarniçada. Durante dez horas os ataques se sucederam, até que as posições dos defenso­res ficaram enfraquecidas. No fim da tarde, as tropas escravistas, desconcertadas pela sanha e bravura dos atacantes, acabaram abandonando o forte, abrindo dessa forma o caminho para o Cabo. Dessalines teve 1.500 mortos e 2 mil feridos, mas conseguiu uma bri­lhante vitória. Rochambeau foi obrigado a escolher entre aguardar o ataque final contra a cidade, arriscando-se assim a ver inutilmente massacrados os poucos milhares de homens que lhe restavam, ou render-se. Como Des­salines recusava qualquer armistício, Rochambeau, em nome de Napoleão, dirigiu no dia seguinte à derrota

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uma carta a seu vencedor pedindo-lhe que aceitasse sua capitulação incondicional, reconhecendo dessa for­ma o malogro da expedição a Saint-Domingue e da ten­tativa de restabelecimento da escravidão e também a perda da colónia. Dessalines concedeu dez dias a Ro- chambeau para embarcar com suas armas e bagagens. Respeitando esse acordo, o exército indígena somente entrou no Cabo em 29 de novembro de 1803. Rocham- beau e os destroços de seu exército voltaram para bordo dos quatro navios que lhes restavam, levando até mes­mo os arquivos de registro, que Dessalines o obrigou a restituir.

Passaram-se horas. Os barcos não se moviam. Ro- chambeau tentava negociar com os britânicos que o es­peravam na saída do porto com 24 veleiros. Seu plano era procurar chegar à parte oriental da ilha onde existia ainda um bolsão de escravistas irredutíveis comanda­dos pelo general Jean-Louis Ferrand. Mas Dessalines mandou apontar a artilharia do forte Picolet contra a esquadra, intimando-a a levantar âncoras sob pena de alvejá-la, e Rochambeau teve de assinar uma segunda capitulação, desta vez com a frota inglesa que cercava o Cabo, à qual ele aceitou render-se entregando todos os seus navios.

Finalmente preparada para zarpar, a esquadra fran­cesa tentou lamentavelmente escapar dos britânicos, apesar dos compromissos assumidos. Capturados, os re­

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manescentes da expedição foram levados à Jamaica onde seriam encarcerados a bordo de navios privados de mastros e transformados em prisões flutuantes. A afronta foi tão grave para Napoleão que ele deixou Rochambeau apodrecer na prisão durante oito anos antes de aceitar uma troca.

Não somente fora perdida a mais bela colónia do mundo, após quase um século de domínio francês, e não apenas pela primeira vez na história da humanida­de uma luta de escravos, iniciada quase com as mãos nuas em 1791, havia levado à independência de um povo; mas, sim, uma grande nação colonialista e escra­vista experimentara sua primeira derrota. Porém, como a batalha de Vertières era negada pela historiografia francesa, nenhuma lição foi aproveitada para o futuro. Um século e meio depois, a cegueira racista provocaria outras capitulações: em Dien Biên Phu e na Argélia. A derrota de Vertières foi somente a derrota de uma certa França: a que se opunha, e que às vezes continua a se opor, aos princípios da Revolução. A revolução hai­tiana, a preço de seu sangue, tornou esses princípios universais. Porém, depois de Vertières, quem ousaria argumentar, a não ser Napoleão e seus admiradores, que todos os homens, ainda que de pele negra, não nas­cem e permanecem livres e iguais em seus direitos?

Também o exército napoleônico conheceu ali sua primeira grande derrota, e a mais humilhante de todas.

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Napoleão foi vencido por “negros”. Dos 60 mil homens enviados a Saint-Domingue pelo tirano racista, somen­te algumas centenas regressaram, após oito anos de ca­tiveiro, e em que estado!

Os generais do exército indígena, reunidos em Go- naíves em 1Q de janeiro de 1804, juraram “renunciar à França para sempre e morrer antes que aceitar viver sob seu domínio”.

Os sequazes racistas de Napoleão nunca perdoariam ao Haiti essa vexatória afronta. Durante duzentos anos, o memorável desastre seria ocultado. Ainda em nossos dias, pretensos “historiadores” evocam a febre amarela e o acaso. Na França, nenhum livro diz a verdade, que no entanto é bastante simples: Bonaparte queria resta­belecer a escravidão e uma nação inteira se rebelou contra ele, esmagando o exército da vergonha.

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VII

O restabelecimento da escravidão em Guadalupe e a tentativa de seu restabelecimento no Haiti foram acompa­nhados por atos de inaudita barbárie, perpetrados segundo as instruções de Napoleão ou com sua anuência. Na épo­ca, existem poucos equivalentes de semelhante selvageria na história da França, e talvez na história em geral.

Em Guadalupe, durante as três semanas de resis­tência, Richepance e seu cúmplice Gobert não fizeram prisioneiros. Mandaram fuzilar homens, mulheres e crianças por onde passavam. Em 25 de maio de 1802, durante a tomada do forte de Baimbridge onde Ignace estava entrincheirado, executaram imediatamente cer­ca de setecentos patriotas. Dos 250 que se renderam, cem foram fuzilados na praça da Vitória e 150 outros na praia de Fouillole. Após o sacrifício de Delgrès e de seus companheiros, em 28 de maio, Richepance colocou em ação o plano de extermínio decidido pelo Primeiro Cônsul. Uma comissão militar, teoricamente presidida

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por Gobert porém de fato pelo coronel Depottre, foi encarregada de conferir aos assassinatos uma aparência de legalidade, pois a única punição atribuída foi a pena capital. Os condenados foram enforcados. Eram tão numerosos que Richepance, com receio de uma epide­mia, teve de desistir da idéia de mandar exibir os cadá­veres no Mome-Constantin, a uma légua do cadafalso, como inicialmente pensava fazer. Após a morte de Ri­chepance e o retomo de Lacrosse, a comissão militar, que funcionou durante cinco meses a todo vapor, foi substituída por dois tribunais especiais: um em Basse- Terre e o outro em Pointe-à-Pitre. Foram presididos, respectivamente, pelos comandantes de batalhão Iré- née Delacroix e Martin Pillet. Por ter quebrado a perna, a companheira de Delgrès, Marthe-Rose, apelidada To- to, não tinha podido chegar à casa em Danglemont. Depois de passar pelo tribunal de Delacroix, foi levada de maca ao suplício. Durante a Comuna e a Ocupação esse tipo de espetáculo seria novamente visto.

Aplicando uma técnica que seria retomada durante a guerra da Argélia, as tropas escravistas fizeram o re­censeamento de todos os camponeses ausentes das fa­zendas, e quaisquer que fossem os motivos da ausência, declararam-nos “fellaghas”.* Em cada município foram

*Designação dada aos membros da resistência contra a autoridade fran­cesa para obter a independência de seus países durante a época colonial na Tunísia e na Argélia. (N. do T)

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organizados esquadrões da morte para perseguir os re­sistentes. Assim como durante as batidas para capturar criaturas nocivas, havia uma recompensa em dinheiro para cada cabeça de “negro” trazida pelos milicianos. Os membros da resistência eram imediatamente fuzila­dos ou enforcados.

Como a febre amarela dizimava o corpo expedicio­nário, os enfermeiros “negros” ou “de cor” do hospital de Pointe-à-Pitre chegaram a ser acusados de responsa­bilidade pela doença. Sob acusação de “envenenamen­to”, foram todos mortos.

A ferocidade da repressão ocasionou nova revolta em Sainte-Anne, na noite de 6 a 7 de outubro de 1802, rapidamente esmagada. Foi a oportunidade para que Lacrosse organizasse no local um terceiro tribunal espe­cial presidido pelo comandante de batalhão Louis Ar- nauld, créole da Martinica, auxiliado pelo impiedoso comandante Danthouars. A questão já não era saber se os prisioneiros seriam condenados, nem o castigo a ser aplicado, mas o tipo de suplício utilizado para matá-los. Em 29 de outubro de 1802, Lacrosse explicou tudo a Amauld. O modo de execução escolhido “deve dar aos mal-intencionados o mais terrível exemplo. Hás de pensar como eu, Cidadão, que não sendo o suplício da forca suficiente para expiar o crime desses assassinos que a lei condenou à pena de morte, devem eles ser esquartejados vivos para expirar na roda [...]. As pri-

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sões de Pointe-à-Pitre e de Moule já estão superlotadas; é preciso esvaziá-las o mais depressa possível”.

Amauld, portanto, as “esvaziou” às pressas. Pela for­ca, pelo esquartejamento, pelo estrangulamento e pela fogueira. Inventou-se até mesmo outra forma de matar cuja crueldade causa perplexidade. O paciente era in­troduzido numa estreita gaiola de ferro e colocado a cavaleiro sobre uma lâmina afiada, que cortava como uma navalha. Diante dele, uma garrafa de água e um pão, fora de seu alcance. Os pés repousavam sobre es­tribos. Durante o tempo que lhe era possível, o conde­nado se mantinha suspenso. Ficava amarrado de tal maneira que somente poderia cair sobre a lâmina, o que não deixava de acontecer quando, após algumas horas de privação de alimento e de sono, as pernas tetani- zadas acabavam por ceder. O primeiro corte não era fatal. O normal era que o prisioneiro se levantasse di­versas vezes até ser cortado em dois. Esse instrumento atroz era destinado a ocasionar até quarenta e oito ho­ras de tormentos.

Mas o comandante de batalhão Martin Pillet não tinha paciência para esperar. A fim de encontrar culpa­dos e acabar rapidamente com eles, percorria as fazen­das durante a noite com seus milicianos para fazer a chamada dos escravos. Os que tivessem os cabelos cor­tados eram executados na hora, porque, estranha­mente, esse militar estava convencido de que a

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depilação era sinal evidente de rebelião. Os nomes dos ausentes eram anotados. Pelados ou não, eram fuzilados quando os soldados voltavam de madrugada.

Durante o ciclone sangrento que se abateu sobre Guadalupe, os carrascos, embriagados por seu zelo, aca­baram esquecendo que a ordem de extermínio somente visava as pessoas de origem africana. Que importava! O jovem oficial Monnereau, ajudante-de-ordens “bran­co” de Delgrès, subiu ao cadafalso por recusar-se a re­negar a proclamação de Basse-Terre, cuja co-autoria ele orgulhosamente reivindicava. Dois outros “brancos”, Barsse e Millet de La Girardière, foram igualmente con­denados à pena capital por haver participado da rebe­lião de Saint-Claude.

Após um ano de genocídio ininterrupto, Bonaparte enviou novo representante, o general Augustin Ernouf, para finalmente promulgar oficialmente o Código negro em Guadalupe, em 14 de maio de 1803. Ernouf, porém, percebeu que os fugitivos continuavam a resistir. Na véspera da proclamação do restabelecimento da escra­vatura, lançou uma proposta de anistia, recebida ape­nas com desprezo. Em 3 de setembro aceitou uma sugestão sanguinária do comissário de governo em Basse-Terre: “A medida que propondes, cidadão comis­sário, de mandar queimar, em presença dos operários, os bandidos que recusaram entregar-se à anistia que eu lhes havia oferecido e que seriam presos, é excelente!

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Em consequência, eu vos autorizo a mandar executar pelo guardião da prisão aqueles que caiam em vossas mãos.” Dois meses depois, Emouf recomendou por es­crito ao comandante dos Caçadores que praticassem o holocausto sem julgamento prévio: “Dou-vos formal­mente ordem de nada remeter ao tribunal especial, e sim de mandar queimar imediatamente os culpados que forem presos.”

No Haiti, assim como em Guadalupe, as tropas da expedição se abstiveram de fazer prisioneiros: “Logo que caem em nosso poder, nós os fuzilamos imediata­mente”, notou em seu Camet d’étapes (Caderno de no­tas de deslocamentos) o sargento Philippe Beaudoin. Essas práticas jamais seriam desmentidas. Assim, na noite de 2 a 3 de janeiro de 1803, Beaudoin atacou o forte de Port-de-Paix. “Nós os capturamos em menos de meia hora”, recorda ele, “e passamos pelo fio de es­pada cerca de seiscentos homens no forte.” Seiscentos “negros” a menos! Simples rotina.

A tortura era moeda corrente. As violações tam­bém, acredita-se: “Há mulheres bonitas, e nada difí­ceis”, observa o mesmo suboficial. Foi, porém, a partir de setembro de 1802, vendo que o restabelecimento da escravatura era impossível, que Leclerc começou a con­templar seriamente a aplicação das instruções genoci- das que recebera. Começou por praticar uma repressão

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cuja violência se intensificou gradualmente. Napoleão era informado por correios regulares cujos detalhes sem dúvida foram minimizados, mas que dão uma idéia do ambiente reinante na colónia. No início do mês de ju­lho, do castelo de Malmaison onde estava tranquila­mente instalado, Napoleão, ainda sem saber que Toussaint se encontrava a caminho da França, exortou seu cunhado a ser ainda mais firme. “Conto que antes do fim de setembro”, disse ele, “tereis enviado para cá todos os generais negros; sem isso, não seria possível fa­zer nada, e uma imensa e bela colónia permaneceria para sempre sobre um vulcão e não inspiraria confiança nem aos capitalistas, nem aos colonos e nem ao comér­cio.” O Primeiro Cônsul tinha perfeita consciência das consequências de tais ordens. Confirmou por escrito a carta branca dada verbalmente alguns meses antes. “Compreendo perfeitamente”, acrescentou ele, “que será possível que isso ocasione alguma movimentação; mas tereis diante de vós toda a estação para reprimi-los. Quaisquer que sejam as consequências produzidas pelo envio dos generais negros à França, isso seria apenas um mal menor comparado com o prosseguimento da permanência deles em Saint-Domingue!” É difícil ser mais claro. Reconhecendo que a tarefa não era gloriosa, no entanto, ele consolava Leclerc: “A partir do momen­to em que os negros estejam desarmados e os principais generais sejam mandados para a França, tereis feito

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mais pelo comércio e pela civilização da Europa do que jamais foi feito nas campanhas mais brilhantes.” Em sua exaltação, Napoleão era capaz de dizer ou escrever mais do que o necessário. Com efeito, acabou por deixar-se entusiasmar: “Livre-nos desses africanos dourados, e não teremos mais nada a desejar!” Não se tratava mais de deportar ou de reformar os generais. Era preciso li­vrar-se deles. Hoje diríamos neutralizá-los. Pouco mais tarde, ainda em Malmaison, Bonaparte teve notícia da chegada de Toussaint. O ditador rejubilou-se, mas isso não era suficiente. Queria as cabeças de outros dois: “Aguardamos com impaciência a chegada de Christophe e Dessalines à França”, ordenou ele. “A chegada de Toussaint é uma honra para vós e motivo de tranquili­dade e esperança para nosso comércio.”

No fim do mês de agosto a ilha de Tortue se revol­tou. Leclerc mandou para lá um general “de cor”, Mar- tial Besse, com ordem de realizar uma repressão terrível, no sentido etimológico, isto é, que inspirasse terror. Mas Besse contentou-se em tentar acalmar os espíritos sem derramamento de sangue. Foi imediatamente pu­nido por incapacidade. A primeira qualidade exigida a um oficial em serviço em Saint-Domingue era a cruel­dade. Todos aqueles que se sentissem incomodados pela “merda e sangue” deveriam ser rapidamente afastados. Leclerc informou Bonaparte: “O general Martial Besse, que eu havia mandado agir de forma terrível, entrou em

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entendimentos com os rebeldes. Envio-o de volta à França por incapacidade de ser utilizado no exército de Saint-Domingue.” Em 6 de agosto de 1802, com Besse já deportado, as coisas tomam outro rumo: “Dei exem­plos terríveis”, explicou Leclerc, “e como somente me resta o terror, eu o utilizo. [...] Em Tortue, dentre 450 revoltosos, mandei enforcar sessenta.”

Três dias depois, Leclerc explicava de que maneira se servia dos generais “negros”, naturalmente sob con­trole dos oficiais “brancos”, para levar a efeito os piores castigos. Eles “conduzem os colonos. Ficam bem acom­panhados. Têm ordens para que dêem exemplos terrí­veis e sempre os utilizo quando tenho alguma coisa terrível a fazer”. Dali em diante, o objetivo era claramente a ex­terminação. O sursis concedido aos prisioneiros que não fossem abatidos imediatamente era apenas destina­do a fazê-los falar.

“Os rebeldes foram exterminados”, observou Leclerc com satisfação a respeito da sangrenta repressão feita pelo general Boyer em Gros-Mome. “Cinquenta prisio­neiros foram enforcados.” Esses “prisioneiros” eram civis arrebanhados ao acaso após o massacre dos revoltosos.

Leclerc não escondia seu espanto diante do compor­tamento estóico das vítimas, que as tropas ceifavam sem distinção de idade ou de sexo. Sua coragem era atribuída a uma exaltação, e mesmo uma insensibilida­de que seria própria dos africanos. “Os homens morrem

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com um fanatismo incrível, riem da morte”, constatou o general. “O mesmo acontece com as mulheres.”

No mês de setembro, Leclerc ordenou a Jean-Jac- ques Dessalines, chefe da quarta brigada colonial, que mandasse degolar trezentos prisioneiros. Será melhor que os “negros” se matem entre si. Leclerc esperava de­sacreditar seu aliado para que este pudesse por sua vez ser eliminado com mais facilidade: “Dessalines”, escre­veu ele em 16 de setembro de 1802, ”é neste momento o carrasco dos negros. E por meio dele que mando exe­cutar todas as medidas odiosas. Vou mantê-lo vivo en­quanto precisar dele.”

Em 17 de setembro, Leclerc mostra que nada esque­ceu das ordens secretas que haviam sido dadas um ano antes e que não hesitaria em executá-las até o fim. “Te­rei de fazer uma guerra de extermínio”, resignava-se.

Em sua última carta, datada de 7 de outubro de 1802, Leclerc repetiu de maneira didática as instruções negrófobas que lhe haviam sido comunicadas nas Tulherias: “É preciso destruir todos os negros das mon­tanhas, homens e mulheres, poupar somente as crian­ças abaixo de doze anos, destruir a metade dos que estão na planície e não deixar na colónia um só homem de cor que tenha estado no exército.” Belo programa, que pressupunha algumas centenas de milhares de mor­tes. Bonaparte o aprovou integralmente.

“Acreditai que reconheço vivamente os serviços que

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prestastes”, respondeu ele de Saint Cloud, “e vossa glória estará completamente consolidada quando, em conse­quência de vossa segunda campanha, tereis restituído a tranquilidade a essa bela e vasta colónia, que é objeto da preocupação e das esperanças de todo o nosso comér­cio!” Se é que fosse necessário, Leclerc tinha sinal verde, e a carnificina se intensificou. Em Saint-Marc, o general Pierre Quantin mandou executar centenas de “bandi­dos”. No dia seguinte, havia tantas pilhas de cadáveres que os habitantes não conseguiam abrir suas portas.

Da execução dos resistentes, Leclerc passou rapida­mente ao genocídio propriamente dito: a “destruição” de todos os negros das montanhas e da metade dos da planí­cie, como anunciara. Já não se tratava mais de matar ini­migos, e sim de exterminar uma população simplesmente devido à cor de sua pele.

O capitão geral começou por livrar-se de uma parte de suas próprias tropas, em 16 de outubro de 1802. “A fim de que os negros não o atrapalhassem”, observa um cronista, “Leclerc mandou transportar um milhar deles para bordo de navios ancorados no porto; quando a ba­talha começou e ele se viu em perigo, deu ordem de afogá-los. Foram massacrados por marinheiros, que os atiraram ao mar.” Um oficial general do estado-maior jde Leclerc, Pamphile Lacroix, corroborou a cena cuja motivação “racial” não deixa dúvida. Mas tratou ainda de desculpar seu chefe e a lançar a culpa sobre os mari­

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nheiros que teriam cedido a um momento de pânico. “No instante do ataque [...]”, explica o oficial, “o gene­ral Leclerc havia mandado conduzir a bordo dos navios na enseada destacamentos de meias-brigadas coloniais que haviam permanecido no Cabo, as quais, embora seis vezes mais numerosas do que as tropas européias, haviam se deixado desarmar por estas. As doenças ha­viam causado tantas baixas que diversos navios ancora­dos no porto tinham sido abandonados. As tripulações estavam de tal maneira debilitadas ou cheias de enfer­mos que se atemorizaram ao ver aqueles destacamentos negros, muito mais numerosos do que eles. Houve um grito de terror no momento em que os insurretos fizeram nossas tropas recuarem da parte mais elevada do Cabo. Abordo, acreditou-se que tudo estava perdido. Num pri­meiro movimento de terror, o instinto de conservação fez com que ressoasse na enseada um brado de desespero: ‘Vamos matar os que nos podem matar!’ Os direitos hu­manitários foram impiedosamente ultrajados. Na cruel alternativa de serem devorados pelos tigres, os marinhei­ros se transformaram em feras. As águas engoliram em um instante entre mil e mil e duzentos infelizes que uma sorte particularmente negativa havia isolado de seus ca­maradas. A guerra da cor da pele foi desde então, e por muito tempo, reiniciada em Saint-Domingue.”

Não é fácil concordar com essas justificativas — puramente formais, é verdade. Dificilmente se pode

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imaginar, com efeito, que tripulações muito inferiores numericamente, “debilitadas” e “com tantas baixas” pudessem “em um instante”e “num movimento de ter­ror” dominar mil e duzentos homens, mesmo desarma­dos, lançando-os ao mar. Essa execução em massa pressupõe ordens e uma organização prévia que aliás não é negada. Lacroix nos diz, de fato, que desde o iní­cio da ofensiva dos rebeldes Leclerc havia mandado embarcar todas os soldados “de cor” de que dispunha. Na verdade, esses homens, espalhados pelos navios, es­tavam encerrados nos porões. Para matá-los, utilizava- se um método inédito: o gás. Tal como se costuma fazer com os troncos das videiras, os porões dos navios eram regularmente desinfetados por meio de mechas arden­tes cuja combustão produzia dióxido de enxofre. A ina­lação de altas doses desse gás é mortal, o que tem a vantagem de matar os ratos. Mais tarde, da mesma for­ma, o Zyklon B seria utilizado como pesticida nos na­vios antes de servir para os campos de extermínio. O processo é especialmente cruel porque o dióxido de en­xofre, ao se transformar em ácido sulfúrico em contato com a menor superfície úmida, ocasiona queimaduras atrozes num porão cheio de água.

Uma vez realizada a tarefa, os corpos inanimados foram levados de volta ao convés, e os marinheiros se livravam deles amarrando-lhes ao pescoço sacos cheios de areia. Uma operação dessa natureza não pode ser

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improvisada. Pode-se imaginar o tempo necessário para encher e trazer para bordo mais de mil sacos de areia e deixar arejar os mortíferos porões antes que fosse possí­vel penetrar neles sem perigo.

Em 5 de novembro de 1802, três dias depois da mor­te de Leclerc, Christophe de Fréminville, na época jo­vem marinheiro de 17 anos, relata em suas Memórias a chegada ao Cabo: “No momento em que cruzávamos diante da bateria do forte Picolet, o sentinela inter­pelou um barco menor que passava. O capitão respon­deu, com sotaque provençal bem forte: ‘Vamos deixar de molho um pouco de bacalhau!’ Que poderia signifi­car essa estranha resposta? Em breve tivemos a horrível explicação.”

Na enseada, Fréminville notou a presença dos na­vios Le Duguay-Trouin, UHannibal e Le Swiftsure, das fragatas La Précieuse, Llnfatigable e La Poursuivante, além de algumas corvetas e barcos da marinha mercan­te. Ele nos afirma que os brancos “afogavam impiedosa­mente os negros, sem distinção de idade e de sexo”. Não se tratava mais de tropas coloniais, e sim de civis, pois Rochambeau, prosseguindo a operação iniciada por Leclerc e ordenada por Bonaparte, “havia concebi­do o absurdo e horrível projeto de aniquilar toda a po­pulação negra da ilha. Por esse motivo mandava matar, sem exceção, todos os negros, mesmo aqueles que de nenhuma maneira participavam da insurreição. As­

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sim”, prossegue Fréminville, “ele mandou conduzir para a enseada, a bordo do navio Swiftsure, grande parte da guarnição negra do forte Dauphin que havia permane­cido fiel à França e que havia sido levada de volta ao Cabo, depois da evacuação daquele forte, pelo major- general Pamphile Lacroix”. Desta vez, o testemunho deste último compromete o comandante-em-chefe da expedição e, portanto, seu superior: “As primeiras pala­vras que o general Leclerc me disse ao receber-me”, diz Lacroix, “fizeram sangrar meu coração: ‘General, que fizeste? Chegas com uma população de cor quatro vezes mais numerosa do que os destacamentos europeus que me trazes.’” Se o coração de Lacroix sangrava, era por­que sabia perfeitamente que essa população “de cor” iria ser em breve sacrificada. “Na noite seguinte”, teste­munha Fréminville, “ [toda a guarnição foi afogada], sem outra forma de processo, pela tripulação [do Swiftsure], a qual, sem hesitar, prestou-se a essa horrível execução. Os contingentes de negros foram repartidos a bordo de diversos barcos nossos, fundeados na ensea­da. O general [...] deu ordem positiva a seus capitães para que afogassem aquele infelizes depois de haver-lhes atado ao pescoço um saco cheio de areia. Essa ordem abominável foi acompanhada de vergonha para todos os que participaram. Deve-se dizer, vergonhosamente, que todos se submeteram. Menos o capitão Willaumez, comandante da fragata La Poursuivante, que respondeu,

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orgulhosamente: ‘Os oficiais da Marinha francesa não são carrascos. Não obedecerei!’”

“Os afogamentos”, continua Fréminville, “eram le­vados a efeito na própria enseada. Às vezes, os sacos de areia, amarrados ao pescoço dos afogados, cediam; ou­tras vezes, a corda que os prendia estava podre, ou se rompia. Nesse caso, os corpos subiam à superfície. Era um espetáculo horrendo.” Quando o jovem cadete dei­xou o navio para passear na cidade, o cenário era de pesadelo. “Esses passeios”, recorda ele, “começavam para nós pela horrível e inevitável vista dos cadáveres de negros que encontrávamos em nosso caminho, entre o barco e o cais do desembarcadouro. Às vezes o mestre de nosso escaler era obrigado a afastá-los com o croque; de outra forma, teriam sido cortados ao meio.” Como a enseada do Cabo estava atulhada de cadáveres, Latouche-Tréville mandou que a imersão das vítimas fosse feita de maneira mais discreta: ao largo e à noite. “O temor de um recrudescimento das epidemias e a chegada ao Cabo do almirante Latouche, que se indig­nou com o ofício de carrasco infligido daquela forma aos oficiais franceses, fizeram com que fosse modificada a forma de execução. Resolveu-se que os afogamentos ocorreriam dali em diante fora da enseada. As vítimas eram amontoadas no barco do infame Tombarei, que ia além da entrada da baía para lançar sua carga humana. Dessa maneira tivemos a explicação da resposta dada

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por ele à sentinela do forte Picolet: ‘Vamos deixar de molho um pouco de bacalhau!’ Na verdade, ia afogar negros.”

Tudo isso se passava sob a responsabilidade do almi­rante-conde Louis René Le Vassor de Latouche-Tré- ville. Mesmo que ele “se indignasse com o ofício de carrasco” — coisa que seus relatórios ao ministro da Marinha não denotam —, não se recusou a exercê-lo como tarefa principal, pois era o chefe da esquadra de Saint-Domingue. Tampouco recusou-se a impor essa infâmia a seus subordinados. Conhecendo os nomes dos navios, sabemos os nomes dos respectivos coman­dantes, os quais, com exceção, ao que parece, de Wil- laumez, de Jurien e de Le Bozec, não hesitaram, com o concurso de todos os seus oficiais e toda a sua tripula­ção, a desonrar a Marinha francesa. Eram eles Pierre- Louis Lhermitte, comandante do Le Duguay-Trouin, Charles Guillemet, comandante do LHannibal, Jean- Jóseph Hubert, comandante do Swiftsure, Charles Meyne, comandante do Llnfatigable, e Des Montils, co­mandante da La Précieuse, para citar apenas os navios principais que se encontravam na enseada do Cabo em 4-de novembro de 1802. Alguns desses oficiais haviam" iniciado sua carreira a bordo de navios negreiros, como, por exemplo, Guillemet, embarcado como aprendiz no Le Mesny em Saint Maio, que em 1763 transportou 612 escravos de Cabinda ao Cabo.

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Em sua Histoire d’Haiti (História do Haiti) (1848), o historiador Thomas Madiou confirma a utilização dos porões dos navios para aniquilar a população da ilha. “Na grande baía de Porto Príncipe e na enseada do Ca­bo”, escreveu ele, “os navios de guerra haviam sido transformados em prisões flutuantes onde eram asfixia­dos, nos porões, negros e homens de cor.” O próprio Victor Schoelcher, em sua Vie de Toussaint Louverture (Vida de Toussaint Louverture) (1889), declara-se in­formado dessas novas técnicas de extermínio que infe­lizmente seriam desenvolvidas no século XX por Hitler para livrar-se da população judia. “Foram inventadas”, assegura ele, “prisões flutuantes denominadas asfixia- douros, nas quais, após encerrar no fundo dos porões negros e mulatos, eram eles sufocados por meio de en­xofre queimado.”

Em Souvenirs d’un amiral (Recordações de um almi­rante), publicado em 1872, outra testemunha ocular, Jurien de La Gravière, na época comandante de La Fran- chise, proporciona menos detalhes. Evoca, porém, aquela época com um eloquente desencanto: “Preferiria dissi­mular”, escreveu ele, “mas a guerra de Saint-Domingue continuará a ser uma das páginas mais tristes de nossa história [...]. Gostaria de não ter sido jamais testemunha das atrozes represálias por meio das quais acreditou-se estar autorizado a reagir [...] às repetidas traições dos re­beldes. Graças a Deus, não sou o único oficial de mari­

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nha que, durante esses deploráveis acontecimentos, teria preferido romper as leis da disciplina a deixar de observar as leis da humanidade.” Jurien cita Latouche-Tréville, responsável pela parte naval da expedição, o qual, reto­mando a política definida pelo Primeiro Cônsul, decla­rou sem rodeios em fevereiro de 1803 que o término daquela guerra deveria ser a “destruição dos negros”. E a testemunha suspira: “Será preciso espantar-se com o fato de que esse horrendo programa tenha conseguido en­contrar tantos adeptos?” Jurien lamenta “pela honra da França, as hediondas desordens que a repressão provo­cou”. Recusando-se visivelmente a denunciar antigos companheiros, ele confessa: “Eis um tema sobre o qual não tenho coragem de me alongar. Infelizmente, o exces­so de dificuldades e a morte sempre ameaçadora nem sempre inspiram aos homens pensamentos salutares. Em todas as épocas de calamidades, não vimos sempre obscurecerem-se as noções mais simples de dever, e os corações, quando não se deixavam ficar em tristonha in­diferença ou em loucas dissipações, obedecerem sem re­morsos às instigações perniciosas de amargo desgosto ou aos temíveis ataques de um cego frenesi?” Se Jurien fosse menos discreto, contaria que entre os prisioneiros que ele recebeu ordem de matar com gás estava um oficial “de cor” chamado Dupuche, a quem certo dia ele enfren­tara em duelo e cuja vida salvara, conseguindo que fosse deportado num navio comercial.

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Se Jurien não entra em detalhes, exceto quando afirma haver cruzado com um navio do governo, o pe­queno La Terreur, de um só mastro, “que tinha um ne­gro pendurado de cada lado da verga”, ele mesmo assim fornece um esclarecimento importante em suas Recor- dações. Ao relembrar que as tropas regulares de Tous­saint Louverture haviam passado ao serviço da França, informa que na primavera de 1803 “esses exércitos re­gulares já não existiam mais. Haviam sido desarmados e parcialmente destruídos. Assim, havia menos dificulda­des para vencer”. É preciso saber que as tropas regula­res de Toussaint Louverture se compunham de cerca de 30 mil homens!

Em 2 de novembro de 1802, no momento de expi­rar, Victor-Emmanuel Leclerc tomou consciência de sua desonra e da engrenagem infernal na qual pusera as mãos. Seu único consolo talvez tenha sido morrer sem obedecer à ordem formal de restabelecimento da escra­vatura, sem dúvida contrária a seus princípios. Mas não hesitou em fazer funcionar o mecanismo do genocídio. Seu castigo foi a lucidez final. Thomas Madiou atesta que, culpando o cunhado por “haver-lhe dado instru­ções cruéis, [..], ele lamentou os indígenas cujo exter­mínio havia causado. ‘Homens tão corajosos’, disse, com voz moribunda, ‘que haviam prestado tantos servi­ços à França e que teriam podido prestar muitos mais, mereciam melhor sorte.’ Pediu aos Céus que lhe perdo­

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assem os crimes que a perfídia colonial o havia feito co­meter contra a liberdade”.

Muitos soldados e marinheiros da expedição perma­neceriam obcecados por muito tempo pela lembrança do massacre de que haviam participado e do qual foram testemunhas. Não esqueceriam que em 1802 e 1803 ninguém ousava mais comer peixes que tivessem sido pescados próximo ao litoral.

“Os afogamentos diários me enchiam de horror”, recorda ainda Fréminville. “Eu tinha apenas um desejo: [...] voltar à Europa.” Porém mesmo durante a viagem de regresso do Swiftsure, que tinha servido de câmara de gás e que levava agora no convés, dentro de uma chalupa, o ataúde de seu general-em-chefe, seu “espíri­to era assombrado por imagens de morte e de tortura”. Fréminville jamais se recuperaria daquela expedição. Depois de reformado, terminou seus dias em Brest, tra- vestido de mulher. Vestido de cetim cor-de-rosa e cor­pinho de tule enfeitado de renda, aquele que agora se fazia chamar de “mademoiselle Pauline” ainda estava obcecado pelo monte de cadáveres de “negros” de Saint-Domingue que flutuavam na enseada do Cabo Francês, mais tarde rebatizado de Cabo Haitiano.

Após a morte de Leclerc, o genocídio prosseguiu sem trégua. Napoleão tinha a seu serviço um executor que ele próprio designara como sucessor de Leclerc nas instruções dadas no outono de 1802. Como ele havia

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estudado cuidadosamente os assentamentos, pode-se acreditar que sabia o que iria fazer. Donatien de Ro­chambeau e seu adjunto, Louis de Noailles, são dois verdadeiros carrascos cuja barbárie ultrapassa tudo o que se possa imaginar. O historiador Madiou viu-se em dificuldades para fazer comparações com o que se sabia no século XIX. Encontrou somente o príncipe Vlad, o Empalador, aliás Drácula. Hoje em dia poderia também referir-se à Divisão SS do Reich e aos carrascos dos campos de extermínio. Todos os portos passaram a de­dicar-se às execuções com gás e afogamentos. Depois do Cabo e de Porto Príncipe, “os navios de guerra esta­cionados na enseada de Cayes estavam também cheios de indígenas destinados ao afogamento”. Em Les Cayes tomaram-se tristemente célebres o coronel Jacques Berger, apelidado “Lobo Veadeiro”, e seu assistente Kerpoisson, tenente do porto. Rivalizando em desuma­nidade com os marinheiros, entre os quais se distingue especialmente Tombarei, antigo comandante do Gerfaut, outros criminosos afirmariam sua vocação de carrascos e torturadores: o general Pierre Boyer, apeli­dado “o Cruel”, assessorado pelo comandante-ajudante André Maillard, para citar apenas esses.

Em 1825, ano em que a França finalmente reconhe­ceu, por transações financeiras, a liberdade dos haitia­nos, Antoine Métral, em sua Histoire de Vexpédition des Français à Saint-Domingue (História da expedição dos

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franceses a Saint-Domingue), revela a existência dos carniceiros. “Rochambeau”, diz ele, “matou no Cabo quinhentos prisioneiros. No local da execução foi esca­vado um grande fosso para servir-lhes de sepultura, de forma que esses infelizes, que iam ser fuzilados, assistiam, por assim dizer ainda vivos, a seus próprios funerais.”

Antoine Métral também confirma a utilização das câmaras de gás: “As execuções era variadas. De vez em quando cortavam-se-lhes as cabeças, outras vezes uma bola de ferro amarrada nos pés os levava ao fundo do abismo das águas, outras ainda eram asfixiados nos na­vios com vapores de enxofre. Quando a noite servia de véu a esses atentados, os passantes na praia ouviam o ruído monótono dos cadáveres lançados ao mar.” A lou­cura genocida era geral. “No Cabo, no forte Dauphin, em Port-de-Paix, em Saint-Marc e em Porto Príncipe, assim como em todas as praias”, afirma Métral, “somente havia chicotes, cruzes, forcas, fogueiras, soldados, colo­nos, navios e marinheiros ocupados em matar, asfixiar ou afogar criaturas humanas, cujo único crime era não que­rer ser novamente escravizadas.”

Testemunha ocular, pois era membro da expedição que zarpou da ilha de Aix a bordo do La Vertu, Juste Chanlatte, em sua Histoire de la catastrophe de Saint- Domingue (História da catástrofe de Saint-Domingue), publicada em Paris em 1824 por um ex-marinheiro, Jean-Baptiste Bouvet de Cressé, relata que “em vez de

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navios a vapor, foi inventado um outro tipo, em que as vítimas dos dois sexos, amontoadas umas por cima das outras, morriam sufocadas pelos vapores de enxofre”, e que “crianças eram metidas em sacos nos quais, depois de apunhaladas, eram lançadas ao mar”. Segundo essa mesma testemunha, os adeptos do genocídio raciona­lizaram pouco a pouco suas técnicas, julgando que os “métodos de destruição” anteriormente utilizados eram “de execução demasiado lenta e dispendiosa”. Se fosse possível, “com o auxílio de uma máquina pneumática, interromper em um único instante a respiração de to­dos os [indígenas], eles certamente o [teriam] feito”.

Em 1814, o coronel Malenfant, evocando também esses “crimes atrozes” em sua obra Des colonies et partiadièrement ceUe de Saint-Domingue (Das colónias e especialmente a de Saint-Domingue), não hesitou em exclamar: “Que vergo­nha para a humanidade e para B ..J”

Não apenas se matava com gás e com afogamentos em série, não apenas os métodos eram otimizados, mas aquilo servia como divertimento. Fórmulas convencio­nais jocosas eram utilizadas. Os “negros” e “homens de cor” eram submetidos à “rede de pescar nacional” (o afogamento coletivo), quando não eram obrigados a comer uma “salada de maconha” (o enforcamento) ou uma “operação a quente” (o suplício da fogueira) ou uma “lavagem do rosto com chumbo” (o fuzilamento). Isso porque todos tinham a cara suja, não era verdade?

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Mas para acrescentar mais uma cor a essa palheta macabra, que no entanto já era bem variada, Louis de Noailles foi buscar em Cuba, em margo de 1803, cerca de seiscentos buldogues com a intenção de alimentá-los só com indígenas. O ministro da Marinha foi informado do fato por uma carta do almirante Latouche-Tréville, de 9 de marco. Os animais e seus novos donos desfila­ram triunfalmente no Cabo. Seguindo a tradição das sevícias impostas aos primeiros cristãos, Rochambeau mandou construir um circo na entrada do palácio na­cional no qual residia. Um poste era destinado aos supliciados. Arquibancadas com bancos confortáveis estavam prontos para os espectadores “brancos”. A fim de inaugurar aquele novo tipo de espetáculo, o general Boyer entregou um de seus jovens empregados, cujo único defeito era a cor de sua pele. Os cães famintos foram soltos. A platéia aplaudia. No entanto, menos cruéis do que certos bípedes, os mastins se contentaram em cheirar a vítima. Boyer saltou na arena e, desemba­inhando o sabre, abriu a barriga do jovem. Apesar do que viram e do odor de sangue, os cães não se move­ram. Boyer, então, frenético, puxou um dos molossos pela coleira até a vítima e esfregou-lhe o focinho nas entranhas, até que o cão resolvesse devorá-las. Os ou­tros animais o imitaram. Em breve restavam apenas ossos ensanguentados. O público acabou horrorizado. Mas o espetáculo recomeçava todas as tardes. O local

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passou a ser evitado. Os vizinhos se mudaram. Muitos colonos deixaram a ilha, temendo as represálias que tais ações poderiam provocar.

O general Jean-Pierre Ramel, comandante da ilha Tortue, espantou-se ao receber uma ordem por escrito, datada de 5 de abril de 1803 e assinada por Rocham- beau: “Êitôu-vos enviando, caro comandante, um des­tacamento de 150 homens da guarda nacional do Cabo. Será seguido por 25 cães buldogues. Esses reforços vos permitirão terminar completamente vossas operações. Não vos deixo ignorar que não serão necessárias rações nem despesas pela alimentação desse cães. Deveis dar- lhe a comer somente negros. Saudações afetuosas, Donatien Rochambeau.”1

Jurien de la Gravière também viu os cães durante o ataque de Petit-Goâve na primavera de 1803. Ele con­firma formalmente que lhes davam alimentação huma­na. Eis seu testemunho: “Foram embarcados também, e enrubesço ao dizê-lo, em duas embarcações que nos fo­ram proporcionadas, dois grupos de cães comprados por alto preço em Havana. Eram cães, segundo nos afirma­ram, da raça empregada antigamente pelos conquista­dores espanhóis para seguir o rastro dos índios. Cada divisão se compunha de 75 animais alimentados com carne de negros e que ficavam ainda mais vorazes quan-

‘Carta citada notadamente por Victor Schoelcher, op. cit.

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do famintos. Foi com esses horríveis auxiliares que par­timos para Porto Príncipe.” No entanto, durante o ata­que, Jurien percebeu que os mastins se tornavam incontroláveis. Aparentemente menos racistas que seus donos, “esses cães, que deveriam devorar somente ne­gros, atiravam-se indistintamente sobre todos os ho­mens que viam, fossem eles negros ou brancos”.

O diário do almirante Latouche-Tréville nos mostra além disso que em 26 de junho de 1803 duzentos outros cães foram transportados com reforços para o Cabo por um brigue espanhol que vinha de Havana, o que eleva o número desses animais a oitocentos.2 O tamanho dessa matilha é espantoso, quando se confirma que se alimen­tava somente de carne humana. Pois, sabendo-se que um buldogue consome pelo menos um quilo de carne por dia, caso tenham sido utilizados até a capitulação de no­vembro, podem haver devorado mais de três mil pessoas.

Acrescentando a esse número os rebeldes fuzilados, os civis mortos por gás ou afogados, chega-se certamen­te a várias dezenas de milhares de vítimas. Alguns suge­rem, para o genocídio, o número de 100 mil, isto é, cerca de 20% da população de origem africana que o Haiti continha na época.

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2Yves Bénot, La Démence coloniale sons Napoléon, Paris, 1992, fala de 1.500 cães, o que representa cerca de seis mil indígenas lançados como pasto para esses animais!

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As atrocidades cometidas por Leclerc e Rocham- beau foram tão longe que não foi possível ocultá-las. Como se costuma fazer nesse tipo de circunstância, a fim de preservar a memória de Napoleão, os guardiães do templo dizem, quando pressionados ao máximo, que se tratava de abusos de subordinados, das quais o Pri­meiro Cônsul nada sabia. Em Nuremberg, os homens diziam também que não sabiam de nada. Segundo al­guns, Hitler tampouco sabia. Infelizmente, o Primeiro Cônsul estava a par de tudo: dos cães, do gás e do resto. Sabia, porque, assim como Hitler, foi ele quem deu a ordem para o genocídio.

Quando Rochambeau foi designado, sua crueldade era conhecida, tanto que alguns colonos esperavam in­genuamente que Napoleão, ao ser informado das mons­truosidades já cometidas no Haiti, nomeasse outro capitão geral. Suas próprias vidas estavam em jogo, pois no ponto a que haviam chegado as coisas, eles pode­riam esperar um massacre geral dos “brancos”, caso os insurretos fossem vitoriosos.

Mesmo quem tivesse pouca estima por Napoleão desejaria que a carta por ele escrita a Donatien de Rochambeau em 4 de fevereiro de 1803 fosse somente uma alucinação. Mas ela existe, e é tão acabrunhante que não deixa qualquer dúvida sobre a culpabilidade de Bonaparte por cada gota de sangue derramado. “O mi­nistro da Marinha”, escreveu o ordenador de todas es­

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sas monstruosidades, “comunicou-me vossos despachos de 23 de frimário [14 de novembro de 1802]. Tomei nota com prazer da retomada do forte Dauphin; desejo assegurar-vos diretamente a inteira confiança que o Governo deposita em vós e de sua aprovação das medi­das rigorosas que as circunstâncias vos obrigam ou vos obrigariam a adotar.”3 A aprovação do genocídio é to­tal, inegável, obscena. Três meses depois da nomeação de Rochambeau, Napoleão já estava informado de tudo. Por seus espiões. Pelos oficiais que lhe levavam os despachos. Por aqueles que se recusaram a executar as ordens e que foram recambiados como criminosos. En­tre estes, François Allix de Vaux, diretor geral de arti­lharia, preso por acusações de malversação, mas na verdade por haver-se recusado a entregar mil bolas de ferro destinadas a servir de lastro para os corpos dos supliciados. Entre eles estava também o almirante Amable Humbert, mandado de volta à França por Leclerc. Talvez porque tenha dormido com a mulher deste último, mas principalmente por haver-se insurgi­do contra o genocídio. Em 19 de setembro, estando no comando do Môle-Saint-Nicolas, foi chamado ao Cabo e entregou o cargo ao general Maurepa, mas Leclerc ti­nha outros projetos: “Maurepas”, escreveu ele na oca-

3Esta carta, como todas as demais, está publicada na Correspondência de Napoleão.

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sião ao cunhado, “é um canalha, mas ainda não posso mandar prendê-lo.” Isso ocorreria em breve. Maurepas foi convidado por Brunet, o homem que havia raptado Toussaint, a evacuar sua guarnição, levando seus solda­dos e uma parte da população civil “de cor” que lá se encontrava. A esquadra da expedição foi empregada no transporte. No canal de Tortue, os passageiros foram massacrados e lançados ao mar. Maurepas, nu, foi amarrado no mastro principal do Le Duguay-Trouin, co­mandado pelo capitão-de-mar-e-guerra Pierre Louis Lhermite e a bordo do qual se encontrava Latouche- Tréville. Brunet tomou-lhe o dinheiro que tinha. A mu­lher e os filhos do haitiano foram enforcados na verga diante dele. Mas Maurepas manteve a dignidade. Foi insultado, mas nada respondeu. “Não respondes?”, dis­se o carrasco. “Bem, vamos te fazer chorar!” Foi-lhe in­fligido o suplício do chicote, reservado aos escravos. Ele se conservou impassível. Então, com grandes pregos, pu­seram-lhe nos ombros nus as dragonas de general. O co­mandante Lhermite observa que ele talvez precisasse de um chapéu para se proteger do sol. A golpes de marte­lo um barrete de dois bicos foi pregado em sua cabeça. O general finalmente expirou, após haver suportado esse martírio sem gritos nem lágrimas, e seu corpo foi jogado ao mar, lastreado com uma bola de ferro.

Um general da Lorena, Humbert, protestou com asco. Recusou-se a participar das punições cometidas

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quando do ataque ao Cabo. Em represália, Boyer, o ho­mem que iria abrir a barriga de seu empregado para ali­mentar os cães, o acusa então de ter “relações com o chefe dos bandidos”. Leclerc, por seu turno, escreveu ao Primeiro Cônsul dizendo que Humbert tinha “negó­cios sujos”. Não tinha, no entanto, moral para fazer esse tipo de acusação.

Em 17 de outubro de 1802, Humbert foi embarcado em um navio comercial. Chegou ao Havre no início do mês de dezembro. Sua chegada não passou despercebida, como atesta a nota de um espião ao chefe de polícia data­da de 15 de dezembro: “Espalhou-se hoje em Paris”, escre­veu o delator, “o boato de que um navio que aportou no Havre trouxe o general Humbert, para levar ao governo detalhes sobre os novos desastres na colónia. Dizem que os negros recorreram às armas, que seis mil brancos se junta­ram a eles e que os generais que estavam com Toussaint e que haviam celebrado a paz imitaram seu exemplo. Enfim, a situação na colónia é considerada desesperadora. Os bons cidadãos se preocupam e os maus não escondem sua alegria.” Ninguém duvida que Humbert tenha procurado informar Bonaparte do que ele acreditava ser uma desobe­diência de Leclerc às ordens de Paris. Como tantos outros, o pobre general ainda tinha ilusões. Foi expulso do exérci­to no dia 13 de janeiro por um decreto do tirano com ordem de sair imediatamente da capital e voltar a seu dis­trito natal. Porém não obedeceu imediatamente.

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Em 5 de fevereiro, uma nova nota policial acres­centou: “Alguns militares diziam ontem que o general Humbert acaba de ser destituído por haver fornecido demasiados detalhes sobre a situação em Saint-Domingue e ter querido denunciar a conduta de diversos generais daquela expedição. “

Oito dias depois, outra ficha informou que “o pró­prio general Humbert anunciou sua destituição aos ofi­ciais generais e outros conhecidos seus. Os motivos que alega são ter pretendido empregar um sistema de conci­liação em Saint-Domingue e sobretudo haver-se recu­sado a obedecer a ordens do general Leclerc, as quais ele apresenta sob uma luz odiosa. Não se pode [negar] que por causa de relatos semelhantes os generais ingleses têm levantado absurdas asserções de afogamento de negros”.

Ao menos por Humbert, Napoleão poderia ser in­formado, caso ignorasse a situação. Mas a forma pela qual ele o destituiu e o empenho com que o perseguiria durante quase dez anos mostram que não somente esta­va a par do que se passava, mas também que era o prin­cipal culpado.

Não admira, portanto, que ele escrevesse a Ro- chambeau para estimulá-lo na execução da solução fi­nal. “Nada interessa mais à nação do que a ilha de Saint-Domingue”, afirmou ele. “Sede vós seu restaura­dor, e inscrevei vosso nome entre aqueles que o povo francês jamais esquecerá e que a posteridade reveren-

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ciará, pois esses estarão animados apenas pelo senti­mento da verdadeira glória. É provável que quando receberdes esta carta a Legião de Honra já esteja orga­nizada. Sereis colocado no rol dos grandes oficiais.”

Para Napoleão, a “verdadeira glória” ia além da apa­rente infâmia, que somente servia para o comum dos mor­tais. Os grandes homens estão acima da moralidade. Um crime pode ter sentido para a posteridade. Pode-se com­preender a homenagem de Hitler, inclinando-se com a cabeça descoberta, em 28 de junho de 1940. Napoleão era realmente seu mestre e seu deus. Sem dúvida, Hitler faria muito “melhor” em valores absolutos, mas os princípios e os métodos eram os mesmos.

Ao receber a mensagem de aprovação de Napoleão, no fim do mês de fevereiro de 1803, Rochambeau rece­bia também carta branca. Podia fazer o que quisesse. Seria sempre encoberto, com a condição de que cum­prisse as ordens. Infelizmente para ele, iria capitular di­ante dos “negros”. Napoleão não o perdoaria.

Enquanto aguardava, Rochambeau não escondeu as intenções de seu chefe. Apressou-se em estabelecer uma escravidão de fato. Começou mandando publicar um decreto, assinado pelo Primeiro Cônsul em 22 de outubro de 1802, que declarava a colónia em rebelião contra a metrópole desde 20 de novembro de 1798, data da partida do general d’Hédouville. Todas as no­meações posteriores ficavam anuladas se não fossem

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explicitamente confirmadas por Leclerc ou Rochambeau. O texto valia também para Guadalupe a contar da expul­são de Lacrosse, em 21 de outubro de 18,01.

Em 14 de janeiro de 1803, o novo capitão geral lan­çou um mandado de prisão contra as mulheres indíge­nas que não fossem casadas nem domésticas. Como as prisões não tinham espaço suficiente para abrigá-las, as infelizes foram embarcadas em navios, onde serviram de presa para os marinheiros.

Tal como em Guadalupe, Rochambeau organizou cor­pos de milícias para caçar os “negros”. Os milicianos se distinguiam pela cobertura das cabeças: um chapéu colo­nial à moda de Henrique IV erguido de um lado, como mais tarde usariam as tropas francesas na Indochina e na Argélia.

Dessalines não poderia prever que os descendentes haitianos dos cidadãos franceses “negros” de 1802 via­jariam um dia à Guiana voando pelos ares. Mas não se espantaria ao saber que, para esses viajantes, o visto de entrada na França — que já era de obtenção especial­mente difícil para os descendentes de “bandidos” — não lhes permitiria entrar em uma das colónias onde, desde os acontecimentos de 1802, a “mão invisível” do Haiti passou a ser temida acima de tudo.

Mas para esses herdeiros dos “maus súditos negros” é com efeito necessário, ainda em nossos dias, obter

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uma autorização especial com visto do prefeito. Uma vez conseguido esse precioso abre-te-sésamo, o pas­sageiro haitiano que parte do aeroporto Toussaint- Louverture em Porto Príncipe ainda não esgotou suas emoções. Ao pôr os pés nesse departamento francês de ultramar, onde a escravidão foi restabelecida por Victor Hugues em 25 de abril de 1803, verá que o aeroporto internacional de Caiena tem o nome de Rochambeau.

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VIII

Tanto em Guadalupe quanto no Haiti as ordens de Napoleão eram não só de exterminar as massas, mas também de deportar todos os militares “negros” e ho­mens “de cor”, quer tivessem ou não participado da re­sistência à escravatura.

Bonaparte preferiu deportar os oficiais que não ti­vessem sido capturados de armas na mão a executá-los no local. Naturalmente, é perigoso habituar os soldados a atirar nos mais graduados, ainda que de pele escura, assim como é perigoso pedir aos oficiais, ainda que de pele branca, que executem sistematicamente seus ir­mãos em armas. Já tinham ocorrido motins em tropas auxiliares estrangeiras, especialmente polonesas, que se recusaram a assassinar a população. Dessalines, mais tarde, já como chefe de Estado do Haiti, recordou-se disso e fez para os poloneses uma exceção à regra que proibia a concessão da nacionalidade haitiana a “bran­cos”. Afinal, a deportação era uma solução igualmente

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eficaz e muito mais discreta do que a execução propria­mente dita.

Essas ordens de deportação foram executadas em am­pla escala. Porém quem ler as obras “oficiais” da história napoleônica poderá duvidar. Para citar somente um exem­plo, o artigo do Díctionnaire du Consulat et de VEmpire, dos srs. Fierro, Palluel-Guillard e Tulard, dedicado à deporta­ção, é bastante significativo a esse respeito. “Bonaparte”, escrevem eles, “utilizou-a somente contra 130 republica­nos presos após a explosão da máquina infernal e deporta­dos em virtude do senatus-consultus de 4 de janeiro de 1801. “Segundo os historiógrafos que passam por autori­dades diante de um amplo público, portanto, não houve deportações de antilhanos. É verdade que desde 1945 a palavra “deportação” passou a ter conotações desagradá­veis, especialmente quando se verifica estar apoiada em considerações “raciais”.

No entanto, apesar das afirmações desses eminentes académicos, Napoleão mandou deportar milhares de guadalupenses e haitianos. Teria havido muito mais se não fosse a retomada das hostilidades com os britânicos em maio de 1803. Essas deportações, baseadas unica­mente na cor da pele das vítimas, constituem — no sentido da definição dada pelo tribunal de Nuremberg — uma outra faceta do crime de Napoleão. Ora, trata- se de erro grosseiro ou de esquecimento voluntário? Não se pode saber bem; mesmo assim, é difícil pensar

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que especialistas da época tenham podido esquecer um personagem como Toussaint Louverture, que ninguém pode negar ter sido deportado e que nada tinha a ver com a máquina infernal.

No tocante a Saint-Domingue, as ordens escritas en­tregues a Leclerc existem, assinadas por Napoleão em 31 de outubro de 1801: “Todos os negros que tenham se comportado bem, mas cujo grau hierárquico não permite mais que sejam deixados na ilha, serão enviados a Brest. Todos os negros e homens de cor que tenham se compor­tado mal, qualquer que seja seu grau, serão mandados para o Mediterrâneo e depositados em um porto da ilha da Córsega.” Lacrosse, e depois Richepance, receberam instruções idênticas para Guadalupe.

Antes da partida de Lacrosse, o Primeiro Cônsul mandou preparar um plano de deportação e o emissário consular começou a executá-lo desde sua chegada a Basse-Terre na primavera de 1801. Em 21 de agosto, Napoleão escreveu a Forfait, ministro da Marinha e das Colónias: “Recebi, Cidadão Ministro, vossos despachos sobre Guadalupe. Dai ordens para que todos os indiví­duos enviados pelo contra-almirante Lacrosse e que es­tão em Lorient sejam presos até que o Governo decida sobre sua sorte.” No dia seguinte, o ditador já tinha tido uma idéia: “Mandareis embarcar em um navio os de­portados de Guadalupe, Cidadão Ministro, e mandareis

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que sejam levados a Caiena, com a ordem de colocá-los sob vigilância nas comunas que o agente da República designará. Não poderão sair da colónia por qualquer motivo que seja.” Em 22 de novembro, em seu Exposé de la situation de la République (Relatório sobre a situa­ção da República), publicação obviamente oficial, o Primeiro Cônsul apresentou as coisas de maneira dife­rente, pois se dirigia à Nação: “Desde sua chegada, o capitão geral dedicou-se a combater o espírito de fac- ciosismo. Achou por bem enviar para a França treze in­divíduos autores de distúrbios e fatores de deportações. O Governo acreditou que tais homens seriam perigosos se ficassem na França e ordenou que fossem mandados para as colónias que escolhessem, com exceção de Gua­dalupe.” Nesse comunicado, os deportados são apre­sentados como se fossem eles próprios os responsáveis pela deportação de dois agentes da República e como se pudessem escolher seu destino. Uma espécie de turistas em vilegiatura.

Alguns meses depois, conforme as instruções rece­bidas, Richepance deportou Pélage e mais 35 homens “de cor”. Ao mesmo tempo, improvisou um campo de concentração na ilhota de Terre-de-Haut, em Saintes. Mais de três mil soldados da República foram abando­nados ali, quase sem alimentação. Depois tentou-se vendê-los a Cartagena e mais tarde a Nova York, não somente para proporcionar ao exército um “caixa dois”

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nas também para lucro pessoal de alguns oficiais. Na­poleão não poderia ignorar esses procedimentos, tanto mais quando, como os destinatários não os aceitaram, o fato ocasionou incidentes. A fragata La Cocarde foi víti­ma de uma avaria. Os britânicos, ao verificarem que os porões estavam cheios de guadalupenses, visivelmente destinados a serem vendidos, rebocaram o navio até o Cabo, onde chegou durante o mês de agosto. Leclerc ficou muito aborrecido ao ver chegar aquele barco cheio de patriotas que haviam lutado pela liberdade e cuja presença em Saint-Domingue era extremamente perigosa. Cerca de cinquenta guadalupenses consegui­ram atirar-se ao mar e nadar até a costa haitiana, apesar da chuva de chumbo que, naturalmente, caiu obre eles. Esses companheiros de Delgrès o iriam vingar. Ao avi­sar aos haitianos que em Guadalupe a escravidão havia sido restabelecida e os resistentes massacrados, deram o sinal para a insurreição geral. Foi em parte devido a essa evasão, espetacular traço-de-união entre a resistência em Guadalupe e a revolução haitiana, que Napoleão perdeu Saint-Domingue.

Leclerc deportou os guadalupenses que não tinham conseguido escapar: “Não desejando conservar esses revoltosos aqui por mais tempo, mando-os à Córsega no navio Le Formidable”, escreveu ele ao ministro da Marinha em 25 de agosto de 1802.

Alguns deportados foram embarcados como mari-

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nheiros em navios que voltavam à França, substituindo homens da tripulação mortos em combate ou de febre amarela. Leclerc informou disso o ministro da Marinha desde 22 de julho de 1802: “As perdas consideráveis de marinheiros sofridas aqui por diversos navios do Estado me obrigaram a entregar-lhes negros, no regresso à Fran­ça, para aliviar as tripulações nas manobras. Esses negros são sempre escolhidos dentre aqueles cuja presença na colónia pode ser perigosa. É necessário que tomeis medi­das para que não tenham ocasião de voltar para cá.”

Outros ainda foram para Caiena, levados por um barco que zarpou do Cabo em 18 de junho de 1802. Uma carta enviada ao Primeiro Cônsul pelo cidadão Barthélemy fornece algumas informações: “Ontem, 20 de termidor [8 de agosto de 1802], entrou no porto de Caiena a corveta do Estado La Nathalie, com ordem de lançar em nosso solo [...] dezoito negros de Saint- Domingue; seus nomes e a precaução de mantê-los acorrentados dos pés à cabeça são suficientes para qua­lificar esses homens como antropófagos.”

Relegados a uma ilhota a uma légua de Caiena, os “antropófagos” foram em seguida mandados para a Fran­ça a bordo do Rhmocéros.

Os antilhanos que chegavam à França representavam frequentemente a metade dos que haviam embarcado. A ordem, com efeito, era de transportá-los acorrentados e no

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fundo do porão, na escuridão, com os pés na água, junto com os ratos. Os escravos africanos tinham direito à pro­va, mas tratando-se de revoltosos, era normal que pagas­sem um preço mais elevado. Assim, a mortalidade era impressionante.

Mais de dois mil deportados, militares ou civis, che­gariam vivos a um porto francês. Alguns ali permanece­riam, trabalhando como mergulhadores no serviço de reparo dos cascos. Outros seriam embarcados em na­vios, incorporados a batalhões disciplinares ou interna­dos. Bonaparte não os queria no território nacional, a fim de não arriscar-se à “mistura de sangue”. Nenhum desses deportados foi jamais julgado. Alguns haitianos conseguiram fugir e regressaram a sua terra natal. Os outros, qualquer que fosse seu destino, morreriam em geral dentro de cinco anos.

Uma centena de haitianos chegou à ilha de Aix no La Vertu, La Nourrice ou LIntrépide. Em 5 de janeiro de 1803, Ganteaume, comandante do Mohawk, desembar­cou na ilha “oficiais superiores negros e mulatos, assim como doze negros maus súditos”. Outros portos, como Cadiz, La Corogne, Santander e Toulon acolheram mais duzentos.

Mas foi sobretudo Brest que se transformou no des­tino inicial dos deportados, guadalupenses ou haitia­nos, que resistiram à travessia. Toussaint chegou a esse

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porto em 12 de julho de 1802 a bordo do Héros, acom­panhado por sua família. Como havia somente um lu­gar na masmorra do castelo, ficaram todos a bordo. Em 13 de agosto, às cinco horas da manhã, um oficial de polícia foi buscar o ex-govemador. Ele foi separado dos seus e levado de chalupa a Landemau com seu velho empregado Mars Plaisir. Seu filho Placide foi também isolado da família e levado à fortaleza de Belle-Ile. O aju- dante-de-ordens Chancy seria mandado para a Córsega. Os cinco outros deportados, mais próximos de Toussaint, foram levados para Bayonne. O filho mais jovem, de doze anos, queixou-se de que morreria de tristeza se não lhe devolvessem o pai. O menino cumpriu a palavra.

Em 5 de agosto de 1802, o Le Redoutable e o Le Fou- gueux trouxeram de Guadalupe Pélage e 34 homens de cor de seu grupo. Pouco agradecido pela colaboração do oficial que se aliara a Richepance, Bonaparte mandou encarcerá-lo com seus companheiros no hospital da ci­dade por crime de alta traição e exigiu 278 mil libras de prata da colónia a título de danos e juros. Para garantir o pagamento dessa soma, as modestas bagagens dos pri­sioneiros foram confiscadas. Pélage permaneceu mais de um ano atrás das grades.

Em 27 de outubro, La Volontaire, La Romaine e La Salamandre desembarcaram 805 deportados de Guadalupe que Richepance pretenderia vender em Nova York.

Napoleão explicou ao general Decaen que “o gene­

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ral Richepance nos empurrou 1.500 negros que chega­ram a Brest, os quais ele havia retirado de Guadalupe e mandado inicialmente aos Estados Unidos, onde não os quiseram receber. Esses homens foram postos na cadeia enquanto aguardam”. Ele propôs que seiscentos dentre eles fossem engajados numa expedição prevista para o oceano Índico.

_No final de 1802, a caserna de Pontanezen, nos su­búrbios de Brest, foi transformada em campo de tria­gem. Naturalmente, não havia nada para servir de aquecimento. A triagem era lenta. Era difícil, porque são todos parecidos”. Os piores súditos ficariam pre­

sos; 619 guadalupenses foram escolhidos para o exérci­to. Porém, dez dias depois, haviam-se reduzido a 509. Este clima firio e úmido é deletério para esses habitan­

tes de países quentes”, dizia rindo Decrès, ministro das Colónias. E verdade que haviam esquecido de dar-lhes roupas e que em Brest, naquele mês de janeiro de 1802, havia um certo friozinho. Não se pode pensar em tudo! Os guadalupenses finalmente deixaram o campo de triagem para serem instalados nas casernas de La Re- couvrance, onde finalmente foram vestidos. Napoleão seguia de perto os deportados. “Minha intenção”, es­creveu ele ao ministro da Marinha em 18 de abril, “é que os negros que estão em Brest, com exceção do pe­queno número de operários que, por sua habilidade, são necessários para as construções, no máximo cem ho-

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mens, sejam colocados à disposição do ministro da Guerra. [...] tenho grande interesse em que Brest e seus arredores fiquem livres desses indivíduos.”

Livrar-se deles significou mandá-los para Mântua em 30 de abril de 1803, onde foram incorporados à uni­dade dos “Pioneiros negros”. Três meses depois, Bona- parte, que se encontrava em Bruxelas, ainda não os tinha perdido de vista: “O corpo de negros que está em Mântua”, ordenou ele a Berthier, “deve ser composto por 1.500 homens, formados em dois batalhões de cin­co companhias, cada qual com 150 homens. Esses dois batalhões não deverão nunca reunir-se; um ficará cui­dando das obras em Mântua e o outro das de Legnago.” Quatro anos mais tarde, os Pioneiros negros já teriam perdido a metade de seus efetivos.

Os primeiros deportados que chegaram à Córsega desembarcaram no mês de julho de 1802. Eram hai-̂ tianos. Numa carta confidencial ao administrador da­quela ilha, o ministro das Colónias informa que os deportados deveriam ser “detidos em lugar seguro”, em­pregados nas obras públicas e “submetidos ao regime, à polícia, à disciplina exercida na França sobre os conde­nados à prisão”. Decrès considerou necessário acres­centar com sua letra que todas as disposições dessa carta eram ordenadas pelo próprio Primeiro Cônsul. Previdente, ainda escreveu mais: “Se precisardes de gri­

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lhões ou correntes, podeis pedi-las ao prefeito de Tou- lon, assim como todos os acessórios necessários ao esta­belecimento de uma prisão.”

O Primeiro Cônsul finalmente mudou suas ordens e após fazer os “bandidos” transitarem por Bastia, enviou-os à ilha de Elba, que acabara de anexar. Um campo de con­centração para “negros” foi especialmente criado em Porto Ferraio.

Entre os deportados para a ilha de Elba estava o ex- deputado à Convenção Jean-Louis Annecy, de 43 anos, qualificado de “motor da insurreição por seus discur­sos”. Com ele havia muitos oficiais superiores. Muitos desses deportados já eram idosos e sofriam de feri­mentos e enfermidades: Annecy era asmático e a maio­ria de seus companheiros haviam sido vítimas de balas ou eram aleijados. Todos, porém, foram colocados em trabalhos forçados e utilizados em fortificações. Natu­ralmente, a maior parte morreu nessas tarefas em me­nos de cinco anos.

Napoleão instalou em sua ilha natal um segundo campo de concentração para “negros”. A Córsega, na­ção independente e democrática, havia se libertado de Génova graças a Pascal Paoli. Choiseul, porém, a havia voltado a anexar pela força em 1769, ano em que se acredita que o futuro déspota tenha nascido (na verda­de, ele teria falsificado sua certidão de nascimento para poder entrar na escola militar). Após haver oferecido

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em vão seus serviços a Paoli contra os franceses, Bona­parte mudou de lado. “Questa birba Napoleone!” (Esse crápula de Napoleão!), exclamou Paoli, enojado. Nas­cido “no lodo do despotismo”! Era assim que o herói corso considerava o filho de Cario Bounaparte. Uma alusão às relações dessa família, e especialmente de Letizia, la mamma, com o governador francês, Marbeuf. O “crápula” detestava sua terra natal e a renegou por muito tempo. “Questo paese non è per noi!” (Esta terra não é para nós!), explicou ele aos seus quando escapou, perseguido pelos independentistas que saquearam sua casa. Os cadernos de notas do general Bertrand mos­tram que em 1821, na véspera de morrer, ele não havia mudado de opinião. ‘“A Córsega é um inconveniente para a França’, exclamava o renegado. ‘É uma excres­cência que ela tem sob o nariz!’ Choiseul dizia que, se fosse possível mandá-la para o fundo do mar com um golpe de tridente, era preciso que isso fosse feito. E ti­nha razão.” Como não queria “negros” na França, a fim de evitar a contaminação “racial”, Napoleão se reju­bilou com a idéia de expedi-los para a Córsega, onde a contaminação — ele tinha condições de sabê-lo — não datava de ontem. Em 1802, a Córsega, francesa havia somente 33 anos, não estava menos submissa do que Saint-Domingue. Napoleão teria assim, a fim de desem­baraçar-se dos “negros” que mandara deportar porque seria perigoso matá-los onde estavam, a perversidade

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de “desfazer-se” deles alistando-os na construção de uma estrada entre Ajaccio e Corte destinada ao trans­porte de tropas ocupadas na “pacificação” da ilha.

Em 20 de sgtembro de 1802 a corveta La Naiade transportou a Ajaccio, via Toulon, cerca de cinquenta haitianos. As ordens eram de “mantê-los a ferros durante a travessia . Foram dadas instruções para transformar a cadeia de Ajaccio em campo de concentração com capa­cidade para quinhentos internos. Em caso de superlo­tação, um anexo seria improvisado sobre pontões.

No começo de novembro chegaram cerca de sessenta novos deportados haitianos. Em meados do mês o ministro Decrès informou os prefeitos de que os efetivos previstos para a Córsega seriam de 1.200 e que se esperava um nú­mero ainda mais considerável”, homens e mulheres. O teinício da guerra contra a Inglaterra e a vitória dos pa­triotas de Saint-Domigue contrariariam, evidentemente, esses projetos de maior envergadura.

Enquanto isso, Bonaparte decidiu a sorte dos depor­tados por meio de um decreto de 4 de dezembro de 1802 cuja minuciosidade revela que o autor teve prazer em redigi-lo.

Durante todo o ano d e1803 barcos provenientes de Pontanezen levariam à Córsega pelo menos quinhentos deportados, tanto haitianos quanto guadalupenses. Muitos eram oficiais superiores. Também mulheres e al­gumas crianças, acorrentadas como os demais. O crime

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de que os acusavam era haver sido “partidários da liber­dade dos negros”. Lá estava o pobre comandante de batalhão Dupuche, salvo in extremis da câmara de gás por seu amigo Jurien de La Gravière. Seus assentamen­tos pessoais nos indicam que era um “celerado” e que havia sido preso pelo chefe do Estado-maior do exército naval. A seu lado, Jean-Baptiste Mill, primeiro deputa­do “de cor” da história da França. A Convenção o rece­bera com aclamações naquela memorável jornada de 4 de fevereiro de 1794, quando a escravatura fora abolida. Agora, graças a Napoleão, sem roupas, os pés presos aos de seus camaradas por uma corrente de ferro, sob o chi­cote das galés, quebrava pedras na estrada da Corte. Seu colega parlamentar Jean-Baptiste Belley, que havia servido de modelo para Girodet em 1797, foi encarcera­do em uma masmorra da fortaleza de Belle-Ile. Ali mor­reria, em 1805.

Parte dos deportados ficou detida no campo de con­centração propriamente dito. Ficavam no convento dos capuchinhos de Ajaccio e dormiam nus no chão de uma igreja “extremamente insalubre”. Todos foram conde­nados a trabalhos forçados na construção da estrada ou no corte de mastros para navios nas florestas de Altone ou de Vizzavona e em transportá-los até Ajaccio, apesar das dificuldades de topografia. Com o frio, as obras pú­blicas nas altitudes mais elevadas eram mortais; oitenta deportados morreram no primeiro ano. Doze corajosos

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resistentes guadalupenses e haitianos, entre os quais uma mulher, no entanto, conseguiram fugir em julho do ano seguinte e chegar à Sardenha a bordo de uma barca em mau estado. Os efetivos iriam reduzir-se ao longo de todo o período do Império. Após 1814 seus traços se perdem. Os que não haviam conseguido evadir-se já haviam morrido.

Tòussaint, um dos raros deportados a ter o privilégio de permanecer em solo metropolitano, tinha consciência de que aquilo não iria durar muito. Napoleão não gostava de ser contrariado. Um dia deu conhecimento disso a par­lamentares que se preparavam para votar negativamente contra uma decisão sua. “Ousam desafiar-me?”, exclamou ele. “Saibam que eu nunca tolerei isso!” Tòussaint havia desafiado o Primeiro Cônsul, que não o toleraria.

O prisioneiro foi conduzido secretamente ao castelo de Joux, que Napoleão havia transformado em prisão do Estado desde sua chegada ao poder. O ex-govema- dor não tinha o direito de comunicar-se com ninguém.

Se Tòussaint não foi imediatamente executado, é porque Napoleão o supunha possuidor de um tesouro de 15 milhões de francos. Apressou-se em enviar Caf- farelii para saber onde ele o haveria escondido. Caffarelli o interrogou durante uma semana. Como Tòussaint se li­mitasse a responder que havia perdido muito mais do que um tesouro, no dia seguinte ao do interrogatório, 28 de

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setembro de 1802, o governador do castelo de Joux lhe trouxe roupas de condenado aos trabalhos forçados. Não seria preciso ler A cartuxa de Parma nem o relato do cativeiro do general Dumas em Taranto para compreen­der que após seu encontro com Caffarelli, a saúde de Toussaint somente poderia ter sido prejudicada. Mas era preciso ainda torturá-lo um pouco antes de sua morte. Ele bem mereceu o sofrimento. Decrès foi o en­carregado de passar ao carcereiro as revoltantes instru­ções do mandante da execução. Toussaint deveria perder a noção do tempo. Assim, em 27_ de outubro: “Retirem-lhe o relógio, caso seu uso lhe seja agradável. [...] Toussaint é o seu nome: essa é a única denomina­ção que lhe deve ser dada!” Como o carcereiro parecia ser demasiado bonachão para servir de assassino, o mi­nistro da Marinha considerou útil adverti-lo de manei­ra especialmente solene e por escrito de que seria de seu interesse apertar as cravelhas: “O Primeiro Cônsul”, ra­lhou ele, “encarregou-me de levar a seu conhecimento que a responsabilidade pela pessoa do prisioneiro recai sobre sua cabeça. Não preciso acrescentar nada mais a uma ordem tão formal e tão positiva.”

Paradoxalmente, se Baille — assim se chamava o carcereiro — era responsável pelo prisioneiro, isso não significava que respondesse pela vida de Toussaint. Na verdade, a questão era a sua morte.

Desde 30 de outubro, aliás, o carrasco observa que

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Louverture se queixava de dores de cabeça e de frio. “Como a compleição dos negros em nada se parece com a dos europeus”, relatou ele, para mostrar que cumpriu as ordens, “deixo de proporcionar-lhe médico e cirur­gião, que seriam inúteis.”

Em novembro, Napoleão foi informado de que Leclerc não conseguia encontrar o mínimo de elemen­tos para um processo contra o chefe haitiano. Ficou também sabendo dos contratempos na colónia. Com isso, enlouqueceu. Do fundo de sua masmorra, afinal, Toussaint havia vencido! Napoleão mudou o carcereiro demasiado brando e mandou no início de dezembro um matador, que atendia pelo nome de Amiot, com o título de comandante de armas do castelo de Joux. Desde a chegada do comandante de batalhão Amiot, “jovem militar [...] muito dedicado a seus deveres”, os aconte­cimentos se precipitaram. Toussaint começou a quei­xar-se de novos sintomas: dores, especialmente no estômago. Em seguida teve vómitos. “Ele nunca me pe­diu um médico!”, certificou Amiot, com a falsa candura do profissional.

A questão não é saber se Napoleão assassinou Tous­saint Louverture, coisa de que somente duvida um biógrafo de Pauline Bonaparte, ex-marujo racista e mi- sógino que explica alegremente que Toussaint morreu “de nostalgia de seu país”. A questão é simplesmente saber de que forma Napoleão o mandou matar, pois teve

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de recorrer, dentro dos limites da discrição que a faça­nha exigia, ao processo mais cruel que lhe foi possível encontrar. Pelos sintomas descritos por Amiot, é lícito pensar que além do frio a que ficava exposto Toussaint, uma pitada de arsénico pode haver ajudado a comple­tar a obra. Era um método comum na época, sobretudo nas prisões dos tiranos, mas talvez fosse suave demais na mente do vencido de Saint-Domingue. Thomas Madiou, com base no testemunho do capitão de arti­lharia Colomier, da guarnição de Pontarlier, que se es­pantou com o martírio que Toussaint teve de suportar, diz que ele teria morrido de fome. Colomier, que estava presente quando o cadáver foi descoberto, teria recusa­do — assim como o prefeito de Pontarlier — entregar ao carrasco um certificado que atestava o contrário. Amiot teria feito esforços vãos para acalmar Colomier. Em Pontarlier murmurava-se que um crime horrendo havia sido cometido contra um prisioneiro do Estado. É claro que o executor mandou fazer uma autópsia a fim de demonstrar que Tousaint não havia morrido nem de fome nem envenenado.

Outra explicação, que aliás não é incompatível com as anteriores, é fornecida por Étienne-Louis Michel, re­publicano parisiense, perfumista de ofício, preso devido ao atentado da rua Saint-Nicaise e que portanto faz parte dos trinta happy few autorizados pela historiografia oficial a se adornar com o título de deportados. Quis o acaso

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que em julho de 1803 ele sucedesse a Toussaint, morto na mesma masmorra algumas semanas antes. Jean Destrem, ele próprio descendente de um dos republica­nos perseguidos pelo ditador, publicou em 1885 em Les déportatkms du Consulat et de VEmpire (As deportações do Consulado e do Império), uma carta inédita de 22 de ou­tubro de 1803, dirigida por Michel a sua mulher. Claro que a carta foi interceptada pela polícia secreta de Bo­naparte. Mas os espiões a terão lido bem? Seja como for, deixaram de lado a missiva sem ter tido a inteligência de destruí-la. O pobre Michel, que estava preso unicamente por causa de suas idéias, narra sua descida aos infernos. “Fizeram-nos atravessar”, diz ele, “uma abóbada onde a água se filtra através das pedras e a certa distância desse subterrâneo nos mandaram entrar em uma casamata, ou melhor, numa masmorra.” Quando ele afirma que “as prisões de Paris são mais salubres” imagina-se que aquele lugar nada tivesse a ver com o palácio das Tulherias, de onde o assassino mandava suas ordens. “As paredes têm um metro e meio de espessura”, explica Michel, “e o pé- direito um metro e vinte de altura.” Pela descrição do preso, pode-se perceber que a sofisticação do sistema carcerário reservado a Toussaint é digna da gaiola de madeira da torre Famese na qual, no romance de Stendhal, outro tirano grotesco tentou matar o herói. Eis o sistema de vigilância e de execução imaginado na mas­morra de Toussaint: “Há três grades de ferro. Entre elas,

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ergue-se uma parede de noventa centímetros de altura: o ar permitido para respirarmos circula somente através de uma abertura no alto. Essa abertura tem 30 centímetros de altura e 50 de largura; do lado de fora há uma grade de malha de arame e uma veneziana que fica fechada todas as tardes, meia hora antes do escurecer.” A veneziana era acionada por um dos guardas e permitia portanto blo­quear a entrada de ar na masmorra. “Um sentinela fica postado dia e noite próximo ao topo. Quando a venezia­na é fechada, resta-nos somente, para respirar, o ar que circula pela chaminé, com um mau odor que penetra em nossa masmorra pela porta que não se fecha completa­mente.” Os dois infelizes que se encontravam na mas­morra, portanto, somente podiam respirar quando se colocassem sob a chaminé. Ainda sofriam mais porque eram obrigados a suportar “o mau cheiro de [seus] ex­crementos, que só eram retirados a cada 24 horas”. O pobre perfumista não tinha tido sorte. “Para poder resis­tir”, continua ele, “éramos obrigados a nos colocar sob a chaminé a fim de respirar o ar.” E acrescenta: “Foi ali que morreu Tòussaint Louverture.”

Com efeito, na manhã de 7 de abril de 1803, Amiot, acompanhado por Colomier, encontrara Tòussaint sem vida e encostado na chaminé descrita por Michel. O sufocante sepulcro era ainda mais letal por ser glacial: “Essa casamata, ou masmorra, é de tal maneira fria, de­vido à espessura das paredes e à falta de ar”, assegura o

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perfumista, “que não nos foi possível resistir sem fogo no mês de termidor [julho-agosto], deitados num catre miserável que consistia em um colchão de crina e palha carcomida.” Quando o fogo ficava aceso na lareira e a respiração se tomava impossível por essa via, por causa da fumaça, não era possível sobreviver sem aeração do exterior. A detenção naquela masmorra equivalia a uma condenação à morte. Se durante o verão não era possível resistir sem fogo na cela, pode-se imaginar o que seria em pleno inverno. “Depois de muitas preces e súplicas”, conclui Michel, “e quando se verificou que nossos corpos não poderiam resistir, [o comandante de armas] não mandou mais fechar a veneziana da abertu­ra superior.” Essa descrição é confirmada por uma peti­ção ao ministro da Justiça assinada não somente por Michel, mas também por três outros presos republica­nos que na época estavam com ele no forte de Joux: Jean-Michel Brisvin, Joseph Château e Claude Foumier. Esses homens, dos quais dois estavam na cela de Toussaint Louverture, agora arejada, suplicavam mesmo assim que “os encarcerassem em um local são e salubre”.

“Desde nossa chegada [estamos] encerrados”, di­zem eles, “em casamatas, dois de nós deitados em um catre ordinário, vendo a luz do dia somente através de uma abertura de 60 centímetros, enterrados em pare­des de metro e meio de espessura. Há três grossas grades de ferro a pouca distância umas das outras. Nesse lugar

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horrendo, somos obrigados a acender o fogo durante o ano inteiro. Para chegar às masmorras, é preciso passar por sob as abóbadas com uma lanterna. A água escorre pelas pedras. Somente vemos os que nos trazem os víve­res a cada 24 horas. Além disso, [temos] de suportar os incómodos diários. Nossa saúde se debilita todos os dias por estarmos encerrados.”

Étienne-Louis Michel escapou por pouco de uma morte certa: “Depois de muitas súplicas e preces”, diz ele, “[o comandante de armas] nos tirou daquele horrí­vel alojamento; colocou-nos em uma casamata acima do calabouço. O ar ali é salubre e puro, e depois de estar vivendo [nesse lugar], assim como meus companheiros de infortúnio, gozamos de boa saúde.”

O prisioneiro republicano fornece além disso algu­mas informações sobre Amiot, o carrasco de Toussaint, evocando “a ferocidade desse animal bruto e malvado”.

Os testemunhos desses quatro detidos atestam as­sim, da maneira mais formal, que Napoleão assassinou Toussaint Louverture. Por sua ordem, a cela foi arruma­da de maneira que ele tivesse de escolher entre morrer de frio ou morrer sufocado. Nada poderia, aliás, impedir que esse regime fosse acelerado com um pouco de arsénico e combinado com uma privação prolongada de alimentos.

Em Santa Helena, segundo 0 ’Meara, Napoleão te­ria comentado os rumores malévolos que naturalmente

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só poderiam ter sido difundidos por antibonapartistas primários: “Que interesse”, teria ele dito, “poderia eu ter em mandar matar um negro depois de sua chegada à França? Se ele tivesse morrido em Saint-Domingue, então, sem dúvida, alguém poderia suspeitar de alguma coisa, mas após ter chegado são e salvo à França, qual poderia ter sido meu objetivo?”

Essa demonstração não é muito convincente. Claro que não haveria mais interesse em matar Toussaint do que em deportá-lo, pois isso não impediu o desastre. Mas a deportação era apenas mais uma maneira de pro­vocar a morte. A defesa canhestra do criminoso pelo menos tem o mérito de esclarecer um ponto: todos os “negros” mortos em Saint-Domingue nos autorizam a “suspeitar de alguma coisa”.

Uma coisa é certa: Toussaint não morreu ingénuo, pois em um memorial dirigido a seu pior inimigo ele afir­ma: “Sem dúvida, devo esse tratamento à minha cor!”

Não somente os deportados haitianos e guadalupen- ses tiveram de sofrer. Napoleão se vingou do malogro de seus projetos racistas em todos os “negros” e “gente de cor” que já se encontravam na França antes da partida das expedições. Quantos eram? Alguns milhares. Entre eles, várias centenas de soldados da República.

Pouco depois do restabelecimento da escravatura, em 29 de maio de 1802, Napoleão assinou três decretos

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secretos e distintos. Um visava os militares “de cor”, outro os militares “negros” e o terceiro organizava com­panhias auxiliares “negras”.

É preciso saber que uma chuva de decretos já havia reformado, ou iria reformar, todos os militares “negros” e “de cor” que se encontravam no território metropoli­tano. Já não haveria nenhum deles em serviço ativo, salvo os soldados rasos repartidos em três companhias auxiliares de cem homens. Cada uma dessas compa­nhias ficava estacionada em uma ilha a fim de evitar qualquer “contaminação”: Hyères, Aix e Oléron. Cla­ro, o decreto explica que elas seriam comandadas por três “oficiais brancos”. Se Napoleão não queria “negros com dragonas” no Haiti nem em Guadalupe, não seria para que eles viessem para a França. Toussaint já havia sido secretamente excluído do exército francês em mar­ço de 1801. A vez do general Dumas não tardaria em chegar. Era a ocasião para ajustar velhas contas.

Por outro decreto, também de 29 de maio de 1802 (9 de prairial Ano X), todos os militares “de cor”, mes­mo reformados, foram obrigados, exceto por derroga­ção excepcional concedida pelo Primeiro Cônsul, a residir nos municípios da primeira região militar, que compreendia o Sena, o Sena-e-Mame, o Aisne, o Sena- e-Oise, o Oise, o Loiret e o Eure-et-Loir.

As medidas eram mais severas para os que tinham a pele mais escura (os “negros”). Esses, especificamente

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objeto de um terceiro decreto da mesma data, “serão obrigados a domiciliar-se no departamento dos Baixos- Pireneus ou dos Alpes-Marítimos”. Assim, por fantasia do déspota, nenhum militar “de cor” poderia ser autori­zado a residir a menos de cem quilómetros de Paris. Ba- yonne — onde a família de Toussaint recebeu ordem de residir — e Nice tornaram-se cidades para oficiais ne­gros. Essas medidas abertamente racistas eram sem dúvi­da destinadas a evitar qualquer possibilidade de complô interno. Alguns hoje em dia diriam que era para impedir o “racismo contra os brancos”.

Em 2 de julho (13 de messidor Ano X), um novo de­creto, desta vez publicado, foi ainda mais longe. So­mente seria revogado em 5 de agosto de 1818.

Retomando de certa forma uma declaração do rei de 9 de agosto de 1777, o decreto proibia aos “negros, mula­tos e outras pessoas de cor entrar sem autorização no ter­ritório continental da República”. Todos os infratores seriam presos e detidos até serem deportados; mas a dife­rença entre esse decreto e a declaração de 1777 é que esta última, a fim de ser aplicada, deveria ser adotada por cada parlamento, coisa que diversos se recusaram a fazer. O decreto do Primeiro Cônsul, ao contrário, por não es­tar sujeito a poder contrário algum, era imediatamente aplicável. Para os “negros” e as “pessoas de cor”, a mo­narquia talvez valesse mais do que a ditadura. Vários interessados, inclusive a companheira de Delgrès ao ca­minhar para a forca, não deixariam de dizê-lo.

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Graças a Napoleão, foram reativados nos portos os “depósitos de negros” do Antigo Regime, o que equiva­lia a um campo de concentração a mais em cada porto. Os textos previam, com efeito, que “todo indivíduo ne­gro ou de cor [...] será colocado, por ordem do capitão do porto ou do comissário da Marinha, em um depósito de onde somente sairá para ser recambiado pelo mesmo navio que o trouxe ou por qualquer outro meio mais expedito, se possível”. Na prática, os indesejáveis se­riam reembarcados no primeiro navio que partisse para qualquer colónia francesa onde a escravatura estivesse em vigor (isto é, qualquer outra menos o Haiti). Ao chegarem aos trópicos, os infratores seriam vendidos em nome do Estado.

A medida foi aplicada severamente e a caça aos “ne­gros” se inaugurou no território francês. Em 1804, os pre­feitos foram convidados “sem estardalhaço” a registrar “todos os negros ou homens de cor que não pertencessem a nenhum senhor [...] cuja ociosidade, vagabundagem ou falta de meios de subsistência tornem perigosos para a tranquilidade pública”. O ministro da Guerra indicou “a intenção do governo de fortalecer a segurança interna por todos os meios possíveis e de utilizar em algum serviço pú­blico essa classe de indivíduos”. Em 1807, os prefeitos fo­ram convidados a “mandar procurar todos os indivíduos dessa espécie que se introduzam no interior após haver lu­dibriado a vigilância das autoridades quando de seu de­

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sembarque ou depois de escaparem dos depósitos”. Ainda em 1807, Napoleão, tomado por nova crise de paranóia negrófoba, pensou até em mandar expulsar da França to­dos os “negros”. Exigiu que os prefeitos elaborassem uma lista. A idéia era eliminar “os negros sem fortuna cuja pre­sença somente pode multiplicar os indivíduos de sangue misturado”.

Não é preciso dizer que os alunos “negros” ou “de cor” das escolas foram excluídos de seus estabelecimen­tos de ensino. Os estudantes das escolas politécnicas protestaram contra a expulsão racista de vários dentre seus colegas. Isso parece provar que em 1802 havia alu­nos “negros” ou “de cor” nessas escolas.

No mesmo espírito, ocorreu em outubro do mesmo ano o fechamento definitivo da Instituição nacional das colónias onde se encontravam crianças — de todas as cores — das famílias abastadas do ultramar (e em parti­cular, desde 1797, os jovens Louverture). Esse estabele­cimento era o sucessor da escola de Liancourt, instalada no Oise pelo duque de La Rochefoucauld.

A medida era grave porque Napoleão mandou igual­mente fechar todas as escolas das colónias rebeldes. Dali em diante, os colonos enviariam seus filhos para estudar na França. Os demais permaneceriam ignorantes. Mes­mo sendo livres, não poderiam mais entrar na metrópole.

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As consequências dessa medida ainda são perceptí­veis não somente no Haiti, que tem 60% de analfabetos, mas também, infelizmente, em certos departamentos ultramarinos.

Para tranquilizar Leclerc, Henry Christophe teve a má idéia, em fins de setembro de 1802, de mandar seu filho à Instituição nacional das colónias. Estranhamente, ele se­ria encontrado morto num asilo de crianças abandonadas. Mas, segundo a fórmula consagrada pelo herói, “que inte­resse poderia [ele] ter em provocar a morte de um negro depois de sua chegada à França?”.

Mas isso ainda não era tudo. Em sua ira ao saber da perda de Saint-Domingue, Napoleão resolveu proibir, no território metropolitano, os casamentos entre pes­soas de cor de pele diversa. Alguém observou-lhe que isso contrariava o Código Civil. Pouco lhe importava. Ele era o chefe. A lei era ele. O governo era ele. A Fran­ça era ele. Nada de “negros”! Acabemos com os “negros!” Morte aos “negros”! O ministro da Justiça, Ambroise Régnier, que já era cúmplice da lei sobre o restabe­lecimento da escravatura, teve a idéia de fazer adotar a medida em forma de circular dirigida aos governadores de todos os departamentos. Orgulhoso com sua idéia, assinou sua obra-prima em 8 de janeiro de 1803 (18 de nivose Ano XI): “Convido-vos, cidadão governador, a fazerdes saber no prazo mais curto aos prefeitos e adjun­tos, na função de oficiais do estado civil, em todos os

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municípios de vosso departamento, que a intenção do governo é que não seja aceito nenhum ato de casamen­to entre brancos e negras nem entre negros e brancas. Encarrego-vos de velar para que estas instruções sejam exatamente cumpridas e de relatar-me o que tereis feito para assegurar-vos disso.”

Assim, em cada departamento, no início de 1803, cada governador por seu turno dirigiu uma circular a ca­da prefeito, a fim de que aquelas uniões fossem proscri­tas. Sem dúvida medidas semelhantes deixam marcas nas mentalidades, no interior das províncias e dos cam­pos, muito tempo depois de serem abolidas. No caso, na­da permite pensar que essa iniciativa de Napoleão tenha sido revogada antes do reinado de Carlos X.

Nos primeiros anos do século XIX, os prefeitos — que tinham certeza do que fosse um “branco” ou uma “branca” — passariam a interrogar-se a fim de saber o que se devia entender por “negro” ou “negra”. Deve­riam ser incluídas as “pessoas de cor”? Existiria um catálogo oficial de nuances para a aplicação dessa cir­cular ?_Em_23^ejnaio^e_1806_o tribunal de Bordeaux “A Sra. Crouseilles contra a própria filha” decidiu que o casamento de um “mulato” com uma “branca” era líci­to, estando somente proibido o casamento entre um “branco” e uma “negra” ou entre uma “branca” e um “ne­gro”. Baseado nessa jurisprudência, um procurador de La Rochelle, Fontenelle de Vaudoré, em seu Manuel

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raisormé des officiers de VÉtat-Civã (Manual comentado dos oficiais do registro civil), declarou em 1813: “Como os dispositivos de proibição não devem nunca ser exten­sivos, penso que [a circular] não se aplica às pessoas de cor oriundas da mistura da raça branca com a raça africa­na. Creio portanto que os mulatos e os quarterons podem desposar brancas e que as mulatas e as quarteronnes po­dem unir-se a brancos. Com mais razão o casamento é permitido a indivíduos de sangue misto, qualquer que seja a mescla de tons.” No período da Restauração, o debate continuava. François Hutteau d’Origny, advogado da Corte, constatou em 1823 que aquele dispositivo havia sido revogado por ser contrário à lei de 16 de outubro de 1791, que assegurava o gozo dos direitos da nacionalida­de francesa a todo homem, qualquer que fosse sua cor, que possuísse as qualidades prescritas para exercê-los.

Jean-Guillaume Locré, advogado e ex-secretário ge­ral do Conselho de Estado, que conheceu Bonaparte e havia estudado suas leis “raciais”, nos informa em seu Commentaire et complément des codes françois (Comen­tário e complemento dos códigos franceses) _̂de 1827, que “mesmo assim, o governo às vezes concedeu dis­pensas desse empecilho. Numa decisão inédita de 17 de abril de 1812 existe um exemplo que permitiu a um ne­gro, ligado ao serviço de Mme Bonaparte, casar-se com uma mulher branca”. Novamente aí está Joséphine com seus “negros”!

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Em 1837 ̂Rieff, ex-procurador de Colmar, suscitou ainda, em seus Commentaires sur la loi des actes de Vétat ci- vã) (Comentários sobre a lei dos assentamentos do regis­tro civil), esse “caso bastante raro, mas que não obstante pode ocorrer, [..] no qual um branco queira casar-se com uma negra ou um negro com uma branca”. Sem dúvida, admitiu o magistrado, “a lei não proibiu essa união; no entanto o governo, por motivos poderosos, acreditou que esses casamentos não deveriam ser tolerados”.

Vê-se que a monstruosa circular ditada a Ambroise Régnier em 18 de nivoso do Ano XI “por motivos po­derosos” fez muita tinta ser gasta. E talvez muitas lágrimas.

Após a morte de Toussaint, sua família foi abrigada em Agen pela irmã do cavaleiro de São Jorge, Élisabeth- Bénédictine de Clairefontaine. O caçula — Saint-Jean Louverture — havia morrido de tristeza ao saber do assas­sinato do pai. Muito mais tarde, o primogénito, Placide, filho adotivo de Toussaint, pretendeu casar-se com uma jovem dos arredores de Agen. Como os oficiais do registro civil se recusassem a redigir a certidão, aplicando a circu­lar de Ambroise Régnier, ele foi obrigado a escrever ao ministro da Marinha em 13 de novembro de 1816 para solicitar “autorização para casar-se com uma moça bran­ca” e argumentar a fim de demonstrar que a circular não lhe era aplicável, porque a cor de sua pele “o afastava do negro”. Tal demonstração não deve ter produzido efeito, porque Placide somente se casou cinco anos depois. Os

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descendentes do casal proibido por Napoleão são hoje nu­merosos na região de Agen e de Astaffort.

Que teriam pensado, se é que ouviram, em 12 de ou­tubro de 2005, pouco antes das 13 horas, nas ondas de uma emissora pública da Radio France, um conhecido apresentador, Louis Bozon, explicar professoralmente às crianças que um casamento misto é “um casamento en­tre duas pessoas de raças diferentes”?

Que pensarão eles, se ficarem sabendo que Ambroise Régnier, o homem que preparou para Napoleão a lei so­bre o restabelecimento da escravatura, signatário da cir­cular racista de 18 de nivoso do Ano XI que proibia os casamentos “entre um branco e uma negra ou entre um negro e uma branca”, está hoje no Panteão?

Dirão, certamente, que a Pátria é grata aos grandes homens!

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Assim, em 1802-1803, por ordens de Napoleão, 250 mil franceses, principalmente antilhanos, guianenses e naturais da ilha da Reunião, foram escravizados. Entre eles, 100 mil guadalupenses e guianenses que eram efe- tivamente reconhecidos como cidadãos, 150 mil mar- tinicanos, mauricianos e naturais de Reunião que na verdade eram cidadãos somente para constar, graças a um texto admirável que Napoleão jamais considerou aplicar-lhes, nem mesmo em sonhos.

Bonaparte, organizando conscientemente um ver­dadeiro genocídio, mandou matar em Guadalupe e no Haiti ao menos cem mil pessoas de origem africana: não somente os que haviam resistido, de armas na mão, contra o restabelecimento da ordem escravista, mas vá­rias dezenas de milhares de civis, sem distinção de idade nem de sexo, torturados, violados, asfixiados, afogados, fuzilados, postos na roda, crucificados, degolados, es­trangulados, enforcados, mortos de fome, envenena-

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dos, queimados ou devorados vivos, simplesmente por causa da cor de sua pele.

Vários milhares de antilhanos, que na maioria per­tenciam à elite de Guadalupe ou do Haiti, morreram na deportação em condições abomináveis, simplesmente por haverem dito não ao inaceitável.

Por causa de Bonaparte, 70 mil franceses europeus ou de origem européia— 60 mil soldados e marinheiros e cerca de 10 mil civis — morreram também, por oca­sião das operações de restabelecimento da escravatura.

Os defensores do tirano apresentam às vezes algumas ações punitivas de certos resistentes contra a população civil — sobretudo em Saint-Domingue —, procurando justificar os horrores cometidos pelos escravistas. Essa mesma música foi tocada em relação à Argélia. Claro, os patriotas algumas vezes cometeram crimes odiosos. Mas além do fato de que esses crimes nada têm a ver em nú­mero e intensidade com os que foram sistematicamente perpetrados pelas tropas de Napoleão, os ativistas que os cometeram agiram apenas em legítima defesa, reagindo a outros crimes infinitamente mais bárbaros e diante de uma ameaça de volta à escravidão e de genocídio. A maior parte desses resistentes já havia provado os horro­res da escravidão e os suplícios que lhe eram ligados. Uma parte deles também já tinha conhecido a deporta­ção de suas terras natais na África, onde apenas deseja­vam viver em paz. O que fizeram com eles foi portanto

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pelo menos tão violento quanto o que eles pudessem ter feito a outrem. Assim como era responsável pelos solda­dos que enviou à desonra e à morte, Napoleão é verda­deiramente o único responsável pelas vítimas civis de origem européia. Ao decidir restabelecer a escravatura e destruir uma população que após haver conhecido a servidão gozava enfim da liberdade, ele sabia que a vio­lência provocaria sempre a violência, que a barbárie in­cita sempre ao revide, quando este é possível. Naquela situação, esse não era o caso. Agindo assim, ele assumiu deliberadamente o risco de sacrificar os “brancos” que se encontravam no local, traindo até mesmo sua famosa profissão de fé racista. “Sou a favor dos brancos porque sou branco”, dizia ele. Mas ao pretender restabelecer a escravidão em Saint-Domingue ele sacrificou também os “brancos” que lá habitavam. Se isso era tão impor­tante para ele, Napoleão deveria ter refletido. Mas na verdade, se era contra os “negros”, isso não significava que fosse “a favor dos brancos”. Desprezando a huma­nidade, ele pensava somente em si próprio, isto é, não era a favor de ninguém.

Por sua causa, pelo menos 200 mil africanos foram deportados para as colónias francesas e um milhão de outros perderam a vida durante essas operações de de­portação, se considerarmos o número de cinco afri­canos mortos para cada escravo desembarcado nas Antilhas.

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Um milhão, cento e setenta mil vítimas, das quais 170 mil franceses! 450 mil escravos! e tudo isso por um pouco de açúcar!

Mesmo do ponto de vista colonialista, trata-se de um fracasso: a França perdeu sua colónia de Saint-Do- mingue e até mesmo a Louisiana, que Napoleão, por raiva, vendeu por migalhas aos americanos em 1803, abandonando todos os franceses que lá se encontravam e que não o perdoaram.

E verdade que a França escravista foi compensada ao extorquir do Estado haitiano uma indenização de 90 milhões de francos-ouro, o que corresponde aproxima­damente ao valor dos escravos perdidos.

“Tudo passa rapidamente sobre a Terra, menos a opinião que deixamos gravada na história”, escreveu o filósofo de botas a seu cunhado Leclerc.

Em Santa Helena, Napoleão e seus íntimos trata­ram de construir uma lenda numa prisão dourada, onde levavam vida mais alegre do que a do forte de Joux ou a dos campos de concentração para “negros”.

Compreenderam perfeitamente que havia algo in­defensável em sua epopéia: não o restabelecimento da escravatura, que pouco lhes importava, e sim a perda da antiga colónia francesa de Saint-Domingue e a morte suspeita de um homem da têmpera de Toussaint.

A primeira estocada foi dada em 31 de março de

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1814 por um escritor famoso, Chateaubriand. Não so-Ir" i ■

mente o furioso negreiro, autor do Génie du chris- tianisme (O gênio do cristianismo), acusou o grande homem, num cortante panfleto, De Buonaparte et des Bourbons (Sobre Buonaparte e os Burbons), de haver “perdido nossas colónias, aniquilado nosso comércio e aberto a América para os ingleses”, mas recordou que “Toussaint Louverture foi raptado à traição na América e provavelmente estrangulado no castelo onde foi en­carcerado na Europa”. Acusando o ditador de ser um apátrida que desprezava profundamente seu país de adoção, Chateaubriand chegou a esquecer seus pró­prios preconceitos para dizer, com desprezo: “Se Buona­parte é francês, é preciso necessariamente dizer que Toussaint Louverture também o era, tanto ou mais que ele: pois afinal havia nascido em uma velha colónia francesa e sob leis francesas: a liberdade que recebeu lhe deu os direitos de súdito e de cidadão.”

Diante desses ataques, os homens de Santa Helena tentaram construir uma apologia a fim de deixar, apesar de tudo, uma “opinião” positiva para a posteridade. Sem jamais arrepender-se de ter restabelecido a escra­vatura e realizado um genocídio, pois disso ainda não tinha sido acusado, Napoleão foi obrigado a reconhecer um pouco de sua culpa pela perda de Saint-Domingue e seu desprezo pelo valor de Toussaint Louverture. É cla­ro que ele não deixou de justificar-se imediatamente.

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Deixemos de lado o argumento lamentável e vulgar da responsabilidade de Joséphine, para recordar as ex­plicações de Las Cases: “O Imperador”, diz-nos o autor do Mémorial de Sainte^Hélène (Memorial de Santa He­lena), “ [...] nada mais fez do que ceder à opinião do Conselho de Estado e à de seus ministros, influenciados pelas lamentações dos colonos. O exército que foi en­viado para lá tinha apenas 16 mil homens. E era insufi­ciente. Se a expedição fracassou, foi puramente por circunstâncias acidentais, como a febre amarela, a mor­te do general-em-chefe, sobretudo os erros que ele co­meteu, e uma nova guerra.” Las Cases acrescenta um argumento interessante: Leclerc não teria entendido nada. Napoleão lhe teria dito que se escorasse nos “mu­latos”, e ele, pobre daltónico, teria confiado nos “ne­gros”. Daí a catástrofe.

Para Montholon, Napoleão, em abril de 1816, apre­sentou Toussaint como o verdadeiro responsável. Foi ele quem teria começado, ao provocar a Nação por meio de uma constituição separatista. “Desde então, a honra da França dominou todos os demais interesses; a República fora ultrajada; entre todas as maneiras de proclamar sua independência e arvorar o pavilhão da rebelião, o general negro escolhera a mais insolente. A partir daquele instante, nada mais havia a deliberar; a honra e os interesses franceses me aconselhavam a lan­çar ao nada os chefes negros, que a meus olhos nada

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mais eram do que africanos ingratos e rebeldes.” Lançar ao nada? Que confissão!

Mais tarde, uma vez suprimidos definitivamente o tráfico e a escravidão, os fanáticos, sem argumentos para defender o homem que restabeleceu e tomou mais seve­ro o Código negro, assinalariam que Napoleão mesmo assim aboliu o tráfico em 25 de março de 1815, esque­cendo-se de precisar que essa medida já havia sido im­posta pelo tratado de paz de 30 de maio de 1814 e que o de 20 de novembro de 1815 faria o mesmo, sem dar aten­ção, aliás, à iniciativa hipócrita de Bonaparte, que nunca enganou ninguém. Além do fato de que a abolição do tráfico de 1815 não foi acompanhada pela abolição da escravidão nem pela regulamentação “racial” napo- leônica, e de que essa decisão tardia não apaga de forma alguma o crime de 1802, é preciso saber que esse argu­mento não consegue demonstrar que o Imperador, mais tarde, tenha sentido o menor remorso nem o mínimo ar­rependimento. O homem dos Cem Dias simplesmente tomou uma medida sem significação concreta porque, já não tendo colónias nem Marinha, esse gesto era simples­mente destinado, pelo que se percebe, a lisonjear os in­gleses,Lçjuej3orjuaj^ezhaviamjiboM ^807. Além disso, como o açúcar começava a ser explo­rado a partir da beterraba graças à refinaria instalada em Passy por Delessert, Napoleão havia proibido a importa­ção do produto da cana desde lõ de janeiro de 1813.

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Portanto, invocando Joséphine, os colonos, a opi­nião francesa, Toussaint, a falta de sorte, a febre amare­la e os subordinados, nem uma só vez Napoleão aceitou as imputações. Contentou-se em dizer que simplesmen­te manteve a escravatura onde ela já existia e que ja­mais deu ordem positiva para seu restabelecimento em Saint-Domingue. O crime sempre vem acompanhado da mentira. E, naturalmente, nunca conseguiu expli­car-se a respeito de Guadalupe e da Guiana, que de res­to pouco lhe importavam.

Como primeiro ditador racista da história, Napo- leão tem sua parcela de responsabilidade não somente por todos os crimes coloniais cometidos posteriormente pela França, mas também por todos os do nazismo, que ao que parece se inspirou no Imperador como modelo.

O crime de Napoleão causou à França feridas tão profundas que foi preciso ocultá-lo. Todos os dias ela sofre ainda os efeitos do racismo de Estado estabelecido naquela época. Castigos tão assustadores quanto os le­vados a efeito pelas ordens recebidas pelos soldados de Bonaparte, textos tão monstruosos quanto os que ele assinou ou determinou, teorias tão abomináveis quanto as que ele estimulou no próprio seio de sua universida­de imperial, verdadeira máquina de controle do pensa­mento, tudo isso deixa sequelas duradouras. E, se a escravatura foi abolida em 1848, o racismo continua a

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existir, horrendo e estúpido como sempre. Nesse senti­do, enquanto não é denunciado, o crime de Napoleão continua a ser cometido.

Não se trata da instrução de um processo contra um homem que já não pode se defender, e sim de impor um mínimo de respeito devido aos descendentes das víti­mas antilhanas e africanas de Bonaparte aos que se obs­tinam a glorificá-lo cegamente, e que sem dúvida considerarão tudo o que acaba de ser suscitado como simples “questão de detalhe”. Ofender esses descen­dentes é ofender também os mártires de todos os crimes contra a humanidade, una e indivisível. Recordando seu próprio genocídio, os haitianos fizeram questão de figurar, durante a Segunda Guerra Mundial, entre os raros povos a conceder asilo e nacionalidade a todos os judeus perseguidos que solicitassem isso.

Meditando sobre esse exemplo, os herdeiros de to­dos aqueles que sofreram a deportação, a humilhação, a desumanização, o extermínio — qualquer que seja a cor de sua pele, qualquer que seja a época do crime, qual­quer que seja sua extensão — não devem esquecer nun­ca que estão unidos não apenas pela fraternidade natural da humanidade, mas também por uma fraterni­dade de sofrimento que a história lhes impôs.

Em nome desses herdeiros de todos os mártires, res­tituir aos descendentes das vítimas de Napoleão a ver­dade a que têm direito, e que lhes é recusada há dois

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séculos, é uma forma de contribuir para eliminar algum dia o flagelo do racismo, do qual Napoleão foi incon­testavelmente, junto com Hitler, um dos propagadores mais ardentes e mais culpados.

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