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n.º 12Dezembro 2016

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Título :

Director : ArmAndo mAlheiro dA SilvA

Conselho de Redacção : BernArdo reiS . domingoS dA SilvA ArAújo . engráciA leAndro

FernAndo colmenero FerreirA . irene montenegro joSé AlBerto de SouSA riBeiro . mAriA mArtA loBo de ArAújo

Edição : Santa Casa da Misericórdia de Braga

Propriedade : Santa Casa da Misericórdia de Braga Palácio do Raio Rua do Raio, n.º 400 Tel. 253 205 100 ‑ Fax 253 205 101 [email protected] 4700‑920 Braga

ISSN : 1646‑3188

Depósito Legal : 233621/05

Data de saída : Dezembro de 2016

Tiragem : 500 exemplares

Capa : Paleta de Ideias design

Na capa : Fonte dos Granjinhos. Reenquadramento no perímetro do Palácio do Raio,

actual Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga (Foto : Queirós Fotógrafo)

Fotografiadacontra-capa : HugoDelgado−WAPAPhoto

Execução gráfica : Graficamares, Lda. R. Parque Industrial Monte Rabadas, 10 4720-608Prozelo-Amares

Todos os direitos reservados.

O conteúdo dos artigos e a norma ortográfica usada são da responsabilidade dos autores.

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O(s) cemitério(s) da Misericórdia de Braga*

The cemeteries of the Misericórdia of Braga

joSé FrAnciSco FerreirA Queiroz**

Resumo

Neste artigo são abordados os dois cemitérios que a Misericórdia de Braga teve no século XIX: o primeiro junto ao Hospital de São Marcos, e o segundo numa secção privativa do actual cemitério municipal. Para ambos os casos é feito o respectivo enquadramento histórico e artístico, sendo analisadas as características destes cemitérios e dos monumentos tumulares nele existentes.

Palavras-chave : Misericórdia de Braga, cemitério, hospital, século XIX

Abstract

This paper examines the two cemeteries that the Misericórdia of Braga managed in the nineteenth century: the first one, next to its Hospital of São Marcos, and the second one on a private section of the current municipal cemetery. The paper includes the historical and artistic background of both cemeteries, as well as an analysis of its spatial and artistic features.

Keywords : Misericórdia of Braga, cemetery, hospital; 19th century

, n.º 12, Dezembro 2016, pp. 13‑58

** O autor agradece ao Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Braga, Bernardo José Ferreira Reis, assim como à historiadora do Centro Interpretativo das Memórias da Misericórdia de Braga, Manuela Machado, que tornaram possível este trabalho. Um agradecimento especial aJoséEduardoReis,aCristinaMoscateleaCatarinaMiranda.Asfotografiassãodoautor,salvo indicação em contrário.

** Doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto. Em 2014 concluiu o Pós- -doutoramentosobre“ArteTumulardoRomantismoemPortugal”noCEPESE–CentrodeEstudos da População, Economia e Sociedade, onde actualmente partilha a coordenação do GrupodeInvestigação“Património,CulturaeTurismo”.

** [email protected]

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Introdução

Antes do século XIX, os falecidos em Portugal eram normalmenteinumados no interior de edifícios sagrados, ou em redor dos mesmos, embora tenha havido várias excepções. De qualquer modo, os dados disponíveis apontam para que, no século XVIII, por exemplo, todo o tipo de igrejas, conventos ou capelas possuíssem geralmente uma função complementar de enterramento. Esta função poderia ser junto ao portal de entrada, no adro ou mesmo no interior do templo, de acordo com hierarquias sociais aparentemente óbvias e mencionadas em diversa bibliografia, mas que ainda não foram suficientemente comprovadas com estudos aprofundados.

AsMisericórdias,comoentidadesquasesempredetentorasdetemplospróprios, em geral davam também sepultura no interior dos mesmos, sobretudo a benfeitores, que foram bastantes, dada a generalização dos legados pios no Portugal católico da Época Moderna.

Em outros tempos, era sobretudo às Misericórdias portuguesas que competia a missão de assistir os mais pobres, particularmente na doença e, em caso de morte, no acompanhamento à sepultura. Por essa razão, as Misericórdias acabariam por ser das primeiras entidades em Portugal a possuir locaisdeenterramentopermanenteforadassuasigrejas.Algunsdesteslocaiseram próximos dos seus hospitais, que, especialmente a partir do século XVIII e nas cidades, foram sendo relocalizados a certa distância do núcleo urbano e, concretamente, passaram a ficar afastados da respectiva igreja da Misericórdia e sua casa do despacho1.

Porém, este afastamento não implicava uma ruptura evidente nos hábitos de inumação: quem falecia nos hospitais das Misericórdias eram sobretudo os deslocadosdasuaterra,eosmaispobres–aquelesquenãopodiampagarcuidados médicos em casa. Em caso de morte, a família destes também não podia pagar a sepultura e, por isso, viam‑se muitas vezes relegados para os adros ou mesmo para terrenos junto aos próprios hospitais, para não encarecer o transporte dos cadáveres e atenuar os cada vez maiores receios, fomentados

1 Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal,vol.I,tomo1,tesedeDoutoramentoemHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeLetras da Universidade do Porto, 2003, p. 22.

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pelos higienistas, de que os cadáveres de falecidos em hospitais (sobretudo com certas doenças), podiam prejudicar a saúde pública. Estes terrenos eram muitas vezes designados cemitérios, por serem ao ar livre e porque nem sempre possuíam uma igreja ou capela anexa2.

Contudo, estes locais de enterramento não eram cemitérios como hoje os entendemos: nem sempre possuíam portal nobilitado e muros altos e sólidos que afastassem animais e intrusos e conferissem protecção aos inumados; amesmaprotecção–efectivaesimbólica–quedavao interiordas igrejas.Mas, mais importante que isso, os recintos destes cemitérios anexos aos hospitais de fundação anterior ao Liberalismo não eram geralmente arruados e, por conseguinte, não estavam preparados para receberem monumentos: não só porque a generalização da arquitectura de memória só viria a surgir posteriormente em Portugal, mas também porque os pobres que faleciam em hospitais não tinham meios para mandar erigir monumentos. Por isso mesmo faleciam nos hospitais, tendo normalmente direito a sepultura gratuita.

É neste contexto que temos de entender o cemitério anexo ao Hospital deSantoAntónio,daMisericórdiadoPorto–casorelativamentesemelhanteao do Hospital de São Marcos, em Braga.

O cemitério da Misericórdia de Setúbal, que, ao contrário dos supramen‑cionados, ainda existe, é um exemplo particularmente interessante destes cemitérios das Misericórdias anteriores aos cemitérios românticos do período Liberal.Apreocupação coma sacralizaçãodoespaço, àmaneirabarroca, éostensiva e feita através da azulejaria, concebida para transformar o recinto numa espécie de igreja ao ar livre, até porque a forma do cemitério é trape‑zoidaleoladomaiscurtoéondesesituamospainéis.Assim,esteconjuntodeazulejaria é uma verdadeira recriação de uma capela‑mor de igreja, simulando mesmo portas para sacristias que não existem. O altar possui belos azulejos do período rococó, certamente da época do portão do cemitério. Porém, este cemitério em Setúbal não foi concebido para servir todas as franjas sociais, tendo recebido a nobilitação do portal e do altar com azulejos na década de 1770, cerca de setenta anos após ter sido estabelecido. Os painéis do altar

2 Ibid.

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aludem mesmo à função primordial deste cemitério, que seria o enterramento dos mais pobres3. Aliás, nem sequer do séculoXIX ali hoje existemmonu‑mentos tumulares.

Os espaços de enterramento da Misericórdia de Braga anteriores ao século XIX

Em meados do século XVI, uma das razões invocadas pelos confrades da Misericórdia de Braga para construírem igreja e casa própria, prendia‑se com a falta de lugar para enterrar os irmãos e benfeitores. Com a igreja construída, a Misericórdia atribuiu sepultura perpétua a diversos irmãos, para eles e suas famílias, em lugares preestabelecidos, deixando a proximidade dos altares para pessoas e dignidades ao arbítrio do Provedor. Os possuidores das sepulturas estavam autorizados a colocar letreiros nas mesmas, mediante pagamento4. Neste aspecto, a Misericórdia de Braga não era diferente de outras Misericórdias do país: havia uma certa hierarquia na localização das sepulturasdentrodoespaçodaigreja.Acompradesepulturaperpétuatinhaum custo, e apenas alguns irmãos com mais anos de serviço na instituição ou que tivessem sido seus benfeitores beneficiavam de concessão gratuita5.

3 Para aprofundamento sobre os aspectos artísticos do cemitério da Misericórdia de Setúbal, veja‑se Queiroz, José Francisco Ferreira; DomingueS,AnaMargaridaPortela–Uma singular obra de azulejaria barroca em Setúbal. Porto: Universidade do Porto, 2004.

4 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013. Braga: Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2013, pp. 498‑499. Em 1559, vários irmãos pediram permissão para fazer as suas sepulturas em determinado lugar do templo que se construía, segundo a descrição que apresentaram. Cf. CAStro,MariadeFátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910), vol. III. Braga, Santa Casa daMisericórdiadeBragaeAutora,2006,p.593.

5 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 499. Em diversos assentos de 1574, são mencionadas concessões gratuitas de sepultura, como forma de retribuir o empenho na obra recentemente concluída. O trabalho deAntónioVieira“emfazereordenarestanovaCasa”foireconhecidocomadoaçãodesepul‑tura, em Junho desse ano, segundo CAStro,MariadeFátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 593.

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Entretanto, a partir do momento em que recebeu o hospital, a Misericórdia de Braga passou a ter dois templos onde poderiam ser feitos sepultamentos: a igreja encostada ao complexo edificado da Sé e a de São Marcos6. Porém, a bibliografia já publicada sobre a história da Misericórdia de Braga sugere que a instituiçãotinhaoutroslocaisdeenterramento.Assim,ospobreseascriançasenjeitadas eram enterrados pela Misericórdia no claustro da Sé7, salvo os falecidos no Hospital de São Marcos. Estes, segundo José Viriato Capela e Maria MartaLobodeAraújo,“tinhamdesde1635umcemitérioquefoiconstruídonumterrenoqueestavasobadministraçãodocapelãodoHospital”8. Os pobres que perecessem em São Marcos podiam ser também sepultados no claustro do mesmo hospital9. Porém, em 1725, a Mesa determinou que nesse local não fosse sepultada pessoa alguma sem a entrega de um montante em numerário, de modo a “travar um costume que se vinha instalando de enterrar aí pessoasgratuitamente”10. Segundo Maria de Fátima Castro, o cemitério que a MisericórdiagerianoclaustrodeSantoAmarotambémrecebiadefuntosque

6 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 499.

7 Em Braga, no século XVIII, não era apenas a Misericórdia a ter um cemitério para pobres.Em1739,oCabidodaArquidiocesedeBragatomouumaimportantedecisão:“Apoucaguarda com que se acha o cemitério em que se costumão sepultar os pobres que mandou fazer o IlIustrissimo Senhor Arcebispo defuncto, dá occazião, a quantas pessoas lancem criançasmortas por sima das parede delle, tirando talvez as vidas a estes innocentes por ocultarem os seus delictos, o que procede da cualidade que achão em os lançarem no dito lugar para serem sepultados e não succedia quando se costumavão sepultar no claustro da nossa Sé [...] ordenamos que desde hoje em diante se não sepultem maes corpos alguns no dito cemitério, mas sim se levem ao dito claustro e [...] se mande demolir as paredes delle athe que fiquem em altura que bastem somente para lhe fazer cerco e guardalo dos animaes e para maes cautela, sera mandado ladrilhar com as pedras que sahirem das ditas paredes e com as maes que se mandarãovir”.Cf. CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 497.

8 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 500.

9 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 597.

10 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 500.

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não eram necessariamente pobres, nomeadamente peregrinos e deslocados da sua terra11.

Podemos, pois, concluir que, tal como sucedia em outras Misericórdias, também na de Braga os confrades que tivessem tido funções de responsabili‑dade e os defuntos com mais posses eram geralmente sepultados em campa própria dentro da igreja, e ainda dentro da igreja do hospital. Havia concor‑rência, no que à oferta de locais de sepultura dizia respeito: em 1793, a Mesa da Misericórdia de Braga decidiu harmonizar o regulamento relativo a sepul‑turas na Igreja do Hospital de São Marcos, relativamente ao que se praticava já na bem próxima Igreja de Santa Cruz12.

O cemitério do Hospital de São Marcos

Embora a 29 de Junho de 1779, a Mesa da Misericórdia tenha deliberado que “se continuasse as sepulturas para a parte da adega”, obra que seriaentregue ao pedreiro Francisco da Mota, por 5$200 cada sepultura, o espaço de enterramento junto ao Hospital de São Marcos em poucos anos passou a ser exíguo13.

Não empreendemos pesquisa detalhada na documentação da Misericórdia de Braga anterior ao início de 1804. Porém, sabemos que, em 11 de Maio de 1805, esta irmandade decidiu pedir ao Príncipe D. João VI para “se obter a licensa para a compra de hum campo que fica fronteiro ao hospital, para hum semiterio, de que necesita o mesmo hospital, como tão bem para se obter huatorredacidadeparasecontinuaremasobrasdohospital”14.Alicençafoi

11 CAStro,MariadeFátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 597.

12 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 501.

13 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 598.

14 ArquivoDistritaldeBraga(doravanteADB),FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga, Actas, 1799-1806, L.º 22, fl. 220. Refira‑se que, pouco tempo antes, decidira‑se que os devotos poderiam continuar a obra da igreja do hospital por sua própria iniciativa, desde que seguissem o risco aprovado.

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obtidae,em6deDezembrode1806,aMesamandoupagaraAntónioJosédaSilva Pereira certa quantia, pelas despesas feitas com a provisão que a “Meza passada tinha requerido para se comprar hua propriedade, que fica na cangosta dosFalcões,defrontedoHospital,paracemiteriodosdefuntosdelle”15.

Curiosamente, data de 18 de Outubro de 1806 o alvará que, através do seu ponto 12.º, deu a todas as Misericórdias o privilégio de poderem ter cemitério, e de poderem desde logo adquirir terreno para esse fim16. Em concreto, no dito alvará pode ler‑se: “E porquanto em muitas das sobreditas misericordias está estabelecido o terem hum campo santo para cemiterio, permito que em todas ellas o possão estabelecer do mesmo modo, o que farão, sendo possivel, fora das povoações, requerendo para esse effeito às authoridades ecclesiasticas a que competir, e lhes hei por facultada a licença para a acquisição do terreno que para esse fim for necessário”. Como se deduz, e até pelo exemplo doCemitério da Misericórdia de Setúbal, esta norma do mencionado alvará veio sobretudo regularizar legalmente uma situação já existente, regulamentando a possibilidade destas irmandades terem cemitério próprio.

O alvará de 18 de Outubro de 1806, no que dizia respeito ao cemitério, foi naturalmente bem recebido na Misericórdia de Braga, não apenas por já possuir um espaço de enterramento junto ao hospital, mas sobretudo por pretender estabelecer um outro cemitério17. Efectivamente, em 19 de Fevereiro de 1807, quando o Provedor era o Desembargador Inácio José Peixoto, foi analisado esse alvará, sendo interpretado que o mesmo incluía uma disposiçãosobreanecessidadedesefazer“umcemitérioparapobres”,comoque a Misericórdia de Braga concordava, até porque já tinha obtido provisão realpara“comprarterreno”.écuriosoqueaactaaludaaumcemitérioparapobres, quando o alvará não especifica que os cemitérios das Misericórdias teriam esse propósito. De qualquer modo, na mesma acta a Mesa dá a entender queessenovocemitérioserviriaos“maispobresemgeral”.Por“ficaremsítiocommodo”,eporterumcarácteralargado,aindaqueaumafranjaconcretada

15 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1806-1817, L.º 23, fls. 12‑12v.16 SilvA, António Delgado da–Collecção da Legislação Portugueza desde a ultima compi-

lação das ordenações. Legislação de 1802 a 1810. Lisboa, Typografia Maigrense, 1826, pp. 414‑418.17 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga,

1513-2013…, p. 501.

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população, a Misericórdia achava que deveria concorrer apenas “com parte da despeza”,suplicando-seaoOrdinárioumaesmola,poisacompradoterrenoacarretava“gravedespeza”18.

A construção do novo cemitério ainda demorou alguns anos. A 6 deDezembro de 1807, foi proposto em reunião de Mesa que se “delingiasse com toda a pressa a obra do semiterio, comprando‑se o sitio, por que o semiterio actual das Malvas esta cheio e estreito, sem dar lugar às sepulturas, e as que há ficão à flor da terra, sem profundidade, e por estarem no centro da sé e meiodacidadesepodeseguirperigoàsaudedospovos”19. Esta referência é particularmente interessente, por indicar o nome pelo qual era conhecido o cemitério do Hospital de São Marcos que ainda servia em 1807: o cemitério das Malvas. Curiosamente, e a fazer fé em alguns autores, nome muito semelhante teria tido um antigo espaço de enterramento que a Misericórdia do Porto geriu.

Em 19 Julho de 1809, ainda o terreno para o novo cemitério do Hospital de São Marcos não havia sido comprado. Nessa data, a Mesa da Misericórdia de Braga chamou os diversos procuradores para apurar o curso das respectivas causas e também “se propos a compra de hum campo emidiato ao Hospital paraoenterrodosInfermosquenellefalecessem”20. Em Mesa de 2 de Junho de 1810, é já mencionado o preço de compra do campo e de uma casa junto ao Hospital, aquisição essa necessária para o novo cemitério21.

Não apurámos em tempo útil quando foi aberto a enterramentos o novo cemitério na Cangosta dos Falcões. De qualquer modo, deduzimos que tenha sido antes de 17 de Julho de 1812, dia em que a Mesa da Misericórdia, atendendoà“indecênciaefaltadereparação”emqueseachavaocemitériodohospital,havendo“umdevoto”queseoferecia“aconcorrercomadespezada reparação e decência tanto do exterior à face do caminho, como do recinto do lugar sagrado, onde se sepultam os cadáveres, e uma capellinha para depósitodosmesmoscadáveres”,decidiuque“aqueledevotofizesseasditas

18 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1806-1817, L.º 23, fls. 19v.19 Ibid., fl. 56.20 Ibid., fl. 98v.21 Ibid., fls. 127v.‑128.

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obrasconformeasuadevoção”,emboradebaixodainspecçãoedoProvedordo Hospital22.

A 7 de Agosto de 1814 “semandou fazer hua caixa de pedra com a pinturadasAlmas,nomurodocampoqueservedecemiterio,parareceberasesmollas dos fiéis, e se abrir todos os meses, e destas esmollas se mandar dizer missaspelosirmãosquealiseachãoenterrados”23. Sobre este assunto, no dia 15 de Março de 1815, em Mesa de Junta, decidiu‑se, por proposta do Tesoureiro do Hospital, que “fossem feitas por conta desta Caza as despezas que se fizerãocomonixod’Almasqueseedificounomurodocemiteriodomesmohospital, e que todas as esmolas ali achadas fossem aplicadas pellas almas dos defuntosquemorressemnomesmohospital”, ficando tudo registadonumlivro separado24. Este intitula‑se Livro para o Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos desta cidade de Braga. Antesde1844,estelivronãomencionaexplicitamentesepulturas,masnoseuinício indica‑se que, segundo o aludido termo da Junta de 15 de Março de 1815, as missas ditas pelos irmãos falecidos eram pagas por esmolas que os fiéis “temlançadonacaixadasalmas,queestánosemiterio”25. No mesmo livro, podemos ler que, em 20 de Dezembro de 1817, fez‑se um ofício com missa cantada,sermãoe“procisssãoaocemiterio,findandonasuanovacapella”26. Por conseguinte, já depois do cemitério inaugurado, foi colocado um nicho comasAlmasdoPurgatório,emfinaisde1814ou iníciosde1815,eaindaconstruída uma capela, à volta de 1816‑1817.

Em Setembro de 1812, foi anotada a despesa “com abrir a campa de pedraaonossoIrmãoAntónioJoséVellozo”,novalorde$60027. Metade desse valorfoigastoemOutubrodesseano,com“abrirasepultura”da“nossairmãDonaAnaMaria”,mulherdoDr.FranciscoÁlvaresMartins.Nomesmolivrode

22 Ibid., fls. 175‑175v.23 Ibid., fl. 235.24 Ibid., fl. 254.25 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja,

Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fl. 4.26 Ibid., fl. 12.27 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo e despeza, L.º 688, 1810‑

‑1811(‑1848), fl. 12v.

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registo de despesas, surgem referências semelhantes para os anos seguintes, mas muito poucas por ano. Supomos que digam já respeito ao novo cemitério. Infelizmente, os registos de despesa em que nos baseamos remetem para róis erecibosquenãoconstamhojedofundodaMisericórdianoArquivoDistritalde Braga. Por outro lado, neste livro nada consta que diga especificamente respeitoàobradonichodasAlmas,peloqueseguramentenelenão foramregistadas todas as despesas que a Misericórdia teve na época28.

Não pudemos apurar em tempo útil como seria a já mencionada capela edificada no cemitério à volta de 1816‑1817. Sabemos, porém, que foi substituída por outra. De facto, em 5 de Setembro de 1830, decide‑se, por pluralidade de votos, “que se trasladasse para o fundo do semiterio, ao direito do cruzeiro que está no meio, a capella para deposito dos cadaveres, fazendose alli hua nova cappelinha unida ao muro, com a piquena capacidade de ocupar duas tumbas, e com amaior simplecidade possivel”29. Por esta referência, percebemos que o cemitério tinha um cruzeiro ao centro. Uma planta de 1883‑ ‑1884, de Francisco Goullard, embora já de uma época em que o cemitério estava desmantelado e recentemente transformado em jardim, mostra ainda este cruzeiro, com o seu alpendre, e o que parece ser a mencionada capela mortuária.

Era suposto que os defuntos fossem depositados nesta capela mortuária já devidamente preparados para o enterro. Porém, em 30 de Outubro de 1831, quando o Provedor era o Bacharel em Leis Manuel Joaquim Pereira de Mesquita (Procurador Fiscal da Real Fazenda), constatando‑se ter havido corpos por vestirna“capelladodeposito”equeàsvezesosvestiaamulherdocoveiro,

28 EmJaneirode1816,surgeo“recibodopintor”,novalorde60$000,semespecificarqualeraaobra.Atendendoàdatatardia,supomosqueadespesanãofossereferenteàobradapinturadopaineldasAlmas.Porcuriosidade,mencionamosadespesade“hua pedra para ourinar”,novalorde1$600(Fevereirode1815);adespesacomolatoeiro“defazerhua cruz de latãoparaasarmasdafrontaria”,novalorde1$800;acruzquesemandoufazerparacolocarnas ditas armas da frontaria da igreja, ao latoeiro da Rua de SãoMarcos–1$800 (Outubrode 1815); e a despesa com o “pechileiro, de fazer duas piramolas para a ginela da sacada, de chumbo”,novalorde1$200(Novembrode1815).Vd.ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiade Braga, Recibo e despeza, L.º 688, 1810‑1811(‑1848), fls. 33v., 36 e 40.

29 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1826-1834, L.º 25, fl. 169v.

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Fig. 1–Detalhe da planta de Braga de 1883-1884, vendo-se o desmantelado cemitério dohospital (BAndeirA,MiguelSopasdeMelo–Planta topográfica da cidade de Braga de Francisque Goullard (1883/1884): da engenharia militar de antiguo regime à afirmação tecnológica liberal. Braga: Município de Braga, [2015]).

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o que era considerado indecente; deliberou‑se que esta só poderia vestir os corpos de mulheres e que todos os cadáveres teriam de ser vestidos nas camas em que morressem30.Algumtempodepois,enocontextodeumamortíferaepidemia de cólera, determinou‑se que os falecidos no hospital fossem retirados das enfermarias cinco minutos após a morte, devendo a cortina da cama ser aberta e lavada31. Sensivelmente na mesma época, determinou‑se que pessoas externas à Misericórdia pagassem 2$400 pela sepultura dentro da igrejadohospitalenacapeladasAlmasdocemitérioouemcampasrevestidasde pedras32. Por conseguinte, deduzimos que fossem admitidos enterramentos dentro da capela do cemitério, apesar da sua pequenez.

Curiosamente, em 2 de Novembro de 1831 ficou registada a autorização dada ao Provedor do Hospital para mandar fazer as sepulturas “defrontes do cruzeirosomentemassemqueseacavemosarcos,naosefação”33.

Como já referimos, o Livro para o Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos desta cidade de Braga não mencionaexplicitamentesepulturasantesde1844.Apartirde Julhodesseano, é registado no dito livro quanto se recebeu por cada sepultura, de quem, e o respectivo número34. Este procedimento indicia a intenção em tornar o cemitério do hospital mais consentâneo com as normas aplicáveis35 aos cemitérios públicos que o Governo de Costa Cabral queria então conseguir estabelecer nos muitos concelhos do país que ainda não os tinham.

Note‑se que muitas sepulturas eram cedidas graciosamente. Haveria até abusos neste aspecto. Em 1848, estabeleceu‑se que o sepultamento gratuito

30 Ibid., fl. 239.31 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga,

1513-2013…, p. 501.32 Ibid., p. 496.33 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1826-1834, L.º 25, fl. 241.34 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja,

Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fls. 41‑41v. Curiosamente, nestaépocaéregistadanolivroasepulturade“Narcizadetal,daRuadeSãoMarcos”.

35 Em 1845, a Mesa da Misericórdia de Braga, por ter conhecimento de que as sepulturas das crianças eram muito pouco fundas e exalavam maus cheiros, determinou que tivessem três palmos de profundidade. Cf. CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 502.

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estendia‑se apenas a filhos de mesários ou do mordomo do hospital, como retribuição pelos serviços prestados pelos progenitores à Misericórdia36. Por outro lado, nesta época vários inumados no cemitério do hospital tinham seguramente bens: menciona‑se um oficial de diligências e até o Dr. Casimiro Ribeiro do Vale (da freguesia de Covas) ou “D. Maria Roza da Costa Faria Pereira, daBarca”,queficouemsepulturadepedra,nomêsdeAbrilde185037.

Nesta época, o cemitério do hospital apresentava uma certa hierarquia espacial.Assim,porvoltade1846-1848,algumassepulturassãolocalizadas“norazodocemiterio”38. Em Dezembro de 1850, a sepultura de Teresa Maria Correia, do Campo de Santa Ana, foi feita “em o campo razo”39. Supomos que se tratasse da área central do cemitério em que não existiam sepulturas de pedra.

Para a segunda metade da década de 1840 e a primeira metade da década seguinte, o Livro para o Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos desta cidade de Braga não possui geralmente mais do que 10 registos por cada ano económico. Os registos incluem normalmente os paramentos, o guisamento, e os sinos ou sinais. Para o ano de 1850‑1851, o capelão‑mor, que desde 1844 ia registando o dinheiro recebido pelos guisamentos e benesses, na igreja e cemitério do hospital, e pelas sepulturas, não anotou sequer qualquer ofício. Porém, em 18 de Setembro de 1851, o capelão‑mor do hospital recebeu uma quantia referente a dozemissasquesedisseramna“CapelladoSenhordosDesprezos”40. Segundo Maria de Fátima Castro, a devoção ao Senhor dos Desprezos terá surgido na igreja do hospital no século XIX, sendo já mencionada em 182741.Amesmaautora refere que, em 1829, a festividade do Senhor dos Desprezos foi celebrada

36 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513-2013…, p. 496.

37 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fls. 43‑44v.

38 Ibid., fls. 41‑43.39 Ibid., fl. 45.40 Ibid., fl. 45v.41 CAStro,MariadeFátima–A Irmandade e a Santa Casa da Misericórdia de Braga. Obras nas

Igrejas da Misericórdia e do Hospital e em outros espaços. Braga: Santa Casa da Misericórdia de BragaeAutora,2001,p.316.

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em conjunto com a de S. João Marcos, havendo “de manhã um sermão de S. João Marcos e de tarde outro do Senhor dos Despresos e procissão em volta doCampo,naformadocostume”42. Não fica claro onde se localizava a imagem do Senhor dos Desprezos, mas tudo indica que era na capela do cemitério, até porque este viria a ser conhecido como Cemitério dos Desprezos.

Para o ano de 1855, no supramencionado livro há bastante mais registos, o que não é surpreendente, pois foi o ano de uma epidemia de cólera. Os registos incluem pessoas também de fora da cidade, em alguns casos mencionando‑se quefaleceramnohospital,noutrosnãosereferindonada.Apartirdesseano,os registos aumentam em número e são mais cuidadosos, quase como se fossem feitos de acordo com as normas que regiam os principais cemitérios públicos portugueses. Isto indicia que o Cemitério dos Desprezos, a despeito do seu nome pouco romântico, começava a merecer certa aceitação social mesmo por parte de quem tinha forma de pagar a sepultura numa das muitas igrejas da cidade em que isso ainda continuava a ser praticado43.

O Cemitério do Hospital de São Marcos, ou dos Desprezos, tornava‑se cada vez mais pequeno, para o crescente volume de interessados em ter ali sepultura.Assim,em29deJunhode1856foi“resolvidoquesemandassemfazer e abrir nas ruas que se cruzão no cemitério do hospital as sepulturas queaquelacapacidadecomportasse”,por“estaremquasetodasasexistentesocupadasemuipoucasemestadodereceberemcadáveres”44. Porém, em 3 de Dezembro desse ano, o mestre pedreiro Manuel Francisco Rato, a quem havia sido encomendado o trabalho de fazer 48 sepulturas no cemitério do hospital, declarou não lhe ser possível fazê‑las pelo preço ajustado “em atenção ao aumentodopreçodapedraedoscarretos”.AMisericórdiaacedeu,conquantoo mestre não viesse com novo pedido de aumento de preço e fizesse a obra

42 Ibid.43 Logo emNovembro de 1855, há referência à sepultura de “Dona” Ana Severina de

AraújodeVasconcelos,dafreguesiadeS.Tiago.Cf.ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiade Braga, Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fl. 49v.

44 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1853-1863, L.° 28, fl. 107v.

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“comadevidaperfeição”45. Terminada a obra, foi estabelecida uma nova tabela de preços:

–Sepulturatemporáriaparamesárioseoutrosirmãos . . . . . . . . . . . gratuita;–Sepulturatemporáriaparamulheresouviúvasdemesários . . . . . 6$000;–SepulturatemporáriaparapessoasexternasàMisericórdia . . . . . 12$000;–Sepulturaperpétua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60$000;–Passagemdesepulturatemporáriaaperpétua . . . . . . . . . . . . . . . . 8$00046.

Havia também a intenção de alargar o cemitério, tornando o seu prospecto mais regular. Porém, o alargamento não foi possível de imediato. Em 10 de Junho de 1857, a Mesa decidiu construir as catacumbas “do lado das enfermarias novas [...] por se não [ter] o possuidor do terreno do fundo do cemiterio [...] promptificado à expropriação voluntária do terreno necessário paraasqued’esse ladose temdeedificar”47.Aobra seria feitademodoaaproveitar‑se toda a pedra disponível de esquadria e alvenaria existente no cemitérioe“paredesdaantigalataecunhaljuntodela”48.

Em 1 de Julho de 1857, tendo sido aumentado o número de sepulturas do cemitério do hospital “com mais dezasseis [...] em volta do Senhor que se acha no centro do mesmo e mais quarenta e oito ao lado direito e esquerdo, e sendo, por isso, indispensável formar novo livro dos assentos dos falecidos quenelastêmdeenterrar-se”,deliberou-seabriroditolivro,dando-senovanumeração às sepulturas, “que começará no quadro do centro e frente do Senhor, transcrevendo‑se, nas folhas do livro em que se der numeração nova às sepulturasantigas,osassentosqueseacharemnolivrovelho”.Infelizmente,o livro mencionado não subsistiu49.

Em 30 de Dezembro de 1857, porque se encontravam concluídas “as catacumbas do cemitério de São Marcos e consideravelmente aumentadas

45 Ibid., fl. 132.46 Ibid., fl. 183.47 Ibid., fl. 147.48 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual

(das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 599.49 ADB, Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Braga, Actas, 1853-1863, L.° 28,

fls. 154‑154v.

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as sepulturas”, havendo quem pretendesse “umas e outras”, sendo quenem todos eram confrades, era necessário estabelecer novos preços50. Assim,quantoàscatacumbas:

–ParairmãosquetivessemservidonaMesa“pelomenosumanointeiro”,seriam gratuitas por quatro anos, até se consumir o cadáver;

–Custariam6$000porigualperíodoparaosirmãosquenãotivessemservidonaMesa“oditotempo”,bemcomoparaasirmãs,fossemounão mulheres ou viúvas de mesários;

–Custariam12$000paraqualqueroutrapessoaquenãopertencesseàMisericórdia;

–Custariam60$000seficassemperpetuamente“paracertaedetermi‑nadapessoaecadáverdamesma”51.

Quanto à passagem de qualquer catacumba, de temporária a perpétua, custaria 48$000. Curiosamente, a Misericórdia regulamentou o modo de ornamentar as catacumbas, estipulando: “o tapamento será de cal e tijolo, e sobreelle–querendo–tampadeferrooulouza,edísticosobreacal,tampaou louza, tudo à custa dos interessados, não podendo os dísticos exceder o seguinte«Aquijaz»=nomeoutítulo=profissãooucargodeMeza,equandoviúva o nome do marido e profissão ou cargo de Meza que este exerceo = dia mez e anno de nascimento e do fallecimento, furmulario que nãopoderá alterar‑se, excepto com prévia licença da Meza, lançada no Livro dos Acórdãos”52.

Relativamente às sepulturas, em 30 de Dezembro ficou também decidido que as “das carreiras do cemitério e em roda do Senhor serão, até consumir o cadáver, dadas gratuitamente, como até agora, a irmãos e irmãs sem distinção algumaea filhose filhasde irmãoseserventes”,conformeoregulamentoaprovadoem11deAbrilde1842.Porém,a“todaequalquerpessoadiversa”,estas sepulturas ficariampor 2$4000, “semdespesa de covagem”. A título

50 Ibid., fl. 193.51 Ibid., fl. 193.52 Ibid., fl. 193.

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perpétuo, estas sepulturas ficariam por 24$000, “para certa e determinada pessoa”.Pelapassagemdetemporáriaaperpétua,ocustoseriade21$600.Os epitáfios em sepulturas seriam permitidos somente nas de carácter perpétuo, regulados “do mesmo modo que nas catacumbas e à custa dos interessados”53. Refira‑se que a Mesa poderia dar gratuitamente catacumba ou sepultura perpétua, dístico ou epitáfio a qualquer benfeitor, desde que este fizesse donativo superior a 60$000.

Em Julho de 1858, surge a primeira referência a uma catacumba, a que seseguemoutrasreferênciasaindanesseano.Aocupaçãodasmesmasnãofoifeita por ordem numérica, visto que são mencionadas as com os números 29, 42 ou 44, por exemplo. Estranhamente, no mesmo livro, para o ano económico de 1858‑1859 não há registo algum, apesar dos assentos de óbito do Hospital de São Marcos nessa época especificarem que o destino dos cadáveres era o cemitério do hospital, salvo raras excepções em igrejas54. Note‑se que os enterramentos na Igreja da Misericórdia não haviam cessado, pois um deles data já da década de 1860: o do confrade e tabelião Agostinho Monteiroda Silva55.

Para o ano económico de 1859‑1860, volta a mencionar‑se catacumbas, em vários casos aludindo ao seu tapamento56.Atítulodeexemplo,emMaiode1860,aMisericórdiapagouaomestrecaiadorAntónioPinheiro(deSantaMariade Ferreiros), pela tapagem feita na catacumba n.º 5, onde fora depositado o cadáverdeManuelJoaquimdosSantosAlmeida57. Para esta época, há menção apessoasenterradas“emcampa”(comoMariaJoaquinadaCunhaBarbosa)eoutras“nosquarteirões”.Nadescriçãodasdespesasporcadaenterramento,passa a haver frequentes menções à colocação do Santo Cristo na tribuna.

53 Ibid., fl. 193.54 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja,

Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fl. 53v. 55 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual

(das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 596.56 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja,

Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fls. 54v.‑55v.57 CAStro,MariadeFátima–A Irmandade e a Santa Casa da Misericórdia de Braga. Obras nas

Igrejas da Misericórdia e do Hospital e em outros espaços…, p. 102.

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Curiosamente, quando nesta época se refere uma sepultura, menciona‑se o nome do falecido, mas quando se refere catacumba, apenas surge a indicação do número.

Entretanto, o cemitério continuava por alargar, como era considerado necessário. Na sessão de 26 de Junho de 1858, presidida pelo Comendador Custódio de Faria Pereira da Cruz, por este provedor foi dito que tinha tentado de tudo para que Estevão Falcão Cota de Menezes cedesse terreno para alargarocemitério,massemsucesso.AMesadecidiuentãoqueasoluçãoeraexpropriar os desejados 15 metros do lado sul, a toda a largura do cemitério58. O processo demorou o seu tempo. Em 3 de Dezembro de 1859, quando o provedor era já o Conselheiro Francisco Manuel da Costa, por não se ter podido obter por convenção amigável a compra da porção de terreno na quinta de Estevão Falcão Cota de Menezes, contígua ao cemitério do hospital, decidiu‑se requerer a expropriação forçada59.

Este extremar de posições acabaria por favorecer um acordo. Estêvão Falcão Cota de Menezes e sua mulher, Maria José do Livramento Lopes deAzevedo, acederamavender16metrospelonascente e19metrospelopoente no terreno do Fujacal, “no fundo do cemitério, para o lado sul, na extensão e direcção da vinhas e parede do cemitério [...] em toda a largura do cemitério”. A escritura é de 22 de Janeiro de 1860 (tabelião AgostinhoMonteiro da Silva), tendo o vendedor dado procuração a seu irmão, Manuel Falcão Cota de Menezes. O preço foi de 400$000, considerando que o terreno tinha“muitasárvoresdevinha”60. Os vendedores obrigavam‑se, no prazo de um mês, “a demolir as grandes casas que no terreno vendido existem para habitação de caseiros e cultura, casa de lagar e adega, cortes da gado e mais aprestes, bem assim o portal de entrada, e retirar todos os materiais, que ficam pertencendo aos vendedores, a fim de ficar desimpedido e livre o terreno vendido”, pagando-lhe a Mesa 440$000 “em indemnização dos prejuízoscausados e para edificar de novamente as casas, precisas para a cultura e mais fins [...] ficando estes vendedores com a liberdade de edificarem na parede

58 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1853-1863, L.° 28, fl. 214v.59 Ibid., fl. 276.60 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual

(das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 602.

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divisória que se fizer no fundo do cemitério, ou meter cachorros para latas, ou dequalquermodoemadeirar”61.

Este contrato tinha de ser complementado com outro, pois o terreno adquirido era foreiro ao Cabido da Sé de Braga. Ora, a Misericórdia quis evitar o pagamento do laudémio e, para isso, entendeu que a melhor solução era fazer uma permuta. Em sessão de 28 de Junho de 1862, presidida pelo Comendador Joaquim José da Costa Rebelo (posterior Barão da Gramosa), é referido que as juntas de 28 de Abril e de 30 de Junho de 1860 haviamautorizado a Misericórdia a contratar com o Cabido a permuta do laudémio e mais direitos dominiais do terreno comprado a Estevão Falcão Cota Menezes e sua mulher, pelo direito que a Misericórdia tinha no “terreno do centro dos claustrosdaSé”,nãotendosidoexecutadaapermutaporfaltadelicençarégiaquanto ao foro, porque o Cabido negava‑se a pagar as despesas da obtenção da licença. Foi então decidido que a Mesa aceitasse, por escritura pública outorgada com o Cabido, o perdão do laudémio da dita compra feita pela escritura de 22 de Janeiro de 1860 e ao mesmo tempo desistisse do direito a fazer enterramentos no terreno do centro do claustro da Sé62, em “vista da legislaçãonovissimasobrecemiterios”,quenãoautorizavamenterramentosnaquele local, atendendo a ter o hospital um “cemiterio espaçoso o sufficiente paraos seusenterramentos”63.Apesardisso, segundo JoséViriatoCapelaeMartaLobodeAraújo,nointeriordaIgrejadaMisericórdiaaindanessaalturaeram sepultadas algumas crianças64. Este hábito iria terminar pouco tempo depois. Os tempos eram de mudança. Em 1862, a Misericórdia mandou mesmo substituir o esquife por um mais moderno, por ser o anterior muito pesado e estar“foradeusootransportedecadáveresemtumbas”65.

61 Ibid., p. 603.62 AMisericórdiamanteveaservidãoquepossuíanoreferidoespaço,comoéexplicadoem

CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513- -2013…, p. 503.

63 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1853-1863, L.° 28, fls. 370‑370v.64 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga,

1513-2013…, p. 503.65 Ibid.

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Por curiosidade, refira‑se que, nesse preciso ano de 1862, a Misericórdia de Vila Nova de Cerveira procurava criar um cemitério privativo junto à muralha da vila, que ainda não tinha cemitério público66. Tal cemitério não viria a ser concretizado, devido sobretudo à oposição do dono de uma propriedade confinante. Porém, nesta altura a Misericórdia do Porto estava a

66 O Commercio do Porto, n.º 49, Fevereiro de 1862.

Fig.2–JoaquimJosédaCostaRebelo,BarãodaGramosa(foto:@LuísFerreiraAlves).

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construir o seu cemitério privativo dentro do Cemitério Público do Prado do Repouso, depois de um pedido inicial à Câmara do Porto, em 1858, reforçado em 1860, sendo de 1861 o projecto para o cemitério privativo67. Este cemitério viria permitir o desmantelamento daquele que a Misericórdia do Porto tinha nas traseiras do seu hospital, destinado maioritariamente aos deslocados e pobres falecidos no dito hospital, assim como o desmantelamento de um outro cemitério situado bem próximo, destinado aos restos mortais daqueles que outrora morriam na praça pública por ordem judicial. O novo cemitério da Misericórdia do Porto estava já preparado para a colocação de monumentos, servindo os desejos de vários dos seus confrades e benfeitores.

AMisericórdiadeBragaviriaaseguiroexemplodoPorto,enãoodeViseu, onde, em meados da década de 1850, Câmara e Misericórdia uniram‑se para construir em conjunto o cemitério da cidade, ficando este logo atrás do hospital68.

Mas em Braga houve quem propusesse algo semelhante a Viseu, e vários anos antes. Em Março de 1844, respondendo a uma consulta do Governador Civil sobre a questão dos cemitérios no concelho de Braga, a Câmara não remeteu qualquer estatística, pois “nem um só cemitério” existia noconcelho, à excepção do pertencente ao Hospital de São Marcos, destinado ao enterramento dos pobres que faleciam naquele estabelecimento69. Ora, no início de 1845, segundo um artigo de opinião na imprensa, o cemitério do Hospital de São Marcos era “pequeno, mas decente, do serviço particular do mesmo hospital, objecto de consideração pública, e em dias assignalados doannofrequentadopormuitaspessoas”.Oarticulistaanónimopropunhaque se alargasse este cemitério, já que os directores do hospital eram tão ilustrados, ficando o cemitério público de Braga ao cuidado do hospital, que

67 Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal…, vol. I, tomo 2, pp. 91‑93. Veja‑se ainda SouSA,GonçalodeVasconcelose–Espaço, arte e memória. O cemitério da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Porto: Santa Casa da Misericórdia do Porto, 2010.

68 Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal…, vol. I, tomo 2, pp. 32‑37.

69 CApelA,JoséViriato–A Revolução do Minho de 1846. Braga: Governo Civil de Braga 1997, pp. 171‑182.

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dali poderia obter lucros, “pois vergonha é não haver na terceira Cidade do Reinoumcemitériopublico”70.

No início da década de 1860, ao contrário do que se possa pensar, algumas sepulturas no cemitério do Hospital de São Marcos foram ocupadas por gente com bens, como o negociante António JoaquimGomes de FariaPeixoto,em1865.Aliás,nesseano,jánocemitérioexistiriaummausoléudecerta dimensão. De facto, em 20 de Junho de 1863, a Mesa da Misericórdia de Braga analisou um requerimento do Comendador e Bacharel Custódio de Faria Pereira da Cruz (que foi deputado e Presidente da Câmara de Braga), na qualidade de herdeiro do seu falecido irmão, o Dr. Francisco de Faria Pereira da Cruz71. Nesse requerimento expunha‑se a pretensão do Dr. Francisco de Faria Pereira da Cruz, expressa no seu testamento, “que seu cadáver fosse depositado em uma catacumba do hospital de São Marcos até que se criasse o cemitério público, para onde queria fossem transferidos seus restos mortais e nele se fizesse um túmulo ou mausoléu de pedra ou mármore, deixando ao dito hospital a quantia de quatro contos de réis com vencimento de juro desde o dia do seu falecimento até ao seu efectivo pagamento e com a única obrigaçãodeduasprestaçõesvitalíciasdesetentaedoismilréis”72. Ora, como “ocemitériopúbliconãoestavacriadonemdissohaviamesperanças”e seachava determinado por Junta da Misericórdia de 30 de Dezembro de 1857 que se desse gratuitamente catacumba perpétua a qualquer benfeitor que deixasse ao hospital quantia excedente a 60$000, desde que o próprio ou seus herdeiros o exigissem, aquele testamenteiro solicitara à Mesa uma catacumba para sepultar o seu irmão. Foi‑lhe então concedida a catacumba n.º 44 “até que fossem transferidos seus restos mortais para o cemitério público”.AMesalembravaqueotestamenteiropoderiaoptarpordepositaros restos mortais “em túmulo ou mausoléu dentro do ângulo do quarteirão do cemitério próximo à dita catacumba, até que seja transferido para o cemitério

70 QUEIROZ,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal, vol. I, tomo 1, pp. 404‑405.

71 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 604.

72 Ibid., p. 601.

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Fig.3–MausoléudedicadoaoDr.FranciscodeFariaPereiradaCruz,hojesituadonaavenidaprincipal do Cemitério de Monte de Arcos, em Braga, e cuja conservação está a cargo doHospital de São Marcos. É possível que se trate de uma obra da oficina de Emídio Carlos Amatucci.Supomosqueagrade,emferrofundidoecópiademodelofrancêscomfachosinver‑tidosunidosporgrinaldas, seja coetâneadacolocaçãodestemausoléuemMontedeArcos.

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público,naformadotestamentodofalecido”73. Ora, terá sido esta a opção. Defacto,noCemitérioMunicipaldeMontedeArcos,aindahojesepodevero monumento dedicado ao Dr. Francisco de Faria Pereira da Cruz (Braga, 3 de Dezembrode1812–7deAbrilde1859)equeterásidoerigidoprimeiramenteno cemitério do hospital, ou dos Desprezos. No epitáfio, lê‑se que ele era Doutor emMedicinapelaUniversidadede Paris. A tese, publicadanaquelacidade dois anos antes de morrer, era sobre a encefalite aguda. O mausoléu écompostoporumacolunacaneladaapoiadaempedestalclássico.Acolunaé cortada superiormente, servindo de remate os símbolos da Medicina e da Farmácia: a taça e o bastão de Esculápio, com a respectiva serpente unindo estes dois elementos.

73 Ibid., p. 602.

Fig. 4. Pormenor do Mausoléu dedicado ao Dr. Francisco de Faria Pereira da Cruz.

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O cemitério do Hospital de São Marcos cada vez menos se conotava com os pobres. Em Setembro de 1867, quando faleceu um filho de Manuel José do Raio, os restos mortais vieram da Póvoa de Varzim para Braga onde, em Maximinos, o caixão foi passado para um carro muito luxuoso que o levou até à porta da Igreja do Hospital, sendo em seguida acompanhado ao “cemitério dos Desprezos”, onde terá sido encerrado numa catacumba privativa74. Ironicamente, Manuel José do Raio poderia vislumbrar a sepultura do filho todos os dias, a partir de casa.

Curiosamente, em Novembro de 1868 há notícia de Francisca Joana E.deNoronha, casada, ter ficadona sepultura “n.º1da capellamor”, como guisamento de 181missas – valor que ressalta nesta fonte documentalerevelaalguémdefamíliaabastada.Ora,emAbrilde1869háreferênciaàsepultura “n.º2da capellamorda igreja”,que supomos fosseda igrejadohospital. Não se refere quem foi o falecido que a ocupou, mas também era alguém com posses, pois são mencionadas 123 missas. Em Fevereiro de 1870, háreferênciaà“sepulturadeD.Manoel,daCasadaPrelada,nacapellamor”com o guisamento de 251 missas. Os registos de guisamentos referentes a sepulturas terminam em 30 de Junho de 1870, com um falecido que foi para a catacumba n.º 55 do cemitério do hospital75. Nesse mês, é benzido o cemitério municipalqueaindahojeexiste,emMontedeArcos.

O actual cemitério da Misericórdia de Braga

Com a abertura do cemitério público de Braga, a existência do Cemitério dos Desprezos era colocada em causa. A Misericórdia de Braga procurouadaptar‑se e, em 1872, estabeleceu o preço de $100 para os falecidos no Hospital de São Marcos que fossem sepultados no cemitério público76.A construçãode um cemitério privativo contíguo ao cemitério público só foi decidida em

74 O Commercio do Porto, n.º 208, 13.09.1867.75 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Recibo dos Guizamentos da Igreja,

Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118, fls. 65‑66.76 CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga,

1513-2013…, p. 504.

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187377. O projecto é de Fevereiro de 1875 e foi delineado pelo Eng. Joaquim Pereira da Cruz, tendo obrigado à ampliação do cemitério municipal para uma cota mais alta78.

Em9deAbrilde1875,oConselheiroManuelJustinoMarquesMurta,queera então o provedor, apresentou aos mesários a planta e o projecto descritivo docemitérioprivativoque“temdeserconstruídojuntoaocemitériopúblico”,incluindo o orçamento, tudo elaborado pelo engenheiro da Câmara:

–aquisiçãodecercade314m2 de terreno. . . . . . . . . . . . . . . 2.826$000

–demoliçãoetransportedascatacumbasecampasdepedra que existiam no cemitério dos Desprezos . . . . . . . 264$960

–reconstruçãodasmesmas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 852$060

–“facturadeumacapellacomaltar,cruzebrazãodemar-more” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.341$840

–escavações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102$000

–umempregadoparafiscalizar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72$000

–“eventuais” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40$41579

AMesadecidiu entãopedir aoConselhodeDistrito apermissãoparaelaborar um orçamento suplementar, pedido esse que seria acompanhado dos desenhos. O engenheiro da Câmara receberia 45$000 pelo seu trabalho de fazer o projecto80.

Para vedar o patamar onde foi estabelecida a secção privativa da Misericórdia, foi contratada a Fundição do Ouro, do Porto, a qual manteria relações privilegiadas com o engenheiro da Câmara de Braga, Joaquim Pereira da Cruz. De facto, este foi o procurador de Luís Ferreira de Sousa Cruz (proprietário da Fundição do Ouro) no contrato de 24 de Setembro de 1875 que previa a execução de 18 pedestais fundidos, 18 sarcófagos ou urnas funerárias

77 Ibid.78 Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em

Portugal…, vol. I, tomo 2, pp. 372‑374.79 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1873-1879, L.º 31, fl. 47.80 Ibid.

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Fig.5eFig.6–CapeladaMisericórdia,noCemitériodeMontedeArcos.

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ocas no interior para ossadas, vários metros de grade chamada “cruz de Santo André”emais42colunelosencimadoscompequenasurnas.Estaspeçasteriamde estar colocadas até 15 de Dezembro de 1875, excepto a grade em cruz de santoAndréeoutraspeças,quetinhamoprazodeassentamentodeumano.O gradeamento e as urnas em ferro da secção privativa da Misericórdia de Braga são, pois, de 1875‑187681.

Curiosamente, a secçãodaMisericórdia emMontedeArcosnão ficoutotalmente vedada com grade, como sucedeu com outras secções privativas deirmandadesemcemitériosdonortedopaís.Antesaproveitou-seodeclivee criou‑se um cemitério catacumbal alongado, com uma fila de sepulturas em frente, a todo o comprimento, ficando a capela sensivelmente ao centro. Aideiaera,certamente,trazerascatacumbasdoantigocemitériodoHospitalde São Marcos e algumas das lápides daquelas que eram perpétuas82.

81 Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal…, vol. I, tomo 2, pp. 372‑374.

82 Ibid.

Fig.7–DetalhedasarmasempedralioznaCapeladaMisericórdia,MontedeArcos.

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Assim, em Maio de 1875, decidiu-se mandar anunciar nos jornais aremoção das ossadas que se achavam no Cemitério dos Desprezos, para um novo depósito que “se tem a fazer”adjuntoaocemitériopublico.Osinteressadostinham 60 dias para reclamar. Quanto aos que tivessem catacumbas perpétuas no Cemitério dos Desprezos, ir‑se‑ia enviar cartas a avisar os concessionários, para estes transferirem quando queirão, os restos mortais daquelles para algum jazigo próprio de família83. Embora não seja explicitamente mencionado, os jazigosdefamíliaseriamnapartemunicipaldocemitériodeMontedeArcos,pois a parte da Misericórdia não contemplava esta tipologia.

83 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1873-1879, L.º 31, fl. 51v.

Fig.8–DetalhedaplantadeBragade1883-1884,ondeestáassinaladootalhãodaMisericórdianoCemitériodeMontedeArcos(BAndeirA, Miguel Sopas de Melo, ob. cit.).

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Fig.9,Fig.10eFig.11–OcemitériodaMisericórdiadeBragasitua-senumpatamarintermédiodoCemitériodeMontedeArcos,oqualencontra-sevedadodegradenosdesníveis.Embaixoenas escadarias que permitem o acesso ao patamar superior, vemos grades com módulo em cruz deSantoAndré,comumacoroadedormideirasnocentro,rematadasporurnasdrapeadascomcoroa de flores no bojo. Em cima, as grades são de arcos entrelaçados, em panos intercalados por pilastras sobrepujadas por urnas ossuárias apoiadas em esferas, encimadas por fogaréus nos 4 cantos e uma serpente enrolada sobre si mesma, no topo, tudo em ferro fundido. Na frente de cada urna existe um relevo com um facho, uma gadanha e uma serpente.

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Fig. 10

Fig. 11

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Fig.12–InteriordacapeladaMisericórdia,noCemitériodeMontedeArcos.

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Fig.13–InteriordacapeladaMisericórdia,noCemitériodeMontedeArcos.

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Fig.14–InteriordacapeladaMisericórdia,noCemitériodeMontedeArcos.

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Em 7 de Março de 1879, o Provedor, Dr. Domingos Moreira Guimarães informou a Mesa de que a capela do cemitério privativo em Monte de Arcos“seachavaporconcluir,deondeprovinhacertodesaireeprejuízosecontinuasseaconservar-senomesmoestado”.Foidecididoestudarocustodaconclusãodaobra,“parainformarnapróximaMesa”84.

Em 10 de Novembro de 1881, foi nomeada uma comissão para examinar o estado da capela do cemitério da Misericórdia e “mandar nela fazer as obrasmaisurgentementereclamadas”.A1deMaiodoanoseguinte,foramapresentadasascontasdadespesafeitaporAntónioJoaquimPereiradeMoraisno cemitério privativo e capela do mesmo, perfazendo 198$90585.

Quanto ao Cemitério dos Desprezos, em 1882 foi ajardinado e passou a servir para os convalescentes86. Porém, em Agosto de 1881 decidira-seconstruir novas enfermarias, tendo sido incluído, no orçamento do hospital para o ano económico de 1881‑1882, a verba de seis contos de réis para os estudos e começo da construção de novas enfermarias no terreno do antigo cemitério. Estas enfermarias não iriam ocupar todo o terreno do antigo cemitério, pois em Maio de 1882 refere‑se que era também necessário solicitar autorização do Governo para comprar um pedaço de terreno “do quintal que foidoFalcãoequehojepertenceàJuntaGeraldestedistrito”87.

Em 4 de Fevereiro de 1893, a Misericórdia resolveu mandar colocar uma ramada de ferro em volta do antigo cemitério, abrindo‑se concurso para tal fim. Em 23 de Fevereiro desse ano, foram apreciadas as duas propostas apresentadasparaacolocaçãodaramada.AdeAntóniodaSilvaRamosfoiaescolhida88. Em 31 de Março de 1897, o Visconde de Sinde solicitou permissão para introduzir “no muro do antigo cemitério que faceia com a sua propriedade osbarrotesdeumaramada”,oquefoiconcedido89.

84 Ibid., fl. 185v.85 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual

(das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 605.86 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1879-1883, L.º 32, fl. 120.87 CAStro,MariadeFátima–A Irmandade e a Santa Casa da Misericórdia de Braga. Obras nas

Igrejas da Misericórdia e do Hospital e em outros espaços…, pp. 156‑157.88 Ibid.89 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual

(das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 604.

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A ocupação do novo cemitério e o seu alargamento

NocemitérioprivativodaMisericórdiaemMontedeArcos,asprimeirascatacumbas ocupadas foram as situadas a nascente da capela, embora algumas mais perto da capela, do lado poente, também tenham tido ocupação desde finaisdadécadade1870.Aocupaçãotendia,pois,aserfeitapreferencialmentejuntoàcapela,emaisparanascentedoqueparapoente.Aocontráriodoquese possa pensar, vários restos mortais trazidos do Cemitério dos Desprezos foram encerrados numa mesma catacumba90.

Em muitos casos, estas catacumbas serviram de depósito temporário e os caixões foram depois encerrados em jazigos particulares nas secções municipais do Cemitério deMonte de Arcos, como sucedeu com os restosmortais do Visconde de Montariol, por exemplo. Pode‑se, pois, concluir que o modelo de cemitério catacumbal, o qual a Misericórdia de Braga já tinha no seu anterior Cemitério dos Desprezos, estando condicionado em Monte de ArcosporaMisericórdiatersomenteumaestreitafaixadeterreno,levouaquemuitos irmãos preferissem jazigos onde pudessem ter monumentos erigidos a seu gosto, o que no talhão da Misericórdia não era possível. É que, além das catacumbas, todo o espaço pertencente à Misericórdia era ocupado com sepulturas temporárias, não se prevendo jazigos de família, embora uma das sepulturas–an.º31,juntoàcapela–tenhasidoconcedidaperpetuamente,em atenção a igual concessão feita no Cemitério dos Desprezos, de onde foramtransferidososrestosmortaisdeJoséAntónioPereiraMatosdoVale.Por outro lado, no espaço das sepulturas 32 e 33 foi construído um ossário91. Se não tivesse sido assim, a Misericórdia de Braga ver‑se‑ia com problemas de espaço poucos anos depois de inaugurado o seu novo cemitério, visto que todas as catacumbas foram sendo ocupadas até finais da década de 1880 e praticamente todas as sepulturas temporárias tiveram pelo menos uma utilização antes do fim do século XIX.

Curiosamente, e tal como sucedeu em outros casos de cemitérios priva‑tivos oitocentistas no norte de Portugal (ou mesmo em cemitérios de adro,

90 ArquivodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga(doravanteASCMB),Livro do cemitério.91 ASCMB,Livro do cemitério.

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depois desmantelados), foram autorizadas sepulturas especiais mesmo junto à porta da capela. Trata‑se de duas campas em pedra lioz com inscrição: umadedicadaaoCónegoManuelAntóniodaCosta,benfeitordoHospitaldeSão Marcos, falecido em Fevereiro de 1888 e outra, a mais pequena, dedicada ao Comendador da Ordem de Cristo Fernando de Oliveira Guimarães, fundador do AsilodeEntrevadosdeS.JoséebenfeitordoHospitaldeSãoMarcos,oqualjáhavia sido encerrado numa sepultura perpétua no Cemitério dos Desprezos92. Possivelmente, terão saído da oficina de mármores Teixeira da Silva, de Braga.

Em 1905, já a Mesa da Misericórdia pensava em alargar o cemitério93. Porém, só em 10 de Dezembro de 1908 se deliberou tentar um acordo com a Câmara de modo a que “todo o terreno fronteiro à capela e catacumbas do cemitério privativo [...], separado do resto do cemitério por muro de suporte encimadoporgradesdeferro,ficasseapertenceràMisericórdia”.Esseterrenoera muito conveniente, não só porque necessário para sepulturas, mas também porque, se a Câmara o vendesse a outros, “resultava afeiar o que a Misericórdia ali tem”. Por outro lado, se a Misericórdia não ficasse com essa faixa de

92 ASCMB,Livro do cemitério.93 ADB,FundodaSantaCasadaMisericórdiadeBraga,Actas, 1903-1909, L.º 36, fls. 148 e 164.

Fig.15–CampasempedraliozàfrentedacapeladocemitériodaMisericórdia.

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terreno, quando precisasse de mais sepulturas teria de as adquirir a grande distância da sua capela. Em troca desta cedência, a Misericórdia proporia não criar “embaraços à Câmara no alargamento da rua de S. Lázaro, fronteira ao hospital”,alargamentoessequeiriaocuparespaçospertencentesaoextintoConvento dos Remédios e dos quais a Misericórdia era proprietária94.

Em 7 de Janeiro de 1909, o Provedor lembrou a necessidade de se adquirir a faixadeterreno“nafrenteelargodocemitérioprivativo”daMisericórdia,“desdeas sepulturas rasas de pedra até à grade que fica em frente e desde a escada do poente à do nascente, a fim de nele se abrirem mais sepulturas e construir um depósitoparaosossosecaixõesdechumboqueseretiraremdascatacumbas”.AMesaconcordou,tendosidoresolvidofazerrequerimentoàCâmara95.

Arte e Património no Cemitério da Misericórdia de Braga

Uma vez que muitas catacumbas foram cedidas mais do que uma vez, são poucas as lápides antigas subsistentes no cemitério da Misericórdia de Braga.

Destacamos, em primeiro lugar, a lápide da catacumba n.º 23. Para esta catacumba, em 15 de Julho de 1876, foram trasladados os restos de Rosa Maria Teixeira,mulherdeJoséJoaquimdaFonseca(11deJaneirode1819–22deFevereiro de 1891), Cavaleiro da Ordem de Cristo96.Alápidepossuiamarca“Amatucci”.Podetratar-sedeEmídioCarlosAmatucci,ouentãodoseufilhoJoséCarlosdeSousaAmatucci.Naprimeirahipótese,alápideterávindodoCemitériodosDesprezos,vistoqueEmídioCarlosAmatuccimorreucercade3 anos antes do cemitério da Misericórdia de Braga ter sido construído em MontedeArcos.EstaprimeirahipóteseparecesercongruentecomofactodeJoséAmatucciraramenteterassinadosócomoapelido,aocontráriodoseupai, e ainda com o facto da largura da lápide ser visivelmente inferior ao do vão da catacumba. De uma forma ou de outra, pelo tipo de caracteres e pelo facto de aludir a José Joaquim da Fonseca, cujos restos só deram entrada nesta catacumba na década de 1890, quando a oficina Amatucci já nem existia,

94 CAStro, Maria de Fátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910)…, vol. III, p. 607.

95 Ibid.96 ASCMB,Livro do cemitério, fl. 22.

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supomos que a inscrição terá sido insculpida nessa década. É possível que a lápide não tivesse qualquer inscrição inicialmente, até porque predominam os símbolos: ao centro, vemos uma figura dolente empunhando um facho, que se debruça sobre uma urna drapeada. Trata‑se de uma iconografia usada na época, por exemplo em notícias necrológicas e convites para funerais. Em redor, temos ramagens misturando dormideiras com hera, por um lado aludindo à morte como uma espécie de longo sono, e por outro aludindo à sombra, como metáfora da morte. Trata‑se de uma das lápides de catacumba mais interessantes em Portugal.

Aoladodesta,comon.º24,temosalápidededicadaaManuelJosédaCruz Machado (13.06.1829–5.11.1864), natural de S. Martinho de Dumee negociante no Rio de Janeiro. Também em pedra lioz, esta lápide pode ter sido trazida do cemitério dos Desprezos, de onde vieram os restos mortais em Julho de 187697, até por não encaixar perfeitamente no vão da catacumba. Por outro lado, nos cantos há marcas de ornatos que terão sido retirados. José AntóniodaCruzMachado,irmãodofinado,foiquemmandoufazeralápide,

97 ASCMB,Livro do cemitério, fl. 22v.

Fig.16,Fig.17eFig.18–Lápidedacatacumban.º23,executadanaoficinaAmatucci,doPorto.

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a qual ostenta ao centro uma coroa de perpétuas em mármore, havendo nos flancos duas tabelas, nas quais se dispõe a inscrição. É possível que a coroa, por ser de pedra diferente, tenha sido colocada mais tarde, mas será ainda do século XIX, pelo seu estilo.

Outra das lápides mais antigas é a da catacumba n.º 28. Em Julho de 1876, foram para aqui transferidos, do Cemitério dos Desprezos, os restos mortais deSeverinaÂngeladeSantaAna98, nascida em Belém do Pará a 23 de Junho de1799,aqualfaleceuemSoutelo(VilaVerde)a30deAbrilde1862.Emcadaumdoscantosdalápideexisteumramocomduassaudadeseumaperpétua–solução que pode ser encontrada em mais catacumbas na parte municipal do cemitériodeMontedeArcos.Alápideéemliozepodetersidoexecutadaparacolocação no Cemitério dos Desprezos, embora aqui assente perfeitamente no vão da catacumba, pelo que poderá também ter sido feita em 1876.

As lápides das catacumbas comos números 12, 13, 14 e 15, tambémsão das mais antigas subsistentes no cemitério privativo da Misericórdia. Embora a catacumba n.º 12 tenha recebido primeiramente os corpos de Manuel José Vieira da Rocha (depositado em 17 de Dezembro de 1883) e de Ana Angelina Teixeira de Magalhães (falecida em 1905), passou a serperpétua, com a deposição nela dos restos mortais de José Maria de Sousa (9.05.1833–12.12.1906)99. Em mármore e executada pela oficina Teixeira, de Braga,estaéalápidemaisefusivadocemitérioprivativo.Aocentro,destaca-seo busto do finado, flanqueado por uma palma e um ramo de oliveira.

Quanto à catacumba n.º 13, em 1879 foram aqui encerrados os restos de Frei Francisco da Natividade Alves Vicente (17.05.1809–26.01.1861),Bacharel em Direito, deputado às Cortes e monge da Ordem de S. Jerónimo.

98 ASCMB,Livro do cemitério, fl. 24v.99 ASCMB,Livro do cemitério, fl. 12.

Fig.19–Lápidedacatacumban.º24.

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Fig.20eFig.21–Lápidedacatacumban.º28.

Os seus últimos despojos estavam na catacumba 15 desde 1876, provenientes do Cemitério dos Desprezos, tendo em 1879 sido trocados com os restos do benfeitoreprovedorLourençodeMagalhãesAraújoPimentel,quepassarampara a catacumba n.º 15100.A lápide,assinalandocomumacruzo factodofinado ter sido presbítero, inclui também uma coroa de louros e uma coroa de perpétuas, ambas fitadas. Em pedra lioz e encaixando perfeitamente no vão da catacumba, não fica claro se a lápide já existia no Cemitério dos Desprezos ou se foi feita na segunda metade da década de 1870.

100 ASCMB,Livro do cemitério, fls. 13 e 15.

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Quanto à lápide da catacumba n.º 14, trata‑se da mais simples de todas as mais antigas neste cemitério. Em pedra lioz, a lápide inclui uma inscrição que alude a Manuel José da Silva Guimarães. Porém, nesta catacumba, em Outubro de 1876, foram encerrados os restos do benfeitor Manuel José da Silva

Fig.22eFig.23–Lápidedacatacumban.º12.

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Guimarães e também de Florinda Rosa de Lima, provenientes do Cemitério dos Desprezos101.

Também simples e em pedra lioz, embora ornamentada com um friso clássico, é a lápide da catacumba n.º 15, dedicada a Lourenço de Magalhães AraújoPimentel,falecidoem4deMaiode1878,beneméritodoHospitaldeSão Marcos.

Porúltimo,assinalemosalápidedacatacumban.º38,dedicadaaAntónioMaria de Araújo Esmeriz, falecido em 14 de Agosto de 1904. Em lousa, esimples, esta lápide permite‑nos ter uma ideia de como terão sido algumas das lápidesmaisantigasnestecemitério,depoissubstituídas.Aindadentrodo gosto do século XIX, e decorada efusivamente no mármore, é a lápide dacatacumban.º41,dedicadaaAntónioGonçalvesFerreiraBraga,“grandebenemérito”doHospitaldeSãoMarcos,falecidoem1927.

101 ASCMB,Livro do cemitério, fl. 14.

Fig.24–Lápidedacatacumban.º13.

Fig.25–Lápidedacatacumban.º14.

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Fig.26–Lápidedacatacumban.º15.

Fig.27–LourençodeMagalhãesAraújoPimentel(fotodeJoséAlbertoBragadeSousaRibeiro).

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Fontes documentais

Arquivo Distrital de Braga (ADB)

Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Braga

Actas, 1799-1806, L.º 22.

Actas, 1806-1817, L.º 23.

Actas, 1826-1834, L.º 25.

Actas, 1853-1863, L.° 28.

Actas, 1873-1879, L.º 31.

Actas, 1879-1883, L.º 32.

Recibo e despeza, L.º 688, 1810‑1811(‑1848)

Recibo dos Guizamentos da Igreja, Capella das Almas e Semitério do Hospital de S. João Marcos, L.º 118.

Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Braga (ASCMB)

Livro do cemitério

Fig.28–Lápidedacatacumban.º38.

Fig.29–Lápidedacatacumban.º41.

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joSé FrAnciSco FerreirA Queiroz

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Periódicos

O Commercio do Porto, 1862.

O Commercio do Porto, 1867.

Bibliografia

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CApelA,JoséViriato;ArAújo,MariaMartaLobode–A Santa Casa da Misericórdia de Braga, 1513- -2013. Braga: Santa Casa da Misericórdia de Braga, 2013.

CApelA,JoséViriato–A Revolução do Minho de 1846. Os difíceis anos de implantação do Liberalismo. Braga, Governo Civil de Braga, 1997.

CAStro,MariadeFátima–A Irmandade e a Santa Casa da Misericórdia de Braga. Obras nas Igrejas da Misericórdia e do Hospital e em outros espaços. Braga: Santa Casa da Misericórdia de BragaeAutora,2001.

CAStro,MariadeFátima– A Misericórdia de Braga. Assistência Material e Espiritual (das origens a cerca de 1910),vol.III.Braga,SantaCasadaMisericórdiadeBragaeAutora,2006.

Queiroz,JoséFranciscoFerreira–Os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal, vol. I,tomo1,tesedeDoutoramentoemHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeLetras da Universidade do Porto, 2003.

Queiroz, JoséFranciscoFerreira–OsAmatucci:trêsgeraçõesdeumafamíliadeartistas.In:Actas do VII Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte “Artistas e Artífices e sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa”, (disponível em <http://www.archive.org/download/ArtistasEArtificesEASuaMobilidade/ArtistasEArtficesColquio.pdf>).

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SilvA, António Delgado da–Collecção da Legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenações. Legislação de 1802 a 1810. Lisboa, Typografia Maigrense, 1826.

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