os “caminhos da cana-de-aÇÚcar” na educaÇÃo: … · da colonização que se deu no século...

15
1 OS “CAMINHOS DA CANA-DE-AÇÚCAR” NA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DO PROJETO ESTUDO DOS MUNICÍPIOS CANAVIEIROS Rene Gonçalves Serafim Silva Universidade Federal de Uberlândia - UFU [email protected] Natália Lorena Campos Universidade Federal de Uberlândia - UFU [email protected] Resumo O presente trabalho tem como objetivo principal analisar o discurso empregado pelas empresas do agronegócio canavieiro presente no material didático voltado para as escolas públicas dos municípios participantes do projeto estudo “Municípios Canavieiros”, além de apresentar um breve histórico da cana-de-açúcar do período colonial até os dias atuais. Com base nas análises realizadas, o material didático distribuído nos 100 municípios canavieiros para ser trabalhado em escolas públicas é de fato uma forma de expansão do agronegócio canavieiro, explorando os territórios da educação para consolidação e manutenção de seus discursos e ideologias. Palavras-chave: Cana-de-açúcar. Material didático. Discurso. Educação. Introdução O Brasil se configura no cenário mundial como grande produtor agrícola e exportador de alimentos. Nesse sentido, o modelo do agronegócio está presente no desenvolvimento do país a partir do processo de industrialização da agricultura, que subordina a natureza ao capital. Com a industrialização da agricultura, temos o desenvolvimento das agroindústrias, caracterizadas pelos inúmeros investimentos tecnológicos, mecanização e outros fatores que modernizaram o campo. No presente trabalho, trabalharemos com as agroindústrias canavieiras, que tem se expandido em ritmo acelerado nos últimos anos, utilizando imensas áreas para sua produção. Mais do que tratar dos impactos da monocultura canavieira no modo de vida camponês, o objetivo desse trabalho é analisar o discurso das entidades representantes do agronegócio canavieiro que estão envolvidas em um projeto em escolas públicas de 100 municípios - “municípios canavieiros” - onde a prática da cultura da cana-de-açúcar está fortemente presente. O projeto é voltado para séries finais do ensino fundamental e é constituído de um material didático distribuído aos professores, para ser difundido em suas respectivas escolas.

Upload: vodang

Post on 23-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

OS “CAMINHOS DA CANA-DE-AÇÚCAR” NA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DO PROJETO ESTUDO DOS MUNICÍPIOS CANAVIEIROS

Rene Gonçalves Serafim Silva Universidade Federal de Uberlândia - UFU

[email protected]

Natália Lorena Campos Universidade Federal de Uberlândia - UFU

[email protected]

Resumo O presente trabalho tem como objetivo principal analisar o discurso empregado pelas empresas do agronegócio canavieiro presente no material didático voltado para as escolas públicas dos municípios participantes do projeto estudo “Municípios Canavieiros”, além de apresentar um breve histórico da cana-de-açúcar do período colonial até os dias atuais. Com base nas análises realizadas, o material didático distribuído nos 100 municípios canavieiros para ser trabalhado em escolas públicas é de fato uma forma de expansão do agronegócio canavieiro, explorando os territórios da educação para consolidação e manutenção de seus discursos e ideologias. Palavras-chave: Cana-de-açúcar. Material didático. Discurso. Educação. Introdução O Brasil se configura no cenário mundial como grande produtor agrícola e exportador

de alimentos. Nesse sentido, o modelo do agronegócio está presente no

desenvolvimento do país a partir do processo de industrialização da agricultura, que

subordina a natureza ao capital. Com a industrialização da agricultura, temos o

desenvolvimento das agroindústrias, caracterizadas pelos inúmeros investimentos

tecnológicos, mecanização e outros fatores que modernizaram o campo.

No presente trabalho, trabalharemos com as agroindústrias canavieiras, que tem se

expandido em ritmo acelerado nos últimos anos, utilizando imensas áreas para sua

produção. Mais do que tratar dos impactos da monocultura canavieira no modo de vida

camponês, o objetivo desse trabalho é analisar o discurso das entidades representantes

do agronegócio canavieiro que estão envolvidas em um projeto em escolas públicas de

100 municípios - “municípios canavieiros” - onde a prática da cultura da cana-de-açúcar

está fortemente presente. O projeto é voltado para séries finais do ensino fundamental e

é constituído de um material didático distribuído aos professores, para ser difundido em

suas respectivas escolas.

2

Como metodologia do trabalho, foi analisado o material didático distribuído, os

objetivos do projeto, as empresas patrocinadoras, denominadas de “parceiros”, a fim de

compreendermos a forma que esse ensino será transmitido aos alunos. A principal

preocupação é em relação ao discurso do agronegócio que está em constante debate na

questão agrária atual. Analisando o material, nota-se que este discurso está voltado

somente para o lado positivo, não levando em consideração os impactos gerados pelas

monoculturas, que necessitam cada vez mais de extensas áreas para sua produção,

apropriando de territórios camponeses, promovendo a exclusão do pequeno produtor

rural no desenvolvimento do capital. São esses alunos, filhos de trabalhadores rurais em

usinas de cana-de-açúcar, os excluídos em prol do desenvolvimento econômico do país,

o foco principal do discurso.

A produção canavieira no Brasil: da colonização até os dias atuais Não é de hoje que a cultura da cana-de-açúcar tem sua significativa importância no país.

Ela foi uma das primeiras atividades produtivas e econômicas no Brasil desde o início

da colonização que se deu no século XVI e ainda se configura como uma atividade de

grande importância no cenário econômico nacional, tanto na produção de açúcar, etanol

e energia. O Brasil é o país que possui a maior produção de cana-de-açúcar no mundo.

Seu início ocorreu na Zona da Mata Nordestina voltada à produção de açúcar que era o

principal produto de exportação nos séculos XVI e XVII (período colonial e primeiras

décadas da fase republicana).

Com o processo de produção de açúcar, o país obteve um desenvolvimento técnico da

produção, que fez com que outros ramos industriais se desenvolvessem. A produção de

açúcar no Brasil, assim como posteriormente a de etanol, passou por momentos de altos

e baixos ao longo dos anos. Em 1875 a produção açucareira entra em declínio, uma vez

que a Europa passou a produzir açúcar a partir da beterraba, tornando-se independente

da importação do açúcar. O desenvolvimento da cafeicultura também foi responsável

pelo declínio da cultura canavieira. O cultivo da cana-de-açúcar retomou sua

importância quando a produção cafeeira entrou em crise. Nesse período, houve um

incentivo para a produção de cachaça e uso da cultura canavieira para alimentação

animal (gado leiteiro).

No final da década de 1920 e início da década de 1930 houve uma migração da

produção açucareira do Nordeste para o Centro-Sul, mais precisamente São Paulo e Rio

3

de Janeiro. Durante os anos 1930 houve uma preocupação pelo governo em criar

políticas públicas como forma de “proteção” ao setor, tais como implantação de

fábricas, aquisição de terras, plantio das lavouras e obras de infraestrutura necessárias.

Foi nesse período que se iniciou a produção de álcool para fins combustíveis.

O Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA criado em 1933 teve como intenção dirigir,

intervir, fomentar e controlar a produção de açúcar e álcool do país (BRAY;

FERREIRA; RUAS, 2000, p. 14), que se estendeu até a década de 1970. O objetivo

principal do IAA era “regular o mercado de açúcar via usos alternativos para a cana e

para os subprodutos de seu processamento industrial, incorporando funções de fomento

à diversificação das usinas, obrigando-as a destinar parte da matéria-prima à produção

de anidro” (VIAN, 2003, p. 74). O IAA controlava a produção de açúcar através das cotas. Inicialmente eram baseadas na capacidade instalada de cada unidade produtiva e nas previsões de crescimento do mercado. A instalação de novas unidades e a expansão das já existentes devia ser previamente autorizada pelo IAA. Mas essa obrigatoriedade não era respeitada não era respeitada pelos grandes grupos do setor, principalmente os paulistas (VIAN, 2003, p. 76).

No contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), houve incentivos à produção de

álcool combustível devido à dificuldade de exportação do açúcar e racionamento da

gasolina. A mudança do foco da produção, ora para o açúcar, ora para o álcool, era uma

estratégia utilizada pelas usinas que passavam a produzir com maior intensidade o

produto que estava mais em alta nos determinados períodos econômicos. Devido à

necessidade de incorporação de áreas produtivas, destacou-se a expansão da

agroindústria canavieira em Piracicaba, interior de São Paulo, com a criação da primeira

fábrica brasileira de equipamentos para atender a produção de açúcar. Ainda nesse

contexto, as usinas paulistas foram incentivadas a ampliar sua produção de açúcar e

álcool para abastecer o mercado interno e possuíam melhores condições que as usinas

nordestinas (que já estavam saturadas) para atender a demanda de açúcar,

principalmente no Centro-Sul. A década de 1950 foi marcada pela expansão da agroindústria canavieira, sobretudo em São Paulo, ocupando terras anteriormente destinadas ao cultivo do café, mantendo a estrutura fundiária vigente e, aos poucos, reforçando sua concentração. A partir desta década, o estado de São Paulo tornou-se o maior produtor de açúcar do país e, pela primeira vez desde o período colonial, Pernambuco perdeu a sua primazia. (SANTOS, 2009, p. 110).

4

Com a modernização da agricultura após a década de 1960, houve um movimento

expansionista caracterizado pelo expressivo crescimento econômico e pelo grande

avanço tecnológico. Como aponta Hespanhol (2008), a partir da década de 1950, a

Revolução Verde derivou diretamente do modelo de desenvolvimento produtivista

predominante até o final dos anos 1970 o que fez com que a produção e produtividade

agrícola se expandissem significativamente. Apesar do aparente sucesso da modernização da agricultura, o passivo ambiental dela decorrente é muito grande. A expansão de monoculturas e o uso indiscriminado de máquinas, implementos, fertilizantes químicos e de biocidas comprometeram a qualidade ambiental de vastas áreas dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos (HESPANHOL, 2008, p. 372).

O processo expansionista da agricultura e as monoculturas fizeram surgir questões sobre

os problemas ambientais e sanitários surgidos, além de que “a agricultura moderna

também não levou a superação do problema da fome no planeta, apesar de ter havido a

ampliação da oferta de alimentos, os problemas relacionados à sua distribuição

perduraram e até se agravaram” (HESPANHOL, 2008). Do ponto de vista ambiental, o

incremento da produção de alimentos, fibras e agrocombustíveis para fazer frente à

demanda internacional está sendo realizado com base neste modelo de

desenvolvimento, de forma insustentável, o que abre brecha para críticas de

ambientalistas a esse modo de produção, com alto avanço tecnológico. Essa

modernização da agricultura representa a modernização capitalista no movimento

constante de auto-expansão e reprodução do capital.

A década de 1970 foi marcada por discussões a respeito do esgotamento do petróleo

(Primeiro choque do petróleo), onde surgiu a preocupação mundial em relação à forma

de produção e consumo de uma nova fonte de energia. Com isso, tem-se o intento dos

combustíveis alternativos, menos prejudicial ao meio ambiente e que suprisse a

necessidade mundial, podendo ser uma alternativa de substituição da matriz energética

do país. Foi nesse período e a partir dos desdobramentos econômicos positivos da união

entre indústria e agricultura que o governo brasileiro criou o Programa Nacional do

Álcool – PROÁLCOOL (1975 a 1985) como forma de aumentar a produção de etanol e

incentivar o seu uso.

O Proálcool foi um programa classificado como bem-sucedido oficialmente implantado

no governo Geisel, em 1975, sob o período da ditadura militar, com o objetivo de

estimular a produção de álcool em substituição à gasolina, derivada do petróleo e que

5

estava passando por grave crise econômica, por ser um combustível não renovável,

podendo esgotar-se. Sua primeira fase corresponde de 1975 a 1979 onde surgiram os

primeiros automóveis movidos exclusivamente a álcool. Assim, o governo brasileiro

investiu fortemente nas destilarias anexas1 havendo um crescimento na produção de

álcool anidro2 para ser misturado à gasolina.

Sua segunda fase corresponde ao período do Segundo choque do petróleo (1979), mais

significativo em relação ao seu impacto negativo à economia mundial. Nesse período

houve uma maior necessidade na produção de álcool combustível com foco maior para

a produção do hidratado3. Foi em sua segunda fase que o programa deslanchou e obteve

sucesso com a crescente produção de álcool. Nessa fase, o incentivo era à implantação

de destilarias autônomas4 e a produção de álcool era mais rentável em relação à de

açúcar. Houve um crescimento de unidades instaladas no Oeste e Nordeste de São

Paulo, em Goiás e no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. “Entre 1981 e 1985 foram

implantadas novas destilarias, principalmente em regiões que eram marcadas pela

presença de latifúndios com pecuária extensiva de corte no estado de São Paulo”

(VEIGA FILHO; RAMOS, 2006, p. 50).

Em sua fase de estagnação (de 1985 a 1995) o Brasil passou a produzir e vender um

grande número de automóveis movidos a álcool, alcançando uma marca de 95,8% de

toda a frota vendida. No mesmo período, o preço do barril de petróleo cai

(“contrachoque do petróleo”), fazendo com que os consumidores voltassem ao uso da

gasolina, o que coincide com um período de escassez de recursos públicos no Brasil

para subsidiar a produção do etanol. Houve uma queda nos índices de produção de

etanol e corte dos subsídios, o que chamamos de desregulamentação do setor, devido

aos baixos preços pagos aos produtores, o que não relaciona com a demanda pelo

combustível por parte dos consumidores, que ainda era estimulada pelo governo. Vale

ressaltar que a ausência de recursos se dava apenas ao setor sendo que o uso do álcool

combustível ainda era incentivado pelo governo.

Vian (2003) aponta a desregulamentação do complexo e as tentativas posteriores de

auto-regulação que culminaram com a consolidação da União da Agroindústria

Canavieira de São Paulo – UNICA como entidade de representação dos interesses desse

estado, como principal fato ocorrido na década de 1990 e que é uma das financiadoras

do Projeto AGORA nas escolas.

6

Durante o governo Collor, em 1990, o IAA foi extinto, as políticas públicas voltadas ao

setor diminuíram e muitas usinas quebraram. No entanto, o governo brasileiro ainda

acreditava na eficiência do álcool como combustível e estimulava sua produção. Foi

nesse período que houve a inserção do capital estrangeiro.

A crise na produção do álcool combustível afetou a credibilidade do Proálcool, que

entrou numa fase de redefinição (1995 a 2000). Um fator que condicionou no processo

de desregulamentação do setor foi a ausência da intervenção estatal, no qual algumas

empresas não conseguiram se adaptar ao livre mercado, quebrando.

Nos anos recentes vivenciamos uma nova expansão da monocultura canavieira no país.

Após a fase de desregulamentação e reestruturação do setor na década de 1990, a

dinâmica do complexo canavieiro passou a uma organização setorial em campos

organizacionais. As empresas investiram em maior produtividade e menores custos de

produção. Nesse sentido, houve o surgimento de novos produtos, novos segmentos de

mercado para os já existentes, e novas técnicas de produção, que fez com que a estrutura

do setor alterasse para uma estrutura heterogênea.

A fragmentação do complexo agroindustrial em campos organizacionais foi marcada

pelo retorno do capital estrangeiro adquirindo empresas e formalizando parcerias,

visando à produção e a comercialização do açúcar. Durante a implementação do

Proálcool, o objetivo da intervenção estatal era o de equilibrar os mercados evitando o

desabastecimento e as variações bruscas de preços. Na fase pós-desregulamentação, o

que predomina é a concorrência empresarial na busca de inovações tecnológicas e na

produção em terras de boa qualidade. Isso se deve aos custos mais baixos e lucro acima

da média.

Temos nessa fase o investimento por parte das empresas, direcionados à especialização

da produção através do uso dos subprodutos da cana, o que não ocorria nos anos 1980,

onde os investimentos se limitavam em melhores condições técnicas para seus

equipamentos. Vian (2003) aponta como possibilidades de melhor aproveitamento das

economias de diversificação produtiva, a co-geração de energia, que só deslanchou com

a crise energética. A produção de energia pelas usinas já é uma realidade comum em

muitas empresas do Centro-Sul. Grande parte das usinas mineiras já inseriu a produção

de energia em seu processo produtivo, e a utiliza para autossustentação, vendendo o

excedente.

7

Nos anos 2000, durante o segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso

(1998-2002) surgiu os automóveis bicombustíveis – movidos a álcool e/ou gasolina, os

chamados carros flexfuel. Com isso, os investimentos no setor foram retomados e o

plantio da cana-de-açúcar para a produção do etanol avançou além das áreas tradicionais

(interior paulista e Nordeste), alcançando os cerrados. Nesse período houve um

crescimento significativo de novas unidades além de unidades reativadas em todo o

país. Muitas usinas criaram uma destilaria anexa para a produção do etanol. Minas

Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul se inserem nesse contexto como uma

nova área de expansão da monocultura canavieira no Brasil.

Em 2011, o setor sucroenergético vive uma queda em sua produção de etanol devido à

crise econômica de 2008 e a seca ocorrida. Com a ausência de investimentos no setor,

as usinas não renovaram seus canaviais, o que deve ocorrer num período de 5 em 5

anos. Isso fez com que a produtividade diminuísse na última safra (2010/2011), sendo

necessário importar etanol para suprir a demanda. De acordo com o Sindicato da

Indústria de Fabricação do Álcool no Estado de Minas Gerais – SIAMIG, o desafio do

setor é manter o etanol como uma fonte energética competitiva frente às demais

existentes. Com o desenvolvimento tecnológico, as empresas estão produzindo além do

já tradicional açúcar e álcool, energia e plástico utilizando os subprodutos da cana

(caldo, bagaço e palha).

A cultura da cana-de-açúcar nos estados participantes do Projeto AGORA das empresas do agronegócio canavieiro Foi no contexto de modernização que a região Centro-Sul vivenciou o momento de

expansão da monocultura canavieira, na qual obteve sucesso nessa região. Houve uma

intervenção estatal a fim de modernizar os canaviais nordestinos a qual não obteve

êxito, pois a inserção de maquinário no processo produtivo impediu que a produtividade

do setor aumentasse, além do descrédito dos senhores-de-engenho que perderam o

controle sobre a totalidade do complexo produtivo do açúcar, base do poder político e

econômico desses agentes (VIAN, 2003).

Nesse contexto, a região Centro-Sul começou a receber suas primeiras unidades de

produção e áreas de cultura da cana-de-açúcar. Dentre elas, estavam unidades de origem

nordestina – algumas filiais de empreendimentos tradicionais do Nordeste que viu um

potencial de desenvolvimento na região, expandindo seu capital. Essa expansão deu-se

8

não apenas devido ao descrédito dos produtores nordestinos, mas também devido às

constantes secas que motivaram o envolvimento de novas áreas, e até mesmo a

transferência de algumas unidades para o Centro-Sul.

O Projeto AGORA está presente em estados onde a cultura da cana-de-açúcar é

considerada significativa, tendo neles os denominados “municípios canavieiros” de

acordo com o projeto. Os “municípios canavieiros” estão presentes em São Paulo,

Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, e mais recentemente

Alagoas, Pernambuco e Paraíba, estados tradicionais na cultura canavieira.

O estado de São Paulo e algumas regiões do Paraná foram o primeiro cenário da

produção canavieira no Centro-Sul. Essa produção obteve grande desenvolvimento,

fazendo com que eles tornassem os maiores produtores de açúcar e álcool do país.

Posteriormente, com a modernização da agricultura e a Revolução Verde, houve uma

expansão canavieira nas áreas de cerrado, onde Minas Gerais, Mato Grosso, Mato

Grosso do Sul e Goiás inseriram nesse contexto. O estado de Minas Gerais já é o

segundo maior produtor, ultrapassando o Paraná, ficando atrás apenas de São Paulo,

ainda maior produtor de cana-de-açúcar.

Nesse sentido, o projeto tem por objetivo atuar em escolas dos “municípios canavieiros”

onde geralmente estudam filhos de trabalhadores das usinas de cana-de-açúcar. O foco

do projeto é atingir estudantes de escolas públicas de 6º e 7º anos (antigas 5ª e 6ª séries)

do ensino fundamental, onde estão começando a desenvolver um senso crítico. Assim, o

projeto terá grandes chances de obter sucesso, pois terá capacidade de fazer com que

esses alunos incorporem o discurso do agronegócio, evitando algumas das inúmeras

críticas geradas pelo modelo de monoculturas.

O Projeto Municípios Canavieiros: histórico, objetivo e parceiros O Projeto Municípios Canavieiros é uma prática pedagógica iniciada em 2010, e

ampliada em 2011, que visa formar e capacitar professores dos anos iniciais do Ensino

Fundamental II para a temática da cadeia produtiva da cana-de-açúcar de forma lúdica e

simplificada, no intuito de disseminar para a comunidade discente o “mito” dos

problemas socioambientais relacionados ao setor sucroalcooleiro e a importância

socioeconômica do mesmo. São 100 municípios que fazem parte deste grupo de atuação

do projeto, considerados como os principais produtores de cana-de-açúcar do Brasil.

9

Todo o material didático elaborado pelo projeto é produzido pela Editora Horizonte por

meio da iniciativa do Projeto AGORA, com participação e apoio institucional das

Secretarias de Educação dos estados envolvidos, reunindo diversas empresas e

instituições que atuam no setor sucroenergético. De acordo com o material de

divulgação do projeto, o objetivo do estudo Municípios Canavieiros é “disponibilizar

aos professores e às escolas públicas um kit educacional de apoio ao professor, que

contribui para aprimorar a sua prática pedagógica” (MUNICÍPIOS CANAVIEIROS,

2011).

No contexto desse objetivo geral do projeto, está, ainda, a intenção de incutir e difundir

entre os educandos, como a cana-de-açúcar atua em suas várias etapas de produção,

observando os diversos aspectos relacionados (culturais, sociais, econômicos e

ambientais) à sua prática, os produtos resultantes (etanol, açúcar e energia) e a sua

importância como “fonte de distribuição de riqueza”. Uma forma didática e ilustrativa

de representar e apresentar a cadeia produtiva canavieira, bem como todo o discurso e

ideologia daqueles que são os responsáveis por organizar o material e divulgá-los nas

formações de professores e escolas.

O material distribuído aos professores no ato da formação e à escola, num segundo

momento, constitui-se de: 2 kits educacionais, cada um composto por 1 Caderno do

Professor, 8 Pôsteres e 1 CD multimídia. Além disso, o professor inscrito pela escola

para participar do programa recebe uma formação que totaliza 12 horas, em dois

momentos presenciais, cujo formador é um professor capacitado pela editora para

apresentar o projeto e como pode ser feita a prática e o uso do material com os alunos

dentro e fora da escola, aliando atividades teóricas e jogos dentro de sala, e trabalhos de

campo.

O Projeto AGORA – agroenergia e meio ambiente é patrocinado por grandes grupos

empresariais e industriais, chamados de “parceiros”, a saber:

BASF – The Chemical Company;

DEDINI – Indústrias de Base;

FMC Agricultural Products;

Monsanto;

Syngenta;

UNICA – União da Indústria de Cana-de-Açúcar;

10

ORPLANA – Organização de Plantadores de Cana da Região Centro-Sul do

Brasil;

SIFAEG;

SIAMIG;

SINDALCOOL/MT;

BioSul;

SINDALCOOL/PB;

SINDAÇÚCAR/PE;

SINDAÇÚCAR/AL;

BIOENERGIA/ALCOPAR – Associação de Produtores de Bioenergia do Estado

do Paraná.

Além dessas empresas e entidades/associações, apresentadas no sítio eletrônico do

Projeto AGORA, está impresso no material didático distribuído no kit outros parceiros

como o Banco Itaú, a Amyris, a BP e o CEISE (Centro Nacional de Indústrias do Setor

Sucroenergético e Biocombustíveis).

Os municípios que participam do estudo Municípios Canavieiros estão totalizados em

100 (cem), distribuídos por estado conforme o gráfico seguinte:

Gráfico 1 – Percentual de participação de cada estado no estudo Municípios Canavieiros até o ano de 2011.

Fonte: http://www.municipios-canavieiros.com.br/ Org.: SILVA, R.G.S. (2012)

Observando o gráfico 1, é possível visualizar a importância do setor sucroalcooleiro na

região Centro-Sul do Brasil, onde grande parte dos municípios canavieiros estão

11

localizados com toda sua cadeia produtiva instalada e em expansão, conforme visto na

seção anterior. Outro fator que deve ser observado é a grande importância do estado de

São Paulo, representando um número considerável de municípios envolvidos no

agronegócio da cana-de-açúcar.

O material didático: da ideologia ao discurso de um grupo Ideologia, no sentido etimológico da palavra, é uma sistematização de uma ideia ou de

um conjunto de ideias. É um meio da qual a sociedade constrói uma forma de pensar e

agir, disseminando-a entre seus pares no intuito claro de permanecer com a ordem

vigente, seja ela qual for. A ideologia da ordem vigente é sempre a ideologia da classe

dominante, dos atores hegemônicos da sociedade.

Utilizando-se da ideologia alemã de Marx e Engels (2009), pode se dizer que As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. (MARX; ENGELS, 2009, p. 67, grifo dos autores)

Este poder espiritual é a ideologia sobre o qual a classe dominante, aqui podendo ser

visualizada pelo setor sucroenergético, produz as ideias de uma época, de um contexto

sócio-histórico no espaço. A partir deste poder espiritual, ou em virtude do poder

material, as ideias e, por conseguinte, a ideologia, tornam-se dominantes por meio de

ações e discursos, que referendam um processo ou um produto. Neste caso, o produto

analisado neste trabalho, visa referendar e criar bases sólidas na sociedade de uma

ideologia dominante, da classe dominante (social e econômica).

Como toda ideologia precisa de uma meio para ser aceito ou seguido, o discurso torna-

se um método eficaz na ponte entre a ideologia e a aceitação desta. O discurso é a

ferramenta necessária para que algo seja aceito, endossado e reproduzido. Fischer

(2001) aborda com destreza as teorias que envolvem o conceito de discurso na obra de

Foucault aplicados na educação. No entanto, seria necessário um tempo e um espaço

maior de discussão para utilizar-se das abordagens apresentadas pela autora.

Retomando ao ponto principal deste trabalho, o material didático do estudo Municípios

Canavieiros de 2011 apresenta um objetivo oculto e uma ideologia do próprio setor

12

sucroenergético: criar bases na educação básica para referendar as ações da cadeia

produtiva da cana-de-açúcar nos municípios em que grande parte das áreas rurais estão

dominadas pelo setor por meio dos grandes grupos industriais e entidades. Não é

coincidência que estes mesmos grupos fazem parte dos financiadores do projeto, pois

faz parte de um projeto maior, de permanência e poder sobre setores da sociedade,

principalmente em relação à opinião pública.

Destaca-se a partir do material impresso, o caderno do professor, mas que também está

disponível no meio digital em CD-ROM, a qualidade do material (papel, impressão,

figuras, gráficos, ilustrações, layout, etc.) disponibilizado para a formação e aos alunos.

O contato com o material torna o assunto algo secundário, uma vez que a aparência do

material e a qualidade na sua elaboração, proporciona ao leitor uma fácil aceitação

quando o conteúdo é superficialmente explorado ou aprofundado.

Além disso, os assuntos abordados sempre se apresentam como defensores do setor

sucroenergético, como se a cana-de-açúcar fosse isenta de problemas sócio-ambientais

no contexto brasileiro e mundial. Alguns títulos de matérias inseridas no material

didático, como “O etanol não compete com os alimentos” (MUNICÍPIOS

CANAVIEIROS, 2011, p.17), demonstram com maior clareza a ação do discurso na

formação de uma ideologia a ser seguida, a ideologia canavieira.

A figura 1 representa o folder presente no material didático, impresso em tamanho

grande para que possa ser exposto aos alunos em sala de aula. Nele, como o próprio

nome sugere, apresenta os “caminhos da cana-de-açúcar” em sua cadeia produtiva,

desde sua pré-produção até os locais para onde chega o produto.

É uma clara alusão à falsa ideia de que a sociedade é dependente do agronegócio

canavieiro. Há também uma necessidade de demonstrar, ainda que de forma lúdica, a

convivência pacífica entre o setor canavieiro e os trabalhadores rurais, o complexo

agroindustrial e os consumidores finais, além da questão ambiental. Visualizando

apenas a figura, a impressão que se propõe a ser explorada é a da sustentabilidade sócio-

ambiental, isenta de problemas de qualquer ordem.

13

Figura 1 – Folder do material didático “Municípios Canavieiros”.

Fonte: Municípios Canavieiros 2011 – CD Multimídia.

O CD Multimídia de onde foi retirada a figura 1 também apresenta as outras figuras

existentes no material didático, além de uma imagem interativa, com vídeos

explicativos e ilustrativos de cada um dos processos presentes no complexo

agroindustrial da cana-de-açúcar.

No endereço eletrônico do estudo “Municípios Canavieiros” há um espaço destinado

aos professores onde são apresentados os depoimentos de quem participou da formação

e utilizou o material em suas respectivas unidades escolares. De todos os depoimentos,

de 2010 e 2011, nenhum deles apresentavam argumentos contrários ou questionamentos

quanto ao material ou ao agronegócio canavieiro.

Ao contrário, incorporaram o discurso do material didático com a justificativa de que o

material auxiliava no conhecimento do espaço geográfico das regiões onde a cana está

presente, como se ela fosse uma incorporação natural da paisagem e da sociedade atual.

Existe também uma outra possibilidade que não pode ser descartada em relação aos

depoimentos dos professores no site do projeto: discursos e ideologias contrárias podem

não ter sido aceitas para publicação no referido mural.

14

Considerações finais Utilizar-se de um material didático para impor uma ideologia através de um discurso

carente de discussões mais aprofundadas é uma forma de consolidação do pensar e agir

de uma sociedade. O agronegócio canavieiro remonta a própria história do Brasil, mas

que atualmente ganhou novos contornos em sua forma de atuação e importância no

cenário nacional e internacional.

A união de empresas e instituições na produção de um material didático revela que a

preocupação maior dos envolvidos na elaboração de um recurso que é utilizado em

unidades escolares está no apoio e manutenção à dominação material que estes mesmos

grupos realizam sobre a população.

O presente trabalho procurou desmistificar o material didático bem como os discursos

impregnados na totalidade das ações que envolvia a relação cana-de-açúcar e educação,

apresentando as contradições, ainda que superficiais, de uma ideologia. Isso sem

mencionar no que está por detrás dos interesses econômicos das empresas atuantes na

elaboração do material.

Por fim, pode-se afirmar que o material didático analisado é mais uma forma de

expansão do agronegócio canavieiro, atuando num espaço que não é estritamente

geográfico, como o campo brasileiro, mas um espaço de construção de valores e

conhecimento que é a escola. Expandindo este território, o agronegócio canavieiro

consolida e garante sua manutenção juntamente com a sua ideologia e discurso frente à

sociedade.

1 Destilarias anexas: ou vinculadas às usinas e geralmente localizadas junto a estas (Ver SZMERECSÁNYI, 1979, p. 82). 2 Anidro: etanol combustível misturado à gasolina na composição de 22 a 25%. 3 Hidratado: Etanol utilizado como diretamente como combustível. 4 Destilarias autônomas: ou não-vinculadas a usinas e localizadas nos, ou junto aos grandes centros de consumo (Ver SZMERECSÁNYI, 1979, p. 82).

Referências BRAY, S. C. As políticas da agroindústria canavieira e o PROÁLCOOL no Brasil/ Sílvio Carlos Bray, Enéas Rente Ferreira e Davi Guilherme Gaspar Ruas. Marília: Unesp-Marília-Publicações, 2000. FISCHER, R. M. B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 114, Nov. 2001 .

15

HESPANHOL, A. N. Modernização da agricultura e desenvolvimento territorial. In: 4º Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa, 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, p. 370-392. Disponível em: <http://www4.fct.unesp.br/nivaldo/Pós-Graduação/FCT-MESTRADO-DOUTORADO/TEXTO-DESENVOLVIMENTOTERRITORIAL-ENGRUP.pdf>. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Expressão Popular, 2009. MUNICÍPIOS CANAVIEIROS. Caderno do Professor. São Paulo: Editora Horizonte, 2011. SANTOS. J. C. Dos Canaviais à “etanolatria”: o (re) ordenamento territoral do capital e do trabalho no setor sucroalcooleiro da Microrregião Geográfica de Presidente Prudente – SP. 2009. 375 f. Tese (Doutorado em Geografia e Gestão do Território – Instituto de Geografia, UFU/ Uberlândia, 2009. Sindicato da Indústria de Fabricação do Álcool no Estado de Minas Gerais – SIAMIG. Disponível em: <http://www.siamig.org.br/>. Acesso em: 22 jun. 2012. SZMRECSÁNYI, T. O planejamento da agroindústria canavieira do Brasil (1930-1975). São Paulo: HUCITEC/UNICAMP, 1979. UNIÃO da Indústria de cana-de-açúcar – UNICA. Disponível em: <www.unica.com.br>. Acesso em 23 jun. 2012 VEIGA FILHO, A. A.; RAMOS, P. Proálcool e evidências de concentração na produção e processamento de cana-de-açúcar. Informações Econômicas, São Paulo, n. 7, p. 48-61, jul. 2006. VIAN, C. E. F. Agroindústria canavieira: estratégias competitivas e modernização. Campinas: Átomo, 2003.