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Área temática: Gestão de Pessoas “Os Coletores”: Um Estudo Observacional dos Princípios e Dilemas Bioéticos no Contexto Humano das Organizações AUTORES DIEGO DE QUEIROZ MACHADO Universidade Estadual do Ceará [email protected] MIRNA MAIA DE ARAUJO Universidade Estadual do Ceará [email protected] ANA SILVIA ROCHA IPIRANGA Universidade Estadual do Ceará [email protected] Resumo Nas últimas quatro décadas, o crescente progresso tecnológico foi acompanhado da evolução de reflexões que têm como objetivo preservar a humanidade e o ambiente natural de interferências prejudiciais à sua qualidade de vida. Nomeada de bioética, este conjunto de reflexões tem se feito presente em um número cada vez maior de áreas de conhecimento. Dessa forma, considerando que grande parte de seus dilemas e debates ocorrem dentro do contexto humano das organizações, este trabalho tem como objetivo apresentar, através de um estudo observacional, uma análise dos aspectos fundamentais da reflexão e prática da bioética em um contexto organizacional. Para tanto, uma análise das representações de tais aspectos presentes no filme “Os Coletores”, feita mediante uma abordagem qualitativa, possibilitou a observação e mapeamento dos princípios e dilemas bioéticos. Por fim, concluiu-se que a necessidade de uma constante abordagem bioética que penetre em todo ambiente organizacional se torna evidente. Percebeu-se, portanto, que características bioéticas como a preocupação com o vulnerável, o exercício do diálogo e a defesa da dignidade humana são aspectos que pedem presença também nas relações humanas dentro das organizações. Palavras-chave: Bioética, Relações Humanas, Ambiente Organizacional. Abstract In the last four decades, the increasing technological progress was accompanied by the evolution of ideas that aim to preserve humanity and the natural environment of harmful interference to their quality of life. Named bioethics, this collection of thoughts has made its presence in a growing number of areas of knowledge. Thus, considering that much of their dilemmas and debates occur within the context of human organizations, this paper aims to present, through an observational study, an analysis of the fundamental aspects of thought and practice of bioethics in an organizational context. To this end, an analysis of representations of these aspects in the film "The Collector", made by a qualitative approach, allowed the observation and mapping of the principles and bioethical dilemmas. Finally, it was concluded that the need for constant bioethics approach that permeates throughout the organizational environment becomes evident. It was felt, therefore, that characteristics such as bioethical concern for the vulnerable, the exercise of dialogue and defense of human dignity are also aspects that require the presence in human relations within organizations. Keywords: Bioethics, Human Relations, Organizational Environment.

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Área temática: Gestão de Pessoas

“Os Coletores”: Um Estudo Observacional dos Princípios e Dilemas Bioéticos no Contexto Humano das Organizações

AUTORES DIEGO DE QUEIROZ MACHADO Universidade Estadual do Ceará [email protected] MIRNA MAIA DE ARAUJO Universidade Estadual do Ceará [email protected] ANA SILVIA ROCHA IPIRANGA Universidade Estadual do Ceará [email protected] Resumo Nas últimas quatro décadas, o crescente progresso tecnológico foi acompanhado da evolução de reflexões que têm como objetivo preservar a humanidade e o ambiente natural de interferências prejudiciais à sua qualidade de vida. Nomeada de bioética, este conjunto de reflexões tem se feito presente em um número cada vez maior de áreas de conhecimento. Dessa forma, considerando que grande parte de seus dilemas e debates ocorrem dentro do contexto humano das organizações, este trabalho tem como objetivo apresentar, através de um estudo observacional, uma análise dos aspectos fundamentais da reflexão e prática da bioética em um contexto organizacional. Para tanto, uma análise das representações de tais aspectos presentes no filme “Os Coletores”, feita mediante uma abordagem qualitativa, possibilitou a observação e mapeamento dos princípios e dilemas bioéticos. Por fim, concluiu-se que a necessidade de uma constante abordagem bioética que penetre em todo ambiente organizacional se torna evidente. Percebeu-se, portanto, que características bioéticas como a preocupação com o vulnerável, o exercício do diálogo e a defesa da dignidade humana são aspectos que pedem presença também nas relações humanas dentro das organizações. Palavras-chave: Bioética, Relações Humanas, Ambiente Organizacional. Abstract In the last four decades, the increasing technological progress was accompanied by the evolution of ideas that aim to preserve humanity and the natural environment of harmful interference to their quality of life. Named bioethics, this collection of thoughts has made its presence in a growing number of areas of knowledge. Thus, considering that much of their dilemmas and debates occur within the context of human organizations, this paper aims to present, through an observational study, an analysis of the fundamental aspects of thought and practice of bioethics in an organizational context. To this end, an analysis of representations of these aspects in the film "The Collector", made by a qualitative approach, allowed the observation and mapping of the principles and bioethical dilemmas. Finally, it was concluded that the need for constant bioethics approach that permeates throughout the organizational environment becomes evident. It was felt, therefore, that characteristics such as bioethical concern for the vulnerable, the exercise of dialogue and defense of human dignity are also aspects that require the presence in human relations within organizations. Keywords: Bioethics, Human Relations, Organizational Environment.

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1 Introdução Nas últimas quatro décadas, o crescente progresso científico e tecnológico foi

acompanhado do nascimento e evolução de teorias e reflexões que têm como objetivo preservar a humanidade e o ambiente natural de interferências prejudiciais à sua qualidade de vida. Nomeada por Potter (1971) de bioética, este conjunto de reflexões gestado e gerado no contexto das descobertas e práticas biomédicas tem se feito presente em um número cada vez maior de áreas de conhecimento, tecnológicas ou não.

A proposta de uma teoria principialista, defendida por Beauchamp e Childress (1979) e a publicação da primeira edição da Encyclopedia of Bioethics, em 1978, marcaram a fase de disseminação dos conceitos e fundamentos bioéticos ao redor do mundo. A partir de então, em cada etapa de desenvolvimento histórico, novas discussões e reflexões foram sendo incorporadas ao campo da bioética, fazendo deste um campo verdadeiramente complexo (CASCAIS, 2006).

Como fruto da presença desta complexidade, conforme Callaham (1995), a bioética sempre foi marcada por inúmeros dilemas, mesmo que em torno de questões antigas, como a vida e a morte ou a dor e o sofrimento. Discussões a respeito da propriedade da vida (RABINOW, 2002), do controle sobre o indivíduo (FOUCAULT, 2007), das implicações das pesquisas genéticas (por exemplo, OWENN; MOTULSKY, 1995; PENA; AZEVÊDO, 1998; FREITAS; HOSSNE, 1998; KNOPPERS, 2002; CHAPMAN, 2002; PARRY, 2004; SAVULESCU, 2007), ou dos dilemas culturais envolvendo transplantes de órgãos (por exemplo, PARIZI; SILVA, 1998; MUNSON, 2007) são apenas alguns cenários em que a bioética se faz presente.

Atualmente, são fortemente diversificadas as linhas de pesquisa que permeiam o conhecimento bioético como, por exemplo, a bioética de reflexão autônoma, de proteção, de intervenção, da libertação, feminista e de proteção ambiental (SIQUEIRA; PORTO; FORTES, 2007). Esta diversidade é responsável por comprovar a forte característica transdisciplinar da bioética, justificando os debates em torno de seu caráter pluralista (TURNER, 2005; GARRAFA, 2005b; NEVES, 2006; MORIN, 2010).

Dessa forma, considerando que grande parte de tais dilemas e debates ocorrem dentro do contexto de organizações, que são responsáveis pela produção e pesquisa de tais inovações no campo biomédico, este trabalho tem como objetivo apresentar, através de um estudo observacional, uma análise dos aspectos fundamentais da reflexão e prática da bioética em um contexto organizacional. Para tanto, uma análise das representações de tais aspectos presentes no filme “Os Coletores”, feita mediante uma abordagem qualitativa, possibilitou a observação e mapeamento dos princípios e dilemas bioéticos em um ambiente futurista e, por isso, bastante avançado no que diz respeito às práticas biomédicas.

Ambientado no ano 2025, o filme mostra uma humanidade que adquiriu a capacidade de viver por mais tempo graças ao desenvolvimento e comercialização de órgãos humanos artificiais, desenvolvidos pela empresa The Union. No entanto, uma visão distorcida dos gerentes desta empresa faz com que esta tecnologia seja utilizada apenas com a finalidade de ludibriar os potenciais clientes de tais produtos, fazendo com que estes adquiram tais órgãos a preços altíssimos e, posteriormente, sejam perseguidos e assassinados por empregados da própria empresa, com o objetivo de recuperar os órgãos vendidos para reutilização. O nome do filme faz referência a estes funcionários, chamados de coletores.

Quanto à organização deste estudo, além deste tópico introdutório, o mesmo contém as seguintes seções: revisão bibliográfica, dividida em quatro capítulos, que exploram o nascimento e evolução do pensamento bioético, seus fundamentos e princípios de reflexão, a complexidade e o pluralismo que fomentam suas discussões e os principais dilemas presentes neste campo; aspectos metodológicos, com a descrição dos métodos e ferramentas

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de análise utilizados; estudo observacional, que contêm a análise dos dados narrativos extraídos do filme; e, por fim, as considerações finais a respeito das contribuições do estudo em questão e prerrogativas para pesquisas futuras.

A relevância deste trabalho está em fornecer subsídios para uma melhor compreensão dos fundamentos, reflexões e complexidade do pensamento bioético, analisados em um ambiente bastante distinto do atual, pelo alto grau de desenvolvimento tecnológico representado.

2 A Gestação do Pensamento Bioético

Uma análise principialista do neologismo bioética, cunhado por Potter (1971), é capaz de permitir a revelação de suas bases de atuação, pensamento e reflexão. O termo bios carrega em si todo o significado de vida, como seus ambientes e interações em que esta se desenvolve. Complementarmente, o termo ética expressa a constante crítica reflexiva que a envolve na busca de uma contribuição construtiva para a vida social (ANJOS, 2007).

Definir bioética, segundo Goldim (2009), é visualizar toda a evolução histórica do pensamento científico e da consciência do ser humano como integrante do meio em que vive, além da discussão a respeito do papel do ser humano, sua responsabilidade diante da vida e seu lugar no mundo. A bioética seria, portanto, uma ampliação das discussões éticas que, neste caso, são responsáveis por repensar o início, a qualidade e o fim de toda a vida existente e futura. Garrafa (2005a) divide esta evolução da bioética em quatro etapas, caracterizadas no QUADRO 1, a seguir.

QUADRO 1

As etapas do desenvolvimento histórico da bioética

a) Etapa de fundação Referente à década de 1970, com o surgimento das bases conceituais nos Estados Unidos por parte dos primeiros autores.

b) Etapa de expansão e consolidação Diz respeito à década de 1980, com sua a disseminação por todos os continentes, mediante publicações e eventos na área.

c) Etapa de revisão crítica Inicia-se na década de 1990 e segue até o ano de 2005, sendo caracterizada por críticas às bases principialistas e aumento da preocupação com questões sanitárias.

d) Etapa de ampliação conceitual Marcada, a princípio, pela homologação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO em outubro de 2005.

Fonte: adaptado de Garrafa, 2005a.

Antes mesmo do período de fundação exposto por Garrafa (2005a), Schweitzer

(1936) apresenta as bases da futura bioética ao defender a unificação dos conhecimentos científico e espiritual como necessária para uma compreensão essencial da vida. Tal efeito se daria através do que o autor chama de uma nova ética ou ética de reverência pela vida, que consiste na valorização de todas as dimensões da vida por suas características de sagrado. Dessa forma, a bioética é vista como fruto da própria vida física, nascendo das interações entre as diversas formas de vida.

O importante é que nós somos parte da vida. Nós nascemos de outras vidas; possuímos a capacidade de trazer ainda outras vidas em nossa existência. Da mesma forma, se olharmos em um microscópio nós vemos uma célula

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produzindo outra. Assim, a natureza nos obriga a reconhecer o fato da dependência mútua, cada vida necessariamente ajudando outras vidas que estão ligadas a ela. Nas muitas fibras do nosso ser, temos dentro de nós mesmos o fato da solidariedade da vida (SCHWEITZER, 1936, p. 236, tradução nossa).

Percebe-se, então, que desde a sua gestação, a bioética já se estendia para além dos limites da vida humana, envolvendo a natureza como um todo. Além das fronteiras de espaço, também as fronteiras de tempo foram incorporadas ao seu conceito mediante consideração expostas por Jonas (1960) de que a preocupação com a vida deveria envolver gerações futuras de seres e indivíduos.

Esta preocupação com o futuro reflete-se também nos trabalhos de Potter (1971), considerado fundador desta área científica ao dar-lhe um nome, que vê a bioética como uma área de discussão interdisciplinar capaz de levar a humanidade a estágios futuros de desenvolvimento. Sua abordagem concentra-se nas implicações futuras dos rápidos avanços das ciências biológicas e no ser humano como responsável pela manutenção da saúde ambiental do planeta.

Clotet (1993) apresenta como razões para o surgimento e crescimento deste campo: o progresso das ciências biológicas e biomédicas; a socialização do atendimento médico; a progressiva medicalização da vida; a emancipação de pacientes; a criação de comitês de ética clínica e de pesquisa; a necessidade de um padrão moral compartilhado; e o crescente interesse das éticas filosóficas e teológicas.

3 Fundamentos da Reflexão Bioética Desde o início da sua expansão, a defesa de uma teoria principialista, apresentada

por Beauchamp e Childress (1979) caracterizou o campo da bioética. Baseada em quatro princípios básicos, definidos no QUADRO 2, a seguir, a bioética principialista foi responsável por orientar todo tipo de decisão frente a problemas éticos.

QUADRO 2

Os quatro princípios básicos da bioética

a) Autonomia Refere-se à liberdade do indivíduo em decidir sobre aquilo que considera melhor para si, de acordo com as informações fornecidas.

b) Beneficência Obrigação moral de agir tendo em vista o bem do outro, prevenindo danos e males e avaliando os custos e benefícios da intervenção.

c) Não-maleficiência Dever de não causar danos ou prejuízos ao outro de forma intencional, fugindo de qualquer prática negligente.

d) Justiça Dar ao outro aquilo que lhe é de direito, tratando-o da forma que lhe é devida.

Fonte: adaptado de Beauchamp; Childress, 1979.

Com a disseminação de tais princípios, a fase de consolidação da bioética é

marcada pela publicação, em 1978, da primeira edição da Encyclopedia of Bioethics que, segundo Reich (2003 apud PESSINI, 2005, p. 314) “teve um papel importantíssimo no estabelecimento do novo campo da bioética, formulou a mais ampla definição de bioética que

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foi aceita, definiu o objetivo do novo campo, apresentou a primeira organização de conhecimento e articulou modelos de ensino”.

Consoante ao desenvolvimento de novos estudos, alguns problemas práticos da utilização dos princípios de Beauchamp e Childress (1979) começaram a ser percebidos. Mesmo sendo concebidos como princípios de igual peso, Selleti e Garrafa (2005) analisam o peso maior incorporado ao princípio da autonomia, frente ao demais. Tal situação acarretou em um individualismo extremado no âmbito da bioética, trazendo prejuízos às culturas que priorizam o coletivo ao individual, principalmente quando há a tentativa da universalização deste princípio sobre a ótica dos países mais ricos.

O perigo na utilização maximalista da autonomia está em cairmos no extremo do individualismo exacerbado, que pode sufocar qualquer direcionamento no sentido da visão inversa, coletiva, indispensável para o enfrentamento das tremendas injustiças sociais relacionadas com a exclusão social e, mais do que nunca, hoje constatadas em nosso planeta (GARRAFA, 2005a, p. 13).

Segundo Neves (1996, p. 10), a ética do principialismo “desenvolve uma normativa de ação que, enquanto conjunto de regras que conduzem a uma boa ação, caracterizam uma moral”. Clotet (1993) expõe estes mesmos princípios básicos como sustentáculos da bioética, mas reconhece que a sua aplicação nem sempre é fácil ou de caráter conclusivo.

Dessa forma, uma revisão crítica de tais princípios permitiu o desenvolvimento de outros referenciais para o campo bioético que valorizassem as diversidades culturais e sociais entre os indivíduos: responsabilidade, libertação, solidariedade, prudência e proteção são exemplos de conceitos que complementam os princípios básicos, especialmente no âmbito das atividades práticas (GARRAFA, 2005a).

Uma fase de ampliação conceitual inicia-se confirmando o pluralismo e a multi-inter-transdisciplinaridade da bioética, como defendido por Morin (2010). Com a publicação, por parte da UNESCO (2005) da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, o caráter pluralista da bioética se estabelece. Neste ponto, a bioética volta-se para um caminho de ciência que vai além do físico e tecnológico, envolvendo aspectos ambientais e sociais (GARRAFA, 2005a). Desta forma, a bioética adquire para si também a responsabilidade de reflexão e ação sobre três problemas, expostos por Pessini (2005, p. 322), como os “três grandes desafios” deste tempo: a manutenção da paz mundial, a luta contra a pobreza e a proteção ao meio ambiente.

Convencidos de que a bioética não se ocupa somente dos problemas éticos originados do desenvolvimento científico e tecnológico, mas também das condições que tornam o meio ambiente humano ecologicamente equilibrado na biodiversidade natural, e de todos os problemas éticos relacionados ao cuidado da vida e da saúde. Por isto tem como pressuposto básico o conceito de saúde integral entendido na perspectiva biológica, psicológica, social e ambiental, como o desenvolvimento das capacidades humanas essenciais que viabilizem uma vida longeva, saudável e alcançável por todos, o quanto seja possível (PESSINI, 2005, p.322).

4 Complexidade e Pluralismo no Campo Bioético O progresso do conhecimento é permeado de grandes incertezas. Partindo da

própria noção de progresso, como um crescimento por um melhor, e passando por toda a rede

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de interações entre pensamento científico, filosófico, antropológico e sociológico, percebe-se que o desafio para o desenvolvimento de tais ciências é no mínimo complexo (MORIN, 2010).

Neves (2006) apresenta este dilema de complexidade expondo o paralelo de valores entre ética e genética. Enquanto do ponto de vista genético, todos os seres humanos se agrupam em uma única espécie, do ponto de vista ético, existem diferenças no nível do indivíduo que devem ser respeitadas. “Todos iguais, todos diferentes” (NEVES, 2006, p. 20) é uma assertiva que expressa os caminhos distintos que genética e ética trilham, fazendo da bioética, ponto de convergência de tais caminhos, a garantia da manutenção da identidade do indivíduo, assim como da espécie.

Segundo Cascais (2006), é a racionalidade científica e biomédica auto-suficiente que abre a necessidade de um campo bioético como regulador dos limites desta racionalidade. Tal racionalidade se torna mutilada pela ausência de consciência que a prática científica carrega. A necessidade de uma redefinição da noção de pessoa humana e a alocação de uma consciência científica como parte desta mesma pessoa possibilitariam, segundo Morin (2010, p. 36) a “recuperação do controle intelectual das ciências pelos cientistas”.

Além disso, conforme Gleiser (2010), a busca por simetrias no campo das ciências e reflexões científicas deve sempre ser substituída pela valorização das assimetrias, presentes em todo o mundo natural, sendo ela responsável pela geração de transformações e nascimento de novas estruturas. Não é propósito da ciência “a obtenção de enunciados absolutamente certos, irrevolgavelmente verdadeiros” (POPPER, 2007, p.39).

Deve-se, portanto, primar pela riqueza de toda reflexão crítica no campo bioético, rebatendo toda e qualquer tentativa de reducionismo que a leve a um nível de simples moral teológica aplicada ou deontologia profissional (CASCAIS, 2006). Esta riqueza de reflexão é ainda expressa na diversidade de linhas temáticas que permeiam a ação bioética, mostradas no QUADRO 3, a seguir.

QUADRO 3

Linhas temáticas da bioética e seus autores

LINHAS TEMÁTICAS PRINCIPAIS ABORDAGENS

Bioética de reflexão autônoma Percepção dos conflitos, reflexão autônoma e coerência atitudinal para tomadas de decisão ética.

Bioética de proteção Planos descritivo e normativo tendo em vista a ação protetora do indivíduo para uma maior qualidade de vida.

Bioética de intervenção Envolve a dimensão social, refletindo sobre vias de superação das desigualdades sociais.

Bioética e teologia da libertação Apresenta a teologia como protagonista no diálogo das reflexões bioéticas, reconhecendo as vulnerabilidades da dimensão social.

Bioética feminista Estereotização e vulnerabilidade do feminino, conflitos éticos e relações assimétricas.

Bioética de proteção ambiental Valorização do eu-integrado e de um paradigma ecológico para a saúde humana.

Fonte: adaptado de Siqueira; Porto; Fortes, 2007.

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Como características comuns a todas essas linhas temáticas, Siqueira, Porto e Fortes (2007) destacam:

a) a defesa do vulnerável, podendo ser este tanto o indivíduo quanto o ambiente em que ele se insere;

b) o exercício do diálogo, refletido em um desejo de construção conjunta e convivência das moralidades divergentes;

c) a defesa da dignidade da pessoa humana, seja ela associada ao respeito ao indivíduo, aos grupos ou segmentos sociais.

Segundo Garrafa (2005b), o estatuto epistemológico da bioética se constitui de uma estrutura complexa passiva de análises ampliadas de vários campos de conhecimento, seja este científico e tecnológico, ou social. Além disso, seu pluralismo moral passa pela impossibilidade da manutenção de paradigmas bioéticos universais, levando a uma constante reestruturação de seu discurso. Para a compreensão deste pluralismo, Denz (2001), defende uma abordagem mais aprofundada da compreensão antropológica e cultural do debate bioético moral.

Outro aspecto deste mesmo pluralismo seria a contestação da hegemonia da razão, principalmente no que diz respeito aos meios e fins nas realizações científicas. É a crise da razão plena, apresentada por Silva (1998, p.31, grifo do autor):

A expectativa de que haveria a união entre a teoria e a praxis, que deveria corresponder a uma proporcionalidade entre o progresso científico-técnico e o aumento da felicidade, não se confirmou. Isto pode ser constatado de várias maneiras no plano do desenvolvimento histórico. [...] O progresso da razão gerou novas formas de dominação ideológica, que se manifestam nos campos social, político, econômico.

Por fim, a discussão sobre a esfera cultural nas reflexões bioéticas, apresentada por Turner (2005), sugere que esta pluralidade também surge nas divergências de valores e entendimentos de diferentes povos. Dessa forma, a reflexão bioética tende a se beneficiar quando parte de uma compreensão melhor dos cenários culturais e de valores que influenciam sua interpretação. Para isso, deve se tornar mais voltada aos diferentes modelos culturais locais de determinados grupos, ao papel da inculturação e à cultura global.

5 Dilemas Éticos na Prática da Bioética Segundo Callaham (1995) os dilemas advindos das novas práticas científicas

remetem a questionamentos antigos como o sentido da vida e da morte, o processo de dor e do sofrimento, o direito e o poder de controle sobre a vida, além de nossos deveres para com os outros e a natureza, em face às graves ameaças à nossa saúde e bem-estar.

Rabinow (2002), por exemplo, apresenta o dilema sobre a propriedade da vida citando o exemplo da PCR (Polymerase Chain Reaction), uma técnica que permite a multiplicação de segmentos de DNA em um curto período de tempo. Para formalizar um conhecimento na prática, torna-se necessária a aplicação da tríade técnica-conceito-sistema em qualquer descoberta científica.

O dilema de poder biopolítico, que envolve os problemas referente à prática governamental junto à população como saúde, higiene, natalidade e longevidade, foi discutido por Foucault (2008, p. 431) considerando “o lugar crescente que esses problemas ocuparam desde o século XIX e que desafios políticos e econômicos eles vêm constituindo até hoje”.

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Analisando-os no cenário do liberalismo alemão e neoliberalismo americano, o autor defende a necessidade de estudo da relação entre estes problemas citados e as tecnologias de governo.

Com relação ao dilema da socialização da medicina, Foucault (2007, p. 92) afirma ser a medicina um instrumento para o controle político no sistema capitalista.

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolitica.

Dessa forma, o controle do corpo pelo Estado torna-se um mecanismo de controle do indivíduo como um todo. Citando seus estudos sobre prisões, Foucault (2007) afirma serem estes instrumentos transformadores de indivíduos, mesmo que seja em indivíduos delinqüentes. Tudo pelo controle e exercício de poder sobre o corpo.

No campo das biotecnologias, inovações e descobertas na medicina levam a constantes reflexões de valor e interpretação. Owenn e Motulsky (1995), Pena e Azevêdo (1998), Freitas e Hossne (1998), Knoppers (2002), Chapman (2002), Parry (2004) e Savulescu (2007) abordam os dilemas das pesquisas genéticas mediante uma possível utilização indiscriminada de material genético e os direitos sobre sua propriedade. Já estudos como os de Martin (1998), La Velle (2002), Searle (2002) e McLeod (2007) abordam os aspectos bioéticos em inovações biomédicas nas práticas de concepção, nascimento e morte de seres humanos.

Os dilemas, especialmente culturais, envolvendo a prática de transplantes de órgãos são expostos por Parizi e Silva (1998) e Munson (2007). Já as discussões inerentes à prática do aborto são apresentadas por Diniz e Almeida (1998) e Marquis (2007), enquanto os mecanismos de clonagem humana e suas implicações são abordadas por Griffin (2002) e Morscher (2005).

No mais, percebe-se que no cerne de todos estes dilemas há vestígios dos fundamentos bioéticos propostos por Potter (1971) que refletiam, principalmente, a preocupação com a manutenção da vida no planeta, em especial, a vida humana.

6 Aspectos Metodológicos

O presente trabalho utiliza a abordagem qualitativa como método de pesquisa. Essa escolha deve-se à sua relevância específica para o estudo de relações sociais (FLICK, 2004), em que os pesquisadores têm a possibilidade de “estudar as coisas em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles conferem” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 17). Godoy (1995) confirma esta afirmação ao relatar que pesquisas com este tipo de abordagem têm o ambiente natural como fonte direta de dados, utilizando de um caráter descritivo e um enfoque indutivo para compreender o significado das coisas.

Como estratégia de pesquisa qualitativa, o estudo de caso foi escolhido pela sua adequação às situações de pesquisa em que “o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum

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contexto da vida real” (YIN, 2004, p. 19). Já a coleta de dados deste estudo foi feita mediante uma observação indireta, não-participante, caracterizada como uma observação de segunda mão, em que se faz uso de imagens como fotografias, vídeos ou filmes (BAUER; GASKELL, 2004).

Os dados coletados neste estudo são caracterizados como dados narrativos, definidos por Hair Jr. et al. (2007, p. 153) como dados “que aparecem na forma de descrições de comportamento por escrito ou em registros de áudio e vídeo”. Quanto ao pesquisador, neste caso ele é caracterizado como observador completo, que substitui a observação real pela observação em vídeo, não exercendo nenhuma influência no fato ou sujeitos observados (FLICK, 2004).

Pela sua grande capacidade de influência na realidade cotidiana, os filmes vêm sendo cada vez analisados em vista da sua utilização como instrumentos de pesquisa. Comparados às entrevistas, eles fornecem o componente não-verbal dos eventos e das práticas, que, não fossem assim, somente poderiam ser documentados em protocolos de contexto. Comparados à observação tradicional, esses meios oferecem a vantagem do acesso repetido: enquanto a situação observada tem o seu final irreversível, os filmes podem ser vistos e analisados sem limite de repetição, podendo transpor as limitações da percepção e da documentação, característicos da observação (BERGMANN apud FLICK, 2004, p. 168).

Vale, no entanto, ressaltar, que este estudo consiste em uma análise de representações, já que o filme é feito mediante elementos do mundo real, como as relações humanas ali expostas, por exemplo, mas tem um caráter fictício. As representações são definidas por Moscovici (2003) como sendo toda a prática mental e social do pensamento primitivo, senso comum e ciência. Esta representação coletiva é responsável por tratar fenômenos gerais relacionando-os com “práticas ou realidades que não o são” (MOSCOVICI, 2003, p.184).

Segundo Spink (1995) ao considerar que as representações sociais são teorias do senso comum, as técnicas de análise utilizadas procuram desvendar a associação de idéias que lhes são subjacentes. Fundamentada nesse enquadre geral a vertente analítica utilizada nesta pesquisa se baseou na observação e mapeamento da narrativa fílmica, a partir dos temas emergentes que foram definidos tendo como base os objetivos desse estudo.

7 “Os Coletores” - Estudo Observacional da Narrativa Fílmica

A história narrada no filme “Os Coletores” (Repomen, no original) consiste numa

ficção científica e se passa em um cenário futurístico, no ano 2025, onde a humanidade adquiriu a capacidade de viver por mais tempo graças ao desenvolvimento e comercialização de órgãos humanos artificiais, desenvolvidos pela empresa The Union. Remy, o protagonista do enredo, é um ex-soldado, casado, pai de um filho e que trabalha para a The Union na função de coletor. Seu trabalho consiste em encontrar antigos clientes da empresa que não quitaram o pagamento dos órgãos implantados e recuperar estes órgãos para a empresa, mesmo que o usuário do órgão venha a morrer no processo.

A narração do filme, feita pelo próprio protagonista, tem início mostrando Remy em uma situação de trabalho, coletando um órgão artificial de um cliente. Neste momento é possível perceber a naturalidade na qual suas ações ocorrem. Não há nenhum envolvimento, preocupação ou juízo de valor sobre a vida do cliente. Dessa forma, seu trabalho é conduzindo mediante total distanciamento do outro. Explicita-se, dessa forma, um ambiente em que uma

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reflexão crítica através da bioética, como apresentada por Potter (1971), é completamente inexistente.

As negociações e vendas de órgãos são feitas dentro da sede da empresa, onde os possíveis clientes são atendidos por vendedores que se utilizam de frases prontas, carregadas de forte apelo emocional, com o objetivo de induzir tais clientes a assinarem seus contratos de compra e financiamento do órgão sem que sejam informadas todas as condições e termos da transação. As ações destes vendedores refletem, de maneira encadeada, posturas contrárias a pelo menos três dos princípios básicos da bioética de Beauchamp e Childress (1979).

Inicialmente, o princípio da não-maleficiência (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 1979) é ignorado na medida em que Frank, um dos gerentes da empresa, é mostrado atuando de forma totalmente negligente ao atender alguns clientes e vender-lhes órgãos que estes não teriam condições de pagar. Neste momento, o gerente deixa claro para seus coletores que sua preferência é por pessoas que não tem capacidade para honrar com o pagamento total do órgão, levando a uma geração de renda pelo tempo em que o cliente conseguiu pagar e pela economia na produção de novos órgãos, já que há uma constante reutilização dos órgãos coletados.

Quase em decorrência do princípio da não-maleficiência, nota-se o ferimento do princípio da beneficência, ao ser verificada a não observância dos custos e benefícios da intervenção. Além disto, também não é em benefício do outro que tais órgãos são vendidos e implantados, já que a impossibilidade de pagamento total do órgão e consequente morte pela coleta do mesmo só traz benefícios para a própria empresa.

Também outro princípio bioético que é ferido no procedimento de negociação de órgãos é o princípio da autonomia. Este princípio refere-se à liberdade do indivíduo em decidir sobre aquilo que considera melhor para si, mediante possibilidade de assimilação e análise de todas as informações fornecidas (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 1979). No entanto, tal processo não ocorre plenamente já que algumas informações, em especial no que diz respeito à prática da coleta de órgãos, não são passadas aos futuros usuários.

Neste cenário, Remy é apenas um dos inúmeros coletores que a empresa possui, mas é considerado um dos melhores na ativa, recebendo os trabalhos de coleta mais importantes. No entanto, por causa da grande dedicação de tempo necessária à sua função, este começa a sofrer grande pressão de Carol, sua esposa, para trocar de setor na empresa. Após um episódio em que Remy e Jake, seu companheiro de coletas, fazem a coleta de um órgão em frente à sua própria casa, ignorando, assim, alguns dos princípios bioético citados por Garrafa (2005a), como solidariedade, responsabilidade e prudência, Carol exige que Ramy abandone suas atividades de coletor.

Remy fica dividido entre as exigências de sua esposa e às idéias de Jake, que tenta convencê-lo de que todas as pessoas têm compromissos e que o trabalho deles é honroso na medida em que promovem a justiça. Nas palavras de Jake: “o que é mais importante é o cumprimento das regras”. Nesse momento, fica clara a tentativa de utilização como justificativa e exaltação àquele trabalho do princípio bioético da justiça: dar ao outro aquilo que lhe é de direito (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 1979).

Entretanto, com a insistência de Remy em deixar aquela função, Jake provoca um acidente ao fraudar um equipamento que Remy utilizou para uma coleta. A intenção de Jake era que Remy, ao necessitar de um órgão da empresa, não pudesse se desvincular e deixar, portanto, a parceria entre eles. No entanto, após ser submetido a uma cirurgia, onde lhe é transplantado um dos corações fabricados pela The Union, Remy não consegue mais continuar exercendo seu trabalho. Ao que parece, ao se tornar usuário de um órgão artificial, o coletor inicia, mesmo que involuntariamente, uma reflexão crítica sobre seus antigos valores e ações. Tal reflexão sobre vida se relaciona fortemente com os aspectos defendidos por Schweitzer (1936) e Anjos (2007).

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Por não conseguir mais exercer seu ofício de coletor, Remy acaba por não ter mais condições de honrar sua dívida, passando a viver como fugitivo em um prédio abandonado. Junto com uma cantora, Beth, que possui inúmeros órgãos artificiais implantados, Remy mergulha no universo dos clientes-fugitivos da The Union. Dessa forma, o enredo do filme passa a evidenciar uma forte reflexão sobre as consequências do progresso indiscriminado, questionando, inclusive, as vantagens de tais progressos e expondo o questionamento de Morin (2010) a respeito do que seria este progresso em vista de um crescimento melhor.

O dilema entre genética e ética, apresentado por Neves (2006), também passa a ser explorado neste ponto da narrativa, em que Remy reflete sobre a individualidade do ser humano, não mais considerando o outro como um trabalho a ser executados. O discurso bioético do “todos diferentes” (NEVES, 2006, p. 20) e por isso devem ter suas vidas protegidas e defendidas quando indefesos é levantado pelo personagem. Remy atravessa, então, um processo de redefinição da sua noção de ser humano, adquirindo uma consciência sobre tal (MORIN, 2010) que o leva a condenar o reducionismo ético (CASCAIS, 2006) praticado pelos coletores.

A reflexão sobre a propriedade da vida, apresentada por Owenn e Motulsky (1995), Pena e Azevêdo (1998), Freitas e Hossne (1998), Knoppers (2002), Chapman (2002), Rabinow (2002) e Savulescu (2007) é levado a um novo nível em que o ser humano perde o direito a ela, mediante aquisição e posterior perda de um órgão artificial que a sustenta, mas que não é de sua propriedade. Também dilema do controle do corpo como controle do indivíduo, apresentado pro Foucault (2008) é explicitado pela utilização de rastreadores, tanto nos usuários de órgãos artificiais, quanto nos próprios coletores, que limitam a sua mobilidade em caso de problemas de pagamento à The Union.

Relacionando esta análise com o contexto organizacional das empresas que atuam em um ambiente de inovações biotecnológicas e reflexões bioéticas, o QUADRO 4, a seguir, apresenta alguns dos principais temas emergentes que puderam ser mapeados durante o estudo observacional em “Os Coletores”.

QUADRO 4

Temas emergentes da reflexão bioética no contexto das organizações inovadoras

a) a necessidade de estender o pensamento e prática bioética do nível do indivíduo para o nível organizacional;

b) a importância da utilização de princípios bioéticos em todos os níveis organizacionais;

c) a presença da bioética como ferramenta reguladora das práticas inovadoras, em especial, em novos setores gerados por tais inovações, tendo em vista a manutenção da qualidade de vida humana;

d) o desenvolvimento e perpetuação de uma reflexão crítica constante no que diz respeito aos valores e às ações organizacionais frente às inovações;

e) a utilização das reflexões bioéticas como mecanismos de avaliação das relações entre homem e trabalho.

Fonte: elaborado pelos autores. Por fim, após tentar se desvencilhar de todas as relações com a sua antiga

empresa, Remy acaba por ser capturado por seu ex-companheiro de trabalho, sendo mantido preso a outro produto da empresa, um sistema neural que permite ao seu usuário viver preso em um mundo de sonhos sem que tenha consciência disso. Assim, concretiza-se a aquisição do total de poder sobre sua mente por parte da The Union, indo um nível além do mero controle do corpo discutido pro Foucault (2007).

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8 Considerações Finais A forte temática e reflexão bioética sobre a propriedade da vida e limites de ações

organizacionais e individuais apresentam o dilema crítico social que permeia toda a narrativa de “Os Coletores”. Os aspectos teoricamente descritos pelos diversos estudos na área da reflexão e prática bioética e percebidos nas relações vigentes no mundo atual também podem ser observados nos elementos expostos no decorrer do filme.

Como o objetivo deste estudo consistiu em apresentar, através de um estudo observacional de uma narrativa fílmica, uma análise dos aspectos fundamentais da reflexão e prática da bioética em um contexto organizacional, acredita-se que este foi alcançado, tendo em vista a contribuição que o mesmo gerou para esta área de pesquisa ao analisar, mediante uma abordagem qualitativa, os princípios e dilemas bioéticos em um ambiente futurista e, por isso, bastante avançado no que diz respeito às práticas biomédicas.

A necessidade de uma constante abordagem bioética que ultrapasse os limites das ciências e práticas biomédicas e penetre em todo ambiente organizacional no qual tais práticas e ciências se façam presentes se torna evidente. Neste cenário, as linhas bioéticas de proteção e reflexão autônoma, apresentadas por Siqueira, Porto e Fortes (2007), ganham destaque mediante a promoção de características avaliadoras de escolhas e de promoção da qualidade de vida dos indivíduos. Percebe-se, portanto, que características bioéticas como a preocupação com o vulnerável, o exercício do diálogo e a defesa da dignidade humana são aspectos que pedem presença também nas relações organizacionais.

Em defesa da pluralidade de fundamentos reflexivos da bioética, abordada por Turner (2005), considera-se importante que esta esteja voltada para diferentes culturas, em especial, culturas organizacionais. Dessa forma, uma compreensão maior de seus valores e de sua importância acabaria por elevar a sua utilização e exercício nos mais diversos cenários sociais, libertando os indivíduos de qualquer forma de dominação fruto do progresso, como defendido por Silva (1998).

Enquanto esfera capaz de reduzir o homem a agente inconsciente de suas ações e comportamentos, a capacidade bioética de levantar discussões a respeito das diferenças e valores individuais, como abordado por Neves (2006) se mostra extremamente adequada às realidades dominadoras dos mais diversos tipos organizacionais.

Dadas as limitações do presente estudo, por considerar uma análise mediante a observação de fatos fictícios onde estão presentes elementos representativos da sociedade atual, as constantes discussões e o crescente amadurecimento e disseminação das reflexões bioéticas devem sempre fomentar o nascimento de novas pesquisas na área. Em especial, recomenda-se para estudos futuros que elementos como as diferenças de percepção e identificação com o trabalho sejam analisados, objetivando validar a complexidade de toda reflexão bioética.

Por fim, evidenciando a capacidade de toda reflexão bioética de levar a humanidade a estágios futuros de desenvolvimento, não apenas no contexto tecnológico, mas, principalmente racional, e de promover a manutenção da qualidade da vida humana, conforme Potter (1971), conclui-se este estudo com uma fala de Remy que evidencia um salto na compreensão da dimensão do trabalho na vida do indivíduo: “No fim, um trabalho não é apenas um trabalho. É o que você é.”

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