os comportamentos desviantes sob uma perspectiva antropolÓgica

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1 OS COMPORTAMENTOS DESVIANTES SOB UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA Ana Gabrecht 1 INTRODUÇÃO Antes de iniciar uma argumentação sobre o tema proposto, é preciso esclarecer alguns pontos preliminares. Entre eles, está o objetivo deste artigo, que se propõe a analisar os comportamentos ditos “desviantes” — aqueles que não se adequam às normas vigentes e aceitas pela maioria dos indivíduos de uma determinada sociedade — em uma perspectiva antropológica. Assunto este, que durante muito tempo era tratado somente no terreno da psiquiatria, psicologia e até mesmo da criminalística. Recentemente a Antropologia tem se voltado para essa questão, mais especificamente a Antropologia Social. As contribuições desse saber ao problema dos desviantes, são no sentido de relativizar as abordagens carregadas de preconceito e intolerância e produzir um conhecimento menos comprometido do fenômeno (Velho, 1999:11). O presente artigo direciona-se no sentido de valorizar a contribuição da Antropologia – num sentido mais geral – ao estudo da realidade social, tanto do presente quanto do passado. E isso devido ao fato de considerarmos esta ciência um importante instrumento para o historiador. De acordo com Zenha (1999:81) “a grande contribuição da antropologia histórica corresponderia à necessidade de encontrar as diferentes ramificações da mudança, fazer seu inventário, compreender seus mecanismos, afirmar sua pluralidade.” Acerca da importância da Antropologia para o historiador, é bastante significativa a opinião de Evans-Pritchard (1974:72): “Estou, portanto, de acordo com o Pai Lévi-Strauss, senão quando ele delimita as respectivas esferas da História e da Antropologia Social, ao menos quando conclui que a diferença entre elas é uma diferença de orientação, diferença de alvo, e que as duas disciplinas são indissociáveis.” Para entender melhor essa contribuição, faz-se necessário, inicialmente, um pequeno histórico aliado a análise dos objetos, métodos e realizações da Antropologia Social; até mesmo para compreender o que esta ciência pode oferecer ao historiador. 1 Professora da Faculdade Saberes. Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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OS COMPORTAMENTOS DESVIANTES SOB UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

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    OS COMPORTAMENTOS DESVIANTES SOB UMA PERSPECTIVA ANTROPOLGICA Ana Gabrecht1

    INTRODUO

    Antes de iniciar uma argumentao sobre o tema proposto, preciso esclarecer alguns pontos preliminares. Entre eles, est o objetivo deste artigo, que se prope a analisar os comportamentos ditos desviantes aqueles que no se adequam s normas vigentes e aceitas pela maioria dos indivduos de uma determinada sociedade em uma perspectiva antropolgica. Assunto este, que durante muito tempo era tratado somente no terreno da psiquiatria, psicologia e at mesmo da criminalstica.

    Recentemente a Antropologia tem se voltado para essa questo, mais especificamente a Antropologia Social. As contribuies desse saber ao problema dos desviantes, so no sentido de relativizar as abordagens carregadas de preconceito e intolerncia e produzir um conhecimento menos comprometido do fenmeno (Velho, 1999:11).

    O presente artigo direciona-se no sentido de valorizar a contribuio da Antropologia num sentido mais geral ao estudo da realidade social, tanto do presente quanto do passado. E isso devido ao fato de considerarmos esta cincia um importante instrumento para o historiador. De acordo com Zenha (1999:81) a grande contribuio da antropologia histrica corresponderia necessidade de encontrar as diferentes ramificaes da mudana, fazer seu inventrio, compreender seus mecanismos, afirmar sua pluralidade.

    Acerca da importncia da Antropologia para o historiador, bastante significativa a opinio de Evans-Pritchard (1974:72): Estou, portanto, de acordo com o Pai Lvi-Strauss, seno quando ele delimita as respectivas esferas da Histria e da Antropologia Social, ao menos quando conclui que a diferena entre elas uma diferena de orientao, diferena de alvo, e que as duas disciplinas so indissociveis. Para entender melhor essa contribuio, faz-se necessrio, inicialmente, um pequeno histrico aliado a anlise dos objetos, mtodos e realizaes da Antropologia Social; at mesmo para compreender o que esta cincia pode oferecer ao historiador.

    1 Professora da Faculdade Saberes. Mestre em Histria Social das Relaes Polticas pela Universidade Federal do

    Esprito Santo.

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    A ANTROPOLOGIA SOCIAL COMO CAMPO DE ANLISE

    A Antropologia Social um ramo relativamente novo das cincias que estudam o homem. Segundo Lienhardt (1973:11), a mais jovem das cincias sociais. O que vai diferenci-la das outras ramificaes da Antropologia, mais uma questo de nfase que de objeto. O termo Antropologia d margem para inmeras interpretaes; de acordo com o grego, seria o estudo do homem. Mas que dimenso do homem? Biolgica, psicolgica, sociocultural? H aqueles que a identificam como estudo da cultura, mas este conceito tambm demasiado amplo e por vezes at mesmo ambguo. De fato, estudar o homem em sua totalidade mostrou-se uma tarefa extremamente difcil. Para tal, a Antropologia foi se dividindo em reas, com fronteiras no muita rgidas. Entre elas, a Antropologia Fsica que preocupa-se com o homem como um organismo fsico; a Antropologia Poltica que presta-se ao estudo das diversas instituies e prticas que asseguram o governo dos homens, assim como dos sistemas de pensamento e dos smbolos que os fundamentam (Balandier, 1987:16).; temos ainda a Antropologia Cultural e a Social, sendo estas duas de mais difcil diferenciao. A Antropologia Cultural, como o prprio nome indica, est interessada em estudar o homem em sua dimenso cultural. Mas, como foi dito anteriormente, cultura no um conceito fcil de ser delimitado, por conseguinte, Antropologia Cultural tambm no o . Segundo Beattie (1977:27), esta cincia abrange um campo muito amplo, incluindo praticamente todos os aspectos no biolgicos da vida do homem. As diferentes instituies sociais e os valores do homem, interesse da Antropologia Social, seriam apenas uma pequena frao dentro deste amplo campo de estudo. Da a diferena ser s uma questo de nfase, quer o interesse do pesquisador esteja na cultura, na sociedade ou na poltica, a realidade que ele observa a mesma: pessoas que se relacionam entre si.

    Na verdade, apesar dessas diferenciaes, a Antropologia como cincia vem se desenvolvendo desde o sculo XIX, em parte devido aos relatos de missionrios e viajantes na frica, Amrica, ilhas do Pacifico, entre outros; de acordo com Beattie (1977:10) muitos destes forneceram a matria-prima sobre a qual basearam-se os primeiros grandes trabalhos antropolgicos escritos na segunda metade do sculo XIX. Muitos deles eram os chamados antroplogos de gabinete que faziam descries de costumes exticos de povos que nunca conheceram pessoalmente. Faltava-lhes ainda a metodologia do trabalho de campo to

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    importante para a Antropologia moderna que possibilitaria-lhes dar um significado real aos costumes listados; algo que somente um pesquisador inserido no contexto social da comunidade estudada pode perceber. A despeito de seus erros, a Antropologia deve muito aos estudiosos, missionrios e viajantes do sculo XIX, pois criaram condies propicias para o desenvolvimento desta enquanto cincia autnoma. Lienhardt (1973:15) evidencia essas condies:

    Nessa atmosfera de humanitarismo cristo e de filantropia, de colonialismo, e de curiosidade

    cientifica autntica, o novo estudo do homem desenvolveu-se em princpios do sculo XIX. Foi

    nessa poca que surgiu, efetivamente, a historia da Antropologia como uma disciplina organizada, mais emprica, e de princpios de mbito mais amplo do que as pesquisas dos filsofos e

    historigrafos antigos, sobre a natureza da sociedade humana.

    Esses estudiosos do sculo XIX contriburam para o desenvolvimento da moderna Antropologia, pois iniciaram um debate, foram os primeiros a se preocuparem com a questo do outro, do diferente. Mesmo os chamados antroplogos de gabinete se mostraram teis, pois como todos os cientistas sociais, preocuparam-se com a descoberta e o registro de regularidades no comportamento humano (Beattie, 1977:13). Assim, a partir de suas observaes foram se desenvolvendo os mtodos e teorias desta cincia na atualidade. Dentro deste contexto de desenvolvimento da Antropologia enquanto cincia, vem se destacando a Antropologia Social que tem como preocupao central o estudo dos diferentes tipos de instituies sociais que caracterizam as sociedades que estudam, sejam estas civilizadas ou primitivas. notrio que muitos mal-entendidos e problemas foram gerados pela incompreenso dos costumes e instituies dos povos estranhos, especialmente se esses costumes forem muito diferentes, muito exticos. A Antropologia Social, neste sentido, tem muito a contribuir.

    Uma importante contribuio da antropologia social foi demonstrar que as instituies sociais e

    culturais das sociedades afastadas da nossa, precisam ser entendidas, se realmente as quisermos

    entender, a partir das idias e valores vigentes naquelas sociedades, e no simplesmente nos nossos

    prprios termos. E este tipo de compreenso s possvel quando o investigador se muda, em geral literalmente, e no apenas metaforicamente, da sua prpria cultura para a estranha que deseja compreender, e aprende a nova cultura como aprenderia uma nova lngua (Beattie, 1977:2).

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    A Antropologia Social mantem uma relao estreita com a Sociologia, pois ambas estudam as relaes sociais entre os seres humanos. Dessa forma fica at difcil diferenciar uma da outra, tanto que Radcliffe-Brown chegou at mesmo a sugerir sua fuso com a Sociologia sob a denominao de sociologia comparativa (Beattie, 1977:37). Mas a renomeao no foi aceita; indicando que, pelo menos os antroplogos sociais consideram a sua disciplina diferente da Sociologia. Beattie (1977:37-8) aponta duas diferenas importantes entre Antropologia Social e Sociologia que no significam dissociao entre as duas, mas justificam a manuteno das diferenciao entre elas. A primeira seria o fato de a Sociologia estar preocupada essencialmente com a investigao e compreenso das relaes sociais, os outros assuntos apenas auxiliam esta compreenso; j os antroplogos sociais embora compartilhem dessa mesma preocupao dos socilogos, esto tambm interessados em outros assuntos, tais como as crenas e os valores das pessoas. A segunda diferena diz respeito ao locus de trabalho; os antroplogos sociais tem trabalhado, geralmente, em comunidades menos desenvolvidas, em pequena escala, enquanto que os socilogos tem estudado principalmente tipos de organizao social caractersticas das sociedades mais complexas, do tipo ocidental. Vale ressaltar que essas diferenciaes no so muito rgidas, no representam diferenas tericas profundas. A definio das sociedades em pequena escala como campo de trabalho do antroplogo social tem se mostrado extremamente importante. De acordo com Beattie (1977:88) no estudo de sistemas de pequena escala, onde as relaes pessoa a pessoa so to importante, que tem sido elaborados os mtodos da Antropologia Social e suas principais contribuies ao conhecimento sociolgico.

    Apesar das diferenciaes feitas entre Antropologia Social e Sociologia, pode-se concluir que os antroplogos sociais devem ser tambm socilogos, uma vez que ambos esto interessados nos diferentes tipos de relaes sociais que encontram nas sociedades que estudam. Mas, necessrio frisar que os antroplogos sociais no esto interessados em todas as relaes sociais das sociedades que estudam, concentram-se naquelas relaes padres, as que j esto cristalizadas. Segundo Beattie (1977:19) as relaes sociais que os antroplogos sociais estudam so aquelas que so estandardizadas, institucionalizadas e, portanto, caractersticas da sociedade que est sendo investigada. A despeito de se concentrarem no estudo do que padro, no

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    deixam de considerar o desvio como algo significativo na compreenso das relaes sociais, como ser analisado mais adiante. Apesar de os antroplogos sociais estarem preocupados com o que regular, isso no quer dizer que consideram que a sociedade esteja num estado de perfeito equilbrio, que Dahrendorf (1982:146) chamou de teoria integracionista da sociedade, que concebe a estrutura social em termos de um sistema funcionalmente integrado, mantido em equilbrio por certos processos padronizados e repetitivos. Na verdade, a idia de que o estado natural da sociedade a harmonia pode gerar equvocos e deturpaes, como achar que as mudanas so sempre de melhor para pior ou ainda, a evocao nostlgica de uma idade de ouro que na verdade nunca existiu (Beattie, 1977:286-7). Atualmente tem se reconhecido que a mudana e o conflito, longe de ser um estado anormal da sociedade, pode ser parte integrante dela. isso que Gilberto Velho discute em seu artigo intitulado O estudo do comportamento desviante: a contribuio da Antropologia Social (1999). Em sua crtica a Patologia Social, o autor argumenta no sentido de mostrar que o individuo que no se adapta as regras da sociedade aceitas pela maioria no um individuo doente, incapaz, ou seja, seu problema no patolgico. Com a ajuda da Antropologia Social, Velho pretende mostrar que o prprio carter do sistema sociocultural no qual o individuo est inserido, o que permite entender os comportamentos desviantes. Porm, antes de se aprofundar nestas questes, preciso saber como a Patologia Social trabalha a questo dos desviantes.

    O PROBLEMA DOS DESVIANTES VISTO PELA PATOLOGIA SOCIAL

    A primeira impresso que se tem ao ouvir a expresso Patologia Social que se trata de um estudo do funcionamento patolgico da sociedade. O adjetivo patolgico remete ao ramo da medicina que se ocupa da natureza e das modificaes produzidas por determinadas doenas no organismo humano. Tal analogia pode levar a pensar o funcionamento patolgico da sociedade como um mau funcionamento, um funcionamento doentio. Isso ocorre devido ao fato dessa rea do conhecimento utilizar o modelo organicista para interpretao da realidade social: entre o organismo social e o organismo biolgico no existem seno razes analgicas (Rosa, 1980:18).

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    Aqueles que se dedicam ao estudo da Patologia Social tem identificado-a como um cincia sociolgica, um setor especializado da Sociologia. Como tal, no pretende incutir juzos de valor no seu objeto de estudo, que seria a desorganizao social.

    ... na realidade, no apenas aquilo que mau, ou doentio, ou patolgico, no processo social, que constitui o objeto da disciplina aludida [Patologia Social], mas todos os fenmenos de transio, ou modificao, ou de comportamento social que, bons ou maus, convenientes ou no, significam

    desorganizao das estruturas e dos processos sociais at ento prevalecentes. E desorganizao,

    aqui, vocbulo empregado no seu preciso entendimento etimolgico, de desfazimento ou alterao numa organizao, ou num organismo (Rosa, 1980:22).

    Percebe-se aqui, a aluso do autor ao organicismo, quando v desorganizao em seu sentido etimolgico, algo que no est mais organizado, que no mais orgnico. Controvrsias tericas parte, interessante notar como Rosa (1980) em sua obra Patologia Social concebe a organizao da sociedade e dentro dela o que normal e o que anormal.

    A opinio do autor sobre a ordenao social encaixa-se na definio dada por Dahrendorf de teoria de teoria integracionista da sociedade. Para Rosa (1980:30), o uso repetitivo de certas prticas constitui um dos primeiros elementos de coeso grupal, pois reduzia a possibilidade de atritos e direcionava os intregantes do grupo ao exerccio de certos papis sociais, nos primrdios da diviso social do trabalho.

    Segundo a teoria integracionista da sociedade exposta por Dahrendorf (1982:162), as posies sociais ocupadas pelos indivduos so entendidas como papis sociais [grifo meu]. Conceito este, definido como conjunto de expectativas de papis padronizados que definem o comportamento prprio das pessoas que desempenham certos papis. Segundo essa teoria, prprio significa algo apropriado para o funcionamento do sistema social e capaz de contribuir para sua integrao. A noo de expectativa de papis corresponde a uma orientao do comportamento s posies ou papis sociais. O indivduo que desempenha determinado papel social pode internalizar ou no essas expectativas, tornando-as orientadoras de sua ao. Se ele internalizar, ser considerado adaptado, se no, ser um desviante. no sentido de superar essa abordagem do comportamento desviante que Velho trabalha.

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    Percebe-se em Rosa (1980:32) uma nfase no integracionismo da sociedade quando faz afirmaes tais como:

    Se houver bastante tempo e no atuarem sobre esse processo [de integrao cultural] mudanas significativas nas condies do meio, acentuar-se- uma tendncia para uma integrao quase

    perfeita, na qual o equilbrio interno da sociedade se far com reduzida margem de variao das influencias contrarias das tendncias conservadoras e reformistas, em que a interdependncia dos

    usos costumes e praticas se tornar mais aguda. Tal estado de integrao cultural tende a uma

    uniformidade de vida.

    Esse mesmo problema Velho identifica na obra do socilogo norte-americano Robert Merton. Segundo Velho (1999:15) o problema crucial no a nfase na harmonia e o equilbrio na vida social, mas a idia de que essa harmonia e esse equilbrio surgem automaticamente, so prprios da natureza da sociedade. Merton at considera a possibilidade de haver conflitos e desequilbrios, mas a tendncia natural o retorno ao equilbrio e harmonia. Para esse autor, a mudana tem sempre um carter de exceo. Rosa vai nessa mesma linha de raciocnio que Velho (1999:15) considera como conservadora e tem como premissa uma estrutura social no-problematizada.

    A despeito dessas crticas, Merton uma figura de destaque na Sociologia, sua abordagem sobre os comportamentos desviantes uma das mais influentes e significativas, especialmente quando introduz o conceito de anomie. De acordo com Velho (1999: 12-14), este conceito localiza o problema dos desviantes na estrutura social e cultural, que para Merton gera as presses que propiciam o surgimento de comportamentos socialmente desviantes. Percebe-se ento que ele sai de uma patologia do social, ou seja, o problema no est mais no indivduo, mas na sociedade. De acordo com Rosa (1980:40), Merton acredita que algumas estruturas sociais exercem uma presso definida sobre certas pessoas componentes da sociedade para que sigam conduta inconformista e no uma conduta em conformidade com os modelos estabelecidos. Dessa maneira, tais estruturas como que compelem alguns indivduos ou os estimulam a comportamentos de desvio. A crtica de Velho (1999: 14) no sentido de observar que para Merton os comportamentos individuais desviantes so geradas pelas condies patolgicas do sistema social [grifo meu].

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    Velho (1999: 27-8) vai na contramo dessa argumentao, para ele o desviante no produzido por uma sociedade doente ou opressora, nem aquele que est fora de sua cultura, mas o que faz uma leitura divergente. o prprio carter desigual, contraditrio e poltico de todo o sistema sociocultural que permite entender os comportamentos desviantes.

    Apesar das crticas, o arcabouo terico construdo por Merton adquiriu uma importncia fundamental pelo menos para os estudos em patologia social, pois em sua obra se encontram os pontos de partida para uma anlise e uma interpretao adequadas dos diversos tipos de adaptao s normas socioculturais e aos valores que a sociedade estabelece (Rosa, 1980: 45). Sua contribuio as cincias sociais atestada tambm por Velho (1999: 14) quando diz que: o conceito de anomie serviu de ponto de partida para muitos trabalhos que vieram a ter repercusso em toda a rea de estudo do comportamento desviante.

    A ESTIGMATIZAO DO DESVIANTE

    O problema dos desviantes tem sido comumente encarado a partir de uma perspectiva mdica, preocupada em distinguir o indivduo normal do anormal. Ento a soluo seria uma questo de diagnstico e cura. No dizer de Rosa (1980:26) o normal um valor social que est ligado a idia de eficincia. Segundo ele, todo grupo em sua natural vocao de continuidade e consecuo de objetivos de bem-estar busca despercebidamente, ou no resultados com maior ou menor habilidade. A eficincia condiciona os padres de normalidade. Dentro dessa linha de raciocnio, o anormal seria a perturbao dessa eficincia, algo que incomoda o grupo, que o ameaa em sua organizao.

    Nessa perspectiva, o anormal o desviante, o que destoa do grupo, desvia-se da orientao seguida pela maioria (no no sentido quantitativo). Velho (1999:17) evidencia essa conotao problemtica que se d noo de desviante: a idia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existncia de um comportamento mdio ou ideal, que expressaria uma harmonia com as exigncias do funcionamento do sistema social. Dentro dessa oposio normal-anormal, aquilo que esperado, que est de acordo com uma ordenao, o normal. Percebe-se ento que a questo de manuteno de uma ordem central na classificao dos comportamentos socialmente desviantes. De acordo com Goffman (1982:151) pode-se chamar destoante qualquer membro individual que no adere s normas, e

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    denominar desvio a sua peculiaridade. Para esse autor, a questo das normas sociais extremamente importante, pois a compreenso da diferena alcanada olhando para o comum, observando o que consenso e a partir da ver, que o que escapa desse consenso normativo rejeitado, tratado como desviante. Para Goffman (1982:138) uma condio necessria para a vida social que todos os participantes compartilhem um nico conjunto de expectativas normativas, sendo as normas sustentadas, em parte porque foram incorporadas. Quando uma regra quebrada, surgem medidas restauradoras; o dano termina e o prejuzo reparado, quer por agentes de controle, quer pelo prprio culpado.

    Nota-se na fala de Goffman que, aquele que transgride as normas representa uma ameaa para sociedade organizada, uma ameaa a ordem estabelecida. E essa sociedade ameaada acaba tendo que se defender de alguma maneira, muitas vezes produzindo estigmatizao e conseqente excluso desses indivduos desviantes.

    Dentro de uma perspectiva antropolgica, o estigma uma construo social. Muitas vezes, entre o estigmatizado e o normal nem se notam diferenas, ambos podem perfeitamente desempenhar um o papel do outro. Pensando dessa maneira, Goffman (1982:148-9) concebe estigma como

    um processo social de dois papis no qual cada indivduo participa de ambos, pelo menos em

    algumas conexes e em algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado no so pessoas, e sim perspectivas que so geradas em situaes durante os contatos mistos, em virtude de normas no

    cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro.

    Percebe-se ento que, para Goffman o estigma no apenas uma questo de separao entre normais e desviantes, e sim de interao de papis.

    A relao entre normais e estigmatizados pode ser explicada atravs do conceito de dominao simblica, que no exercida pela fora. Segundo Bourdieu (2002:50), a fora simblica uma forma de poder que no se expressa pela coao fsica, mas eficaz pois

    desencadeia disposies que o trabalho de inculcao e de incorporao realizou naqueles ou

    naquelas que, em virtude desse trabalho, se vem por elas capturados. Em outros termos, ela

    encontra suas condies de possibilidade e sua contrapartida econmica (no sentido mais amplo da palavra) no imenso trabalho prvio que necessrio para operar uma transformao duradoura dos corpos e produzir as disposies permanentes que ela desencadeia e desperta...

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    Estando dessa forma, internalizada a dominao, extremamente difcil se libertar dela. S se poder ultrapass-la, quando as vtimas da dominao simblica neste caso os desviantes romperem o lao que os une aos dominantes, mudar o seu olhar sobre si mesmo e abandonar o ponto de vista do dominante.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    BALANDIER, G. Antropologia Poltica. Lisboa: Presena, 1987. BEATTIE, J. Introduo a Antropologia Social. So Paulo: Nacional, 1977. BOURDIEU, P. A dominao masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. DAHRENDORF, R. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Braslia: Ed. UnB, 1982. EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologie et Histoire. In: Les anthropologues face a lhistoire et a la religion. Paris: PUF, 1974. GOFFMAN, G. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. LIENHARDT, G. Antropologia Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. ROSA, F. A. M. Patologia social: uma introduo ao estudo da desorganizao social. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. VELHO, G. O estudo do comportamento desviante: a contribuio da Antropologia Social. In: Desvio e divergncia: uma critica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, pp. 11-28. ZENHA, C. Antropologia e histria. Heranas e perspectivas. In: Mosaico, vol. 1, n. 2, 1999, pp. 69-87.