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Page 1: OS CADERNOS DE CULTURA - inesul.edu.br · 36 — WILLY LEWIN Ensaios de Circunstâncias (Continua na 3 pág) FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA TESTAMENTO DE MÁRIO DE ANDRADE E ... a verdade
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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — José JANSEN A MÁSCARA NO CULTO, NO TEATRO E NA TRADição

2 — ALVARO LINS. CARPEAUX O THOMPSON ......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI ...................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE .................................................. Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira 6 — Lúcio COSTA .......................... Considerações sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ............... Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado 9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO .................. Monte Cristo ou da Vingança 11 — Lois COSME ................................ Música e Tempo 12 — João CABRAL DE MELO ................... Miro 13 — OTÁVIO DE FARIA ................................ Significação do Far-West 14 — SANTA ROSA ...................................... Roteiro de Arte 15 — SANTA ROSA .................................... Teatro Realidade Mágica 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Teatro de Cervantes 17 — JOSÉ CABLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto 18 — Gilberto Freyre José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos 20— MÁRIO PEDROSA ................................ Panorama da Pintura Moderna 21 Rosário Fusco .................................. Introdução à Experiência Estética 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS ................... Realidade e Ficção 23 — DANTE COSTA ................................... O Sensualismo Alimentar 24 — LEDO Ivo ........................................... Llção de Mário de Andrade

25 GOMES ................................ O Romancista e o Ventríloquo 26 — JOSÉ LINS no RECO ........................... Homens. Seres e Col 27 — OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA.. De várias Provindas 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA ................... Cinqüenta Anos de Literatura

ALEXANDRE PASSOS .......................... A Imprensa no Periodo Colonmi 30— MANOEL DIEGUES JÚNIOR ... Etnias e Culturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS ............................. Explorações no Tempo 32 — OSWALDINO MARQUES ...................... O poliedro e a rosa 33 — FERNANDO SABINO ............................. Lugares comuns 34 — PÉRICLES MADUREIBA DE PINHO Notas à margem do problema agráric 35 — VITORINO NEMÉSIO ............................. Portugal e o Brasil na História 36 — WILLY LEWIN Ensaios de Circunstâncias

(Continua na 3 pág)

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FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA

TESTAMENTO DE MÁRIO DE ANDRADE E OUTRAS REPORTAGENS

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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A DONATELLO GRIECO, amigo fraterno.

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Coletânea de entrevistas e reportagens, este livri-nho não tem pretensões maiores que a de fixar um ou outro momento da vida brasileira, nestes últimos dez anos, através de flagrantes quase fotográficos de fatos e personalidades do nosso tempo.

Abre o volume a última entrevista de Mário de Andrade, que justifica o título: o testamento de um grande escritor, definindo a sua posição, como artista e como homem, que eram nele uma só pessoa verdadeira, na constância admirável de toda uma existência dedicada inteiramente ao trabalho intelectual.

Literatura de jornal nem sempre é literatura da livro. As entrevistas e reportagens, que se colam no pequeno álbum de recortes, por detrás do Testamento, talvez não merecessem ser exumadas das colunas do semanário em que apareceram, visando apenas a leitura ocasional.

Em todo o caso, vale a intenção de quem pensou única e exclusivamente no possível valor documentário, com a publicação em volume, de tais trabalhos, poupando o tempo de algum hipotético pesquisador.

F. A. B.

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MÁRIO DE ANDRADE: "OS INTELECTUAIS PUROS VENDERAM-SE AOS DONOS

DA VIDA"

No prefácio do livro de Otávio de Freitas Júnior (1), Mário de Andrade escreveu umas coisas muito sérias num tom quase patético. Coisas que precisam ser repisadas. "Eu afirmo (estou citando o grande escritor paulista) que a mocidade de hoje está de posse duma verdade. Nós todos, mas todos, intelectuais e dirigentes, sabemos que a mocidade que conta agora de vinte a trinta anos, está de posse de uma só verdade. Os que dentre esses moços desconhecem essa verdade, é porque fingem desconhecê-la. E há também muitos, os. . . os outros. São os sujos, que se venderam, colocando-se da banda da contra-verdade. Porém eles mesmos, eles tanto como os dignos, gritam pelos olhos, pelas mãos, pelos poros, a existência dessa verdade. E os moços estão querendo exclamar a verdade que vai chegar, mas não podem. A mocidade está engasgada e regouga surdamente. Mas não é por ignorância, por inadvertencia ou displicência que a mocidade engasgou. Engasgaram a mocidade".

(1) Ensaios do Nosso Tempo. Edição da Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1943.

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Tudo isso, vamos e venhamos, é grave, muito grave mesmo. As palavras são exatas, espantosamente exatas. A mocidade quer falar e não pode. Tem um osso na garganta. E é por isso que Mário de Andrade empregou tão bem o feio e desusado verbo "regou-gar". Só um verbo desses para definir o estado de espírito da mocidade. Da mocidade só? Não. De jovens, maduros e velhos. Todos "regougam". Não há nada a fazer senão "regougar". Oh, como é bom "re-gougar"!

No setor literário, acontece também uma outra coisa, igualmente espantosa. Os que não "regougam", xingam-se entre si, gastam energia bobamente. E é com infinita tristeza que a gente vê o nome limpo de um grande poeta agredido numa discussão estéril e besta, que faz lembrar a famosa "guerra do alecrim e da mangerona". Calma, minha gente. Pra que discutir futebol e cinema silencioso, num momento destes? Essas discussõezinhas só têm servido para aumentar a confusão, que nos levou a conjugar, com um jeito ex-quisito e às vezes tragicômico, o infame verbo "regou-gar", "Regouguemos", pois, com decência.

Encompridei esta introdução para avisar que tomei uma entrevista com Mário de Andrade, que nada tem a ver com as guerrinhas literárias, que se travam presentemente entre os "inocentes" de diversas praias cariocas. A coincidência com pessoas e fatos conhecidos é puramente ocasional e inevitável. Por isso mesmo, quero deixar bem claro que procurei o autor de Macunaíma sem segundas intenções.

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As palavras de Mário de Andrade são duras, vão doer em muita gente. Paciência. São palavras que precisavam ser ouvidas.

Esta entrevista é bem uma definição de atitude do artista em face da guerra, uma espécie de Código de Ética. Poucos como o grande poeta e crítico de São Paulo estariam mais indicados para a tarefa difícil, que transformei no tema central desta reportagem.

A vida literária de Mário de Andrade tem sido um lutar constante. Os artigos de crítica e polêmica que escreveu em jornais e revistas dariam para mais de seis volumes; os mais importantes deles serão publicados em livros, na edição das obras completas de Mário de Andrade, iniciativa da Livraria Martins. Não foi sem razão que o chamaram de "papa do modernismo". Concordo que o apelido é bombástico mas não há dúvida que indica o papel do escritor: a sua linha de conduta, a sua ação prodigiosa, a sua fé na literatura, o seu valor moral. Por todos esses motivos Mário deve ser considerado a figura mais importante dentre os agitadores do movimento. Mas não é só por isto. Hoje, decorridos mais de vinte anos depois da celebérrima Semana da Arte Moderna, vemos que foi a sua obra que encontrou maiores ressonâncias na turma da geração mais nova, justamente os que estão agora entre os vinte e os trinta anos, os tais da "moci-dade engasgada". Creio que dizendo isto explico suficientemente o porquê desta entrevista, que julgo muito oportuna. Das mais oportunas que se poderiam fazer, neste momento.

A condição de "papa" (desculpe, Mário) não dá imunidades a ninguém. Mário de Andrade não vive

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num altar, permanentemente endeusado pelos moços. Não vive trancado em nenhuma redoma. O escritor age, está agindo. Jamais se recusa aos novos. A sua palavra é sempre ouvida com respeito, porque parte dele. Assim foi com os rapazes da revista Clima, cujo artigo de apresentação, escrito por Mário de Andrade encerra um grande sentido político e humano. Chama-se "A elegia de abril". Parece o título de um poema. Esse artigo é um apelo à responsabilidade. O escritor não acredita nos homens da sua geração, põe sua fé nos moços. Penitencia-se. Talvez por julgar ter realizado muito pouco é que confia tanto nos moços.

Ah, os moços engasgados, que "regougam". No entanto, Mário de Andrade já fez muito. E' imensa a

significação da sua obra literária, abrindo caminhos na poesia., no conto, no romance, na crítica, no folclore, na música. Principalmente nas questões do estilo e da forma de expressão literária, quero dizer na técnica de escrever. Mário de Andrade é bem um mestre das novas gerações. Mas afinal esta introdução está se tornando longa demais. E a entrevista? Vamos a ela.

A ENTREVISTA

Embora com os sinais de longa enfermidade ainda muito visíveis no rosto pálido, Mário de Andrade me pareceu remoçado quando uma dessas manhãs o procurei na sua casa da rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. E' uma casa simples, sem luxo. Mas está cheia de quadros, de livros, de músicas. Lhote, Picasso, Portinari, Segall. Sem falar

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na coleção de desenhos e gravuras, que sobem a oitocentos mais ou menos. E os livros ? Há de tudo. A parte principal é sôbre arte e literatura. As músicas estão em baixo, numa sala pequena, que tem o retrato de Beethoven. Sei que existem para mais de vinte mil peças, todas devidamente catalogadas na biblioteca de Mário de Andrade.

O escritor me recebe, a princípio, numa sala do andar superior, onde vi, pela primeira vez, os quadros de Anita Malfatti: "O homem amarelo" e "A estudante russa", que tanta celeuma provocaram nos áureos tempos do modernismo. A exposição de Anita Malfatti, considerada como o início do movimento foi um escândalo. Monteiro Lobato escreveu um artigo violento, erradíssimo, contra a pintora. Olho bem "O homem amarelo". Por mais que procure, não encontro nada demais. Sem ser acadêmico é um quadro normal. Por que teria despertado um tamanho furor em Monteiro Lobato? Aí está uma coisa que não compreendo.

— Você acha normal, não é ? Isso quer dizer que não fizemos o modernismo em vão. Para a época, "O homem amarelo" era uma coisa louca. Poucos compreendiam, quase ninguém aceitava. Anita é uma pioneira.

A entrevista começa assim por um desvio. Encontro o escritor mais loquaz do que nunca, satisfeitíssimo com a marcha da moléstia (úlcera no duodeno para quem quiser saber). Durante os dias que esteve na cama, um mês precisamente, Mário de Andrade não interrompeu a sua atividade jornalística, escrevendo todas as quintas-feira um longo artigo sobre música para a Fôlha da Manhã, de São Paulo. Agora escre-

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verá com regularidade também no Correio da Manha. Mostra-me o seu primeiro artigo publicado no jornal carioca. E' sobre Shostakowitzch o músico soviético, autor de uma sinfonia celebrando o heroísmo dos defensores de Leningrado e do "Hino às Nações Unidas". composição esta mais recente, da qual ainda não tinha ouvido falar.

Mário de Andrade fala explicado, como bom paulista: — No artigo sobre Shostakowitzch, volto a tocar

num velho refrão meu: a arte interessada. Acho que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer uma arte desinteressada. O artista pode pensar que não serve a ninguém, que só serve à Arte, digamos assim. Aí está o erro, a ilusão. No fundo, o artista está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos. O pior é que o artista honesto, na sua ilusão de arte livre, não se dá conta de que está servindo de instrumento, muitas vezes para coisas terríveis. É o caso dos escri tores apolíticos, que são servos inconscientes do fas cismo, do capitalismo, do quinta-colunismo.

RESPONSABILIDADE

A conversa cai na controvérsia "arte pura" e "arte interessada". Mário de Andrade diz o que pensa a respeito:

— Até o século 18, o intelectual era um emprega do dos príncipes. Vivia, portanto, preso aos seus Mecenas. Ele era pago para louvar. Com o século 19, veio a arte livre. O intelectual se libertou. E

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com a liberdade se desmandou. Tornou-se um irresponsável. Foi o seu grande erro. Liberdade não quer dizer irresponsabilidade. Isso porque entre o escritor e o público há uma relação, um compromisso. É o público, ou melhor, a sociedade, quem protege o escritor, quem lhe dá tudo, inclusive dinheiro, até o aplauso, duas coisas indispensáveis. Porque eu estou me referindo a todo artista de modo geral. Não só aos escritores, prosadores e poetas, ficionistas ou não. Mas também aos pintores, escultores, arquitetos, músicos. Todos eles, todos nós, somos responsáveis. Perante o público, perante a sociedade. O escritor então é responsável até pela grafia das palavras quanto mais pelo que transmite por elas. Se a sociedade está em perigo, conclui-se que o escritor tem a obrigação indeclinável de defendê-la. Infelizmente não são muitos os que entre nós se capacitaram disso. Uns por não possuírem consciência profissional. Outros por não possuírem consciência de espécie alguma. Não há por onde fugir. Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais. E' assim com a guerra, na luta das democracias contra os fascismos de todas as categorias. A guerra não é um teatro, que a gente possa assistir comodamente, como se estivesse sentado num camarote. Todos participam da luta, mesmo contra a vontade. Queiram ou não queiram. £ se é assim o escritor tem de servir fatalmente: ou a um ou a outro lado. Os intelectuais brasileiros que continuam colaborando em jornais fascistas, precisam se convencer de que estão errados. Não é só escrever para ganhar 200 cruzeiros por um artiguete e blasonar depois que continuam livres. Não continuam, esta

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é a verdade. Podem ser livres no primeiro, no segundo artigo. Aos poucos, mil cordões invisíveis vão enleando o pobre até que um dia ele se verá perdido. E' triste de dizer. Mas é este o caso da maioria dos escritores brasileiros, que colaboram nos jornais fascistas. Muitos desses escritores, bem sei, não são fascistas. Acabarão sendo. Pelo menos eles já estão servindo ao fascismo.

— Mas você, também, Mário, colabora na revista Atlântico. . .

— E' verdade. Publiquei um artigo em Atlântico. Confesso que estou arrependidíssimo. Quando me dei conta do erro que estava cometendo já era tarde. Reconheço que errei. Dou minha palavra de honra que jamais cairei noutra.

EXPERIÊNCIAS

O assunto continua o mesmo: — Já vê que falo por experiência própria. Mas.

quero mostrar que tenho sido coerente. Não faço arte pura. Nunca fiz. Neste particular, sinto estar em de sacordo com amigos e camaradas queridos, amigos e camaradas que tenho na conta de mestres. Sempre fui contra a arte desinteressada. Para mim, a arte tem de servir. Posso dizer que desde o meu primeiro livro faço arte interessada. Naquele tempo, em 1917, se quisesse poderia ter arranjado um livro de versos menos ruim para aparecer em público. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de sonetos e poesias, que repu tava melhores que os de Há uma gota de sangue em cada poema. Mas não. Senti que precisava publicar o

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meu livrinho de poemas pacifistas., escritos sob as emoções da guerra de 14. Eles me pareceram mais úteis que os sonetos e as poesias rimadas.

Lembro que o livro de estréia de Mário de Andrade traz o pseudônimo de Mário Sobral. Por que o pseudônimo ?

— Por timidez — retruca o poeta mais que depressa. Todo mundo que me conhece sabe que eu sou um tímido. Os meus estouros não provam nenhuma coragem. São produtos da minha vida introspectiva. Vou me enchendo, enchendo. De repente estouro.

E é assim que ele me faz uma confissão interessante : — E' bem possível que eu nunca tivesse publi

cado uma só linha se nao tivesse a certeza de que a minha literatura poderia ser útil. Não pretendia, de fato, publicar nenhum poema de Paulicéia desvairada. Até que um dia percebi que as minhas poesias tinham capacidade para irritar a burguesia. Foi o bastante. Pelo resto da minha carreira literária, observei a mesma linha de conduta. Só publico o que pode servir. Todas as minhas obras têm uma intenção utilitária qualquer. As coisas de pura preocupação estetica que fiz durante algum tempo, eu destruí. Só me interessavam a mim, como aquisição de técnica pessoal.

E Mário de Andrade repete: — A arte tem de servir. Venho dizendo isso há

muitos anos. E' certo que tenho cometido muitos erros na minha vida. Mas com a minha "arte interes sada" eu sei que não errei. Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a pro-

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cura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte, da qual nunca me afastei, foi que me levou, desde o início, às pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes com sacrifício da própria obra de arte. Cito, para esclarecer, o meu romance Amar, verbo intran-sitivo. Não fosse a minha vontade deliberada de escrever brasileiro, imagino que teria feito um romance melhor. O assunto era bem bonzinho. O assunto porém me interessava menos que a língua, nesse livro. Outro exemplo é Macunaima. Quis escrever um livro em todos os linguajares regionais do Brasil. O resultado foi que, como já disseram, me fiz incompreensível até para os brasileiros. Bem sei que minha literatura tem muito de experimental. Que me importa ? Disso não me arrependo.

CONSCIÊNCIA

Para Mário de Andrade, o que importa mais que tudo é agir. Daí a sua admiração por um Valentim Magalhães, literato medíocre, mas ativo.

— Valentim Magalhães fez o diabo. Meteu-se em tudo quanto foi movimento litarário, disse-me ele.

Mas o caso do poeta de Remate dos males é muito diferente. Valentim Magalhães talvez agisse apenas em função do seu temperamento buliçoso. Mário, ao contrário, sempre agiu conscientemente. Bem que pode falar assim, quando mais uma vez se refere no modernismo :

— Eu bem sabia que não bastava ser espontâneo. Era preciso ter consciência profissional, também.

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Quando empregava o "me" começando as fases, não era só pelo gosto de escrever diferente. Eu sabia o que estava fazendo. Para isso estudei. Procurei honestamente uma maneira de escrever em brasileiro. Acho que encontrei este meio. Pelo menos ajudei a abrir caminho. — Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro? — Da língua, não. Da fala brasileira. Não tinha a pretensão de criar uma língua brasileira. Nenhum escritor criou língua nenhuma. Anunciei o livro, é verdade, mas nunca o escrevi. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. E' ainda muito cedo para escrever-se uma Gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos do escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrario. como muito bem observou um dos redatores de Estética, não me lembro se Sérgio Buarque de Holanda ou Prudente de Morais. Estávamos criando o "erro de brasileiro". Quando falo em escrever certo, estendo a questão até o problema ortográfico. Considero-o um problema de ordem moral. E' mais uma responsabilidade que se acrescenta, ao ofício de escrever. Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever "cavalo" com três "1" isso não tem importância. Precisamos é de acabar com a bagunça. Não há coisa mais irritante-mente falsa do que a ortografia inglesa, por exemplo. Não compreendo porque a palavra "right" se escreve com "g-h-t". No entanto assim é que está certo.

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Escrever de outra forma na Inglaterra ou nos Estados Unidos é diploma de ignorancia. Aqui, não. Todo mundo escreve como bem entende. O Estado da Bahia tem "h". A baía de Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil. E de certa forma tem impedido a muito escritor de formar uma verdadeira consciência profissional.

PARALELO

Voltamos novamente a falar sôbre "arte interessada". Quero saber que relações existem entre "arte interessada" e liberdade de pensar e de escrever, no entender de Mário de Andrade. Aí o escritor não quis mais conversar. Preferiu escrever a resposta. No dia seguinte fui buscá-la. E' a seguinte :

— O assunto é tão grave e de tamanha complexidade que eu seria leviano pretendendo sintetizar tudo isso no limite duma entrevista. E' meio desagradável a gente parecer que está fazendo propaganda de suas próprias obras, mas a resposta a certos aspectos da sua pergunta está implicada em alguns dos meus ensaios, ajuntados no Baile das quatro artes e nos Aspec-tos da literatura brasileira. Qualquer análise psicológica, mesmo leve, da manifestação artística nos convence de que a arte é sempre interessada, e que toda obra de arte é, em última análise, "obra de circunstância", isto é, nascida duma circunstância ocasional, social ou individualista, a que o artista atribui o seu interesse. Neste sentido, não é a arte que se modifica, mas a

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qualidade do interesse que leva o artista a artefazer. E' quase exclusivamente na civilização cristã que a inflação do individualismo permitiu essa perniciosa vacilação de qualidade no interesse que, de social que sempre foi, passou muitas vezes a confidencial e individualista. Quanto ao mais, ensaios como A elegia de abril e O movimento modernista provam que não sou nenhum místico da liberdade de pensamento, mas estou convencido que noções como essa ou como democracia implicam um certo número de princípios sem os quais elas deixam de existir. Não é possível a gente imaginar democracia sem opinião pública, assim como não é possível liberdade de pensamento sem aquisição duma técnica de pensar, coisa muito menos freqüente do que se pode supor.

E explicando melhor o que ficou dito atrás:

— De fato quando eu considero que uma grande parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida, estou longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de assinar uma transação com contratos legalizados em cartório. Mas por não possuir uma legítima técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega facilmente a sofismas e confusionismos de mil e uma espécies, de que é malignamente a maior essa tal de "arte pura". Veja bem : não nego a possibilidade nem o valor do que chamamos "arte pura", estou dizendo é que o intelectual se utiliza dela pra se salvaguardar e se livrar de seus deveres morais não só de homem, mas de artista. E o intelectual se retrai na pseudo--pureza do seu pensamento — pensamento!... — enquanto a vida se torna cada vez mais infame lá fora,

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e o homem mais escravo. Mas o intelectual imagina que ele (veja bem: só ele) não é escravo, pois que o seu pensamento, a sua arte é livre! Pois ele não pode compor uma sinfonia "arte pura", um soneto sobre o amor ou sobre coisa nenhuma, um quadro com peixe e margaridi-nhas? Pode sim. "Minha arte é livre!" E o intelectual sofisma que tem liberdade de pensamento, simplesmente porque não tem técnica de pensar suficiente que lhe dê coragem pra levar o seu pensamento até o fim. Porque na verdade a pseudoliberdade dele consistiu em se-qüestrar das suas manifestações intelectuais todos aqueles assuntos momentosos, cuja qualidade de interesse era social, que o haviam de deixar desagradável com o chefe da repartição em que trabalha, o diretor do jornal em que escreve, e mesmo lhe trariam complicações com as gestapos.

PARTICIPAÇÃO

Ainda em resposta à mesma pergunta, continua Mário de Andrade :

— Porém o intelectual não fica só nisso não. A sua escravização aos donos da vida ainda é mais con-fusionista e mais indecente. ele também "participa". Pois ele já não afirmou, num artigo, que era antinazis-ta ? Pois outro dia ele já não aplaudiu todo o mundo porque o Brasil entrou na guerra ? ele já não achou, naquela conversa de bar, que devemos nos precaver contra os possíveis futuros imperialismos das grandes democracias? Tudo isso ele já fez, o herói! E o intelectual descansa, imaginando que o seu dever está

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cumprido, apenas porque ele cumpriu metade (a metade mais fácil) da sua responsabilidade: a responsabilidade para consigo mesmo. Mas a sua responsabilidade para com o seu público, essa ele não cumpriu nem cumprirá. Porque esta é dificil, esta é que impõe mil sacrifícios (de que não é menos doloroso, reconheço, o sacrifício de sua própria arte), esta responsabilidade é que impõe o exercício do seu não-conformísmo. Porque o não-conformismo do intelectual não está apenas em gritar e assinar: "Sou antinazista" "Sou pela democracia"', sou isto e mais aquilo. Isto quando muito é ser tagarela. O não conformismo implica não apenas a reação, mas a ação. E é nesta ação que está a responsabilidade pública do intelectual. A arte é exatamente como a cátedra uma forma de ensinar, uma proposição de verdades, o anseio agente de uma vida melhor. O artista pode não ser político enquanto homem, mas a obra de arte é sempre política enquanto ensinamento e lição; e quando não serve a uma ideologia serve a outra, quando não serve a um partido serve ao seu contrário.

O escritor particulariza ainda mais o seu pento de vista : — Basta de falar em "tese", meu amigo. Demos de barato

que a arte é desinteressada, que o artista é normalmente um ser à parte, um indivíduo que pela natureza de seu "status" pode não ser participante, pode ser um "clerc". Se alguém quiser, eu lhe concedo tudo isto. Mas "normalmente" entenda-se. Eu aceito que um intelectual se isente da guerra franco-prussiana, da guerra russo-japonesa, e até, mais dificilmente já, da guerra do Transvaal ou da sino-japonesa. Eu aceito

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que um intelectual brasileiro hesite em tomar partido diante de Palmares. Admito, compreendo, aprovo e aplaudo a sua não-participação direta em revoluções como as de 24, 30 e inda mais 32. Mas se estas guerras e revoluções poderão estar dentro das condições normal da organização social de uma civilização determinada, o mesmo não se dá em certas condições absolu-tamente anormais da vida, em que é a essência mesma duma civilização que periclita, como na luta entre cristãos e mouros, ou periclita a natureza mesma do homem, como na atual luta contra o nazismo. Deixa, por fim, bem claro onde quer chegar : — Em momentos como estes não é possível dúvida: o problema do homem se torna tão decisivo que não existe mais o problema profissional. O artista não só deve, mas tem que desistir de si mesmo. Diante duma situação universal de humanidade como a que atravessamos, os problemas profissionais dos indivíduos se tornam tão reles que causam nojo. E o artista que no momento de agora sobrepõe os seus problemas de intelectual aos seus problemas de homem, está se salvaguardando numa confusão que não o nobilita.

Diretrizes, Rio de Janeiro, 6-1-1944.

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OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA: "ANDEM DEPRESSA, UM PAÍS NÃO PODE VIVER

SEM CONSTITUIÇÃO"

M longa e documentada entrevista, o sr. Otávio Tarquínio de Sousa, fêz-nos um relato histórico das nossas três Constituintes: 1823, 1890 e 1933. O biógrafo de José Bonifácio e dos grandes vultos da Regência tratou com mais vagar dos trabalhos da Primeira Constituinte, época que coincide, em boa parte, com os seus estudos de historiador político da nossa formação liberal. Mas nem por isso deixou de focalizar, com nitidez, os aspectos mais característicos da 1.a Constituinte Republicana, a de 90. Depois de anotar o que foi a Constituinte de 1933, terminou o autor de José Bonifácio — o mais recente de seus livros, que por sinal acaba de sair do prelo, na coleção "Documentos Brasileiros" da Livraria Editora José Olympio — falando da sua esperança na ação dos constituintes de 1946. que devem, segundo ele, garantir para o Brasil "um regime de verdadeira liberdade, mas liberdade para todos, e não somente para classes privilegiadas".

Conversando com o repórter num tom absolutamente despretensioso, o brilhante "causeur" que é o sr. Otávio Tarquínio de Sousa não teve a preocupação

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de exibir os seus conhecimentos históricos. Pelo contrário. Ao atender a solicitação de Diretrizes, compreendeu desde logo qual era a nossa intenção: informar e esclarecer o público, que aguarda ansiosamente a instalação do Parlamento-Constituinte, a quarta assembléia que, em pouco mais de cem anos, se reúne com poderes para elaborar uma Constituição para o Brasil. Dito isto, passemos a entrevista.

— A Primeira Constituinte — começou o ilustre escritor — instalou-se no dia 3 de maio de 1823, no edifício da Cadeia Velha, no mesmo local onde hoje se ergue o Palácio Tiradentes. Eram cerca de cem deputados, eleitos por voto indireto, de acordo com as instruções baixadas pelo governo. A cerimônia teve início ao meio-dia e meio, com a chegada de D. Pedro I que fora aclamado Imperador a 12 de outubro do ano anterior. Os deputados já o esperavam, desde as 9 horas da manhã. O historiador inglês Armitage, num julgamento extremamente severo, disse que "excetuados os três Andradas havia poucos indivíduos, se é que os havia, acima da mediocridade". Ao contrário disso, nessa primeira assembléia brasileira, tiveram assento, além dos Andradas, homens como José da Silva Lisboa, depois Visconde de Cairu; o sábio Manoel Ferreira da Câmara Bethencourt; Carneiro de Campos, depois Marquês de Caravelas; Miguel Calmon, futuro Re-gente do Império, e Marquês de Olinda; o grupo mais libertário de Pernambuco, representado por Francisco Muniz Tavares, Venâncio Henriques de Rezende, Inácio de Almeida Fortuna, Andrade Lima e outros, vários deles antigos republicanos, que participaram ativamente da Revolução de 1817, para não falar em homens

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como Campos Vergueiro, Veloso de Oliveira, José Arouche de Toledo Rendon, que formavam a vanguarda do grupo paulista.

AS DIFICULDADES DA PRIMEIRA CONSTITUINTE

— A Assembléia de 1823 — continua o senhor Otávio Tarquínio de Sousa — chamada Constituinte e Legislativa, pois enfeixava as duas atribuições, defrontou algumas dificuldades de monta. A primeira foi sem dúvida ter o seu mandato de qualquer maneira limitado, visto que só poderia elaborar uma Carta, que consagrasse o sistema monárquico-constitucional, uma vez que a investidura de D. Pedro I no trono do Brasil baseou-se em origem popular, qual foi o ato da aclamação. O segundo grande obstáculo que deparou foi não haver ainda, para exame e discussão, um projeto de Constituição, adrede preparado. A comissão escolhida para tal fim consumiu cerca de quatro meses sendo lido, afinal, o projeto que se compunha de 272 artigos na sessão de 1.° de setembro. Nele estavam consagrados todos os direitos do homem, segundo a fórmula individualista-burguesa, as grandes reivindi-cações liberais do tempo, ajustadas à monarquia constitucional: Liberdade pessoal, juízo por jurados, liberdade religiosa, liberdade de indústria, liberdade de imprensa, inviolabilidade da propriedade, igualdade dos cidadãos perante a lei, igualdade na admissão aos cargos públicos, igualdade nos impostos, tudo isso figurava no projeto cuja autoria cabe, em parte, a Antônio Carlos. Sem inventar nada, sem ter nada de

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original, refletia as Constituições de outros povos do mundo, nessa fase de ascensão e predomínio da burguesia. Quanto à forma de governo, o projeto-Antônio Carlos consagrava, em última análise, um presidencialismo à americana, que fosse vitalício, e com presidente inviolável, sagrado e perpétuo, no caso o Imperador. Este nomearia livremente os seus ministros, que eram responsáveis, não os exculpando as ordens do Imperador verbais ou por escrito, e de sua referenda depen-deriam para que se tornassem obrigatórios os atos do Monarca. Mas o Imperador não poderia dissolver a Assembléia e o veto às leis seria sempre suspensivo.

A DISSOLUÇÃO DA ASSEMBLÉIA

— Quando começou a discussão do projeto, — prossegue o nosso entrevistado, — já o ambiente político, na Assembléia, estava profundamente perturbado. Não havia, como é fácil imaginar, partidos políticos organizados, nem mesmo correntes de opinião cristalizadas. Não se tinham amortecido ainda os dissídios entre os patriotas que se bateram pela Independência: de um lado o grupo que ficou no governo, com os Andradas à frente; de outro o grupo que poderemos chamar da Maçonaria, capitaneados por Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira, os quais se encontravam exilados. A Assembléia dividia-se em vários grupos, uns de feição democrática mais avançada, outros querendo um mínimo de concessão às reivindicações liberais da época. Encontrar uma fórmula de equilíbrio, já consubstanciada aliás no Projeto-Antônio Carlos, não foi fácil nas discussões. O Imperador

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asseverara, no dia da inauguração da Assembléia, que esperava uma Constituição, "que fosse digna do Brasil e déle". Isto poderia significar que D. Pedro não se subordinaria a qualquer pacto constitucional, que fosse elaborado, e tinha na verdade o sentido de uma advertência. Enquanto José Bonifácio estivesse no governo. poder-se-ia contar com uma solução verdadeiramente digna do Brasil, mas o certo é que, com a queda do Patriarca, em julho de 23, triunfou o elemento nitida-mente reacionário, Desde então, a sorte da Assembléia passou a depender unicamente dos bons e dos maus impulsos do Imperador. Acresce que a Assembléia, dividida em grupos hostis, não teve para dirigi-la a experiência e a força de caráter de um grande presidente, uma vez que, por um excesso de liberalismo, deliberara eleger mensalmente os membros de sua Mesa. Fora do governo, receoso do que acontecia, José Bonifácio ainda se lembrou de propor a aprovação do Projeto por aclamação. Não deu resultado nenhum essa sua iniciativa. E o choque de paixões e interesses, cada vez mais descontrolados, determinou o golpe de força de 12 de novembro de 1823: a dissolução da Constituinte e o exílio dos irmãos Andradas e mais alguns deputados.

UMA CONSTITUIÇÃO OUTORGADA

— E depois?

— Dissolvendo a Constituinte, Pedro I prometera convocar nova Assembléia, à qual seria submetida um

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projeto duplicadamente liberal, de acordo com as próprias palavras do monarca. Mas nem ele nem os homens que o cercavam queriam saber de outra Assembléia. E o que se verificou foi a outorga de uma Carta Constitucional, a 25 de março de 1824, moldada no Projeto-Antônio Carlos, e que obtivera a aprovação "pró-forma" das Câmaras Municipais. Só em maio de 1826, isto é, mais de dois anos depois, é que se reuniria no Brasil uma Assembléia Legislativa, fadada a lutar, até a abdicação de D. Pedro I, pelos princípios fundamentais de um regime democrático. A 7 de abril de 1831, inaugura-se no país uma nova fase da sua vida política. Ê a experiência republicana, é a república provisória da Regência. Embora resguardando o trono do Imperador de 5 anos, D. Pedro II, os homens moços que assumiram a direção da coisa pública se empenharam o mais possível em dar cunho democrático às nossas instituições. A Constituição outorgada foi reformada. após longas discussões, na Câmara dos Deputados, com poderes constituintes, resultando o Ato Adicional, de 12 de agosto de 1834.

A CONSTITUINTE REPUBLICANA

E, agora, o sr. Otávio Tarquínio de Sousa passa a falar sobre a Primeira Constituinte Republicana :

— A Constituinte de 1890 inaugurou os seus trabalhos a 15 de novembro, precisamente um ano depois de proclamado o novo regime, no palácio da Quinta da Boa Vista, tendo celebrado as suas sessões prepa-

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ratórias no edifício do então Cassino Fluminense, depois Clube dos Diários, e hoje sede do Automóvel Clube. Parece-nos extraordinário que a Constituinte Republicana tenha podido levar a cabo a sua tarefa em pouco mais de três meses. Mas várias são as razões que explicam o seu rápido bom êxito. Cumpre, em primeiro lugar, ter em vista a experiência de mais de 60 anos de vida parlamentar, que o Brasil já possuía. Depois, a Assembléia Republicana viu o seu serviço grande-mente facilitado pelo projeto de Constituição que o governo do Marechal Deodoro mandara organizar pela Comissão dos 5, composta por Saldanha Marinho, Rangel Pestana, Santos Werneck, Américo Brasiliense e Magalhães Castro. Do último guardo um depoimento, talvez inédito, que muito honra as boas intenções do proclamador da República. Indo a comissão nomeada agradecer ao Marechal a sua designação, deste ouvira a seguinte recomendação: — "Só tenho um pedido a lhes fazer. Andem ligeiro; um país não pode viver sem Constituição". De fato. Em pouco tempo, a Comissão dos 5 ultimava o seu trabalho, logo entregue ao governo, e por este encaminhado a Rui Barbosa para que o retocasse e corrigisse.

A AÇÃO DE PRUDENTE

— A Constituinte Republicana — disse-nos ainda o autor de José Bonifácio — iniciou os seus trabalhos num ambiente de prevenção, recebida com desfavor pela opinião pública, como teve ensejo de salientar Prudente de Morais, no discurso que pronunciou, de-

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pois de concluída a sua obra. E' preciso desde logo destacar que Prudente, eleito presidente da Assembléia, imprimiu aos debates uma grande ordem e de sua calma e energia dependeram muito o resultado a que se chegou. Barbosa Lima achou certa vez que o debate estava sendo feito trouche e mouche. E Caetano de Albuquerque, para obviar possível balburdia, propôs que a Constituição fosse aprovada por aclamação. Mas a verdade é que Prudente de Morais, nunca se despindo da sua autoridade e do seu prestígio, teve mão firme para levar a termo a grande tarefa. Não lhe faltou sequer ironia para responder, como fêz a certo orador, que o chamou de "mestre-escola de serra acima", ao que ele pediu para "não descer a responder". . . Na Assembléia, predominava a corrente presidencialista sem embargo de nela haver quem defendesse a continuação, sob novos moldes, do parlamentarismo, ensaiado no Segundo Reinado. Grandes foram as discussões Sobre a matéria de competência da União e dos Estados, já que a Federação era um ideal que empolgava os políticos do tempo. Menor não foi o esforço para delimitar os poderes federais, harmônicos e independentes entre si. Nada de novo sob o ponto de vista ideológico-político apareceu nesses debates e os exem-plos de Constituição de outros países surgiam a cada instante. Terá sido este provavelmente um dos maiores defeitos da obra dos constituintes republicanos: a exagerada submissão aos modelos estrangeiros, a incapacidade de fazer ou de criar qualquer coisa de original, que melhor se adaptasse às necessidades do país e às circunstâncias de sua formação histórica.

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A CONSTITUIÇÃO DE 1933

— Boa ou má, perfeita ou imperfeita — observa o nosso entrevistado — a verdade é que o Brasil viveu até 1930 sob a vigência da Constituição de 91. A vida política republicana ressentiu-se sobretudo da falta de partidos nacionais organizados, ao contrário do Império que chegou, ao menos, a esboçar duas grandes correntes políticas: liberais e conservadores. Mal cum prida, desrespeitada, deturpada, em seus princípios básicos, a Constituição de 1891 se tornou um instru mento inoperante e inadequado. Crises econômicas e desentendimentos políticos determinaram os movi mentos revolucionários iniciados em 1922, pela geração dos chamados "tenentes", cujo desfecho foi a Revo lução de 30, encabeçado por três Estados (Rio Grande do Sul, Minas e Paraíba), obedecendo talvez à suges tão de Antônio Carlos: "Façamos a Revolução antes que o povo a faça". . .

Referindo-se ao trabalho da Segunda Constituinte Republicana, o Sr. Otávio Tarquinio de Sousa faz a seguinte observação:

— A Constituinte de 1933 pertence à crônica política contemporânea. Ainda estão vivos quase todos de que dela participaram, com exceção de uma ou outra figura e desse fino e astuto Antônio Carlos, há pouco desaparecido, a quem se deve, pelo tato e conhecimento dos homens, a realização da carta promulgada a 16 de julho de 1934. Acertada e feliz em muitas de suas disposições, a Constituição de 34 não seria o estatuto político próprio para as necessidades do momento.

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A OBRA A REALIZAR

Terminando a sua interessante explanação, o ilustre historiador fala sobre a obra a realizar pelos constituintes de 1946:

— Como a Constituinte de 1823, a Terceira Constituinte Republicana terá inicialmente uma grande dificuldade a enfrentar: um poder executivo saído das mesmas urnas de onde procede o poder constituinte. Ao contrário da de 1890, recebida com prevenção, o nosso povo alimenta uma grande esperança na obra a ser realizada pelos deputados e senadores, eleitos a 2 de dezembro último. Não participo do pessimismo com que alguns a encaram. Certo, da Constituinte, que breve se reunirá, o que se deve esperar não são apenas declarações de direitos civis e políticos. Tais direitos constituem matéria incorporada à civilização ocidental, consolidados com a derrota militar do fascismo. Além deles, é mister incluir na Constituição que se vai fazer garantias efetivas para o trabalho livre, num conjunto de disposições que permitam a homens e mulheres uma vida digna, na qual não haja lugar para explorados e exploradores. Em suma, um regime de verdadeira liberdade, liberdade para todos e não somente para classes privilegiadas. Não será ilusório esperar que isso aconteça porque, pela primeira vez, em nossa terra, se reúne uma assembléia em que se encontram partidos organizados ou a caminho de organização, com programas definidos. A existência de Partidos garantirá a sobrevivência da democracia no Brasil,

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evitando que o país seja surpreendido por manobras traiçoeiras. Eu tenho fé que os constituintes de 1946 estarão vigilantes.

Diretrizes, Rio de Janeiro, 26-1-1946.

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NAIR DE TEFÉ: "SOU FRANCAMENTE PELO SORRISO EM MATÉRIA DE CARICATURAS"

NUM domingo chuvoso, bati palmas à porta do Vilino Nair, em Petrópolis. Atendeu-me uma vistosa negra sorridente, com um grande gorro branco na cabeça.

— Dona Nairr saoiou. ele foi no cinema. Senhorr vem cá quatro horra-s. Pode virr ? Bom.

E assim, tive que voltar às quatro. A Senhora Nair de Tefé recebeu-me incontinenti. Rebeca (é como se chama a negra, que por sinal nasceu nas Bermudas e serve à sua patroa há mais de dez anos) prevenira a viúva do Marechal Hermes da Fonseca da visita do "moço do Rio".

Na sala de visitas do Vilino Nair há um retrato a óleo de uma jovem de olhos azuis, boca miudinha, rosto de pêcego, corado e risonho. É Mlle. Nair de Tefé, aos vinte anos em flor.

Oh, a mocidade de Nair de Tefé! Quanta coisa a recordar! As grandes festas no Rio no começo do século, as elegantes temporadas de verão em Petrópolis, o Teatro Municipal com a Réjane ou com a Ianka Chaplinska, as caricaturas de Rian, o casamento com o Marechal.

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Não sei porque, mas logo de início, tive a im-pressão que a senhora Nair de Tefé vive recordando. A velha casa, onde reside há tantos anos, escondida do mundo, foi construída pelo pai, o barão de Tefé, herói do Riachuelo. Ali viveu alegremente toda a juventude. Ali morreram os entes, que mais amou em toda a vida.

O Vilino Nair é hoje uma casa melancólica. Rian já não mais existe. A caricaturista irreverente desapareceu. Quando está muito triste, d. Nair abre o piano. Toca uma fuga de Bach ou uma sonata de Beethoven. Depois, volta a sorrir, com os seus belos dentes, que são os mesmos de outrora.

Deixemos, por enquanto, as tristezas de lado. Vamos conversar sobre a vida de Nair de Tefé e a arte de Rian, com alegria e bom humor.

UMA CARICATURISTA DE NOVE ANOS

Eu não exagero dizendo que Rian é um dos nomes mais interessantes da caricatura universal. O crítico cubano Bernard G. Barrios dedicou-lhe todo um capítulo do seu La Caricatura Contemporânea, publicado em 1916, de onde extraio o seguinte trecho: "Rian não deforma. O seu desenho é seguro e recorda bastante a fatura de De Losques. Como o conhecido caricaturista francês, Rian prefere os traços essenciais. E' a mesma caricatura esquemática, que fez escola em Paris, porém, mais cruel e menos sorridente. Suas "charges", nas quais o grotesco nem se oculta, nem se dissimula, vivem em cinco ou seis traços. O efeito

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é completado pela contraposição da mancha que nunca chega a aceitar o eufemismo dos meios tons ou da sombra definida, retocada com esmero". E o crítico conclui: "E' a primeira mulher caricaturista do mundo e um dos mais notáveis representantes do humorismo sul-americano".

Aos nove anos de idade, a caçulinha dos Barões de Tefé fez a sua primeira caricatura, o que lhe valeu uma tremenda descompostura da Madre Superiora do Convento de Santa Ursula, em Nice. A história de Rian, como vêem, começa de forma interessante e curiosa. D. Nair conta o episódio com muita graça :

— Não vê que estávamos em Nice. Estudava no Convent de Saint Ursule. Gostava de desenhar, como toda criança. Um dia, resolvi rabiscar a carica tura da professora, com um nariz muito comprido, os olhinhos muito apertadinhos. Pronto. Foi um Deus nos acuda. Minhas colegas acharam uma graça enor me. Mas a professora não achou graça nenhuma. Levou a caricatura à Mère Superieure. E esta, muito gravemente, passou-me um carão daqueles: — **Mlle. de Tefé. Vous êtes une petite perronelle". Está aí no que deu "le réveil de ma vocation artistique". . .

E sem interromper a narrativa :

— Papai, então, nem se fala. Meu pai, sempre tão bondoso, repreendeu-me severamente. Que era uma coisa horrível, que era um despropósito fazer caricaturas, que isto e mais aquilo. Se quisesse apren der pintura, vá lá. Caricatura é que não. Que é que eu havia de fazer?

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EU SOU EU, BOM OU RUIM

Nascida no Rio, em Mata-Cavalos, Nair de Tefé, aristocrata de primeira água, fez toda a sua educação na Europa.

— Depois do Convent de Saint Ursule, entrei para o curso particular de Mlle. Anne Vivaudy, uma fran cesa de Tours, onde se fala o melhor francês de toda a França. Mlle. Vivaudy era um encanto. Dava aulas à cabeceira de uma grande mesa retangular, como a de despachos presidenciais. As alunas sentavam-se em torno tal e qual os ministros de Estado. Éramos quinze. Doze francesas, uma russa, uma norte-ame ricana e uma brasileira,: eu.

Mlle. Vivaudy ficou em Nice e a brasileirinha teve que ir morar em Paris, por causa dos serviços diplomáticos do Barão de Tefé, que assim o exigiam.

— Em Paris, continuei os meus estudos de piano. E como pedisse muito a papai, comecei a aprender pintura. Minha professora, Mlle. Louise Lavrut, expu sera nos salões parisienses. "Et pour cause", não era nenhuma desconhecida. Por mais que quisesse não conseguia esquecer a caricatura. Com grande pena de meu pai, aliás. E era com carinho que ele procurava desviar a minha vocação de caricaturista. Uma vez, papai resolveu pintar umas flores, muito castigadas e cheias de colorido. Escreveu por debaixo do quadro: "Nair fecit". Fiquei zangadíssima e lhe disse: — "Papai, não posso concordar com isso. Não fui eu quem pintou essas flores. O que eu faço pode ser bom ou mau, mas é meu. Nem que eu seja uma pinta-ratos". Coitado de papai! Fiquei tão zangada naquele dia.

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Hoje,, èsse episódio me traz uma doce recordação, é engraçado.

Sorri para dizer : — Eu gosto de ser como sou, a Nair de Tefé

com todos os "ff" e "rr".

NO CURSO JULIEN, EM PARIS

Pouco tempo passou e o Barão de Tefé regressa ao Brasil. — Onde paramos ? — A senhora tinha doze anos. — Em Paris, completei treze. Um ano mais tarde

voltávamos para o Rio. Vim conhecer Petrópolis, vivendo só aqui nesta casa. Quantos anos fazem ? Tantos! Estudava piano, pintura, passeava a cavalo. Divertia-me muito. Mas sempre gostei mais de trabalhar que de divertir. As meninas da minha idade me diziam :

— Nair, vem conosco. Deixe o piano para depois. Respondia-lhes que não! — Eu quero aprender alguma coisa. Eu quero ser

alguém. . . — E quando a senhora voltou a Paris ? — Logo depois. Mas lá ficamos um ano apenas. É dessa,

época a minha aprendizagem no famoso Cours Julien. Recebi no Julien as minhas primeiras aulas de modelos vivos. O Cours Julien era todo freqüentado por moças da alta sociedade. Meu pai nunca deixou de me acompanhar nessas aulas, que eram para mim de grande proveito.

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— E as caricaturas ? — A minha grande fase de caricaturista começaria por

volta de 1906-1907, aqui mesmo, em Petró-polis. E sabe graças à quem ?

— A quem ? — À Laurinda, à Laurinda Santos Lobo. . . — Como foi isso ? Conte-me, por favor. — Nesse tempo, a Pensão Central era o ponto mais

elegante de Petrópolis. Fiz uma caricatura, acho que da Gabriela de Figueiredo. Mostrei-a à Laurinda que ficou encantada: — Mas Nair. . . Está "char-mant". . . Laurinda mostrou a caricatura a uma porção de gente. Foi um sucesso.

PETRÓPOLIS, A ENCANTADORA

E' a grande fase de Rian (a caricaturista achou que devia assinar o seu primeiro nome de traz para diante). Então, D. Nair vai contando para mim:

— Conversa de mulher gira em torno de um só assunto: vestido. Pois não é que as minhas caricaturas viraram assunto também! O senhor sabe, os amigos gostam de se ver criticados uns aos outros. — Faça o Dr. Fulano — me pediam Laurinda e outras ami-guinhas. Faça Beltrano. Faça Cicrana. Não havia como atender a tantas encomendas. Cheguei a desenhar dez e até vinte caricaturas por dia.

— E essas caricaturas se perderam ?

— Sim e não. Muitas foram publicadas por aí. na Careta, no Fon-Fon, na Gazeta de Notícias. Mais

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tarde, ilustrei o livro de Oto Prazeres, Petrópolis, a encantadora.

(Entre parêntesis: depois da entrevista, procurei na Biblioteca Nacional o livrinho do Sr. Oto Prazeres. As ilustrações de Rian — será preciso dizê-lo ? — são muito melhores que as crônicas, pretensiosamente humorísticas. São dezoito ilustrações, estupendas na sua maioria. Algumas, como o "Flirt", "Chegada do trem dos maridos'', "O Genro", "Elegantes", são nota-bilíssimas.

No Vilino Nair há uma vasta galeria de caricaturas. Na parede, quase pregada ao teto, lê-se a seguinte inscrição: "Portraits humoristiques de Rian". O Rio de 1910, em peso: diplomatas, políticos, escritores, poetas, artistas, gente da sociedade. O secretário da Legação Argentina, José Maria Cantillo; Rio Branco, Rui Barbosa, Pereira Passos, Nilo Peçanha, Ataulfo de Paiva, Paul Adam, Réjane, Ianka Chaplinska, José Carlos de Figueiredo e até mesmo o Barão de Tefé o ilustre pai da caricaturista. Fecha o parêntesis).

— Fiz diversas caricaturas de meu pai — diz D. Nair. Mas não fiz de mamãe, nem do marechal.

A GRANDE OPORTUNIDADE QUE PERDEU

E continuamos a conversar : — Eu gostaria de ser uma grande caricaturista

— confessa-me a Sra. Nair de Tefé. Por esse tempo, meu pai já se reconciliara com os meus bonecos. Já não punha embaraços a que eu colaborasse nos jornais e revistas do Rio. Sem remuneração, está claro.

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Permitiu que eu fizesse exposições. E também permitia que todas as semanas exibisse um trabalho meu no cavalete da Casa David, primeiro, ou na Chapelaria Watson, depois, sempre na rua do Ouvidor. Esse cavalete era uma espécie de berlinda do Rio de 1910. Mas o barão de Tefé fazia mais. Tomava assina-tura de todas as companhias estrangeiras que por aqui apareceram nessa época.

— A frisa número 2 do Municipal era sempre nossa. Papai comprou-me uns binóculos especiais, com os quais eu podia acompanhar o jogo fisionômico dos artistas para retratá-los com precisão. Foi assim que garatujei toda a companhia da Réjane, figura por figura, como também Lucien Guitry, o grande come diante pai de Sacha, Ianka Chaplinska e muitas outras cantoras famosas que vieram ao Brasil naquele tempo.

A série da Réjane e sua companhia proporcionou a grande oportunidade de Rian, que havia de ser como uma revolução na vida da aristocrata Nair de Tefé.

— Mas eu recusei essa "grande chance". Meu pai estava muito doente. Não me arrependo.

E D. Nair Tefé me fala da "grande chance" que perdeu: — Foi assim. Meu irmão, que residia em Paris

e que sempre se mostrou um grande entusiasta das minhas caricaturas, achou que devia levar a série da Réjane a um dos maiores jornalistas francês, Pierre Lafitte, diretor do Excelsior. Foi um custo falar com o homem. Até que afinal meu irmão pôde mostrar a Lafitte os meus trabalhos. O jornalista — contou-me depois meu irmão — queria contratar o artista desde

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logo, oferecendo-lhe colaboração efetiva no Excelsior. Mas eu estava no Brasil com meus pais. Para trabalhar no Excelsior tinha que me fixar definitivamente em Paris. Apesar de muito doente, papai queria ir. Poupei-lhe esse sacrifício. Decidi não aceitar o tentador convite de Pierre Lafitte.

UM TEMPERAMENTO ARTÍSTICO CONTRARIADO

E Nair de Tefé ficou no Brasil. Continuou a fazer caricaturas, a freqüentar as festas da "haute--gomme", a declamar nos salões elegantes do Rio. Sim, porque Nair de Tefé foi também uma notável "diseuse", declamando versos em francês com a mesma perfeição que em português.

— Coelho Netto escreveu Miss Love especialmente para mim. Miss Love é uma inglesa velha, caricata, que eu fazia com grande êxito. Sempre gostei de teatro. Adorava representar.

— E as caricaturas, dona Nair? — Ora, as caricaturas. Publicava-as nos jornais e nas

revistas do Rio. Ou então, divertia-me em desenhá-las nos meus leques. Enquanto isso, alguns magazines de Paris: Fantasio, Femina, Le Rire, começavam a publicar minhas "charges". E' só.

— Eu sei que não é. — Depois veio o meu casamento. Mais tarde, quando

meu marido deixou a Presidência da República e fomos para a Europa, expus em Paris e em Lausanne. Desde que me casei, nos onze meses que residi no Palácio Guanabara, deixara de lado as expo-

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sições. Não quis aproveitar-me da situação. Minha carreira de artista estava encerrada.

Antes do casamento, d. Nair de Tefé tomou lições de piano com Oscar Guanabarino:

— Guá foi um grande mestre — disse-me. Como sabia ser professor! As suas discípulas tinham que ter personalidade. Para ele, as condições de sucesso eram: vaidade, orgulho, ambição e teimosia.

— E Rian se acabou para sempre. . . — Sim. Talvez. Ainda outro dia fiz uma caricatura de

Mima Loy. Parece que não saiu má. Anda nem sei onde. — Mas a senhora, quando esposa do presidente da

República, não fazia mais caricaturas ? — Fazia, é verdade; mas não as publicava.

MARECHAL HERMES NA INTIMIDADE

O casamento de d. Nair de Tefé com o marechal Hermes da Fonseca, teve, como era natural, uma larga repercussão.

— Casei-me no Palácio Rio Negro, no dia 8 de dezembro de 1913, dia de Nossa Senhora. Foi o Cardeal Arco-Verde quem celebrou o nosso casamento. Deu-me uma linda imagem de Nossa Senhora, esmal tada, dizendo-me que eu me casava sob a proteção da Virgem Santíssima. Fui imensamente feliz. Meu esposo era um homem extraordinário, uma criatura sobre-humana. Casei-me por amor. Sempre desejei, quando mocinha, unir-me a um homem bom, leal e amigo. O marechal realizou plenamente o meu sonho.

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E D. Nair me disse ainda: — Meu pai, o barão de Tefé, não queria a princí

pio o nosso casamento. Tinha pelo marechal uma grande amizade, sincera e profunda, de longos anos. Temia, por isso mesmo, que a diferença de idade entre nós fosse um terrível obstáculo para a felicidade do amigo, a quem meu pai sempre desejou todas as venturas imagináveis. Mas nós fomos muito felizes. O marechal, que era o melhor dos homens, foi um esposo exemplar.

Fala com gravidade e ternura sobre o marido: — O marechal Hermes é uma figura que tem

sido pouco estudada. Muito pouca gente o conheceu de verdade. Era um homem boníssimo, caridoso. Um generoso coração, um belíssimo caráter. E, além disso, pessoa de muito tino. Não quero falar de sua atuação como político. Não entendo dessas coisas. Nada poderia dizer-lhe a respeito, mesmo porque jamais interferi na sua vida pública. Em minha casa, ouvia falar do marechal como de um homem de bem e um soldado de valor. Sempre o admirei., portanto. Hoje, guardo a sua memória. Venero o esposo e o patriota.

OS GRANDES CARICATURISTAS DO PASSADO

Voltemos, porém, às caricaturas. Rian vai falar um pouco dos seus colegas :

— Sem é para mim o maior caricaturista de todos os tempos, o "primus inter pares". A minha arte,

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contudo, recebeu uma forte influência de De Losques, outro grande caricaturista francês. Em Paris, no meu tempo do Cours Julien, os trabalhos de De Losques me fascinaram. De Losques é irônico, profundamente irônico. Nunca fui pela deformação total do caricaturado. Sou o contrário de um Rouveyre, por exemplo. Este transformava as pessoas quase que em macacos. Eu sou diferente. Os meus bonecos não provocam gargalhadas, despertam sorrisos. Sou francamente pelo sorriso, em matéria de caricatura.

— Por que não faz uma exposição retrospectiva dos seus trabalhos, d. Nair ?

— Acha que interessaria ?! Penso que não. Caricatura é atualidade. Vive o instante que passa. Depois uma exposição dá tanto trabalho. . .

Pergunto-lhe, agora, da sua maneira de desenhar. E d. Nair me responde assim :

— A caricatura nasce da observação. Eu demoro a observar. Sou um pouco lenta, vagarosa mesmo. Estudo bem a pessoa. E então o desenho sai-me de uma só vez, quase que num só traço. E' este, aliás, o segredo da espontaneidade, requisito indispensável para o caricaturista. Se o artista não é natural e espontâneo, adeus caricatura.

Não conhece os caricaturistas modernos, com exceção de Alvarus, que é seu amigo pessoal. Desde a morte da Baronesa em 1934. d. Nair afastou-se definitivamente de qualquer contato mundano e artístico, deixando a presidência da Academia Petropolitana de Letras, que exerceu cinco anos seguidos.

— Se o senhor me pergunta sobre os da nova geração, fica sem resposta. No meu tempo, Emílio

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Cardoso Aires foi o mais interessante, o mais fino. Julião Machado, português de nascimento, era um mestre. E Raul, o veterano Raul, que até agora não se aposentou. Terei esquecido alguém ? Assim, de memória, apanhada quase de surpresa, é bem possível que me tenha escapado um ou outro nome. Que o esquecido não me leve a mal.

FIM DE VISITA

Passam das oito horas. A visita vai longa. — D. Nair, a senhora está triste ? — Recordar não deixa de ser um exercício melancólico. .

. — Imaginava Rian uma criatura alegre. — Qual. Os humoristas, os que fazem os outros rir,

quase sempre são tristes. Não foi Mark Twain quem disse isso ?

Parece que foi. Sei dizer que estou meio enca-bulado a tomar nota das confissões de uma dama ilustre, de uma aristocrata da Primeira República, que é afinal de contas uma senhora simples e bondosa, e além disso, humana como todos nós.

— Já se foram os meus entes queridos — disse- -me. Meu marido, primeiro. Meu pai e minha mãe, depois. Todos eles morreram nesta casa. São golpes rudes que a gente não esquece. Vou vivendo comigo mesma. Felizmente, não me falta "sense of humour". Sou como um famoso escritor francês: "J'ai appris a me suffire..." Vivo com os meus bichos, a minha arte, o meu piano. ..

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D. Nair de Tefé adora os animais. O vilino romântico está cheio deles: nove cães, quatro gatos, três passarinhos e um cavalo — o "Janota".

— Eles também sofrem, coitadinhos. Mas não se queixam...

E, despedindo-se, d. Nair desejou-me boa viagem e muitas felicidades.

Diretrizes, Rio de Janeiro. 7-5-1942.

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PAULO HASSLOCHER: "FUI ELEGANTE POR AMOR AO BRASIL"

AULO Hasslocher é uma das figuras mais interessantes do

Brasil. Entre os homens da sua geração, — a que veio depois de Bilac, — o famoso ex-diretor do ABC aparece como a antítese dos literatos da Confeitaria Colombo e da Livraria Garnier. As suas polainas elegantíssimas e os seus artigos desaforadíssimos fizeram época no tempo das campanhas presidenciais de Rui Barbosa, Epitácio Pessoa e Artur Bernardes.

Nesse tempo, Paulo Hasslocher escandalizava o Rio de Janeiro. Era o tipo mais alinhado da cidade. Muito alto, não dispensava fraque, cartola, gravata plastron, monóculos e polainas para sair à rua, onde vivia como um ser inteiramente estranho ao carioca, cidadão que se divertia na "Maison Moderne" e achava o trenzinho do Pão de Açúcar a oitava maravilha do mundo.

Esse Paulo Hasslocher não passa de um maluco. . . diziam dele a três por dois.

Pois bem. Enquanto os últimos poetas do parnasianismo procuravam a chave de ouro de um soneto que falava na Grécia ou em Roma, o "maluco", que desprezava essa gente, começou a trabalhar no ABC semanário político dirigido pelo italiano Ferdinando

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Borla. E' onde vamos encontrá-lo, debruçado, sobre uma pequena mesa de pinho. Descalçou as luvas bonitas, deixou o fraque descansando numa cadeira e, de mangas arregaçadas, escreve um violentíssimo artigo de parceria com Luiz Morais. Contra quem ? Pode ser contra Rui Barbosa ou contra Carlos de Laet, pois contra um e outro investiu a furiosa pena do jornalista que não tinha medo da careta de ninguém.

Hoje, o antigo panfletário não trabalha mais sobre a mesa de pinho da redação do ABC, de saudosa memória. Nada de fraque, cartola, plastron, monóculo ou polainas. O atual Paulo Hasslocher veste-se como qualquer mortal. E em lugar do monóculo petulante, duas modestas lentes bifocais, com aros de tartaruga, cobrem-lhe os olhos, que não perderam ainda a maliciosa vivacidade da juventude.

Ministro plenipotenciário do Brasil, Paulo Hasslocher nada tem de um diplomata do bom "vieux temps". Ê um homem que age, discute e chega mesmo a brigar se for preciso. Quando cônsul nos Estados Unidos, andou caçando os revolucionários que queriam comprar aviões e navios para derrubar o governo. De volta à pátria não faz muitos meses, dedica-se de corpo e alma à solução de inúmeros e complicados problemas, na Comissão de Defesa da Economia Nacional ou na Junta Reguladora do Comércio de Fios e Tecidos, na Comissão Técnica de Estudos sobre a Folha de Flan-dres ou na Junta Reguladora do Comércio da Laranja.

Durante um almoço na Taberna da Glória, fui apanhando expressões e comentários de Paulo Hasslocher, que procurei transformar numa entrevista. Pode ser que muita coisa tenha eu acrescentado, tal a

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minha preocupação de ser fiel à personalidade dos outros à custa de suas próprias palavras. E' possível que isso tenha acontecido.

Precavido como poucos, Paulo Hasslocher, considerando os prós e contras da sua entrevista, decidiu responsabilizar o cardeal D. Sebastião Leme pelas suas "boutades" :

— Você compreende, meu caro Francisco de Assis Barbosa, o Cardeal é nosso vizinho. Tudo que eu lhe disser, portanto, será como que sob a inspiração de Sua Eminência, que a esta hora deve estar no Palácio São Joaquim.

No entanto, se Paulo Hasslocher fosse um homem solene, esta reportagem seria a conversa mais cacete que se possa imaginar. Conversaríamos fatalmente sobre a laranja ou sobre a folha de Flandres e o leitor teria que suportar colunas e mais colunas com muito cifrão e muita estatística. Felizmente, o meu entrevistado, como já pressentiram, nada tem de solene. Trate-se de um conversador de primeira, capaz de emendar o dia com a noite contando histórias. O seu forte está em rememorar episódios do passado, que ele sabe vestir com graça e colorido. Ora, como diz o outro, recordar é viver. Vamos, pois, recordar e viver a estupenda mocidade do nosso herói.

HÁ TRINTA ANOS...

Paulo Hasslocher começa a rememorar:

— Aos 21 anos, entrei para o Supremo Tribunal Federal. Não como ministro, é claro, mas como oficial

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da Secretaria. Ganhava seiscentos mil réis para redigir ofícios aos meritíssimos juizes de Direito de todo o Brasil.

Era sempre o último a assinar o ponto. Descalçava as luvas, punha a bengala e a cartola em cima da mesa e sapecava o jamegão. O diretor da Secretaria, excelente pessoa, pedia-me com o coração nas mãos :

— Paulo, não faça mais isso. Entre discretamente na repartição. Venha assinar o ponto na minha sala, por favor.

Ao fim de algum tempo, como o serviço apertasse, resolvi contratar ura dos contínuos para meu secretário particular. Pagava-lhe trezentos mil réis por mês e a medida que ia sendo aumentado no meu ordenado subia também o dele.

Há trinta anos, João do Rio e eu fomos os elegantes mais notáveis da cidade. Paulo Barreto fazia duas ou três "toilettes" diárias. Depois do almoço ia para casa descansar, tomar banho e trocar de roupa. Depois do jantar, a mesma coisa. Naquela época, o Lapa e o Estrangeiros eram os grandes hotéis do Rio. Um banheiro em cada um deles e sempre desocupado. . .

O QUE ERA O "A.B.C."

Paulo Hasslocher pediu fatias de peru ao garçon. Morde uma azeitona e explica o que era o ABC:

— Ferdinando Borla dirigia o jornal, que saía todos os sábados, à meia-noite, contando as novidades políticas da semana. Comecei a trabalhar ao lado de Luiz Morais, que é um dos maiores escritores do

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Brasil. Tomei gosto pela coisa e um belo dia o Borla vendeu-me o ABC. Dei-lhe 25 mil liras, pagas em prestações mensais, pelo título, por duzentos e tantos clichés, duas cadeiras e uma pequena mesa de pinho. Luiz Morais e eu. durante dezesseis anos, fizemos o ABC. Era um jornal vibrante e combativo. Acompanhou todas as campanhas presidenciais, acertando sempre. Apoiou a candidatura Hermes da Fonseca. Obrigou Rui Barbosa a renunciar à senatoria. Denunciei no meu jornal a sua condição de presidente de uma companhia nacional de soda cáustica e como tal incompatível para exercer o mandato de senador.

— No ABC colaboraram os maiores jornalistas do Rio. Gente como Antônio Torres, Lima Barreto, Oliveira Lima, a quem pagávamos cinqüenta mil réis por artigo. Sem falar em Osório Borba, Benjamim Costallat, Hamilton Barata e Teixeira Soares, rapazes que o ABC revelou.

A POLÊMICA COM ANTÔNIO TORRES

O garçon trouxe as fatias de peru. Paulo Hasslo-cher ia comendo e falando:

— Quando mais acesa ia a campanha contra os portugueses, no governo Epitácio Pessoa, parte da im prensa carioca começou a atacar ferozmente o escritor Carlos Malheiro Dias. O ABC ficou do lado dele. E eu compareci ao célebre banquete que então lhe ofe receram em desagravo. Os mais ardorosos lusófobos da época, chefiados por Antônio Torres, Bastos Tigre e Cândido de Campos, ficaram na porta para vaiar o

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homenageado e os homenageantes. Assim aconteceu. só este seu amigo escapou à tremenda vaia dos inimigos de Malheiros Dias.

Antônio Torres era meu amigo, colaborava no ABC. Por este motivo, segundo me explicou, evitou que eu fosse também vaiado.

Mas como o mundo dá muitas voltas, o meu amigo Antônio Torres acabou virando contra mim. Primeiro, mandou-me um artigo atacando a Alemanha, logo depois da declaração do estado de guerra, em 1917. O meu sobrenome germânico incitava-o. Publiquei o artigo. Veio um segundo. Este, contra os portugueses. Eu, como genro de português, senti-me atingido. Respondi a essas insinuações malévolas. Pronto Começou a polêmica. Torres no Correio da Manhã e na Gazeta. Eu no ABC.

UM DUELO A ESPADA

E Paulo Hasslocher continua a rememorar :

— A polêmica ia cada vez mais feia. Formaram-se grupos. Contratamos capangas. Passei a andar de chicote na mão, protegido pelo "Bonitinho do Castelo", pelo "Cabo Elpídio" ou pelo "Bamba da Saúde". Até que decidimos resolver a polêmica com um duelo. Georgino Avelino foi o portador do meu desafio. Antônio Torres, que morava na rua Silveira Martins, topou a parada sem discutir.

O meu duelo com Torres foi um duelo de verdade muito diferente dos duelos a revólver que se realizaram nos primeiros anos da República. Efigênio de

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Sales propôs que lutássemos a espada. Ambos desconhecíamos a esgrima. A luta seria, assim, de igual para igual.

Com os nossos padrinhos e médicos, batemo-nos num barracão do Morro da Viúva, no mesmo local em que hoje se ergue a Escola Ana Neri, às duas horas da manhã, para evitar a intervenção da polícia. Antônio Torres portou-se com uma bravura extraordinária. Feri-o dezoito vezes. E não se deu por vencido.

Assentamos ali mesmo que a polêmica estava encerrada e que nunca mais escreveríamos um sobre o outro, o que lealmente cumprimos.

Meus padrinhos foram Georgino Avelino e Luiz Morais. Os de Torres, Efigênio de Sales e Adoasto Godói. Meu médico, o Dr. Dionísio Cerqueira. Gastão Cruls, o de Antônio Torres.

HOMENS E MULHERES NAS JANELAS

Com a faca de mesa, Paulo Hasslocher descreve-me os dezoitos golpes que desferiu contra o escritor das Verdades Indiscretas.

— Foi este o único duelo a espada que houve na República — conclui, sempre exuberante.

Volta às fatias de peru e a falar no ABC :

— Luiz Morais era o escritor. Eu, a flama da revista. Antônio Torres taxou-me de ignorante. Mas a verdade é que o ABC morreu, quando deixei a sua direção. Numa época de negativismo, em que homens e mulheres viviam nas janelas, preguiçosos e cansados, o meu semanário agitava idéias construtivas, como a

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fundação de um porto livre em Pernambuco ou a criação da siderurgia em Minas. Naquele tempo, em que os bondes usavam ceroulas, o Brasil parecia que não ia para a frente. Somos um país sem capitais, diziam os eternos pessimistas. O estribilho ganhava foros de verdade. A descrença nas nossas possibilidades econômicas passou a ser quase que geral.

Olavo Bilac proclamava que o trabalho fora feito para negro e português. As "coteries" literárias — Bilac, Guimarães Passos, Coelho Neto, Oscar Lopes, Emilio de Menezes e outros — nao queriam saber dos novos que deixassem de comparecer ao beija-mão na Colombo, regado muitas vêzes à parati-com-goma.

Os intelectuais brasileiros viviam ilhados, com um olho em Portugal e outro na França. Copiavam Fialho e Eça de Queiroz. Imitavam Heredia e Leconte de Lisle. Desse Leconte de Lisle é que eles gostavam de verdade. ..

TRÊS HOMENS QUE SABIAM INGLÊS

Depois do peru, a sobremesa. Mas antes de chegar a ela, Paulo Hasslocher conta-me que os três homens, dos que mais se destacaram no Brasil, nessa primeira metade do século, eram dos poucos que liam inglês entre nós :

— Rui Barbosa, que adaptou a Constituição dos Estados Unidos. Assis Brasil, que foi o primeiro a falar em representação e justiça no seu famoso livro, O Regime Democrático, cujas idéias eram inaplicáveis ao meio brasileiro. E Machado de Assis, que encontrou

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nos humoristas ingleses as suas influências mais destacadas . Há vinte ou trinta anos passados, lia-se muito pouco no

Brasil. Um livro de sucesso alcançava quinhentos exemplares, no máximo mil. Hoje, dos livros de José Lins do Rego e Érico Veríssimo vendem-se dezenas e dezenas de milhares. E' fabuloso o nosso progresso nesse sentido.

O ABC também editou. Foi por minha sugestão que Alberto de Faria escreveu o seu livro sobre Mauá. Alberto de Faria morava em Petrópolis, numa casa que pertencera a Mauá. Um dia, eu lhe propus:

— Alberto, você é rico. Por que não aproveita as suas horas a escrever um livro sobre Mauá ?

Alberto de Faria concordou, e nos deu essa obra notável que o levou à Academia. Além de Mauá, o ABC publicou muitos outros livros, inclusive as Obras Completas de Tobias Barreto, sob o patrocínio do governo sergipano, que alcançaram, aliás, o maior sucesso de livraria do tempo. Tiramos dois mil exemplares de cada volume. E hoje estão todos esgotados.

O FUTEBOL COMO FATOR DO PROGRESSO

Salada de frutas para a sobremesa. Paulo Hasslo-cher conversa, agora, sobre o futebol, que ele considera um fator importantíssimo no progresso do país:

— Antes do futebol, não havia espírito associa tivo no Brasil. Foi ele um elemento de primeira ordem para que desenvolvêssemos o sentimento de clube de que tanto carecíamos. Eu bem me lembro da hostili-

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dade com que foi recebido o futebol. Tinha 10 ou 12 anos, quando voltava de um jogo com um grupo de meninos da minha idade. Trazia a pelota de couro numa das mãos e vinha naturalmente suado e vermelho. Encontrei-me com um senador do Ceará, que me olhou com tristeza, todo circunspeto, dentro das suas calças brancas.

— Menino — disse-me. E' uma pena o filho do senador Germano Hasslocher andar a praticar esse ne- fando esporte de pés.. . Se isso faz bem à saúde, juro que prefiro ver meu filho tuberculoso a vê-lo jogando futebol. . .

Veja só. Eu era doido pelo futebol e decerto não fui atrás das patéticas palavras do senador cearense. A minha turma do Colégio Alfredo Gomes — Raul Barreto de Albuquerque Maranhão, Almir Antunes. João Batista Lemos, eu e mais alguns — treinava todos os dias num campo alugado a 10 mil réis por mês, onde mais tarde se construiu o estádio do Fluminense.

PIONEIRO DOS TIROS DE GUERRA

Uma das glórias de Paulo Hasslocher é a de ter sido pioneiro dos tiros de guerra no Brasil, ao tempo do governo do Marechal Hermes da Fonseca :

— Mas nunca passei de cabo. Primeiro, pertenci ao Tiro de Guerra n.° 7. Depois ao célebre Tiro de Guerra n.° 5, para o qual arranjei cerca de oitocentos e cinqüenta sócios. Fizemos uma parada espetacular, com dois mil e quinhentos soldados. Fui eu o autor do novo uniforme das linhas de tiro, que constava do seguinte: um quépi russo, um culote espalhafatoso,

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chicote, monóculo.. perneiras inglesas e luvas. Diniz Júnior e Gustavo Barroso logo me imitaram. E o bom do Shiamarelli, meu alfaiate desse tempo, dizia-me, esfregando as mãos de contente :

— Grazzie, dottore. Io fatto due mile uniforme. A verdade é que, devido ao uniforme elegante e

espalhafatoso, todo o mundo queria ser reservista. Atacaram-me uma vez perante o Ministro da Guerra e este observou.

— O Paulo Hasslocher está certo. ele está fazendo um grande bem ao Brasil.

— Na verdade, eu fui elegante, porque amava o meu país.

Chegou a hora do café. Paulo Hasslocher diz-me o seguinte :

— Hoje tudo mudou. O Brasil progrediu muito. G impulso inicial veio com o barão do Rio Branco, que começou por ensinar os homens inteligentes e vadios a pegar no pesado. Mas as primeiras obras de vulto surgiram mesmo depois da Revolução de 30. São elas: o saneamento da Baixada Fluminense e a organização da Companhia Siderúrgica Nacional.

O brasileiro já não é mais aquele pessimista que vivia a alardear o seu desânimo.

— Qual o que. Nada podemos fazer. O Brasil é um país sem capitais. A verdade é que estamos realizando coisas notáveis. Até navios de guerra cons truímos. Agora, temos que marchar para a frente, sempre para a frente. . .

E Paulo Hasslocher bebeu o último gole da sua xícara de café.

Diretrizes, Rio de Janeiro, 5-2-1942.

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MAGDALENA TAGLIAFERRO: "FAÇAMOS A REVOLUÇÃO NO ENSINO MUSICAL"

M AIS de trinta nações de quatro continentes aplaudiram a, arte da nossa patrícia Magdalena Tagliaferro, considerada pelos entendidos uma das mais perfeitas pianistas do mundo. Aos treze anos, a Tagliaferro conquistava o primeiro prêmio do Conservatório de Paris, na Classe de Marmontel, num concurso que ficou memorável. Seu nome logo se popularizou na capital francesa e passou a ser conhecido em toda a Europa. Era uma grande revelação musical, das que surgem uma vez em cada geração.

Magda Tagliaferro é uma criatura dotada pelos deuses de qualidades extraordinárias. À sensibilidade invulgar da artista juntam-se o talento acima do comum e o caráter pessoal de uma técnica impecável. Interpretando a música clássica, como a romântica ou a moderna, ela nos aparece sempre como uma criadora de poesia.

Em França, Magdalena Tagliaferro prestou inestimáveis serviços à divulgação da música moderna, razão pela qual um grupo numeroso de artistas, tendo à frente Gabriel Pierné, solicitou a concessão da Legião de Honra para a ilustre pianista brasileira, que é, assim, uma das raras mulheres que possuem o grau superior

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de "officier" da mais alta condecoração da República Francesa. Há muitos anos que Magdalena Tagliaferro se dedica ao

ensino do piano. No Conservatório de Paris, a maior escola de música do mundo, onde lecionou vários anos, acumulou certamente uma grande experiência. No Brasil, Magdalena Tagliaferro organizou dois cursos de interpretação e alta virtuosidade, um no Rio e outro em São Paulo, o primeiro a pedido do ministro da Educação e Saúde, sr. Gustavo Capanema, e o segundo a convite do interventor paulista, senhor Fernando Costa. Esses cursos têm sido alguma coisa de notável na vida musical e no ensino artístico do nosso país.

Magdalena Tagliaferro foi solista das maiores orquestras sinfônicas da Europa e dos Estados Unidos, sob a regência de maestros como Weingartner, Bar-birolli, Wolff, Stokowski, Fauré, Georgesco e tantos outros. O seu repertório é enorme, um dos maiores que se conhecem, pois a pianista executa com o mesmo brilho e igual maestria as escolas musicais mais di-versas .

Na entrevista que concedeu a Diretrizes, Magdalena Tagliaferro traça o plano de uma verdadeira revolução no ensino musical. As suas palavras são uma advertência, corajosamente dirigida aos maus professores que deseducam o gosto artístico da mocidade e do povo.

A CASA DE VAUCRESSON

Burlando a censura postal dos homens de Vichi, os franceses têm feito sair do território ocupado pelos

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nazistas milhares e milhares de cartas clandestinas. São, na maioria, bilhetes quase telegráficos, escritos às vêzes em linguagem cabalística, que levam para outros mundos notícias que a Gestapo não gosta de divulgar. No dia em que o último soldado do Eixo tombar na trincheira, a história desse correio secreto francês, que se organizou de forma tão admirável, sob o terror hitlerista, há de constituir um dos momentos heróicos da vida do grande povo vendido por Pierre Laval.

Em dezembro do ano passado, Magdalena Ta gliaferro recebeu, numa carta clandestina, a comunicação de que a sua casa de Vaucresson, conhecida em toda a França, tal o número de artistas, escritores, e políticos que ali se reuniam, tinha virado quartel general de um Estado Maior do Exército Alemão. Ao lado de Saint Cloud, distante vinte minutos de Paris, numa situação maravilhosa, o invasor não podia se instalar melhor.

— Imagine que a minha casa de Vaucresson — disse-me a pianista brasileira, no início desta entre vista — tem onze quartos enormes, todos com ba nheiros. Não tenho dúvidas, o Estado Maior alojou-se muito bem.

Os olhos da Tagliaferro brilham diferente quando ela fala da sorte da França:

— O povo francês está sofrendo conseqüências terríveis da política de avestruz de uns dez ou quinze homens. Eles não queriam ver o perigo que se avi zinhava pouco a pouco. Os maus políticos fizeram a desgraça da França. Uma súcia de Lavais entregou

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o país aos seus maiores inimigos. O povo quis defender a pátria mas era impossível. Observa:

— O francês tão nobre e tão sensível não é gente combativa. Mas sabe defender o solo pátrio como um leão. Pobre povo francês!

E como quem corrige um erro imperdoável:

— Grande povo francês! Eu bem imagino o quanto ele está sofrendo!

LA PETITE TAGLIAFERRO

A França fez a glória de Magdalena Tagliaferro. Nascida em Petrópolis, educada em São Paulo, tinha doze para treze anos quando foi morar em Paris. Seus pais eram franceses. Paulo Tagliaferro, engenheiro diplomado pela "École Central", e que andara pelo Chile e pela Argentina, antes de fixar-se no Brasil, não descansou até que um dia decidiu seguir a sua verdadeira vocação — a arte. Estudara canto, piano e composição. Em vez de montar um escritório de arquitetura, organizou em São Paulo uma escola de canto. Uma escola de canto que marcou época. Passou a ser conhecido em toda a Paulicéia como o "médico das vozes".

Magdalena tinha por quem puxar. Procurou o piano sozinha. Aos cinco anos tocou a primeira música. Aos oito. acompanhava o coro da Escola de Paulo Tagliaferro, que se compunha de vinte e tantas vozes. Ai daquele que desafinasse! A pequena acompanhadora

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apontava logo com o dedinho, para a direita ou para a esquerda:

— Foi ele! A menina começava a brilhar muito cedo. Um ano mais e

dava em Petrópolis o seu primeiro concerto com orquestra. Tocou o Concerto em Ré Menor de Mozart. Foi um sucesso. Aos onze, faz a sua primeira "tournée", indo ao Rio Grande do Sul. Era sucesso sobre sucesso. Mas um dia, Paulo Tagliaferro cai doente e a família teve que se mudar para a Europa. Em Paris, Magdalena entra para o Conservatório. Em menos de um ano sai diplomada, conquista o primeiro prêmio, tocando a Sonata em Lá Menor de Weber. Cortot, Pugnot, César Galeotti, Diemer, Plante e Mos-covsky, que estavam na banca, presidida pelo diretor do Conservatório, Gabriel Fauré, ficaram entusiasmados com a "enfant prodige". Os jornais falaram do concurso de "la petite Tagliaferro" como de um acontecimento excepcional.

ENTREVISTAS E ENTREVISTAS

A artista não gosta de contar em público os sucessos da sua carreira.

— Acho horrível quando leio nas entrevistas o relato de êxitos pessoais. São coisas que me irritam ouvir uma pessoa dizer: Em Nova York, o público delirou; em Paris, a mesma coisa; eu não sei onde houve isto e mais aquilo.

E' que Magdalena Tagliaferro tem sempre alguma coisa para dizer. Daí a posição de defesa que assume

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diante do repórter. Quando lhe perguntam qualquer tolice, ela responde com ironia ou faz "blague". Nos Estados Unidos, por exemplo, um jornalista pediu a sua impressão sobre o Empire Building. Magdalena Tagliaferro deu-a, sem pestanejar:

— Tive uma decepção, uma grande decepção. . . — Como ? Então, acha pouco oitenta andares para um

edifício ? — Não discuto isso. Mas é que pensei que o Empire

Building tivesse cento e oitenta andares. . . Numa outra entrevista, Magdalena Tagliaferro declarou

que não trouxera o seu piano de cauda, de Paris porque o instrumento não coubera no ''clipper" em que ela fez a travessia transoceânica de Lisboa a Nova York.

— Os repórteres norte-americanos — explica-me então — gostam de coisas sensacionais. Resolvi, por causa disso, inventar essas coisas para satisfazer o gosto deles.

O CONSELHO DE BOUCHERIT

Não há outro remédio. A entrevista que tenho a fazer com Magdalena Tagliaferro tem que ser séria. E' sobre o ensino musical. Faço uma porção de perguntas . Quando começou a estudar ? Acha que o "primeiro prêmio" lhe valeu alguma coisa ? Ela me responde tudo isso de uma só vez :

— Dois anos depois do meu primeiro prêmio, no Conservatório de Paris., é que eu comecei a estudar

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de fato. Quando apareci, pensava que os dons de Deus bastariam para fazer uma grande artista. Pura ilusão! Foi Jules Boucherit, o célebre violinista, quem me abriu os olhos. Depois de dois anos, de mais de 40 concertos juntos, com música de câmera, um dia, ele me disse: — "Você parou. Todos .nós esperamos muito de você. Mas se continuar assim, não será a grande pianista que promete. Não apareça mais em público. Vá para casa. Estude. Você precisa estudar muito ainda".

— Pobre "menina-prodígio"! — aparteio. Magdalena Tagliaferro retruca-me, com vivacidade:

— Ah, se todas as "meninas-prodígios" levassem um carão desses, de vez em quando, garanto que não havia tanta pianista ruim na face da terra. Não sabe o bem que me fez o conselho de Boucherit. Só então compreendi que estava seguindo caminho errado. A princípio, sofri muito. Fiquei em casa, chorando oito dias e oito noites sem parar. O remédio era estudar sem preguiça. Pois foi o que fiz. Estudei dois anos a fio. Durante todo esse tempo não apareci uma única vez em público.

Confessa francamente:

— O sucesso fácil estava me fazendo retroceder. Consegui vencê-lo a tempo de me salvar. Dois anos me bastaram para curar. Reapareci conscientemente no concerto do Conservatório de Paris, sob a regência de Reynaldo Hahn, tocando Mozart, Beethoven e Grieg. Mas, aí, então, eu já sabia o que estava fazendo. Tudo por causa do conselho de Jules Boucherit.

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OS MESTRES DE MAGDA

Três mestres se destacam na carreira da notável pianista brasileira. São eles Paulo Tagliaferro, Gabriel Fauré e Alfred Cortot. Magdalena Tagliaferro fala dos seus mestres assim :

— O primeiro foi meu pai. Eu tive a sorte de encontrar, na minha casa, um mestre compreensivo e inteligente, que soube descobrir e desenvolver os dotes que Deus me deu. A iniciação., sempre tão perigosa para a vida de um artista, eu a recebi como poucos. Meu pai era um grande professor.

— E Alfred Cortot? — Este foi meu professor durante três anos. Aprendi

muita coisa com ele. E parece que aprendi tanto que, um belo dia, Cortot descobriu que eu também possuía uma voz excelente. "Eu poderia acompanhar-te ao piano" — dizia-me. O mestre queria desviar a discípula da sua vocação. Fizemos a experiência. E eu dei vários concertos de canto, na França e na Bélgica, chegando mesmo a interpretar peças, como o L'enfant prodigue, de Debussy e o Fausto de Schumann, com coros.

— E Fauré? — Gabriel Fauré foi um compositor extraordinário, um

dos maiores nomes da música moderna. Fui e sou ainda hoje intérprete entusiasta das suas músicas Fiz com ele "tournées" memoráveis em diversos países da Europa. Só tocávamos música de Fauré. Na Sonata para piano e violino, Gabriel Fauré virava as páginas para mim. E na execução da Balada para piano e orquestra, era ele que ocupava modestamente

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o lugar do segundo piano. Gabriel Fauré não tinha pose. Encantava a sua simplicidade de maneiras. Gostava muito de chupar laranjas, quando eu as descascava à moda brasileira.

O TALENTO E' QUASE TUDO

Não posso deixar de olhar a roseta encarnada da Legião de Honra, na blusa azul de Magdalena Ta-gliafenro, o que me faz lembrar a França mais uma vez. Estou conversando com uma senhora ilustre, que diz coisas inteligentes e que parece não acreditar muito na glória. Numa coisa eu logo vi que ela acredita. É no seu próprio talento.

— Sem talento não se faz um artista — disse mais de uma vez no decorrer da nossa entrevista. Mas o talento não é tudo. É quase tudo. Às vezes, é coisa tão poderosa que um verdadeiro artista acaba vencendo os defeitos que adquiriu com os maus pro fessores. Isso pode acontecer, não há dúvida- O certo, porém, é que muito talento vem sendo estragado des de o começo, irremediavelmente. Há professores que matam artistas.

E mais adiante: — Eu não posso me queixar dos mestres que

tive. Bem, ao contrário. Mas nem por isso deixo de pensar nos bons alunos entregues aos maus professo res. É uma lástima. Os chamados defeitos adquiridos que encontrei em muitos jovens de talento me fizeram sair à procura de remédio para tantos males.

Tiro as minhas deduções: os maus professores levaram Magdalena Tagliaferro a lecionar piano.

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UM CRIME ENSINAR ERRADO

Magdalena Tagliaferro fundou uma escola de piano em Paris, alguns anos antes de ser chamada a ensinar no Conservatório de Paris. Continua a conversar comigo, como professora:

— Ensinar errado é um crime. Nos anos que lecionei na França, pude verificar até onde pode che gar um professor incompetente. Vi alunos de piano com os músculos do braço em petição de miséria Rapazes e moças que padeciam de caimbras doloro- síssimas, por culpa de maus professores. Vai-se preso por muito menos, No entanto, não há tribunal que julgue os professores que ensinam errado.

Parece que descobriu o porquê da proliferação dos maus professores, quando me diz:

— O amadorismo é o grande culpado. Há pes soas que tocam por tocar, porque é "chic". Eu tenho muita pena das crianças que sentam ao piano e to cam para as visitas. — "Tão engraçadinhas" — "E' um amorzinho!" — Como que estou ouvindo as titias e as vovós cheias de entusiasmos carinhosos. Esse sentimentalismo é que tem feito muito desastre no ensino musical.

Magdalena Tagliaferro é "tranchant", nesse particular :

— Sim, porque convenhamos, nem todo mundo tem necessidade de ser pianista. Não é indispensável que todo mundo saiba tocar piano. Mas infelizmente nem os papás nem as mamas pensam assim. E quem

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paga o pato é o pobre vizinho que não tem nada com isso.

Conta-me, então., uma coisa deliciosa :

— O professor deve ser, antes de outra coisa, honesto. Se o aluno tem ou não tem jeito, logo se vê. Se não nasceu mesmo para tocar piano, não deve perder tempo com notas e pautas. Nesses casos, eu costumo agir diplomaticamente. Devolvo o aluno ao pai, acon selhando-o que tente por exemplo as artes plásticas. Que Deus e os pintores me perdoem, mas é que pin tando "cachepots" e almofadas, o "enfant gaté" se diverte e deixa a vizinhança em perfeita paz, não é mesmo ?

"A ESCOLA DOS MEUS SONHOS"

Faço uma proposta a Magdalena Tagliaferro. A de formarmos juntos uma escola de ensino pianístico. Suponhamos que tivéssemos plenos poderes para isso, digo eu.

— A pergunta é terrível — objeta-me. Poderei respondê-la não com a intenção belicosa de pretender levantar polêmicas. Mas para falar-lhe de uma forma mais concreta, ao alcance principalmente daqueles que não entendem do assunto, de como penso deve ser ministrado o ensino musical. Vamos traçar o plano da escola dos meus sonhos. E' uma hipótese um tanto vaga e nada pretensiosa. Assim concordo. Está bem?

— Pois não. Pois não. A senhora tem autoridade e experiência para isso.

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— Devo ter alguma . ..

— Comecemos, então. . .

— Em primeiro lugar, a escola dos meus sonhos estaria localizada num edifício moderno, bem construído, com instalações confortáveis, salões amplos, com boa acústica, ar condicionado, um edifício que fosse, enfim, bem diferente da nossa antiquada e tão querida Escola Nacional de Música. A arte precisa morar numa casa bonita. Não é nada demais que eu lhe fale assim. Para usar uma expressão bem feminina, as jóias são guardadas nos escrínios. A música também exige o seu.

— À porta, uma inscrição . . .

— E por que não? Sim, uma inscrição, que podia dizer o seguinte: "Nada mais triste que a mediocridade. Não devemos encorajar os medíocres".

Há uma outra coisa importante que ela faz questão de frisar:

— A minha escola teria classe com número li mitado de alunos. Nos concursos ou nos exames, os professores não seriam examinadores. Escolheria artis tas de valor reconhecido, fora do corpo docente, para examinar os meus alunos. Gente da altura de um Villa-Lobos, de um Tomás Teran, de um Alexandre Brailowski. Gente boa, mas que não fosse professor da escola...

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O "PEQUENO MOZART"

E Tagliaferro continua falando, no mesmo tom de franqueza :

— Para traçar o plano da escola dos meus sonhos, usaremos um símbolo que foge, é verdade, à regra geral, mas que nos ajudará a compreender melhor certas nuan ças do ensino musical. Esse símbolo chamaremos de "pequeno Mozart". Se todas as naturezas humanas fossem iguais umas às outras, a coisa mudava de figura. Poderíamos, então, preparar pianistas sob medida, tendo em vista uma só receita. Temos que atender, porém, a detalhes de ordem psicológica, e até mesmo fisiológi cas, a certas pequenas coisas importantíssimas, que mesmo quem lida com crianças pode entender.

Para os primeiros anos do aprendizado pianístico Magdalena Tagliaferro nao prescindiria de forma alguma da colaboração de professores especializados em educação infantil.

— O primeiro tempo da nossa Escola, — prosse gue — ou seja, o Curso de Iniciação Musical, receberia os meninos o mais cedo possível, a partir dos seis anos. No máximo, até nove anos. De um modo geral, o pequeno estudante de música deve aprender os primeiros elementos de piano, solfejo, ginástica rítmica, as primeiras noções de canto orfeônico. Tudo isso simultaneamente, além de muitas outras noções ele mentares de música, claro está.

E esclarece : — Em todo o caso, o importante nesses primeiros

anos é descobrir o aluno, saber desenvolver as suas

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qualidades inatas, afastar desde lego os pequenos defeitos que nascem e se multiplicam como cogumelos, numa rapidez incrível. Acontece que a natureza musical pode despontar muito cedo. E' preciso não esquecer que um Mozart compôs o seu Minueto aos seis anos. O trabalho, num caso como esse, se torna ainda mais sutil. A responsabilidade do mestre aumenta, pois o "pequeno Mozart" pode ficar por ali, marcando passo, não passar de mais uma esperança que se perde.

ATE' A "SONATA" DE HAYDN

Acompanhemos, agora, o "pequeno Mozat", no seu primeiro tempo de aprendizado. Magdalena Tagliaferro está com a palavra :

— Numa criança de seis a nove anos, o professor saberá descobrir as qualidades que são indispensáveis a um artista. Se o aluno tem ritmo, ou boa memória, se aprende com facilidade, ou não, se tem gosto, ou ouvido. O trabalho do professor é lento, paciente, severo. ele fará tudo por interessar musicalmente a criança. Mas se ao fim de três anos, o aluno continuar no mesmo, o melhor é desistir, mandar embora. Que trate de procurar outra coisa para fazer, menos tocar piano. Aos nove anos ou com menos idade talvez, se for uma natureza musical excepcional, o aluno prestará exame de admissão ao Curso de Preparatórios. Teria de mostrar os conhecimentos indispensáveis de solfejo, ginástica rítmica, etc, e de tocar peças da categoria das Invenções, de Bach. da Sonata de Haydn, de pequenas partituras de Schumann. Aí, então, uma vez aprovado, entra

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para o Curso de Preparatórios, de três anos mínimos ou quatro anos, no máximo.

— E depois da Sonata de Haydn ? — Depois da Sonata de Haydn, o aluno sem defeitos

adquiridos (sublinhe isso que é muito importante) trataria de estudar seriamente. Nada de querer brilhar. Tinha que se preparar para alcançar quanto antes o Curso Superior.

RUA PARA OS PREGUIÇOSOS

E Magdalena Tagliaferro prossegue, no seu projeto : — No primeiro ano do Curso de Preparatórios, o aluno

trabalharia sem recompensa alguma. No segundo, poderia tirar a segunda medalha. No terceiro, poderia receber a primeira medalha.

— E como o aluno ingressaria no Curso Superior ? — Mediante um novo concurso, que constaria por

exemplo da execução da Terceira Balada, de Chopin, de uma das Sonatas de Beethoven, do Carnaval de Viana de Schumann, da Fantasia de Mendelssohn, de Prelúdio e Fugas de Bach.

Entretanto, Magdalena Tagliaferro figura que ao "Pequeno Mozart" possa acontecer um empecilho. Aos onze anos, suponhamos que as mãos do menino sejam demasiado pequenas para que ele possa tocar peças que exijam um maior esforço manual. Que fazer então ?

— O "Pequeno Mozart" — acrescenta Magdalena Tagliaferro — terá que esperar pacientemente a sua

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vez de freqüentar o Curso Superior. Não deixará de estudar, todavia. Há de fazer um estágio complementar. Durante essa interrupção, os seus exercícios de piano continuarão sob as vistas e a orientação de um dos professores da nossa escola,.

Esclarece que, de forma alguma, o "Pequeno Mozart", nesse caso especialíssimo, das mãos pequenas, poderia "passar" para o Curso Superior.

— Na nossa escola — adianta — aboliríamos as concessões. Ou o aluno se decidia a estudar, para se tomar um dia um verdadeiro profissional, ou, do con trário, teria que procurar a porta da rua. Fosse pre guiçoso, rua. Ficasse marcando passo no curso de prepa ratórios mais de quatro anos, rua também. Lá fora, haveria de encontrar coisa mais útil e mais interessante para aprender do que esse negócio de tocar piano.

AS FÁBRICAS DE DIPLOMAS

— E agora chegamos ao Curso Superior. .. — digo eu. — E' verdade — concorda a Tagliaferro. O "Pequeno

Mozart" está com doze anos completos. Se os seus estudos correrem bem, ele poderá ganhar o primeiro prêmio logo no fim do segundo ano. Jamais compreendi a razão de oito anos de ensino burocrático, obrigatórios para bons e maus alunos, indistintamente. Não pode haver estímulo quando todos alcançarão por igual os mesmos objetivos — o diploma. De que serve um diploma assim distribuído ? Ao fim de determinado número de anos, o resultado é um só, o diploma.

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Magdalena Tagliaferro considera injusto esse sistema que torna as escolas de música verdadeiras fábricas de diplomas.

— Nem todos recebem os dons de Deus de uma mesma maneira — repete e continua, logo a seguir. falando-me assim :

— Uns possuem mais, outros menos, qualidades inatas, que devem ser desenvolvidas nos dois primeiros cursos da nossa Escola, de iniciação e os preparatórios. Por isso, estabeleci dois anos mínimos para o curso superior que, em hipótese alguma, entretanto, deverá exceder de quatro anos. Como vê, o sistema de concursos permite aos alunos mais bem dotados a terminação do curso antes do tempo normal, embora com a obrigação de cumprir rigorosamente o programa.

E quase sem interromper o seu raciocínio : — Há um outro detalhe, também interessante,

que vale a pena, salientar. A organização flexível da nossa Escola estabelece, como já disse, o limite máximo de quatro anos e o mínimo de dois. Pois bem. Se em quatro anos, o aluno não se habilita para o "Primeiro Prêmio", terá que desistir de aprender piano. Será eli minado da Escola.

QUE PLETORA DE DIPLOMAS!

No Rio e em São Paulo, Magdalena Tagliaferro vem realizando, pela segunda vez, um curso de interpretação e alta virtuosidade. Na "Escola dos Nossos Sonhos" este curso havia de existir, à guisa de extensão

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universitária, com o objetivo de preparar professores ou concertistas.

— Os "Primeiros Prêmios" da nossa escola po deriam ingressar nesses cursos sem a prova do con curso, que estaria aberto contudo para os "Primeiros Prêmios" de outras escolas do país ou do estrangeiro. O aluno, agora, tem dois caminhos a escolher: ser professor ou ser concertista.

E o plano da Escola ideal de Magdalena Taglia-ferro aí está, diante do nariz do leitor, resumido em suas linhas gerais. Não é por certo um projeto de lei. Nem sequer uma indicação. Mas apenas um motivo jornalístico. Quando Magdalena Tagliaferro terminou, ela me disse mais o seguinte:

— A muita gente pode parecer que eu esteja falando com extrema rudeza. Nada mais injusto. Se falo assim é que procuro defender os que têm talento. Afinal de contas, não deixa de ser uma coisa estranha e de certo modo revoltante que um aluno medíocre, ao fim de oito anos penosos passados nas salas do Instituto, venha a receber um título igualzinho ao de um aluno talentoso que, ao cabo de dois ou três anos, já se encontrava apto a receber o "Primeiro Prêmio".

Reforça o seu ponto de vista aduzindo: — Pensar de outro modo seria anti-artístico, ou

melhor, seria academizar o ensino a ponto de paralisar o desenvolvimento musical da juventude. A maneira como se pratica o ensino musical em nosso país traz equívocos como os que apontei há pouco. E' fantástico como se formam professores de piano no Brasil! Que pletora de diplomas! No Conservatório de Paris, con-

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siderado a maior escola de música do mundo, formam-se cinco ou seis pianos, cada ano. Pois a nossa Escola Nacional de Música não forma dez nem vinte, mas sessenta ou setenta. Não é extraordinário ?

A VOCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL

Chegou a hora de Magdalena Tagliaferro falar na nossa Escola Nacional de Música. O repórter nao deixa fugir a oportunidade. E a pianista não se recusa a dizer duas palavras de crítica :

— Sôbre a nossa Escola Nacional de Música. muito pouca coisa poderia acrescentar ao que todos não ignoram. Não há dúvida que possui professores de valor mas não pode deixar de possuir professores incapazes, também, por culpa, aliás, da deficiência de organização do nosso ensino musical e dos Estatutos que regem a vida do Instituto.

Magdalena Tagliaferro tem pena dos alunos, não dos professores :

— Porque, na verdade, o brasileiro geralmente é muito bem dotado no sentido artístico. Temos a voca ção da música. Em país nenhum do mundo, poder-se-ia encontrar tantas qualidades reunidas. Os alunos bra sileiros são criaturas de uma extraordinária facilidade digital, possuem memória, ouvido, ritmo, vivacidade. Essas qualidades são comuns a quase todos.

O repórter ouve tudo isso calado à espera da "chave de ouro" da entrevista. Magdalena Tagliaferro faz uma citação de Degas, o pintor das bailarinas e dos

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hipódromos franceses. Ótima para terminar. "São os nossos dons que nos perdem". . .

— Esse conceito de Degas devia ser levado a sério, aqui. Parece que foi dirigido especialmente aos alunos brasileiros. O artista tem necessidade de se despojar da vaidade de pensar que poderá atingir a perfeição sem esforço, sem muito estudar, sem enfrentar sacrifícios. Porque, meu caro senhor, para o artista como eu dizia outro dia, numa das minhas aulas, o importante não é ter sido um pequeno prodígio. Antes de tudo, o artista tem que saber conservar a pureza, a frescura, a poesia dos sentimentos e saber, também. durante a vida inteira, guardar em si a bondade, o carinho, a alegria da alma e quando possível a divina infância do coração.

Diretrizes, Rio de Janeiro, 4-6-1942.

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SÃO JOÃO MARCOS ANTES DO DILÚVIO

AI ANDRÉ conheceu os bons tempos. Nas fazendas

enormes, os cafesais cobriam os morros. A vila do Príncipe era uma beleza de lugar. Naquele tempo, as festas de São João Marcos, em setembro, davam que falar. No baile do sobrado do Barão, as moças mostravam os seus vestidos comprados na Corte. Os fazendeiros ricos dançavam o "schottish", contentes da vida.

Quando fala, o negro se transfigura. Tem mais de cem anos, foi escravo dos Breves.

— O pai do meu sinhô acompanhou o Príncipe no Grito do Ipiranga. .

Na sua viagem a São Paulo, em 1822, D. Pedro pernoitara na Fazenda Olaria e levara consigo o filho mais novo dos Breves.

— ele tava com o Príncipe. Pai André só gosta de falar do passado. Do presente, não

diz nada. — Você, Pai André, já se mudou? — Ainda não senhor. — Já recebeu intimação? — Já. — E então ? — O que é que pobre pode fazer?

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A Companhia continua a demolir. Faltam sessenta casas das cento e quarenta e duas da cidade. São João Marcos desaparece. Pai André não acredita:

— Um há de ficá. Um há de ficá. O velho tem a voz trêmula. E' quase patético.

NOTÍCIA HISTÓRICA

A freguesia de São João Marcos foi fundada em 1739, por João Machado Pereira, que levantou capela em sua fazenda. Em 1755, por alvará de D. José, rei de Portugal, elevou-se a vigararia colada. Quarenta e seis anos mais tarde, desmembrou-se da Metrópole do Rio de Janeiro, de que fazia parte o seu território, para ser anexada à vila de Rezende, então criada pelo vice-rei D. José Luís de Castro, conde de Rezende. Nesse mesmo ano, os moradores de São João Marcos requereram ao príncipe regente D. João. a criação de sua vila.

O pedido foi atendido. E a 1 de abril de 1811. D. João erigiu em vila a freguesia com a denominação de São João do Príncipe, ficando constituída dos seguintes distritos, que já lhe pertenciam : Santana do Piraí, Nossa Senhora da Piedade do Rio Claro, Santo Antônio do Capivari, Nossa Senhora da Conceição de Passa-Três e São José do Bom Jardim.

Os sãojoãomarquenses recordam os glórias da cidade. Falam com orgulho :

— Pereira Passos, Alfredo Pujol, Correia Lima, Ataulfo de Paiva nasceram aqui. . .

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E' PROIBIDA A ENTRADA

Depois da ponte, aparece a Fazenda Olaria. A Light comprou a antiga propriedade da família Breves. Pôs na porteira um aviso :

— E' proibida a entrada. Há trinta anos atrás, como o Rio de Janeiro precisasse de

água para o consumo da população, a Companhia construiu a represa do Ribeirão das Lages. Expropriou quase uma centena de fazendas e afundou São Sebastião do Arrozal, distrito de São João Marcos. Mas o Rio de Janeiro continuava precisando de água. E novo sacrifício foi imposto a São João Marcos, em 1940.

Com a desapropriação decretada pelo governo federal, tratou-se de providenciar a mudança da cidade. Mas para onde? Sugeriram, a princípio, as terras da Fazenda Seabra; eram muito próximas das águas da Companhia. Falaram, depois, na Capelinha; os sãojoão-marquenses protestaram: Capelinha não tem lenha, nem água pra beber. Ficou, afinal, resolvido que a cidade se mudaria para o Rubião.

A solução partiu da comissão presidida pelo ministro Atauifo de Paiva. O Rubião possui boas terras. A água também é boa. Lá, os antigos moradores da Vila do Príncipe viverão em paz.

UMA NOVA PESTE

Mas uma nova peste aguarda os sãojoãomarquen-ses: é o perigo da especulação, que pode aparecer. A Companhia, que pode desapropriar se quiser, está pa-

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gando as propriedades, de acordo com o valor locativo, lançado na Prefeitura. E assim indeniza os alqueires e as casas.

Acontece, porém, que o valor locativo da Prefeitura não corresponde ao valor real das ditas propriedades. O preço para constar, no pagamento dos impostos, é sempre muito inferior.

Um alqueire, por exemplo, é pago a 700 mil réis. O pequeno proprietário — note-se que a população de São João Marcos é toda de pequenos proprietários — dono de uns cinco ou seis alqueires, recebe 4:200$000 de indenização. Com esse dinheiro, ele tem que adquirir, em Rubião, a sua nova propriedade.

E' quando a especulação ameaça o pobre do sãojoãomarquense. O alqueire, digamos, se valia 1:600$000 está agora a 3:200$000. Quer dizer: três vezes mais o preço da indenização. Há, evidentemente necessidade de uma providência no sentido de que o pequeno proprietário de São João Marcos não seja desamparado nessa emergência.

Todas essas necessidades, aliás., já foram levadas ao conhecimento da comissão que estuda a mudança da cidade. A Companhia prometeu transportar e localizar os pobres. Quanto à Igreja, será construída uma tal qual. Os santos e os altares seguirão para o Rubião.

O SANTO É TUDO

No Aterrado, que fica no extremo da cidade, conversei com o Sr. Eduardo Gonçalves, antigo político local. Já foi delegado várias vezes. E outras tantas vereador e presidente da Câmara Municipal.

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— Eu pedi 90 contos pelas minhas coisas. Mas concordei em vendê-las por 55. Vamos para o Rubião, é verdade. São João Marcos morreu. . .

O homem espia desconfiado por cima dos óculos que desceram até a ponta do nariz; está com os olhos molhados. O Sr. Eduardo Gonçalves fala-nos como veio parar em São João Marcos :

— Eu nasci em Portugal, mas vivo aqui há perto de cinqüenta anos. São João Marcos é a minha terra. Casei-me com uma marquense na Fazenda do Rio da Prata e desde então nunca mais pus os pés fora do município. Conheci São João Marcos no tempo da abastança. A cidade tinha umas dezoito ou vinte casas de comércio. Era uma beleza negociar-se aqui. Mas veio a represa, veio a epidemia, veio tanta desgraça . ..

— E se o senhor teimar e ficar "seu" Eduardo ? — Que adianta? A Companhia "desapropeia". . . Olha-me com o rabo dos olhos e como se tivesse

ainda uma vaga esperança:

— Pois é. Mas todo o mundo sabe que a desa propriação não é um caso líquido e certo. . .

NO CLUBE MARQUENSE

O Sr. José Carpazana Júnior é o presidente do Clube Marquense. A sede, um grande sobrado forrado de azulejos, custa 50S000 de aluguel mensal. Há um torneio de pingue-pongue no Clube Marquense. Aos

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domingos, moças e rapazes de São João Marcos dan-sam ao som de uma vitrola elétrica:

— A Light já comprou o prédio — informa-me o Sr. Carpazana. Faz seis meses que não quer receber os aluguéis.

— Ora essa, por que? — Porque não interessa. A Companhia quer o prédio

para demolir. Mas nós, do Clube, vamos depositando o dinheiro até que venha o despejo. . .

E' ainda o Sr. José Carpazana Júnior quem me dá a notícia da primeira demolição:

— Foi na Quinta-Feira Santa. Pela manhã, a gente até não acreditava. A casa foi ao chão. Organi zamos, então, uma passeata de protesto. O povo saiu pelas ruas, levando cartazes. Um deles dizia o se guinte: "Somos quatro mil e seiscentos brasileiros e não queremos desaparecer..."

A população de São João Marcos suporta com estoicismo o sofrimento. Desço à Praça Feliciano Sodré (Largo da Matriz) e converso com gente do povo. Um preto, de voz sossegada, me diz:

— Estamos com a corda no pescoço. . . E' só puxar...

Junto dele, um homem de camisa de algodão e braços nus completa o comentário patético:

— São João Marcos chegou ao último cúmulo para sofrer. ..

O ÚLTIMO CONVITE

Fui à casa de D. Tereza Gomes da Costa. E' a viúva de A. P. Costa, abastado negociante da cidade.

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Os filhos continuam o negócio paterno, e, por isso, são conhecidos como os "AP".

D. Tereza é um modelo de hospitalidade. A sua casa é ampla; farte a sua mesa. Oferece-me doces e diz:

— Fique uns dias conosco. E' o último convite que faço. Tenho que entregar a casa até o fim do ano.

As palavras são quentes e eu me comovo. A casa de D. Tereza Gomes da Costa é tão limpa e tão bonita! O jardim está carregado de flores; tanta fruta no pomar! Próximo da janela, um pé de fruta de conde.

Um dos "AP" me conta que não há muito colheu uma abóbora pesando 28 quilos.

— O município é fertilíssimo — continua ele. Não há terras melhores em todo o Estado do Rio. Dá tudo aqui. Feijão, milho, cana, arroz. São João Marcos não é parasita. Vive dele próprio. E até exporta. Mangaratiba vai sentir muito a nossa mudança.

A um canto da mesa, D. Tereza Gomes da Costa está calada, ouvindo o filho falar:

— Por isso mesmo é que recebemos a extinção do município como uma verdadeira calamidade. Foi em 1938. São João Marcos ficou pertencendo a Rio Claro, que passou a cabeça de comarca. Tiraram-nos a Cole- toria, a Prefeitura, até o cabo de polícia foi transferido.

Só ficaram o Posto Meteorológico, a Escola Pública, o Serviço Postal e Telegráfico.

— Tudo o mais — diz o jovem "AP" — se foi para o Rio Claro. Da Prefeitura levaram tudo. Não deixaram nem as cadeiras. E olhe, entre uma e outra

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cidade há uma diferença muito grande. São João Marcos é muitíssimo mais adiantado que Rio Claro. Basta que se comparem as rendas de um e outro município .

UMA SUPOSIÇÃO QUASE INFANTIL

Conversei também com o Sr. Leopoldino dos Reis Oliveira, farmacêutico diplomado e administrador da "Granja Eunice". E' o "faz tudo" da cidade. Quando falta o médico, ele corre a atender o doente. Mas o seu negócio é a lavoura. Planta cana e fabrica a melhor cachaça da redondeza, a famosa caninha "D'aqui".

— O senhor sabe — disse-me — que há, no Rio, uma comissão tratando dos nossos interesses ? O minis tro Ataulfo de Paiva é o seu presidente. Tenho a certe za de que tudo se fará para que a população de São João Marcos não desapareça.

Explica-me a situação de grandes e pequenos : — Nós todos vamos deixar a cidade com a mão

nas costas. A gente mais remediada, que é a família de D. Tereza, vai receber 90 contos de indenização. D. Tereza é viúva. Recebe a metade do dinheiro. O resto vai ser dividido entre dez herdeiros. O senhor veja que ninharia. Agora, faça uma idéia, se os ricos saem assim, imagine os pobres.. .

O Sr. Leopoldino fala com desembaraço: — E' excusado que lhe diga, esses 90 contos são

pouco para pagar os bens de D. Tereza, que sobem a uns 250 contos, no mínimo. Só a "Granja Eunice" não a venderíamos nem por 150 contos...

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E o farmacêutico expõe o problema com inteligência : — É lógico que D. Tereza pagaria à Light os

90 contos para a Companhia desistir da desapropriação. Mas isso é uma suposição quase infantil. Diante da situação de fato, temos que cuidar do nosso futuro e nada mais. Vamos mudar para o Rubião. Resta-nos, agora, saber como enfrentar os especuladores. A comis são cuidará disso, não há dúvida.

DESFAZENDO OS BOATOS

O Sr. Leopoldino dos Reis Oliveira é autor de uma peça teatral — São João Marcos por dentro. A peça tem uma história e quem a vai contar é o maestro da banda local, Sr. Joaquim Bernardes de Loiola.

O maestro sorri e desembucha : — "Seu" Dino escreveu uma revista que foi um sucesso.

Foi na ocasião do bicentenário da cidade. São João Marcos estava em festas. O bispo D. José estava na terra.

— O espetáculo durou duas horas, sim senhor. — Começou às 19,30 horas e só foi terminar às 21,40 —

informa Joaquim Bernardes de Loiola. Dona Ligia Costa, professora do Grupo Escolar, tomou conta do elenco que apresentou mais de trinta figurantes. O Teatro Tibiriçá ficou repleto. Mais de sessenta pessoas assistiram ao espetáculo todinho. . .

Pergunto ao maestro qual o tema da revista e ele responde:

— Não vê o senhor que, apesar do decreto consi derando São João Marcos monumento histórico nacio-

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nal, circulava o boato de que a cidade ia desaparecer. "Seu" Dino escreveu a revista, com a intenção de desfazer o boato, mostrando tudo que o município produz, dizendo mesmo que um lugar de tantas tradições e com tantas reservas agrícolas não poderia desaparecer. O maestro Loiola está, agora, triste :

— A apoteose era muito bonita. Aproveitamos a música da "Cidade Maravilhosa", que estava mesmo a calhar. Mas nada disso adiantou.

AS DEMOLIÇÕES

Ando pela cidade. Desço uma rua calçada de pedras gordas, com o capim crescendo nos interstícios. Como é domingo, as demolições foram interrompidas. Há montes de cinzas nos escombros.

— A Companhia — informam-me os moradores — derruba as casas e ateia fogo no madeirame. Não sobra nenhum pedaço para contar a história.

— E os azulejos? E as telhas de louça? — Ah, isso, meu amigo, não faJta quem procure. Antes

da demolição já tem dono. . . A casa do barão de São João Marcos já não existe. A de

Pereira Passos, também. — Onde nasceu o ministro Ataulfo ? — A casa foi demolida. — E a de Alfredo Pujol? — Esta já foi "afogada" há mais de trinta anos. Pujol

nasceu no Arrozal, onde a Light construiu a sua primeira represa.

Mede trinta e poucos metros a barragem da primeira represa construída pela Companhia, no Ribeirão

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das Lages. A de agora, que motivou a desapropriação de São João Marcos, é apenas o alargamento da anterior. A Light vai levantar mais vinte e cinco metros do paredão. Três metros da nova barragem já foram feitos. E a antiga Vila de São João do Príncipe espera. resignada, a avalanche das águas da Companhia.

Continuo o meu passeio pela cidade em ruínas, perguntando a um e outro. O mato cresceu no jardim. A cidade morre:

— Não adianta arrumar o jardim, que sempre foi muito bonito. Flores nunca faltaram aqui.

Num pé de magnólia cantam os passarinhos. Pergunto também por eles :

— Sanhaços, coleiras. canários em "penca". E como cantam. ..

Há, na praça, um monumento de granito, trabalho do escultor Correia Lima. Três medalhões em bronze com as efígies de Pereira Passos, Alfredo Pujol e Ataulfo de Paiva.

Estou diante do sobrado que foi durante muitos anos a Casa da Câmara e depois a Prefeitura.

— Sabe em quanto foi avaliado ? — pergunta um da terra.

Não faço a menor idéia. O prédio é imponente e está bem conservado.

— 4 contos — diz o meu informante, que não espera pela minha resposta. . .

Na rua, um homem vem ao meu encontro. Sabe que eu sou jornalista, e ele quer falar:

— Muita gente não se conforma de deixar o mu nicípio. Há os que saíram e já voltaram. Não sabem para onde ir. Estão vivendo no mato, ao Deus dará.

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E o mesmo informante me conta : — Em São João Marcos não se pode enterrar

mais os mortos. O desgraçado que esticar as canelas tem que ser carregado na rede até Passa-Três. . .

Faço as minhas anotações e vou andando. Reservo a minha derradeira visita para a Igreja Matriz de São João Marcos.

SAMPAIO, O SINEIRO

Sampaio, o sineiro, está na porta. E' um homem pequeno e feio, quase um anão. Responde humildemente às minhas perguntas. Pensa que sou da Light, parece. Aprendo com ele que o dia do Santo é 27 de setembro.

São João Marcos está no altar com seu manto bordado de ouro. A igreja está em silêncio. Onde estão as cadeiras?

— Já levaram — responde o sineiro, tartamudo. Sampaio quase não sabe falar. Gesticula com

uns braços que quase tocam os joelhos, olha o santo com ternura, como quem diz:

— São João Marcos saberá tirar a desforra. Lembro-me que as águas subirão na altura da

torre da igreja. Tenho pena do sineiro : — Sampaio, você já entregou sua casa ? -Já. — Era sua ou alugada ? — Alugada. — Quanto você pagava de aluguel? — 15 mineis.

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Pobre Sampaio. Quero saber o seu nome todo e ele me diz :

— João Baptista Pereira de Sampaio. . .

FINAL MELANCÓLICO

Entro por um corredor escuro e o sineiro não me larga. Volto à sacristia, o sineiro atrás. Retratos nas paredes prestam homenagem póstuma ao padre Bento José de Souza, que foi vigário de 1786 a 1815.

Sampaio começa a olhar-me com simpatia. Quem sabe se ele está pensando que eu não sou mesmo da Light? Agora, quero subir à torre da igreja. O sineiro ri e, sem dizer palavra, toma a dianteira, caminhando depressa.

— Vigário não tem mais — esclarece Sampaio. — Nem padre? — O padre vem de Piraí, uma vez por mês, dizer missa. .

. O sineiro dá um salto. No campanário, é outro homem.

Transfigurou-se completamente. Juro que ele cresceu. Alisa o bronze do sino como quem acaricia uma pessoa amada. Ri. Tem os dentes encardidos e a barba crescida.

— Há muito tempo que você é sineiro ? — Desde que nasci. — Como? — Meu pai era também sineiro. Olho a cidade lá em baixo. Os passarinhos continuam

cantando no pé de magnólia. Vejo o caixão-zinho branco do Posto Meteorológico. O busto de Feli-

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ciano Sodré olha para mim. Noutro canto, o marco "em sinal de gratidão" pelo decreto que transformou São João Marcos em monumento histórico nacional. Não sei por que sinto o coração apertado. Para disfarçar, quebro o silêncio.

— Você não tocará mais o sino, meu velho. . . Sampaio abraçou o sino. — Isso é que não. Isso é que não. Fala entre os dentes: — Tenho que tocar o sino em qualquer lugar.

Para onde levarem a cidade, tenho que tocar o sino. . .

Diretrizes, Rio de Janeiro, 20-11-1941.

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SUMARIO

Pég. MÁRIO DE ANDRADE: "OS INTELECTUAIS PUROS

VENDERAM-SE AOS DONOS DA VIDA" .............................. 5 OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA: "ANDEM DEPRESSA,

UM PAÍS NÃO PODE VIVER SEM CONSTI TUIÇÃO" .................................................................................. 21

NAIR DE TEFÉ: 'SOU FRANCAMENTE PELO SOR RISO EM MATÉRIA DE CARICATURA" .............................. 32

PAULO HASSLOCHER: -FUI ELEGANTE POR AMOR AO BRASIL" ............................................................................. 46

MAGDALENA TAGLIAFERRO: FAÇAMOS A REVO LUÇÃO NO ENSINO MUSICAL"' ....................................... 57

SAO JOÃO MARCOS ANTES DO DILÚVIO .................................. 77

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DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL RIO DE J AN E I R O — BRASIL — 1064

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

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A N Í S I O TEIXEIRA

A UNIVERSIDADE

E A LIBERDADE

HUMANA

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇ0 DE DOCUMENTAÇÃO

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A UNIVERSIDADE E A LIBERDADE HUMANA

UITO da ansiedade e sentimento de perigo de nossa época decorre de não querermos ver os problemas e crises do presente dentro da perspectiva histórica, como etapas de um desenvolvimento contínuo da espécie, na sua lenta adaptação ao novo tipo de tradição, que a formulação racional do pensamento vem, há dois mil e quatrocentos anos, procurando implantar e que, a despeito dos rápidos períodos de afirmação, está longe ainda de ser a generalizada e universal tradição da humanidade. Esta tradição é a tradição da liberdade e da razão, de que a Grécia se fez, por um extraordinário concerto de circunstâncias, um paradigma legendário. Tão legendário que Whitehead sugere, caso a nossa civilização devesse ter o seu livro sagrado, que aos três primeiros evangelhos cristãos se acrescentasse a oração fúnebre de Péricles, como o quarto evangelho, em substituição ao apocalíptico S. João.

Com efeito, se de muito parece estar encerrada a evolução biológica do homem, a sua evolução como animal racional está apenas iniciada. Cento e vinte gerações nos distanciam das primeiras civilizações históricas, pouco mais de noventa do século de Péricles e

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apenas doze nos separam, melhor diria, nos unem a Descartes. A tradição intelectual, que os gregos tão exemplarmente iniciaram, é, portanto, uma tradição nova, cujas vicissitudes, nos últimos vinte e quatro séculos, são as vicissitudes da idade histórica, a culminarem, em nosso tempo, tão aparentemente tumultuoso, mas, na realidade, tão esplendidamente promissor.

Se recuarmos, com efeito, aos últimos três mil anos. isto é, há cento e vinte gerações passadas, encontraremos o homem ainda imerso em sua fase de integração instintiva, conformado a uma rotina milenar, susceptível de progressos acidentais, decorrentes de lampejos passageiros de inteligência espontânea ou de rigores momentâneos de organização pela força. Somente por volta de quinhentos a quatrocentos anos antes da era cristã é que duas tentativas intelectuais marcam o aparecimento da possibilidade racional de organização da vida humana — a de Confucio, na China, e a de Péricles, na Grécia. São dois momentos, entretanto, já de tamanha altura, representando, por certo, o desabrochar um tanto súbito de flor que séculos de germinação silenciosa e invisível vinham preparando, que, se a humanidade fosse algo de uniforme e homogêneo, a civilização, como a compreendemos, hoje, teria ganho, desde então, a aceleração a que somente nos últimos três séculos estamos assistindo.

Mas, o novo progresso, de que tanto a experiência de Confucio quanto a de Péricles nos dão testemunho, a adaptação do homem à razão, não era um progresso biológico da espécie, e sim um progresso a ser aprendido

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pelos indivíduos, um a um, e que só lentamente poderia ser traduzido em novas instituições, susceptíveis de concretizá-lo em uma organização social.

Na realidade, este progresso decorria do aparecimento de uma nova arte, da grande arte descoberta, para a tradição ocidental, pelos gregos, a arte de pensar, de reformular os objetivos humanos, de criticar-lhe as premissas, de especular sobre os pressupostos em que estas se apoiavam e de deduzir as conclusões, arte que se destinava a criar um novo homem e a fazer das civilizações não o resultado do jogo mais ou menos cego de acidentes históricos, mas a conseqüência do exercício lúcido dos seus recursos mentais, na melhor utilização dos recursos naturais.

O problema da liberdade humana, isto é, do livre desenvolvimento do homem só então se ergue ante a sua consciência. Até aí, a vida humana participava do mesmo determinismo obscuro da vida dos animais na realidade da de um primata mais desenvolvido, que se havia acrescentado de instrumentos e de linguagem, em sua luta com o ambiente e com a complexidade de sua própria vida mental.

Na Suméria, no Egito, na Babilônia, ou mais para o Oriente, o homem não sabia se era livre ou tiranizado, aceitando a "organização" imposta à vida, do mesmo modo que aceitava o sol ou a lua. A sua vida mental, ainda instintiva, era parte desse conjunto de cousas que lhe moldava a existência e a fazia transcorrer entre satisfações, temores e sofrimentos. Podia essa vida mental, por intermédio de mitos e rituais, aplacar-lhe os medos primordiais, mas faltava-lhe todo e qualquer caráter

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especulativo — não lhe permitindo indagações, nem sugerindo alternativas.

Se quisermos ir mais longe, poderemos dizer que toda a herança do Oriente, inclusive, de certo modo, até a de Confúcio e a de Buda e a dos Hebreus, nunca passou da fase explanatória e não indagadora, buscando antes explicar porque a vida era assim, do que abrir-lhe uma perspectiva nova.

O próprio Jesus — a não ser pela frase, talvez apenas circunstancial — "Dai a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus" — não chegou a aflorar o problema da liberdade humana, no aspecto em que aqui o examinamos. E a sua doutrina do reino do céu fez de toda a imensa experiência cristã uma experiência de evasão deste mundo; por conseguinte, de aceitação de suas condições, como se apresentassem.

Naquela frase, entretanto, lançou as bases de uma dualidade de forças de organização, Deus e César, em que se pode obrigar um princípio de liberdade, implícito na limitação inevitável do poder de César.

Com os gregos e a sua descoberta da especulação intelectual é que viemos, porém, a abrir reais alternativas para a organização da vida do homem, e, por conseguinte, a suscitar a possibilidade de sua liberdade e o problema de efetivá-la. Descobrindo a razão e formulando o conhecimento racional, os gregos criaram uma nova fonte de direção para o comportamento humano, independente, de certo modo, do determinismo dos costumes e dos hábitos e das condições imediatamente naturais, por isto que todas essas limitações passaram a

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sofrer a análise da mente humana e a serem traduzidas em idéias e modos deliberados de conduta e ação.

O homem, com efeito, até então, sujeito ao império inelutável do que os próprios gregos designaram de "Destino", concepção a que já antes chegara o gênio helênico, ultrapassando a dos Deuses, pois o Destino até a estes governava, o homem, em face da descoberta do racional, via-se em condições de dar um novo nível à sua adaptação à vida e de estabelecer a "liberdade", que seria o direito de não sofrer outra submissão senão a submissão à "verdade", buscada à luz da razão. Nascera, na vida humana, uma nova força de organi-zação, independente da força bruta, independente da tradição estabelecida, e são as vicissitudes dessa nova força e de sua luta para fundar um regime de liberdade humana que vão constituir a história da espécie nestes últimos vinte e quatro séculos.

Nem a experiência do oriente, nem a dos egípcios, nem a dos hebreus — a despeito de todo o saber empírico, mágico e religioso que vieram a possuir — chegou jamais a questionar-se a si mesma e a tentar analisar a própria validez e a das suas conclusões intelectuais. O pensamento humano até então foi sempre um simples e direto resultado das práticas existentes, com acidentais lampejos intuitivos e iluminantes sobre a natureza humana. A sua função era explanatória e não indagadora.

Somente com os gregos, repetimos, é que o próprio pensamento passa a ser objeto de análise e se procura descobrir-lhe o método e discutir-lhe a validez. Voltado sobre si mesmo, o homem especula sobre a sua própria natureza, sobre a vida social, sobre o mundo, sobre os

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seus hábitos de pensar, de sentir e de agir e se arma de um poder novo: o de rever e reconstruir esse pensar, esse sentir e esse agir.

Nascera, na realidade, a tecnologia das tecnologias, a arte de pensar voluntária e deliberadamente e de descobrir, assim, novos conceitos, novas idéias, novos modos de ver e de fazer, que transformariam o acidente da civilização no processo contínuo de civilização que daí, então, se haveria de tornar possível.

A capacidade intelectual do homem passou a se exercer de modo diferente. Houve como uma sutil inversão na ordem mesma do pensamento, inversão que — tão fecunda na cerebração de um Platão — veio depois, muitas vezes, a ser, pelo uso inadequado, um dos obstáculos ao progresso humano, retardando o aparecimento do pensamento experimental ou propriamente científico do mundo moderno.

A inversão consistiu em especular primeiro e depois aplicar as hipóteses especulativas à interpretação dos fatos. Até então, todo conhecimento humano era empírico, prático, artístico, ampliado, quando muito, nas explanações míticas, mágicas e ritualísticas. Com os gregos, o próprio pensar se faz fonte de conhecimentos, de teorias, que iriam atuar na prática. Antes, as teorias, se teorias se podiam chamar, sucediam e explicavam a prática; agora a teoria antecedia e determinava, criava a prática.

Se essa foi a grande contribuição da Grécia, obtida graças à sua análise do pensamento, pela qual tomou o pulso e deu direção a este mesmo pensamento, mostrando que podia ele iniciar e determinar a ação, e não ape-

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nas se seguir à ação, — daí o lhe reconhecermos a função sem par de agente supremo da liberdade humana — também aí é que se encontra a fonte de todos os'' desvios paralisantes sofridos pela humana capacidade de pensar, no seguinte curso da história.

O entusiasmo da descoberta levou o homem à efeverscéncia intelectual tão fecunda da época. Jamais a fase especulativa do pensamento pôde atingir tamanho esplendor e, ao mesmo tempo, impregnar-se de tão alto sentido de tolerância. A própria novidade do pensamento especulativo, o seu caráter de consciente perplexidade explicam a serena e imprevista harmonia de um Sócrates e de um Platão.

Mas, se o pensamento especulativo e matemático, considerado, pela primeira vez, como objeto, ele próprio, de estudo e de investigação, pôde deslumbrar os helenos a ponto de lhes inspirar uma filosofia de felicidade fundada na contemplação do próprio pensamento, não quer isto dizer que não soubessem os inovadores que o pensamento se origina da experiência e se destina, em última análise, à ação. Ainda no período helênico, Aristóteles pôde inclinar o pêndulo para o outro extremo e dar início à obra de observação e minúcia que se deve seguir à fase especulativa do pensamento.

A experiência grega completa, assim, pelo menos em germe, a nova grande arte de pensar e traça-lhe o ritmo criador : observação, especulação, experimentação. Pensar deliberada e especulativamente passara a ser um dos ofícios humanos. Surgira um novo tipo de homem, o intelectual, o analista, o criador de pensa-

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mento e de saber, como algo distinto do estudioso do saber já feito.

Não se pode negar, com efeito, a existência de saber antes da idade de ouro helênica e de estudiosos e cultores do saber. Todos, porém, eram de uma espécie muito mais velha e que se havia de revelar bem mais forte e resistente, do que o novo tipo surgido com a "mutação" intelectual ocorrida na Grécia. Eram e foram depois os "eruditos", isto é, homens que sabem o que já se soube e ignoram ou esqueceram o modo pelo qual o saber veio a ser adquirido. São guardiães úteis e fiéis, sem dúvida, do saber e até seus adoradores, mas não chegam a ser seus criadores. Por eles, o saber passa a ser um fim em si mesmo, ou se transforma em algo que se acumula inutilmente ou apenas para os deleites da extática contemplação. São eles que sucedem aos bravos e assistemáticos pensadores gregos e daí não havermos podido continuar a grande experiência e termos mergulhado no período chamado helenístico, em que ao vigor helênico se substitui um culto e uma influência sem a força do gênio criador original.

A escola de Alexandria, contudo, cumpre a missão de guardar o novo saber e formar a sua tradição. Os seus eruditos colecionam ainda e apenas o saber, mas agora o saber herdado já é um novo saber.

Sob a influência helenística, com os Romanos, se elaboram a moral estóica, os rudimentos de ciência latina, certas técnicas de construção civil, o direito romano, a interpretação paulina do cristianismo e, com Santo Agostinho, renasce a flama criadora nas suas especulações platônicas sobre a "doutrina da Graça".

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Mas, perdera-se o tom do pensamento grego, a sua independência e a sua tolerância, aquela extraordinária tolerância grega que fez com que Platão dissesse, no Timens :

"Se, portanto, Sócrates, nos deparamos em muitos pontos incapazes de dissertar sobre a origem dos Deuses e do universo, de modo completamente consistente e exato, não vos deveis surpreender. Pelo contrário, devemos ficar contentes de apresentar uma descrição não menos provável do que a de outros; devemos lembrar que eu que falo e vós que me ouvis não somos senão homens e devemos nos satisfazer em nada mais pedir que uma história provável" (*).

Nos períodos de academicismo, a verdade perde esse caráter e passa a ser algo que se sustenta com dogmatismo e até com violência.

Mais de dois milênios hão de transcorrer, com efeito, até que pudéssemos assistir, no século dezessete, o início de um novo período, que lembra o poder criador helênico. O renascimento ainda não fora esse período. O renascimento é apenas o reencontro com o pensamento helênico e deste o eco. Já não é mera reprodução acadêmica, mas ainda é imitação de limitado alcance. A nova fase criadora vem, depois, com os pensadores dos séculos dezessete e dezoito e a fundação definitiva da ciência, como a concebemos hoje. Como na Grécia, temos então uma intensa e fecunda fase

(*) The Timens — Trad. de A. A. Taylor, citado por Whitehead.

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especulativa, seguida de uma fase experimental, inédita, cujos frutos ainda estão a cair, cada vez mais abundantes e sazonados. A fugaz adolescência grega vem a atingir a maioridade, afinal, nessa fase, de onde se vem encaminhando, não sem tropeços, mas delibe-radamente, para a maturidade já anunciada, embora não de todo presente.

O fator intelectual introduzido pelos gregos, na vida humana, constitui já agora a reconhecida condição para o seu progresso e a sua liberdade. O rígido determinismo dos costumes e da tradição, presos a inelu-táveis condições econômicas, iria, não se desfazer, mas ganhar plasticidade e flexibilidade em face do solvente intelectual da grande descoberta helênica.

A experiência intelectual grega, com efeito, a despeito da formulação magistral de Platão e Aristóteles. a princípio como que se esconde, refugiando-se na escola de Alexandria, e deixando de exercer a influência efetiva e maciça que se poderia dela esperar. A realidade é que o homem só gradualmente poderia evoluir do seu estágio de integração instintiva para o novo estágio de pensamento racional e de integração bem mais difícil. em virtude dos conflitos criados entre o instinto e a razão. A organização monolítica do hábito e da força continua, assim, a dominar e, salvo a obra de governo e de direito que o poder romano produz, só vimos a reencontrar algo de novo, já do meio para o fim da idade média, com a instituição de organizações sociais independentes do poder dominante e destinadas a normalizar e, pelas normas, controlar as relações humanas,

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à margem do exclusivismo dos poderes senhoriais pro-priamente políticos, fossem profanos ou divinos.

A transposição para o campo das instituições sociais das conseqüências do pensamento racional e deliberado, que virá realmente a constituir a integração da sociedade em sua nova fase de liberdade, parece ter logrado início nessa fase da idade média.

A circunstância da idéia, da análise racional vir, assim, atuar no contexto da ação e criar novos modos de comportamento e de solução dos problemas humanos, revela os dois aspectos fundamentais da liberdade: o da espontaneidade e tolerância do próprio pensamento, isto é, a liberdade da especulação intelectual, e o da incorporação da idéia ao costume e à ação, mediante instituições sociais que promovem, sob nova forma e nova eficácia, os objetivos humanos. A primeira liberdade, embora suprema, é uma preliminar da segunda, a concretização da idéia nos costumes e instituições sociais, mas, como uns e outros são sempre susceptíveis de decadência, a primeira liberdade continua a ser necessária e suprema para a constante revisão e reconstrução dos próprios costumes e instituições sociais.

A história da liberdade humana está sempre a oscilar entre esses dois polos, já exagerando os aspectos puramente individuais da liberdade, já insistindo na reforma social que, por vêzes, se opera com a supressão da liberdade individual. A conciliação parece estar na elucidação dos objetivos de cada um dos apontados aspectos da liberdade e dos modos efetivos deles se realizarem.

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E' indispensável a liberdade de pensar, não como simples diversão ou deleite individual, mas como condição para a organização do pensamento teórico e especulativo, destinado a exercer sempre sobre o próprio contexto da vida social, isto é, as suas instituições, costumes e modos de comportamento, o influxo, a inspiração e o estímulo para a sua revisão e reconstrução, quando se fizerem impedientes ou restritivas da vida mais abundante e mais ampla. E é indispensável a liberdade de organização, isto é, a de poderem os homens organizar seus objetivos de vida de forma autônoma e pluralista, em diversas áreas de ação, baseados no enriquecimento progressivo de sua inteligência, suas idéias e seu saber, fora da área de compulsão necessariamente restrita do Estado, sujeitos tão somente ao império da persuasão e da razão, que o novo conhecimento veio criar.

E' a marcha desses dois aspectos da liberdade que vamos procurar acompanhar em nossos comentários.

Com efeito, talvez seja lícito reconhecer no período de crescimento institucional que marcou a idade média, como na obra jurídica anterior dos romanos, já o resultado da nova atitude intelectual assumida pelo homem, em face da descoberta de sua arte de pensar deliberada e refletidamente. Começaram as novas idéias a se traduzirem em costumes e instituições, determinando novas formas de ação coletiva, independente da ação todo poderosa e exclusiva dos governos. A experiência da idade média é significativa, porque rompe com a exclusividade e supremacia do poder do Estado e cria a opor-

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tunidade de pluralismo, nas forças de governo e coordenação da vida humana.

A idade média se caracteriza pelo feudalismo, pelas corporações, pelas universidades e pela Igreja, isto é, um extraordinário contexto de instituições independentes e variadas, a dar-nos a primeira civilização institucional da história. Cada uma dessas instituições era uma forma nova de organização das "liberdades" humanas. Certos conjuntos de interesses ou de objetivos logravam "reconhecimento" e obtinham, em face desse reconhecimento, a "liberdade" de se auto-organizarem. A Igreja, como se constituíra antes, nem sempre é considerada como uma das "corporações", mas, na realidade, nada mais é do que a maior de todas elas, fornecendo o primeiro exemplo da pluralidade de forças organizadoras, a que a idade média iria dar origem.

Não será que chegamos, afinal, ao gozo das conse-qüências do aparecimento do "pensamento racional", que não se limita a explicar e justificar o existente, mas a criar o novo e a introduzir novas forças no jogo dos elementos organizadores da existência humana?

Pouco importa que não houvesse formulação explícita das intenções de incorporar idéias em instituições, mas a evolução era do homem e da vida modificados pelo fermento intelectual da experiência racional. A multiplicação e "independência" de forças de organização, que caracterizaram a idade média, com a Igreja, o poder feudal e as corporações, começaram a dar ao homem a intuição de que e vida não era a simples submissão a instintos, costumes e hábitos, mas a conse-

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qüência das instituições existentes e criadas pelo próprio homem.

O renascimento, o humanismo e a reforma iniciaram, por isto mesmo, logo depois, um período de intensa e consciente revisão, em que o indivíduo ligado e religado na rede de instituições que lhe organizavam a vida e que se haviam tornado decadentes, na época medieval, se sente não libertado mas tolhido e empreende as suas jornadas libertárias, que culminam com a revolução inglesa, a americana e a francesa, todas baseadas em certo absolutismo individualista, que, entretanto, corrigiria o seu inevitável anarquismo por meio do hábil recurso criado pela descoberta rousseauniana da idéia de "contrato social". O individualismo da época é, sob certo aspecto, um retrocesso, pois, permite a volta ao poder absorvente dos governos. Mas, temos, daí por diante, o homem cada vez mais consciente nos seus esforços deliberados de organização social, chegando, mais tarde, a querer reduzir a atos de vontade a própria criação do Estado. A revolução americana, por exemplo, é afirmação eloqüente dessa nova força , das idéias sobre a tradição, os hábitos e os costumes, plasmando uma nação 0 logo um Estado, por ato expresso de um conjunto de vontades individuais.

Da destruição, contudo, de todas aquelas corporações medievais, que de "libertadoras" já se haviam tornado coatoras, a que se atirou o homem moderno, para, sobre elas, erguer o indivíduo racional, puro e sem peias, embriagado com a sua consciência de razão e de liberdade, salvou-se uma corporação : a universi-

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dade talvez por ter tido evolução, afinal, inversa das demais corporações.

A corporação era, como sugerimos, uma "liberdade" organizada. Na sociedade de artesãos e mercadores, que veio a configurar, por último, a idade média, as unidades corporativas eram o comércio e os ofícios (industria), que se baseavam nas atividades e artes empíricas e tradicionais da espécie. O conhecimento artesanal não era "racional" ou "científico", mas de tirocínio, e se transmitia pelo aprendizado direto. E as ativi-dades comerciais nem disto precisavam.

A universidade, entretanto, era a corporação das artes liberais, isto é, das artes baseadas no conhecimento racional, conscientemente elaborado. Esta corporação é a que retraduzia, em linguagem medieval, a escola de Atenas e de Alexandria, e retomava a tradição do "saber racional", e o reinstalava nas condições de independência que o regime da idade média acabou por permitir e mesmo consagrar.

A sobrevivência dessa corporação, a despeito do individualismo revolucionário do Século XVIII, é muito significativa para o destino no mundo moderno, daquele aspecto da liberdade, já antes sublinhado, isto é, o da "institucionalização" da liberdade, transformada, assim, em um modo de ação. Com efeito, a conservação da Universidade de certo modo como corporação e a institucionalização das grandes profissões em outras tantas organizações gremiais, independentes e autônomas, e, so lado, o movimento unionista ou sindicalista dos operários que sucederam aos artesãos, é que asseguram a liberdade no Estado moderno, superado que foi o ro-

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mantismo da liberdade puramente individual, que não existe nas condições em que a idealizou o século dezoito, mas sim na liberdade de organização antevista pela idade média e restabelecida pelo nosso regime moderno.. embora em moldes diversos e bem mais amplos.

A condição essencial para a liberdade no Estado moderno está, com efeito, acima de tudo, na independência das instituições que guardam, aplicam e promovem o saber humano, isto é, as profissões chamadas liberais e a universidade, em face do Estado, ao qual cabe velar por elas, mas jamais interferir em sua área de ação ou na consciência profissional dos seus agentes.

Formulado, com efeito, o pensamento racional e esta-belecidas as bases para a descoberta e revisão constante do saber, o homem livre passou a ser o que realmente não se submete senão ao comando deste saber que opera pela persuasão e o convencimento, e ao do Estado, que detém o poder de compulsão, mas somente no limite em que este se subordina ao próprio saber e concretiza, pela lei, expressão do consenso coletivo, aquela experiência mais geral da espécie, que não se identifica propriamente com qualquer dos campos especializados do saber ou com as profissões de base científica. O saber organizado constitui, verdadeiramente, a nova fonte do poder humano, dirigindo a ação e a conduta do homem, por intermédio das instituições sociais de sua criação. Pelo saber, pela ciência, obtém o homem poder para a consecução dos seus objetivos vitais e o põe em operação por meio das instituições sociais, cujo progresso promove por meio desse mesmo saber, autôno-

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mámente organizado e em condições de independencia suficiente para se elaborar e renovar constantemente.

Nenhum Estado moderno deixa de ter consciência dessa condição para a liberdade, mas nem sempre se formula explícitamente tal condição, nem se define o critério pelo qual se devam delimitar as duas áreas de governo — a do saber, como tal, com a sua força própria operando por esclarecimento e persuasão, e a da lei corno norma coercitiva, imposta pela experiência geral da comunidade. A liberdade é a vida organizada legalmente, mas é, sobretudo, a limitação do ambito da lei àquilo que representa o mínimo de condições para que ela, a liberdade, se exerça do seu modo supremo, isto é, pela força persuasiva do conhecimento elaborado pelos grupos de homens competentes, a quem sejam confiadas a sua guarda e o seu progresso. Todas as vêzes que a lei se exceder e buscar se exercer em terreno ou área que seja de atribuição precípua do conhecimento ou saber organizados, terá infrigido as condições atuais, não só ideológicas, como realistas, da liberdade.

Somente quando as instituições do saber estão com a sua independência salvaguardada e a livre circulação desse saber assegura a conduta deliberada e refletida dos homens e a crítica e revisão constante de suas leis e instituições, é que teremos um regime de liberdade, como o concebeu a inteligência humana naquele minuto de esplendor em que teve, na Grécia, a revelação do seu poder não só de contemplar o mundo, mas de transformá-lo, pela força criadora do conhecimento e conseqüente invenção de instituições e instrumentos que, realmente, o concretizem e apliquem.

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As considerações até aqui feitas visam, mais do que tudo, sublinhar a emancipação humana da completa submissão aos instintos, costumes e tradições, pelo poder de organização obtido pela inteligência cultivada, e acentuar o caráter dinâmico adquirido pela civilização, desde que passou a ser o resultado do progresso do pensamento racional e científico.

O "conhecimento racional", cujos métodos se esboçaram há mais de dois mil anos e que, após a renascença, logrou o florescimento que todos conhecemos, quando deixou de ser objeto da adoração extática dos homens para se constituir no que realmente era, isto é. um método de indagação e de descoberta, já produziu, sob os nossos olhos, os melhores frutos. Sob o seu último impulso, provocado pelos grandes pensadores do século dezessete e dezoito, desenvolveram-se a revolução industrial, a política e a tecnológica, as quais, nos últimos cento e cinqüenta anos, transformaram a face material e social da vida humana. Com o progresso material vimos "organizando" a liberdade do homem no sentido de, dia a dia, tornar mais praticáveis as suas aspirações.

O ritmo da evolução é sempre o da renovação insti-tucional à luz das novas idéias que se vão, assim, incorporando à vida, o do crescimento e envelhecimento dessas instituições, que de renovadas se fazem decadentes e coatoras, e a seguinte renovação ou readaptação para a melhor concretização das aspirações hu-manas. Nesse processo, a garantia da constante renovação está na independência do pensamento e do saber humanos, também, eles, hoje, institucionalizados, pois, não se pensa mais apenas com a cabeça, mas, com todo

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um imenso aparelhamento — meios de comunicação físicos e mentais, escrita, serviço de documentação, diversos modos de literatura, pensamento crítico, pensamento sistemático, pensamento construtivo, história, língua, simbolismo matemático e instrumentos e inventos técnicos de toda crdem.

Assim, a manutenção do poder criador do espirito humano, em face da plasticidade crescente das cousas e dos homens, cada vez mais evoluídos no seu equipamento mental, exige que as instituições do saber e as corporações dos profissionais, que aplicam e respondem por esse saber na sociedade, gozem de condições de independência as mais altas, pois nelas é que se inspira toda a marcha dinâmica e progressiva da vida humana. Nessa nova forma de vida em transformação contínua, a direção boa ou má é e será, mais do que nunca, determinada pelo conhecimento e pelo saber, que tem, em si mesmo, força de governo e de controle, pois compele às mudanças, num jogo de informação e cooperação voluntárias, baseadas na predisposição de mudar, que o espírito humano adquiriu em face da consciência do seu próprio mecanismo de funcionamento.

Para haver liberdade, a condição inicial é, portanto, a da autonomia dos grupos humanos que se devotem à transmissão, progresso e aplicação do sempre renovado e ampliado saber humano. E estes grupos são os dos professores e os dos profissionais das chamadas profissões divinas e liberais, hoje alargadas até incluir os engenheiros e técnicos de nível científico de toda espécie, que aplicam, além da religião, da lei e da medicina, o numeroso e complexo saber técnico-

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científico, de que já dispõe, cada vez mais, o mundo dos nossos dias, no seu acelerado curso histórico.

A maior contribuição da idade média ao estado moderno consistiu em haver originado a experiência do pluralismo de instituições destinadas a organizar a liberdade humana e, por este modo, a controlá-la. A idéia positiva de liberdade, como algo que se "organiza" para constituir-se em poder, que, por sua vez, é responsável e se autocontrola, é muito diferente do conceito negativo e romântico de uma simples e quimérica liberdade individual absoluta. O Estado moderno já vem, assim, francamente evoluindo para compreender a liberdade como algo que se efetiva por meio de instituições, a se desenvolverem e se aperfeiçoarem em função dos próprios objetivos de liberdade que visam assegurar.

Quando o século dezoito julgou poder pulverizar todas as corporações, para um retorno ao indivíduo, vimos como a universidade resistiu, um tanto inexplicavelmente, ao impacto e emergiu para a civilização contemporânea, guardando muito do seu caráter e, no mundo anglo-saxônio, guardando-o quase em sua totalidade, e salientamos quanto foi isto significativo para a redução do mito da soberania absoluta e a constituição do pluralismo institucional do estado moderno, sobretudo na área de tradição anglo-saxônia, pluralismo que nos parece essencial para os aspectos de liberdade que estamos analisando.

Com efeito, a universidade não surgiu na idade média, com o objetivo de se constituir na sede da inteligência crítica para a reconstrução permanente da sociedade. Era, apenas, mais uma corporação entre as

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demais corporações medievais. E, a principio, foi apenas organização de mais uma tradição — a tradição da erudição trazida da escola alexandrina. Era a rotina do saber. E tão rotineira se fez, que os verdadeiros pro-motores do progresso intelectual nos séculos dezessete e dezoito não estão com ela, mas sob a proteção dos príncipes e governos "esclarecidos".

Mas, a energia da inteligência especulativa havendo encontrado em sua organização autônoma a sua própria força de liberação, depressa entra a atuar não somente como mecanismo estabilizador porém como revisor e reconstrutor, impondo, na fase nova de expansão que se abria, mais que sua manutenção, o seu revigoramento .

Podemos, talvez, medir pelo modo por que foi tratada a universidade, a quantidade de liberdade subsistente, quando ao ímpeto revolucionário do século dezoito sucederam a onda reacionária e as tentativas restauradoras. E se, na Europa continental, a universidade perdeu, muitas vêzes, em sua autonomia, é que foi no continente europeu que a liberdade sofreu, no mundo contemporâneo, os seus mais graves eclipses.

Em nossa análise, entretanto, não queremos tanto acentuar as vicissitudes históricas da autonomia universitária, quanto salientar que o problema humano, desde que se formulou a experiência racional, passou a depender basicamente do modo pelo qual a inteligência pode funcionar na sociedade dos homens. Ora, essa inteligência, hoje, precisa de uma enorme aparelhagem para se exercer e está a depender, como nunca, de meios d

riqueza, sem os quais o pensamento humano voltaria

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a um estado primitivo. A institucionalização, pois, dos objetivos e interesses do pensamento humano é uma necessidade da liberdade humana.

A circunstância da universidade haver-se constituído, como a corporação que tomou a si essa tarefa, valendo-se dos modeles por que a vida então e por fim se organizara, em torno dos objetivos e interesses do comércio em crescendo e de sua produção artesanal, veio fornecer, ao Estado moderno, uma das condições essenciais para o seu desenvolvimento.

Daí a sobrevivência da Universidade e a necessidade de transformá-la, em definitivo, na instituição básica do progresso humano, no mundo contemporâneo, estendendo os seus efeitos por todos os níveis da cultura.

A autonomia que estamos a procurar defender aqui não é, portanto, apenas a independência da instituição universitária, mas a do próprio saber humano e a de sua força própria de contrôle, distinta, por excelência, da do costume e tradição e da dos governos, por isso que age e atua por esclarecimento e persuasão. O desenvolvimento do saber aumentará constantemente a área da direção dos homens pela razão, constituindo-se, desse modo, o instrumento pelo qual ele virá atingir a sua esperada maturidade.

Ora, como se há de organizar a sociedade, de modo que seja possível a autonomia do saber e, ao mesmo tempo, se promova o seu progresso constante e se assegure o seu prestígio, para que esse mesmo saber atue sôbre o Estado, que é o detentor do poder coator legal, e sôbre todas as demais instituições, e subordine Estado

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e instituições ao seu poder persuasivo? — Este, o problema do nosso tempo.

Poderemos não saber como resolvê-lo completa-mente, mas podemos encaminhar-nos para a sua solução, erguendo a universidade à sua posição de matriz da sociedade contemporânea. A universidade, como guardiã, transmissora e promotora do saber e da experiência, as igrejas e as profissões, como corpos autônomos de aplicação do saber, as uniões ou sindicatos, como sistemas de defesa de interesses legítimos do trabalho, e o governo, como força vigilante, para que todo o mecanismo institucional funcione, sob a égide da lei, em cuja elaboração se deve levar em conta ser vedado ao Estado e seu governo, interferir no campo já conquistado do saber e da consciência profissional, — tal será o regime livre e progressivo, que devemos buscar, para a implantação gradual e cada vez mais ampla da razão na vida humana.

Dissemos, de começo, que segundo todas as proba-bilidades, um habitante de Nínive ou de Babilônia não saberia se era ou não governado despòticamente. Também nós, guardadas as proporções, não o sabemos, tão longas e tão antigas são as tradições de uma imaginária universalidade do âmbito da lei e de uma pretensa supremacia do poder do Estado, concretizada na noção de soberania ainda vigente.

Opomo-nos a governos de força, mas, só os consideramos tais quando infringem certos aspectos restritos de liberdades individuais. Precisamos opor-nos também à ampliação ilegítima do âmbito da lei. Afora uma vaga defesa da consciência religiosa, nunca desenvolvemos,

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entre nós, o sentimento de que, na área do saber humano, também não é possível a interferência da lei. Está claro que herdamos do ocidente europeu boa parte dos hábitos de independência profissional e do saber, mas não chegamos a tornar perfeitamente consciente a herança, a ponto de possuirmos um critério capaz de denunciar as violações dessa aliás recente tradição.

Vindos antes de uma tradição absolutista portuguesa, mais velha e renitente, e sofrendo, depois, ainda por cima, a influência de uma França napoleônica, acabamos por tomar aos Estados Unidos a sua organização política e a misturamos com uma tradição legal, em essência cheia dos ranços afonsinos, filipinos e napoleónicos. Daí não têrmos, em nossa organização pública e legal, nada que lembre expressamente a separação entre o poder legal e de governo e o poder do saber e da persuasão, a não ser nos aspectos limitados da consciência religiosa, quando, proclamada a República, a separação entre o Estado e a Igreja, até com apoio desta, então se operou. No mais e em tudo, sempre se considerou o Estado livre, absolutamente livre para legislar: não somente sôbre as garantias das profissões e do ensino, como sôbre as profissões e o ensino, determinando-lhes o que e o como fazer, como se esses campos não fossem os campos por excelência vedados à ação da lei e reservados ao autogovêrno da consciência profissional e do saber.

Escolas, universidades, profissões são governadas por leis e regulamentos elaborados pelo Estado e por autoridades menores, nomeadas pelo Estado, simples prepostos burocráticos, de qualificação e nível muito

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inferiores a qualquer professor de faculdade superior, quanto rnais diretores e reitores, sob a complacência universal, havendo muitos que até se horrorizam com a idéia de autonomia e de governo pelos seus pares, preferindo antes a proteção do príncipe, que a liberdade organizada de suas próprias instituições.

Não será que estamos, realmente, como aqueles cidadãos antigos que ignoravam a própria condição de súditos tiranizados? Se a isto não chegamos, talvez, estejamos pelo menos como aqueles mestres de Alexandria, na segunda fase da escola, quando o simples guardar e analisar dos velhos conhecimentos os esvaziara de toda a inspiração e todo o poder criador. . .

Repostos na idéia de que não progredimos pelo costume, mas pelo saber, será natural que nos voltemos para as nossas instituições de educação e de estudo, não como relíquias toleradas de uma tradição, porém como a força mesma da sociedade moderna, que a inspira e a plasma e lhe promove o indefinido progresso. E dentre essas instituições, avulta a universidade, como eixo e cúpola, com as suas escolas de cultura geral, os seus cursos profissionais superiores, os seus estudos especializados, seus cursos pós-graduados, de doutorado e de aperfeiçoamento, as suas pesquisas, as suas bibliotecas, — tão fundamentais, que, somente elas, de certo modo já são a universidade e, sem elas, inconcebível se torna a idéia mesma da universidade, — os seus recursos de comunicação físicos e mentais, as suas tecnologias e a sua literatura e o seu pensamento, e todo um corpo de servidores da cultura, mestres e alunos, vivendo numa atmosfera de inspiração e de trabalho,

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devotados à tarefa suprema de conduzir a aventura humana pela inteligência e pelo espírito.

Tal instituição tem que possuir, pelo menos, a mesma independência que reconhecemos às igrejas, não podendo ficar reduzida àquela noção restrita de liberdade de cátedra, porque, hoje, o pensamento humano não é uma simples atividade individual e subjetiva, mas, o resultado de uma ação complexa e multiforme, envolvendo grandes recursos em pessoas, material e apare-Ihamento. A sua independência não é algo de negativo que se concretiza pela ausência de imposições, mas algo de positivo que se organiza em uma das maiores atividades corporativas da sociedade.

Bem sabemos que, por mil e quatrocentos anos, pôde dormir, sob os tumultos e os desvios do império romano e da idade média, aquela "razão" que os gregos revelaram ao homem e que só do século onze, em diante, volta a luzir, primeiro para a "justificação" racional da crença católica, depois para o grande reencontro com o pensamento grego do fim da idade média e do renascimento e os surtos especulativos da Reforma e do individualismo, até a fundação por Descartes do racionalismo científico, de que parte todo o progresso moderno. Sabemos que, naqueles mil e quatrocentos anos, não faltaram cultores extáticos do saber humano. Faltaram, sim, continuadores desse saber. Porque o saber não é somente algo que se guarda ou apenas se transmite, mas, sobretudo, algo que se continua e se renova, numa permanente reconstrução. Foi somente quando o homem perdeu a sua comovida surpresa ante o saber e não se deteve em sua veneração, mas passou

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considerá-lo, simplesmente, como um apoio, um bordão para ir adiante na marcha sem fim da experiência da vida que o progresso intelectual veio a ganhar seu intenso ritmo contemporâneo. Este, o significado da autonomia intelectual, que o homem conquista, afinal, a partir de Descartes.

Naquela ocasião, como ao tempo da escola de Ale-xandria, não era, entretanto, com as universidades que estava a independência da inteligência humana. A tolerância do governo holandês era mais propícia a um Descartes do que o reacionarismo universitário de então, na Sorbonne e alhures.

E' que as universidades não serão o que devem ser se não cultivarem a consciência da independência do saber e se não souberem que a suprema virtude do saber, graças a essa independência, é levar a um novo saber. E para isto precisam de viver em uma atmosfera de autonomia e estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação. Não é por simples acidente que as univei-sidades se constituem em comunidades de mestres e discípulos, casando a experiência de uns com o ardor e a mocidade dos outros. Elas não são, com efeito, apenas instituições de ensino e de pesquisa, mas sociedades devotadas ao livre, desinteressado e deliberado cultivo da inteligência e do espírito e fundadas na esperança do progresso humano pelo progresso da razão. O seu clima é o da imaginação, no que tem de mais potente este aspecto de nossa vida mental. O seu ofício é a aventura intelectual, conduzida com o destemor e a bravura da experiência, estimulada e provocada pela juventude,

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que quer aprender, para ir com o seu novo saber, à base do velho, até o desafio deste.

Mas, por isso mesmo que na universidade se misturam, não sem certa contradição, o saber dos mestres com o simples desejo de saber dos discípulos, a reverência ao saber adquirido com o desejo de superá-lo, a submissão ao método racional com a insubmissão aos seus resultados tidos por assentes, — a mesma universidade pode, no inevitável movimento pendular do espírito humano, tanto exceder-se na veneração das con-quistas alcançadas e estagnar-se, quanto, no ardor de buscar a sua renovação, fazer-se, ora puros centros de fácil erudição pedantesca, ora insofridos núcleos de inovações precárias e efêmeras. Para evitar tais escolhos, é que se impõe a sua independência de qualquer outra subordinação que não a do espírito humano impregnado de respeito pelo método científico e sempre pronto para a revisão de suas conclusões.

Daí a universidade constituir-se em uma comunidade de objetivos mais amplos que os do ensino e o da pesquisa, pois os homens e mulheres que a compõem não visam apenas ensinar e aprender, investigar e descobrir, mas também viverem — num clima de fervor e devoção intelectual — a grande aventura do espírito humano na conquista da terra e de si mesmo.

Comunidade, assim, é ou será a mais alta comunidade humana. Em uma sociedade medieval, pretendendo a edificação da "Cidade de Deus", podiam as ordens religiosas e a Igreja constituírem o apogeu de sua organização social; mas, na sociedade leiga e secular dos nossos dias, a suprema instituição humana é essa

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instituição em que se transmite e se elabora o saber, o instrumento pelo qual o homem tende a realizar o seu destino de animal razoável, senão racional.

Assim compreendida, a universidade, que corporificará o espírito da investigação e do saber, baseados no método racional, ou científico, tem como tarefa essencial manter, entre os homens, a confiança no pensamento humano e no seu poder de organização e direção pacífica e progressiva da vida.

Graças a esse pensamento, a vida evoluiu para a civilização industrial e democrática dos tempos modernos, com os seus inúmeros problemas de crescimento, desajustamentos e deslocamentos de toda ordem. Es-amos a ser desafiados por esses problemas, que somente se resolverão pela criação de uma nova cultura adaptada às condições novas de nossa época. Nenhum dos modelos passados de cultura de classes, ou, em rigor, de cultura aristocrática, pode servir de padrão à cultura que nos cumpre criar para os tempos democráticos de hoje, em que, não uma classe, mas cada indivíduo deve adquirir a distinção que lhe for própria.

É, assim, de suma importância que a universidade não só arme o homem com os instrumentos indispensáveis ao seu novo poder mecânico e econômico, mas traduza em sentimento e imaginação a significação do novo tipo de vida, a que está ele sendo conduzido em face do progresso científico, cada vez mais amplo e mais extenso.

A questão tem suprema atualidade porque estamos no Brasil a entrar, exatamente, na fase corres-

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pondente de civilização industrial e democrática, em que temos de construir uma cultura para todos — esses todos a que chamamos de massa.

Começa a nossa sociedade a passar pelas mudanças, já ocorridas em outros meios : emigração para as cidades, urbanização intensiva, mobilidade social, vertical e horizontal, adaptação a novas condições de trabalho, senso de fronteira, senso de oportunidade e expansão, todo um processo de liberação de forças e de enfraquecimento de inibições, dando como resultado a confusão e incerteza, características dos períodos de propulsão e de aventura.

Tudo isto pode produzir apenas uma nova ordem de trabalho, enérgica mas mecânica, com perda sensível de certos valores mais delicados de ordem moral e espiritual, como poderá ir-nos levando gradualmente a nova integração em uma vida mais larga e mais geral, em que os valores de fraternidade e de cooperação sejam, dia a dia, mais eficazes e mais sentidos.

Não se pode encomendar a nova cultura de que precisamos. Ela terá que vir como resultado de uma consciência mais aguda e mais inspirada do curso mesmo dos acontecimentos. E a universidade, especialmente, e, em rigor, toda a educação deverão esforçar-se por ajudar a trazer à luz o novo estado de espírito e a nova interpretação da vida, necessária para as novas condições, novas contingências e novos progressos.

À universidade cabe trazer a contribuição mais significativa para a elaboração dessa nova cultura. Responsável pelo saber existente e pelo seu progresso, no

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meio brasileiro, e refletindo todos os problemas da formação nacional, já pelo seu corpo discente, composto de candidatos a todas as vocações e profissões de nível superior do país, já pelos planos de estudos organizados para atender à variedade e multiplicidade dos conhecimentos indispensáveis à formação daqueles especialistas, a universidade, viva e dinâmica, pelos fins mesmo de sua missão intelectual e científica e pela projeção desses fins na formação dos quadros mais diversos das profissões, da ciência e da técnica, se constituirá a própria consciência nacional, no que ela tem de mais agudo e mais sensível, cooperando, assim, para a redireção da vida social, no sentido da formação democrática e moderna da cultura brasileira.

Correspondendo, como vimos, à própria institucio-nalização da inteligência, a Universidade, pelos seus mestres, pelos seus discípulos e pelos seus graduados ou ex-alunos, constituir-se-á uma extensa rede de pessoas, a atuar em toda a sociedade e a levar-lhe os resultados do saber e, melhor do que isto, o espírito do saber, misto de humildade e de audácia, pelo qual nenhum triunfo é realmente triunfo, nem nenhum insucesso realmente insucesso, mas condições, ambos, para mais ricas experiências e para a ampliação e reconstrução constantes da aventura da vida e do homem na Terra.

Até o presente momento, os êxitos no mundo material têm obscurecido os seus ainda pequenos êxitos no campo social e moral. Tudo nos leva, entretanto, a crer que o homem venha, na segunda metade, já em

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curso, deste nosso século, a atingir a maturidade necessária para experimentar em sua vida social e emocional os métodos com que vem transformando a vida material, ou métodos de eficiência e alcance equivalentes. Esta será, provavelmente, a grande tarefa universitária das próximas décadas.

Entre nós, no Brasil, contudo, muito temos ainda a fazer no campo material. As grandes e pequenas tecnologias de nossa época foram elaboradas, em grande parte, para as regiões temperadas do globo e a civilização se vem implantando em uma região tropical, para a qual faltam ainda inúmeros recursos tecnológicos. O saber no campo desses recursos e a sua utilização pelo homem na adaptação desta terra à vida saudável e próspera do brasileiro, abrem perspectivas enormes para a investigação e a experimentação dentro das grandes linhas, já conhecidas, do desenvolvimento científico moderno. Os períodos de expansão humana são marcados pelo desafio dos continentes vazios a ocupar e dos problemas que a vida em novas condições provoca e suscita. Temos, em nosso país, um modesto exemplo desse caso. Somos de extensão continental, com uma população ainda diminuta, que começa a despertar, concentrando-se em grandes cidades e se agitando ao longo de todo o país, a busca de novas condições de vida. São estes os requisitos para os períodos criadores. A tarefa imediata de nossas universidades, irmãs mais jovens das grandes universidades do mundo, onde se irá processar o esperado progresso das ciências sociais e morais, é a do desenvolvimento científico e técnico, para alimentar

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a grande necessidade imediata de progresso material no Brasil contemporâneo.

O importante é salientar-lhes, assim, a missão de instrumentos fundamentais do desenvolvimento brasileiro e humano e acentuar quanto é ainda incipiente o nosso desenvolvimento nacional. Estamos, apenas, experimentando as primicias da maíoridade.

O sussurrante agitar das chamadas "massas'' nada mais é do que o alargamento daquela intuição de que o homem — a humanidade toda — pode, graças à razão, chegar a uma vida decente e significativa neste planeta. Não estamos desesperados, mas apenas embriagados de esperança. São naturais certas impaciencias e não é tão absurdo que tais impaciencias cheguem a degenerar em aparências de desordem e confusão.

O momento é, porém, em todo o mundo, um momento de expansão, de libertação de forças, de novas composições e convergências para os grandes esforços humanos. Em tais momentos, é impossível exagerar a função das universidades, à luz das considerações que fizemos. Será por elas e graças a elas que poderá sempre vencer aquele senso do razoável, que é o fruto mais alto do novo conhecimento humano. O caracte-rístico do uso da razão, que há dois e meio milênios, tenta a humanidade aprender e praticar, é a tolerância.

Todo saber é uma "experiência" de saber. Toda ciência é uma vitória da persuasão sôbre a força. À medida que se estende a área do conhecimento racional e relativo, nesta medida se amplia a área de tolerância

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e de respeito pelo homem, e cresce a reverência pela sua missão de estender e desenvolver a aventura da vida sob o sol O imenso poder que a sua pequena razão já lhe pôs nas mãos jovens não poderá ser lançado contra si próprio. A mestra da moderação e da tolerância, que é a mesma razão empreendedora, há de ser também a mestra da paz entre os homens. A guardiã dessa razão humana, origem e instrumento do saber, é a universidade, em cujo seio deve palpitar essa suprema esperança humana.

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A CRISE EDUCACIONAL BRASILEIRA

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A CRISE EDUCACIONAL BRASILEIRA

Ão é difícil encontrar-se um relativo consenso de opinião a respeito da gravidade da situação educacional brasileira. A divergência surge na análise das causas dessa situação e na indicação da terapêutica mais aconselhável .

Vamos tentar aqui encarar essa situação de pontos de vista mais recuados ou buscar novos ângulos de apreciação, com a esperança de que novas perspectivas, eu visão mais extensa dos fenômenos, nos desfaçam as divergências e sugiram diretrizes comuns ao nosso esforço de recuperação.

Antes de tudo, cumpre definir a educação como função normal da vida social e caracterizar os motivos pelos quais, além dessa educação, buscamos dar aos indivíduos educação formal escolar.

A educação, como função social, é uma decorrência da vida em comunidade e participa do nível e da qualidade da própria vida em comum. E' por este modo que adquirimos a língua, a religião e os nossos hábitos fundamentais. E' por este modo que somos brasileiros, que somos de nossa classe, que somos afinal o que somos. A família, a classe, a religião são instituições edu-

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cativas, transmissoras dos traços fundamentais de nossa cultura, e a elas ainda se juntam a vpa social em geral e os grupos de trabalho e de recreio.

A escola, propriamente dita, somente aparece em estágio avançado e complexo da cultura, quando esta, já consciente, adquire as técnicas intelectuais da leitura e da escrita e o saber pelo livro, cuja transmissão não se pode efetuar senão sistematicamente. A escola surge. pois, assim, como uma instituição já altamente especializada, preposta à formação de intelectuais, de letrados, de eruditos, de homens de saber ou de arte.

Podemos dizer, numa simplificação um tanto ousada, mas em rigor certa, que até o século dezoito, não teve a nossa civilização outra escola senão essa, destinada a manter e desenvolver a cultura intelectual e artística da humanidade, para tanto preparando um pequeno grupo de especialistas do saber e das profissões de base científica e técnica. Tal escola não visava formar o cidadão, não visava formar o caráter, não visava formar o trabalhador, mas formar o intelectual, o pro-fissional das grande profissões sacerdotais e liberais, o magistério superior, manter, enfim, a cultura intelectual, especializada, da comunidade, de certo modo distinta da cultura geral do povo e, sobretudo, distinta e independente de sua cultura econômica e de produção.

Um dos resultados, porém, dessa cultura intelectual foi a ciência, cuja aplicação crescente à vida veio revolucionar os métodos de trabalho e de vida do homem. Começa, então, a necessidade de uma educação escolar mais generalizada, destinada a dar a todos aquele treino sem o qual não lhes seria possível viver ou trabalhar

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eom adequação ou integração aos novos níveis a que atingiria a sociedade.

Essa nova escola, já agora para todos ou, pelo menos, para muitos, não tinha por objetivo preparar os especialistas das letras, das ciências e das artes, mas o homem comum, para o trabalho ou o ofício, tornado esto, pelo desenvolvimento da civilização, suficientemente técnico para exigir também treinamento escolar especial. Ora, para tal modalidade de escola não dispunha a sociedade de nenhuma tradição. Não havia, com efeito, senão as escolas altamente especializadas de treino e preparo de um grupo reduzido de intelectuais, letrados, cientistas e artistas. E a nova escola teve assim que utilizar a tradição e os métodos das antigas ecolas. Daí o seu caráter intelectual e livresco, como se a escola comum nada mais fosse que uma expansão da escola tradicional, uma iniciação de toda gente à carreira de letras, de ciências ou de artes, ônus e privilégio até então de poucos.

Somente nos fins do século dezenove, começa-se, no mundo, a rever e transformar essa situação, com o aparecimento da chamada educação nova, do trabalho. ativa ou progressiva, que mais não é do que a percepção de que a formação do homem comum ou, melhor, a formação de todos os homens não podia obedecer aos mesmos métodos de formação de uma classe especial de estudiosos, eruditos, intelectuais ou cientistas. A escola chamada tradicional, com a sua organização, o seu currículo, os seus métodos somente teria eficiência para o tipo muito especial de alunos, a que sempre servira, isto é, aqueles muito capazes e que se destinassem a uma

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vida de estudos literários ou científicos. Ora, nenhuma nação pode pretender formar todos os seus cidadãos para intelectuais. E como nenhuma escola também seria capaz disto, a escola comum, intelectualista e livresca, se fez uma instituição mais ou menos inútil para a maioria dos seus alunos.

A reforma dessa escola está em plena marcha em todo o mundo. Dia a dia, as escolas primárias e secundárias se fazem mais ativas e práticas e as escolas superiores mais técnicas e especializadas. Cada escola passa a procurar servir mais diretamente aos seus fins, inde pendente de qualquer preconceito social ou intelectual. Este, o sentido de renovação educacional do nosso século.

As escolas passaram a ter dois objetivos: a formação geral e comum de todos os cidadãos e a formação dos quadros de trabalhadores especializados e de especialistas de toda espécie exigidos pela sociedade moderna .

A preparação comum dos homens não é formação propriamente intelectual, embora exija certas técnicas intelectuais primárias, como a leitura, a escrita e a aritmética, e certo mínimo de informação e conhecimento. Precipuamente, é uma formação prática, destinada a dar, ao cidadão, em uma sociedade complexa e com o trabalho extremamente dividido, aquele conjunto de hábitos e atitudes indispensáveis à vida em comum. A escola. neste nível, longe de poder ser modelada segundo os antigos padrões acadêmicos, deve buscar os seus moldes na própria vida em comunidade, fazendo-se ela própria uma comunidade em miniatura, onde o aluno viva

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e aprenda as artes e relações da sociedade composita e dificil de que vai ùtilmente participar. Para essa nova, ativa, vital e progressiva educação, somente agora vem o mundo descobrindo e aplicando as suas técnicas e os seus métodos.

Depois da escola comum, eminentemente formadora de hábitos sociais e mentais, passa o aluno, já adolescente, a escolas especializadas, em que se habilita para a imensa variedade de trabalhos, que oferece a sociedade contemporânea, inclusive o trabalho do estudo e da pesquisa e o das grandes profissões chamadas liberais, que, embora tremendamente importantes, constituem apenas um setor da vida hodierna. Em tais escolas especializadas, também hoje muito transformadas, é que se pode encontrar e se encontra ainda algo da velha tradição acadêmica e escolástica.

Essa evolução escolar, com anacronismos inevitáveis, também se vem realizando entre nós. Estamos, talvez possamos dizer, no período correspondente ao da segunda metade do século dezenove na Europa. A opinião pública tomou-se de certo entusiasmo pela educação e está a exigir escolas para todos. Há, por toda a parte, certo orgulho nos aspectos quantitativos da educação e a pressão se faz tão intensa, que até a limitação de matrícula se torna difícil, senão impossível.

* * *

Não poderemos, entretanto, analisar com justeza a situação escolar brasileira presente, sem antes considerar que o nosso esforço de civilização constituiu um es-

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forço de transplantação, para o nosso meio, das tradições e instituições européias, entre as quais as tradições e instituições escolares. E a transplantarão não se fez sem deformações graves, por vezes fatais. Como a escola foi e será, talvez, a instituição de mais difícil transplan-tação, por isto que pressupõe a existência da cultura especializada que busca conservar e transmitir, nenhuma outra nos poderá melhor esclarecer sobre o modo por que se vem, entre nós, operando a transplantação da civilização ocidental para os trópicos e para uma sociedade culturalmente mista.

O defeito original, mais profundo e permanente, de nosso esforço empírico de transplantação de padrões europeus para o Brasil, esteve sempre na tendência de suprir as deficiências da realidade por uma declaração legal de equivalência ou validade dos seus resultados. Com os olhos voltados para um sistema de valores europeus, quando os não podíamos atingir, buscávamos, numa compensação natural, conseguir o reconhecimento, por ato oficial, da situação existente como idêntica à ambicionada. Aplicávamos o princípio até a questões de raça, como o comprovam os decretos de branquidade, dos tempos coloniais.

Acostumamo-nos, assim, a viver em dois planos, o real, com as suas particularidades e originalidades, e o oficial, com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. Enquanto fomos colônia, tal duplicidade seria natural e até explicável, à luz dos resultados que daí advinham para o prestígio nativo, perante a sociedade metropolitana.

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A independência não nos curou, porém, do velho vício. Continuamos a ser, com a autonomia, uma nação de dupla personalidade, a oficial e a real. A lei e o governo não eram para nós instituições resultantes de condições concretas e limitadas, contingentes, mas algo como um poder mágico, capaz de transformar as coisas por fiats milagrosos.

A divisão aceita tàcitamente ou nem sequer discutida entre uma diminuta classe dominante e um grande povo analfabeto e deseducado, segundo os padrões convencionais, permitia essa dualidade que nos dava o aspecto de teatro, personificando alguns um elenco "representativo", no palco da nação supostamente civilizada, e estendendo-se, pelo imenso território nacional, silenciosa e "bestifiçada", a grande platéia.

Nas últimas décadas, porém, houve desenvolvimentos, camadas sociais se misturaram, parte da massa popular se incorporou à nação, e já não podemos apenas "representar" de país civilizado. Temos de ser um país civilizado. As instituições "transplantadas" não se podem conservar como instituições simbólicas e aparentes, mas têm de se fazer efetivas, extensas e eficazes, sob pena de não atenderem às imposições do real desenvolvimento brasileiro.

E' a conjuntura em que nos encontramos. O progredir ou perecer de Euclides da Cunha está hoje superado. Progredimos. . . e pereceremos se não nos organizarmos em condições de poder suportar e dirigir o próprio progresso. E a organização de que aqui falamos não é a de nenhum plano racionalizante, mas da adap-

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tação de nossas instituições à realidade nacional, para que elas não sejam fictícias nem inadequadas, mas os instrumentos eficazes da solução dos nossos realíssimos problemas. Devemos reexaminá-las todas, à luz do nosso conhecimento atual das condições brasileiras, a fim de conduzi-las para melhor atenderem aos seus objetivos, na sociedade brasileira, unificada em todo o país. Temos de sair de um estado de ficção institucional para o da realidade institucional, integrando a nação real em suas instituições assim tornadas reais.

O caso da escola exemplifica e ilustra estas observações. Dentre as instituições, nenhuma, como já dissemos, oferece, ao ser transplantada, maiores perigos de se deformar ou perder mesmo a eficácia. A escola em parte já é de si uma instituição artificial e abstrata, destinada a complementar, apenas, a ação de educação, muito mais extensa e profunda, que outras instituições e a própria vida ministram. Deve, portanto, não só ajustar-se, mas completar-se com as demais instituições e o meio físico e social.

Não é, pois, de admirar que por muito tempo, entre nós, não se tenha tentado senão com extrema prudência a sua transplantação. O fato de os portugueses sempre se terem recusado a transplantar a universidade poder-se-á, talvez, admitir, hoje, como uma prova até de sabedoria, a despeito de todos os motivos de dom; nação política, que lhes ditaram efetivamente a recusa.

O que é fato é que chegamos à independência sem imprensa e sem escolas superiores, com a maior pai t de nossa elite formada na Europa, o que continuou a

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percebia obscuramente o perigo de uma transplantação de instituições delicadas e complexas como as da educação, em seus níveis mais altos, pelo risco de quebra de padrões.. .

Durante toda a monarquia, a expansão do sistema escolar se fez com inacreditável lentidão. A consciência dos padrões europeus era muito viva, para que se pensasse poder abrir escolas como se abrem lojas ou armazéns. For outro lado, o desenvolvimento do país era tão lento e as condições até a abolição, de certo modo, tão estáveis, que a nação não se ressentiu demasiadamente da escassez de sua armadura educacional.

Com a abolição e a república, entramos, porém, no período de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O modesto equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido em grande parte às custas da lentidão do nosso progresso e do número reduzido de escolas, em que se buscava conservar a todo transe os melhores padrões, rompe-se, definitivamente, e começamos a expandir o sistema escolar, sem maior reflexão nem prudência

O fenômeno a registrar era sempre este: a escola, como instituição de cultura, não era realmente exigida e imposta pelo meio brasileiro; representava, antes, um esforço para elevá-lo ao nível de outros meios, de que desejávamos copiar os padrões. Assim, ao ser criada, apresentava algo de semelhante ao modelo que se queria transplantar, mas, logo depois, entrava a se deformar e a se reduzir às condições do ambiente. A luta para mantê-la no nível inicial, permanente e incessante, era vencida pela tendência inevitável para se deteriorar.

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Os analistas de nossas escolas sempre assinalaram um impasse: como construir um sistema escolar para uma nação, cujo progresso o requer, mas nao o determina ? Precisávamos de educação. Mas, as condições existentes não nos haviam preparado para a espécie de educação de que dispúnhamos, isto é, copiado de modelos alienígenas, sobretudo europeus. A escola, assim, não podia fugir a certo aspecto irreal, se não absurdo, no melhor dos casos, e, nos demais, paternalista, assistencial e salvador.

A nossa velha tendência nativa para a revalidação, para a transformação da realidade por declaração oficial, exercida a princípio contra a metrópole, para forçá-la a reconhecer-nos virtudes ou qualidades, passou a se exercer contra nós mesmos, ou por uns contra os outros.

O legislador, possuído, também ele, do velho vício metropolitano, entrou a fixar condições e padrões para a educação, tomado do susto de que os nativos, entregues a si mesmos, fizessem da escola algo de reprovável. Fora dessas condições, não haveria educação. O governo federal tomou, assim, rigorosamente, as antigas funções da metrópole. E os colonizados, como todos os bons colonizados, entraram a lograr os colonizadores, obtendo o "reconhecimento" para os seus colégios, fossem quais fossem as suas deficiências, mediante o cumprimento formal dos prazos e demais exigências estabelecidas.

Está claro que nada disto se poderia dar se a educação fosse um processo de preparação real para a vida, pois, então, de nada valeria burlá-lo. Mas, como a escola se fez, muito mais que preparação, um processo de va-

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lidação, pelo qual nos assegurávamos de um título legal de educado, com todas as vantagens daí decorrentes, a simulação se tornou não somente possível mas até fru-tuosa.

Tratava-se, na realidade, de uma transplantação a que faltavam as condições históricas e sociais, que nutriam e justificavam, nos demais países, de onde as copiávamos, a sua existência e o seu florescimento.

As alternativas, então, haviam de ser o fenecimento, no caso das escolas de tipo profissional, ou a deformação, no caso das escolas de cultura geral. Como as condições sociais do país não exigiam, em rigor, tais escolas, estas últimas se fizeram formais e decorativas e aquelas ficaram abandonadas e vazias.

A justeza dessa observação se comprova, mesmo nos casos de êxito da escola brasileira. Vemos, assim, as escolas chamadas profissionais lograrem certo sucesso em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde as condições sociais e econômicas as recomendavam, e decair nas demais zonas do país, que não haviam chegado ao relativo progresso industrial daqueles Estados. Por outro lado, os três tipos de escolas superiores profissionais — de medicina, engenharia e direito — por isto mesmo que respondiam a necessidades reais, também lograram um coeficiente razoável de êxito e eficácia.

Os demais tipos de escola não conseguiram vingar nem criar tradições, deixando o país, na hora que vivemos de expansão e desenvolvimento, sem as diretrizes indispensáveis para o seu progresso educacional. Daí o crescimento atual desordenado e anárquico das escolas

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e a ameaça em que nos achamos de ver todo o sistema escolar brasileiro transformado em uma farsa e uma simulação.

# .? *

A crise educacional brasileira é, assim, um aspecto da crise brasileira de readaptação institucional. A escola transplantada para o nosso meio sofreu deformações que a desfiguram e a levam a assumir funções não previstas nas leis que a buscam disciplinar, impondo-se-nos um exame da situação à luz dessa realidade e não das aparências legais, para descobrirmos as causas e os remédios de sua crise.

Recordamos que, até pouco tempo atrás, a educação escolar era voluntária e destinada àqueles que dis-pusessem de lazer para recebê-la. Os educados pela escola constituíam uma elite social. A classe dominante é que educava os seus filhos, porque dispunha de recursos para que pudessem eles ficar afastados das atividades práticas e econômicas, pelo tempo necessário a essa educação escolar, que seria tanto melhor quanto mais longa.

E foi assim que a educação escolar se ligou indis-solúvelmente à idéia de que era um meio de conseguir o indivíduo uma posição social de caráter dominante, con-servando-a, se já a tivesse, ou adquirindo-a, caso proviesse de camada social menos privilegiada.

Note-se que as escolas, a princípio mantidas pela Igreja, se fazem depois, independentes e particulares, sob o patrocínio discreto e acidental do Estado. Somente no século dezenove é que o Estado entra, maciçamente, a interferir na educação e, a princípio, apenas para ofe-

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recer um mínimo de educação escolar, considerado necessário para a nova vida em comum, complexa e progressiva da civilização industrial moderna.

Esse mínimo, que logo se faz compulsório, não tem, entretanto, o antigo caráter de manter alto ou elevar o status social do educando, mas visa tão somente e nunca é demais repetir dar a todos, aquele treino mínimo, considerado indispensável para a vida comum do novo cidadão no estado democrático e industrial.

Ao seu lado, continuava, porém, a existir a educação de classe, com a sua matrícula selecionada, não do ponto de vista das aptidões e capacidades, mas do ponto de vista de padrões herdados e dos recursos econômicos dos seus selecionados alunos. Na Europa e, sobretudo, na França, os dois sistemas escolares coexistiam, lado a lado, separados e estanques. A escola primária, a escola primária superior, as escolas normais e as escolas de artes e ofícios constituíam o sistema popular de educação, destinado a ensinar a trabalhar e a perpetuar o status social dos que as freqüentavam, por condição ou contingência. As classes preparatórias (primárias), o liceu, as grandes escolas profissionais e a universidade constituíam o outro sistema, destinado às classes abastadas e à conservação do seu alto status social. Está claro que freqüentar tajs escolas passava a ser um dos meios de participar dos privilégios dessas classes e, deste modo, de ascensão social.

Como o critério da matrícula, nos dois sistemas, não era o do mérito ou demérito individual do aluno, isto é, de sua capacidade e suas aptidões, mas o das condições

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sociais, ou econômicas, herdadas ou ocasionalmente existentes, dos pais, a injustiça era flagrante, concorrendo o sistema educacional para a perpetuação da divisão das classes, como ficara historicamente estabelecida. E essa injustiça, em choque com as aspirações democráticas, é que dá lugar à grande luta dos fins do século passado e dos começos deste pela integração dos deis sistemas em um único, com igualdade de oportunidades para todos.

Desejo, porém, aqui, não tanto acentuar a referida luta, quanto examinar os efeitos, sobre as escolas chamadas secundárias e as superiores de que as primeiras eram os degraus, da matrícula por simples motivos econômicos e não em virtude da capacidade e aptidão dos alunos.

A longa associação da educação escolar com as classes mais abastadas da sociedade determinou que, só em mínima parte, a escola se fizesse realmente seleciona-dora de valores. Forçada a receber todos os alunos, cujos pais estivessem em condições de arcar com os ônus de uma educação prolongada dos filhos, independente da sua capacidade individual, a escola desenvolveu uma filosofia de educação, que qualificaríamos de extremamente curiosa, se a ela não estivéssemos tão habituados. Tal filosofia era a de que quanto mais inúteis fossem os estudos escolares, mais formadores seriam eles da chamada elite que às escolas fora confiada. Não se sabia o que seus alunos iriam fazer, salvo que deveriam continuar a pertencer às classes mais ou menos abastadas a que pertenciam. Logo, se se devotassem os alunos a estudos, inúteis em si mesmos, mas reputadamente formadores da mente, deveriam, depois, ficar aptos a fa-

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zer qualquer coisa que tivessem de fazer, na sua função de componentes do chamado escol social. . .

E assim se afastou da escola qualquer premência do fator "eficiência", chegando-se a considerar tudo que se pudesse chamar de "prático" ou "utilitário" como de pouco educativo. A escola "acadêmica", isto é, verdadeiramente formadora do espírito e da inteligência, passou a ser algo de vago, senão de misterioso, educando por uma série de exercícios, reputados de ginástica do espírito, capazes de produzir atletas — de todos os pesos, digamos de passagem — do intelecto ou da sensibili-dade. Mas, por isto mesmo que buscava resultados tão indiretos e tão ilusivos, não podia se ater a critérios severos de eficiência. Os seus resultados só viriam a ser conhecidos mais tarde, na vida, quando os seus alunos, vinte ou trinta anos depois, vitoriosos em suas carreiras, por motivos absolutamente diversos, apontassem para o latim distante ou os incríveis exercícios escolares e dissessem que tudo deviam àquela escola, aparentemente tão absurda e, no entanto, tão miraculosa!

Estou a buscar caracterizar a escola tradicional das classes altas da sociedade, nos casos extremos, para poder explicar o espírito de irrealidade e, por conseguinte, a complacência do seu autojulgamento e a sua falência em funcionar como um aparelho realmente seletivo de valores, antes, pelo contrário, operando ccmo uma per-petuadora das injustiças sociais.

Mas, ao lado do anacronismo, que representaria tal escola, as forças sociais, que haviam compelido o Estado a criar a educação mínima compulsória e as escolas pós-

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primárias de educação prática e utilitária, e a renovação científica do preparo para as profissões liberais e técnicas, estavam transformando a educação escolar em um processo de preparo dos homens (de todos os homens) para a sua redistribuição nas múltiplas e diversas ocupações de uma sociedade industrial e complexa. Educação assim, com tais propósitos definidos, é claro que não visava nenhuma pseudoformação do espírito, mas algo de concreto e objetivo: um treinamento especial para uma ocupação especial. O pêndulo já aí inclinava-se para o outro extremo, criando a tendência para o regime de mero adestramento, que empobreceu tantas dessas escolas.

O importante a notar, em nossa análise, é, porém, que essa educação não objetivava nenhuma específica classificação social, fòsse a de manter ou de fazer ascender o aluno a determinada camada social, mas, simplesmente, ensinar a trabalhar e dar um "meio de vida" ao aluno. Como tal, desde o princípio, não gozou de prestígio social, fazendo-se, por toda a parte, a escola para os que não tinham meios de seguir a outra, a escola acadêmica, a qual — ela sim — classificava socialmente e permitia a ascensão às chamadas profissões liberais.

A fusão ou integração dos dois sistemas escolares — o do povo e o das elites — veio se realizando em todos os países, por diferentes processos. Na América do Norte, pela organização de um único sistema público de educação, com extrema flexibilidade de programas e a livre transferência entre eles. Na Inglaterra, pela "escada continua" de educação, pela qual se permite que o aluno, seja lá qual for a escola que freqüente, possa ascender a

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todos os graus e variedades de ensino. Na França, pela transferibilidade do aluno de um sistema para outro e por um sistema de bolsas de estudo favorecendo os alunos desprovidos de recursos para a matrícula e a freqüência das escolas seletivas.

Além dessa interfusão dos alunos, pela qual se quebrou o dualismo do sistema, do ponto de vista das classes que abasteciam os dois tipos diversos de escolas, processou-se uma verdadeira revisão de métodos e programas, graças à qual as escolas chamadas populares se vêm fazendo, cada vez mais, escolas de cultura geral, sem perda dos seus aspectos práticos, e as escolas chamadas "clássicas" ou "acadêmicas" se vêm fazendo, cada vez mais, escolas de cultura moderna, preocupadas com os problemas do seu tempo, sem perda dos seus aspectos culturais, hoje mais inteligentemente compreen-didos.

Em todos os países democráticos, os sistemas escolares tendem a constituir um único sistema de educação, para todas as classes, ou, melhor, para uma sociedade verdadeiramente democrática, isto é, sem classes, em que todos os cidadãos tenham oportunidades iguais para se educarem e se redistribuírem depois, pelas ocupações e profissões, de acordo com a sua capacidade e as suas aptidões, demonstradas e confirmadas.

No novo sistema educacional, que agora encaramos, a classificação social posterior do aluno é um resultado da redistribuição operada pelo sistema e não um objetivo predeterminadamente visado por certas escolas para um grupo privilegiado de alunos de recursos. O aluno terá as oportunidades que sua capacidade determinar.

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Está claro que nenhum país atingiu ainda essa perfeição. Até agora, o que se tem feito é aumentar aquela educação mínima oferecida pelo Estado, até os 16 e os 18 ou 19 anos, e prover um sistema de bolsas para os estudos superiores, a fim de facilitar o ingresso dos capazes sem recursos — considerande-se, como realidade iniludível, que o ensino superior, de modo geral, ou depende dos recursos da família, ou impõe sacrifícios pessoais consideráveis.

Entre nós, porém, a evolução de que esboçamos as linhas mestras sofreu desvios e agravantes de toda ordem. Antes do mais, sempre tivemos um sistema dual. embora sem a nitidez do paradigma francês. A escola primária, a escola normal e as chamadas profissionais e agrícolas constituíram um dos sistemas, e a escola secundária, as escolas superiores e, por último, a universidade. o segundo sistema. Neste último dominava a filosofia educacional dos estudos "desinteressados" ou inúteis em si mesmos, mas supostamente treinadores da mente, e no primeiro, a da formação prática e utilitária, para o magistério primário, as ocupações manuais ou os ofícios, as atividades comerciais e agrícolas.

O Estado tomou, em relação aos dois sistemas, uma atitude muito significativa da ambigüidade de endereço social dessas instituições escolares. Houve, por parte do Estado, algo como uma duplicidade de comportamento.

Com efeito, se, por um lado, pagava um alto tributo de palavras e, por vezes, até de recursos, à educação popular, promovendo o ensino primário e criando escolas normais, profissionais e agrícolas, com sacrifícios tanto mais penosos quanto menos compensadores.

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por outro lado, estabelecia uma legislação de privilégio para o chamado ensino secundário, propedêutico às escolas superiores, e firmava, de tal modo indireto, o prestígio incontrastavel deste ensino sobre o popular e prático.

Se o nosso desenvolvimento social e econômico obe-decesse sincronizadamente ao dos demais países considerados civilizados, o embate se daria entre os dois sistemas e o mesmo processo de fusão ou conciliação se efetuaria aqui como se efetivou, digamos, na Europa.

Mas, o desenvolvimento do Brasil, desigual no espaço, impondo aqui um sistema de escolas moderno e variado, permitindo ali o anacronismo de escolas de pura e simples classificação social, e desigual no tempo, levando a nação a lidar com as suas crises de desenvolvimento quando as nações que nos fornecem os métodos de ação já de muito as superaram; esse desenvolvimento diversificado e retardado somente agora vem provocando a crise de educação, que nos cumpre resolver, se não quisermos agravar a situação seríssima em que se debate a nação com as suas escolas.

Na verdade, o que se está passando no Brasil é um resultado daquelas mesmas forças sociais de democratização do ensino que operavam na Europa e na América, em fins do século dezenove e começo deste século, mas com efeitos funestos, porque não encontraram ou não encontram as ditas forças, entre nós, as duras e sólidas tradições escolares dos países já civilizados.

Se possuíssemos, em relação aos dois sistemas, ver-dadeiras tradições, vivas, concretizadas em escolas mo-

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delares, cada dia que passasse seria mais difícil fazer, fosse uma autêntica escola de tipo acadêmico, ou uma autêntica escola de tipo profissional ou prático. Mas, como as nossas tradições, ou se quiserem, padrões, são frágeis e sob o embate da inevitável pressão social "de-mocratizadora" se desfazem facilmente, vimos assistindo a uma expansão desordenada e irrefletida de escolas. . . de tipo acadêmico, com vários ou confusos desígnios, em várias e confusas direções.

Mas, porque de tipo acadêmico e superior, e não de tipo técnico ou do chamado ensino profissional ? — Não será que está aí uma das pistas para explicação da situação educacional em que se encontra o país ?

Já nos referimos à duplicidade ou ambigüidade do Estado em relação à educação pública, no Brasil. O Estado (união e províncias) promove diretamente a educação chamada popular, com as escolas primárias, normais, técnicas e agrícolas e, aparentemente, se desinteressa pelo ensino secundário, para o qual só muito poucos estabelecimentos mantém. A sua política educacional seria, assim, a de promover um sistema público de educação, caracterizado por escolas populares e de trabalho. Ao mesmo tempo, porém, este mesmo Estado legislou sobre o ensino de modo a anular seu próprio esforço oficial, direto, pela educação popular, profissional e técnica. Com efeito, a legislação sobre o ensino secundário deu-lhe ou reforçou-lhe o privilégio de conduzir ao ensino superior, emprestando-lhe, assim, uma superioridade sobre todos os demais ramos de ensino. E depois disto, permitiu, pelo regime das equiparações, que os colégios particulares gozassem de todas as re-

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galias de colégios oficiais e seus exames fossem válidos para o poder público, quanto a todos os seus efeitos ou alcance. De tal modo, somente o ensino secundário haveria de constituir a grande via para a educação das classes mais altas do país, ou dos que a elas pretendessem ascender. O ensino primário, o normal e o técnico-profissional ficaram como becos sem saída, para onde iriam os alunos que não pudessem freqüentar o secundário, preparatório do superior.

Tal duplicidade e incongruência legislativa deu com resultado o afluxo natural dos alunos para as escolas secundárias. O Estado julgava que, não as criando nem mantendo, poderia conter a pressão social para o acesso às mesmas. Mas, não reparou que, embora quase não as mantivesse, reconheceria, pela equiparação, as escolas particulares, quantas aparecessem. E isto era o mesmo, ou era mais do que mantê-las. E, por outro lado, também não refletiu que, dada a organização da escola secundária e, sobretudo, a sua mantida filosofia de escolas apenas para treino da mente, tal escola podia ser barata, enquanto as demais escolas — para treino das mãos, digamos, a fim de acentuar o contraste — seriam sempre caras, pois requeriam oficinas, laboratórios e aparelhagem de alto custo.

Estava, pois, aberto o caminho para a expansão escolar descompassada, que assistimos em todo o país, nos últimos vinte anos. . . Uma escola secundária re-gulamentarmente uniforme e rígida, de caráter acadêmico e portanto fácil de criar e de fazer funcionar, bem ou mal (mais mal do que bem), com o privilégio de escola única ou de passagem única para o ensino superior

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(passagem naturalmente ambicionada por todos os alunos), entregue ou largada tão privilegiada e atraente escola à livre iniciativa particular, mediante concessão pública, facilitada sob aleatórias condições e aleatórios controles, rígidos apenas no papelório e quanto a este, sob o guante de uma toda poderosa burocracia central e centralizadora. E um sistema público de educação — a escola primária, a escola normal, o ensino técnico profissional e agrícola — sem nenhum privilégio especial, valendo pelo que conseguisse ensinar e não assegurando nenhuma vantagem, nem mesmo a de passar para outras escolas.

Claro que o sistema público de escola, via de regra, entrou em lento perecimento; enquanto a escola secundária, em sua mor parte, de propriedade privada. mas reconhecida oficialmente, com o privilégio máximo de ser a verdadeira estrada real da educação, o caminho para todos os caminhos, distribuindo uma educação puramente livresca, facilitada por programas oficiais e rígidos, iniciou a sua carreira triunfal, multiplicando seis vezes a sua matrícula nos últimos vinte anos.

Operada essa expansão, melhor diríamos inflação, segue-se agora — era fatal ou óbvio — a do ensino superior .

A escola secundária propedêutica tem de se continuar na escola superior, multiplicada agora pela simples imposição da massa de alunos "deformados" pela escola secundária livresca e acadêmica. Como as escolas de ensino livresco e acadêmico, baseadas naquela pedagogia do treino da mente, mediante simples preleções e

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exames, não precisam para existir senão do aluno, do professor e de um local para aulas, era de prever, mas parece não foi previsto, o que aconteceu e acontece ainda. Multiplicaram-se, então, os ginásios e colégios. E, agora, multiplicam-se as faculdades de filosofia, de ciências econômicas, de direito e, de vez em quando, mais audaciosamente, até escolas de medicina e de engenharia. O poder público mantém o seu sistema escolar "desprestigiado"; as escolas primárias, as custosíssimas escolas técnico-profissionais e agrícolas, os institutos de educação ou as escolas normais. E a iniciativa privada, pobre e sem recursos, e valendo-se até de modestíssimas subvenções oficiais, que a escoram, mantém o sistema escolar privilegiado, o de mais alto prestígio social e alta procura, das escolas secundárias e superiores, freqüentado por pobres e ricos, com as suas jóias e mensalidades, relativamente bem modestas, por de fato proporcionadas ao modestíssimo ensino que ministram.

Como se vê — e não carregamos nas tintas — o quadro é, no mínimo, algo insólito, desafiando qualquer lógica e quaisquer sentimentos de exação, realidade e verdade.

Mas, tudo isto se fez possível graças a uma legislação infeliz e ambígua, pela qual o ensino particular passou a gozar do privilégio de ensino público, explorado por concessão do Estado, em franca e vitoriosa competição contra o ensino público mantido pelo Estado, e graças às facilidades de uma pedagogia obsoleta, adotada rígida, uniforme e legalmente para o ensino secundário, em franca oposição à pedagogia mais moderna das escolas públicas primárias e pós-primárias.

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A educação e as suas instituições sofrem, ademais, a ação das forças sociais que o desenvolvimento brasileiro vem liberando. A educação de tipo acadêmico e li-vresco não está sendo procurada pela população brasileira, em virtude dos ensinamentos que ministra, mas pelas vantagens que oferece e pela maior facilidade dos seus estudos. De modo que nem professores nem alunos lá estão sèriamente a buscar sequer os próprios objetivos caracterizadores da escola, o que leva a uma complacente redução desses mesmos objetivos à "passagem nos exames". A escola se faz intrinsecamente ineficiente, se assim nos podemos pronunciar, pois, não é peixe nem carne, reduzindo-se a uma série de estudos disparatados e inconseqüentes, se não fossem nocivos.

* * *

Mas, a nação não podia se limitar a esse tipo de ensino. A educação de tipo mais eficiente ou, pelo menos, de objetivos mais diretos, visando a aprendizagem de ordem vocacional ou prática, veio, a despeito do de-sencorajamento legal, se desenvolvendo. E os seus alunos entraram a fazer pressão para que seus estudos fossem igualmente reconhecidos como preparação para os cursos superiores. Esta pressão já se fez sentir em uma legislação fragmentária, mas de sentido uniforme, que culminou na lei n.° 1.821 de 12/3/1953, que reconhece todos os cursos de nível médio como degraus diretos para o ensino superior. Rompeu, assim, a pura pressão social a rigidez monolítica do ensino chamado secundário, privilegiadamente preparatório do superior.

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Por outro lado, a própria escola está a dar mostras de insatisfação e a lutar por melhorar e adaptar seus métodos às novas condições do tempo e da época. A revolta contra a uniformidade e rigidez do currículo, contra os programas impostos, contra os livros didáticos fracos e pobres, mas oficialmente aprovados, é manifesta e está a exigir reforma, que venha adaptar a escola secundária aos seus fins de formação do adolescente para as múltiplas ocupações da vida moderna, inclusive (mas não exclusivamente) a eventual continuação dos seus estudos em níveis posteriores de educação, universitários propriamente, ou não.

Existem, pois, diversas forças e tendências em jogo na crise educacional vigente. Com risco de fatigar pela repetição, insistamos nas duas principais, que se contrapõem, com interações que dificilmente podem redundar num equacionamento feliz.

De um lado, temos o desejo positivo da população por mais educação escolar e a imposição das necessidades de local e de tempo para que essa educação seja melhor, mais eficiente e variada, para as múltiplas ocupações de uma sociedade já em parte industrial e complexa. De outro, temos a nossa pobreza de recursos a buscar, por uma falsa filosofia da educação, fundada em resíduos de uma teoria de treino da mente por estudos abstratos ou livrescos, reduzir a escola a turnos excessivamente curtos e o programa a pobres e disparatados exercícios intelectuais, transformando uma e outro em puro formalismo ou farsa, que pouco diverte e não sei se a alguém ainda pode iludir.

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Como resultado, da mais forte e operante das tendências, temos a escola com o máximo de quatro horas diárias, a funcionar em turnos (dois e até três), tanto no nível primário quanto no secundário e até já no superior. O professor acumulando, ou várias funções, ou várias escolas. E o aluno dividindo o seu tempo em estudo e abandono, na escola primária, e estudo e emprego, nas demais escolas, servindo mal a ambos.

Somente essa redução de tempo e as condições de trabalho do professor seriam suficientes para que a nossa escola não pudesse ser eficiente. Agravam, porém, ainda mais a situação as confusões pedagógicas, as deformações dos moldes mal copiados de educação acadêmica e intelectualista, esta, aliás, servindo de explicação para o funcionamento da escola nas condições em que funciona.

Com efeito, para que a escola pudesse reduzir as suas atividades ao tempo escasso com que conta e conformar-se com o professor apressado e assoberbado que a serve, foi necessária a adoção de objetivos os mais simplificados possíveis. A escola, assim, visa, tão somente, inculcar alguns conhecimentos teóricos ou noções sim-plòriamente práticas. Não forma hábitos, não disciplina relações, não edifica atitudes, não ensina técnicas e habilidades, não molda o caráter, não estimula ideais ou aspirações, não educa para conviver ou para trabalhar, não transmite sequer sumárias mas esclarecidas noções sobre as nossas instituições políticas e a prática da ci-dadania. A escola ministra em regra conhecimentos verbais, aprendidos por meio de notas, que se decoram, para a reprodução nas provas e exames, revive até a apostila ou a "sebenta"!

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Assim simplificada, pôde expandir-se e está ainda a expandir-se, numericamente, em todos os níveis, reduzindo o período escolar e o conteúdo do ensino a um mínimo, insuficiente não só em quantidade, como em qualidade, pois o pouco que é aprendido não o é realmente, em virtude dos métodos defeituosos de aprendizagem e as escamoteações desta mesma aprendizagem.

Premidos, pois, pela necessidade de expandir as fa-cilidades de educação, estamos a ludibriar a sede popular de escola com essa inflação de deficientes, más e péssimas escolas, que ameaça corromper todo o sistema educacional.

Não há para a conjuntura nenhum remédio fácil nem imediato. Temos de encarar a situação em sua totalidade e dar início a um movimento de contramarcha na pior das tendências que apontamos, atendendo ou orientando a melhor da melhor forma possível, mobilizando esforços, recursos e cooperações as mais diversas para o mesmo fim.

Uma súmula de providências, tendo em vista meios e fins, ao nosso ver se impõe e aqui a sugerimos, como um esboço:

Primeiro, descentralizar administrativamente o ensino, para que a tarefa se torne possível, com a distribuição das responsabilidades pela execução das medidas mais recomendáveis e recomendadas;

Segundo, mobilizar os recursos financeiros para a educação, de forma a obter deles (de todos eles, em coo-

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peração e conjugação) maiores resultados. Sugerimos a constituição, com as percentagens previstas na lei magna da República, de fundos de educação — federal, estaduais e municipais; estes fundos, administrados por conselhos, organizados com autonomia financeira, administrativa e técnica e todos os poderes necessários para a aplicação dos recursos, inclusive no pagamento de empréstimos e planos de inversões; e os quadros do pessoal e do magistério, locais e com tabela de vencimentos locais, permitindo, assim, a adaptação da escola às condições econômicas de cada localidade;

Terceiro, estabelecer a continuidade do sistema edu-cacional, com a escola primária obrigatória, o ensino médio variado e flexível e o ensino especializado e superior rico e seletivo;

Quarto, prolongar o período escolar ao mínimo de seis horas diárias, tanto no primário quanto no médio, acabando com os turnos e só permitindo o ensino noturno, como escolas de continuação, para suplementa-ção da educação;

Quinto, alterar as condições de trabalho do professor, proporcionando-lhe novas bases de remuneração, para não lhe reduzir o período de influência aos escassos minutos de aula. Toda educação é influência de umn pessoa sobre outra e nas condições atuais não há tempo para se exercer tão imprescindível influência;

Sexto, eliminar todos os modelos e imposições oficiais que estão a produzir efeitos opostos aos previstos, servindo até como justificativa para o mau ensino —

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como é o caso dos programas oficiais, dos livros didáticos aprovados e do currículo rígido e uniforme;

Sétimo, permitir que os dois primeiros anos do curso secundário se façam, complementarmente, nos bons grupos escolares, com auxílio dos melhores professores primários e redução do número desses professores a 4 ou, no máximo, 5;

Oitavo, estabelecer o exame de Estado para a admissão: ao primeiro ano ginasial; ao terceiro ginasial; ao primeiro colegial e ao colégio universitário, mantido o vestibular para a entrada na universidade;

Nono, dividir o curso superior regular em dois ciclos — o básico e o profissional, autorizando nas escolas novas ou sem recursos adequados, apenas o curso básico, e exigindo o exame de Estado para a entrada no curso profissional e nos de pós-graduação;

Décimo, facultar no ensino superior a constituição de cursos variados de formação, em diferentes níveis, de técnicos e profissionais médios, prevendo sempre a possibilidade de poderem os assim diplomados continuar, ulteriormente, os estudos e terminar os cursos regulares.

Todas essas medidas seriam acompanhadas em sua execução, por um vasto movimento de inquérito, graças ao qual se esclarecessem devidamente os objetivos a alcançar, se revelassem as deficiências e se corrigissem os erros e os maus resultados, e por uma campanha de renovação de métodos, aperfeiçoamento dos professores e melhoramento dos livros didáticos, do material de ensino, dos laboratórios, dos prédios e de tudo mais que completa o universo escolar.

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Para tudo, impõe-se a reforma radical das leis e do aparelhamento administrativo do ensino.

* * *

Resumindo os mais oportunos esclarecimentos, desde logo aqui acrescentamos mais algumas considerações, antes de terminar.

A nossa sugestão consiste em criarmos um sistema educacional para todo o país, em que um inteligente equilíbrio entre a liberdade de ensino e os controles centrais possa dar lugar à expansão escolar mais generalizada possível e do mesmo passo estimular o progresso ininterrupto das escolas assim criadas e postas sob a responsabilidade dos seus fundadores ou diretores, pela própria responsabilidade estimulados.

Valendo-nos do momento adquirido pela força da opinião pública em relação a um sistema de educação, público e gratuito, e, por outro lado, reconhecendo que os nossos recursos econômicos, materiais e humanos são insuficientes para um sistema efetivo e realmente homogêneo em todo o país, julgamos que é chegada a ocasião para "municipalizar" a escola pública, entregando-a ao município, que a manterá com os recursos do Fundo Escolar Municipal, constituído pelos 20 % de sua receita tributária, acrescida da quota do Estado e de pos-sível quota federai

Essa descentralização da administração e manutenção das escolas irá, antes do mais, ligá-las melhor à comunidade local e, deste modo, vitalizá-las, tornando-as responsáveis perante a comunidade e esta, por sua vez,

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responsável pelas suas escolas. A seguir, irá permitir, com os seus quadros locais de magistério e pessoal, o custeio desigual das escolas, adaptando-as aos recursos do seu fundo municipal.

Teremos, assim, possibilidade de proporcionar as despesas com a educação aos recursos de fato existentes, tornando possível a existência de escolas com diversidade de custeio e manutenção. O princípio de aplicação dos recursos deverá basear-se na população escola-rizável, isto é, a população em idade escolar, e suficientemente concentrada para permitir a criação da ou das escolas correspondentes. Recenseada ou estimada essa população, os recursos do Fundo serão divididos pelos alunos potenciais e a quota assim achada constituirá a medida ou o limite do custeio das escolas. Dever-se-á criar um sistema escolar em que o custo por aluno não seja superior àquela quota, na qual deverão ser incluídos o custo da administração, do material, do prédio e do professor. Para tanto deve ser previsto, em lei, que o Fundo escolar será aplicado nas seguintes proporções: 60 % no pagamento ao magistério, 20 % em material didático e conservação do prédio, 15 % em construção ou ampliação dos prédios e 5 % na administração escolar .

O órgão de administração das escolas, em cada mu-nicípio, deve ser um conselho local, constituído inicialmente, por nomeação do Prefeito, dentre pessoas representativas da sociedade local e de boa reputação. Uma vez constituído, o conselho se renovará, cada dois ou três anos, por um terço, mediante lista tríplice de nomes in-

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dicados pelo próprio conselho e de nomeação do Prefeito .

Além das limitações legais da aplicação do Fundo Escolar, o Conselho, ao qual compete a nomeação do pessoal do ensino, só poderá escolher para as funções de ensino, de administração ou de serviço, pessoas devidamente licenciadas pelo Departamento Estadual de Educação.

Este departamento, libertado dos deveres administrativos, terá a seu cargo a expedição de certificados ou licenças para o exercício do magistério e de todo o pessoal que servir no ensino municipal. Mediante esse poder, terá o Estado assegurado condições de aperfeiçoamento crescente do magistério e de todos os demais servidores da educação. Mas, não é só. Como o fundo escolar municipal será constituído dos recursos do município, acrescido da quota por aluno que o Estado lhe des-tinará, o Departamento Estadual se reserva o direito de aprovar, anualmente, o orçamento municipal da educação, exercendo, deste modo, um segundo poder de controle.

A lei estadual de educação que fixará essa organização deverá, mais ainda, estabelecer o direito de intervenção do Estado sempre que o Conselho Escolar Municipal se afastar de qualquer dos seus deveres em relação à aplicação do fundo escolar.

Já se está a perceber que o Departamento Estadual de Educação deverá ter organização similar à do órgão municipal de educação. Haverá um Conselho Estadual de Educação, que administrará o Fundo Escolar Estadual, constituído dos 20 % da receita tributária do

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Estado, e nomeará o pessoal do Departamento, cujas funções serão as de fiscalizar o funcionamento dos Conselhos dos Municípios, expedir os certificados de licença para exercer o magistério e a administração escolar, em todos os seus aspectos, e prestar aos municípios assistência financeira e técnica no desempenho de sua responsabilidade de manter a educação pública e fiscalizar a privada.

Ao Governo Federal competirá, por sua vez, elaborar a lei de bases e diretrizes da educação nacional — lei complementar da Constituição — e velar pela sua execução em todo o país, por um sistema de assistência financeira e técnica, por meio da qual se efetivará a sua ação supletiva.

Do ponto de vista administrativo assim ficaria es-tabelecido o sistema do ensino público e privado em todo o país, para o efeito de se facultar a todas as localidades a constituição de suas escolas, reais e não fictícias, modestas mas não falseadas, naturais no sentido de legítimas e não de bastardas, autênticas e progressivas, refletindo os progressos efetivos de cada comunidade e neles se refletindo, por eles influídas e neles influentes.

E como se organizariam tais escolas ? Como, em tal diversidade e diversificação, conseguir-se o mínimo indispensável de homogeneidade e equivalência, bem como, sobretudo, a segurança de um progresso harmonioso, ao longo de linhas aceitáveis ?

Respondo. Mediante a fixação de um certo mínimo de condições externas, como as da duração dos cursos

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e do número de horas do dia letivo, as da licença para o exercício do magistério e as de um sistema de exames de estado, na passagem do último ano da escola primária para o primeiro da secundária (o atual de admissão ao curso secundário), no início do terceiro e do quinto e ao fim do sétimo anos secundários, para dar ingresso ao colégio universitário, seguindo-se por último, o vestibular, de entrada nos cursos universitários ou de escolas muito especializadas, de igual nível superior, fora das universidades.

No curso superior, repetir-se-iam esses exames de estado ao fim do curso básico e para a concessão da licença para o exercício das profissões. Os exames de estado seriam organizados pelos Departamentos Estaduais de Educação até o sétimo ano secundário e, para o ensino superior, pelo Departamento Nacional de Educação, ou pelos organismos de classe, ou grupo profissional.

Com essa divisão de atribuições, ter-se-iam criado no país, as condições pelas quais, sem duplicação, as três ordens governamentais se empenhariam a fundo, cooperativa e inter-relacionadamente, na manutenção de um autêntico sistema escolar nacional, geral e público, para a infância e juventude brasileiras, que possuiria, no seu próprio jogo de poderes e de controles, os elementos para seu indefinido progresso.

No começo, a escola não seria pior nem melhor que a atual. Mas, à medida que se fossem desenvolvendo as possibilidades do regime de responsabilidade assim criado, forças insuspeitadas de iniciativa e de emulação sur-

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giriam para conduzir o conjunto do sistema nacional ou os múltiplos sistemas escolares solidários, ao mais alto nível de decência e eficiência.

* * *

Não é, senhores, com as nossas tradições que nos devemos embriagar, mas com o nosso futuro — o brilhante futuro que nos aguarda, se o soubermos preparar. A pátria é menos o seu passado que os seus projetos de futuro. Está claro que esses projetos de futuro mergulham as suas raízes no passado e se apoiam no presente. Mas, a sua força vem antes dos objetivos ante-vistos, da sua projeção no amanhã, do que dos nossos pontos de apoio em nossa história ainda não de todo livre de incertezas e fragilidades.

Somente agora a bem dizer, começamos a ser uma nação com suas diversas camadas sociais já se incor-poiando em um todo, que é e em breve ainda mais amplamente será o povo brasileiro, considerado ele, todo ele, como a própria nação e não como parcela desdenhada e obscura, sobre que reinava uma diminuta classe dominante.

Não se compreende, pois, que estejamos a lamentar somente as confusões e desordens presentes, quando temos também motivos para nos rejubilar com o crescimento nacional, aceitando a responsabilidade e o imperativo de, a tempo, deliberarmos sobre as transformações de fundo e forma que devem ser ensaiadas, a fim de conter, afeiçoar e dirigir as novas forças sociais nascentes, para os grandes rumos do nosso desenvolvimento como povo e nação.

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Fomos, até ontem, algo de inautêntico, de fictício, confundindo a nação com a sua burocracia e as suas leis inexequíveis, algumas, e impeditivas do progresso, outras. A tradição colonial do Estado fiscal e do Estado cartório continuou pela monarquia a dentro e pela república, dividindo a nação em duas — a nação real e a nação legal ou oficial. A superestrutura legal, toda ela transplantada de modelos europeus, primeiro portugueses e depois franceses e ingleses e americanos, constituía o nosso esforço canhestro de adaptar instituições estrangeiras e distantes, ao nosso meio. Não levávamos suficientemente em conta que as nossas condições não permitiam, em sua totalidade ou sem sábias e previdentes adaptações, essa transplantação, que trazia, pelo que lhe faltava de adequação ou reajustamento, mal de origem que lhe iria ser fatal, pelo não desenvolvimento ou pela deformação, em face de condições reais desaten-didas.

Tenhamos, agora, a coragem de lançar as bases de uma verdadeira readaptação institucional para o país. Criemos as condições necessárias a uma ampla experimentação social, mediante uma legislação preposta antes a dar os poderes e faculdades de organização do que a "organizar" a educação escolar, a educação nacional, como coisa pré-fabricada e imposta, ao jeito do que nos dava a velha metrópole de reinol e de reiuno. . .

Com isto, teremos cumprido o disposto na Constituição que declara livre a educação, dentro das diretrizes e bases que cumpre ao Governo Federal fixar, com a plasticidade e flexibilidade indispensáveis a que a Escola Brasileira, como uma planta viva e forte, brote

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e cresça da terra, das condições e da experiência brasileiras, substituindo a instituição enfermiça, postiça e inviável em que resultou a nossa frustrada tentativa de transplantar somente modelos alheios, muitas vezes já obsoletos nos próprios países de que tentávamos, sem êxito, copiá-los.

Temos que reconstruir a escola brasileira para novas, instantes e mais altas necessidades nacionais, que já podem ser estudadas e conhecidas a ponto de indicarem por si mesmas os rumos a seguir.

Primeiro, temos que planejar as escolas para o mercado de trabalho existente, desde o que exija apenas o nível primário até o que imponha o nível superior. Em cada caso, temos de adaptar a escola às exigências das atividades correntes. Isto, do ponto de vista propriamente econômico de preparo para produzir.

Do ponto de vista social, mais amplo ou mais elevado, temos que dar à escola a função de formar hábitos e atitudes indispensáveis ao cidadão de uma democracia e, portanto, estender-lhe os períodos letivos, para se tornarem possíveis em escorreito e saudável ambiente escolar, as influências formadoras adequadas.

A escola tem de se fazer prática e ativa, e não passiva e expositiva, formadora e não formalista. Não será a instituição decorativa pretensamente destinada à ilustração dos seus alunos, mas a casa que ensine a ganhar a vida e a participar inteligente e adequadamente da sociedade.

E é sobre a base deste sistema fundamental, comum e popular de educação, que teremos de formar

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verdadeiras, autênticas elites selecionadas, dando aos mais capazes as oportunidades máximas de desenvolvimento. A plasticidade e flexibilidade da escola irá permitir-lhe que se ajuste às condições do aluno e lhe ofereça as condições mais adequadas para o seu aperfeiçoamento para não dizer somente crescimento.

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — JOSÉ JANSEN .....................................

2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON .........................................

3 — PAULO RONAI .................................... 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE ................................................... 5 — LÚCIO COSTA ..................................... 6 — Lúcio COSTA .....................................

7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. 8 — DJACIR MENESES ............................... 9 — H. VON KLEIST .................................

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO .......................... 11 — Luís COSME ......................................... 12 — JoÁo CABRAL DE MELO ..................... 13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... 14 — SANTA ROSA ..................................... 15 — SANTA ROSA ..................................... 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... 18 — GILBERTO FREYRE ............................. 19 — CLARISSE LISPECTOR 20 — MÁRIO PEDROSA .............................. 21 — ROSÁRIO FUSCO ................................ 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................. 23 — DANTE COSTA ................................... 24 — LEDO IVO ........................................... 25 — EUGÊNIO GOMES ................................. 26 — JOSÉ LINS DO RECO ............................ 27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA.. 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA . . 29 — ALEXANDRE PASSOS ........................... 30 — MANOEL DIÉGUES JÚNIOR 31 — CYRO DOS ANJOS .............................. 32 — OSWALDINO MARQUES ...................... 33 — FERNANDO SABINO ............................ 34 — PERICLES MADUREIRA DE PINHO 35 — VITORINO NEMÉSIO ........................ 36 — WILLY LEWIN

A moscara no culto, no teatro e na tradição

José Lins do Rego Escola de Tradutores

Viola de Bolso Arquitetura Brasileira Considerações sobre a Arte Contemporânea Forma e expressão do Soneto Formação profissional do Advogado Teatro de Marionetes Monte Cristo, ou da Vingança Música e Tempo Miro Significação do Far-West Roteiro de Arte Teatro. Realidade Mágica Teatro de Cervantes Isabel a do Bom Gosto José de Alencar Alguns Contos Panorama da Pintura Moderna Introdução à Experiência Estética Realidade e Ficção O Sensualismo Alimentar Lição de Mário de Andrade O Romancista e o Ventriloquo Homens. Sêres e Coisas De várias Províncias Cinqüenta Anos de Literatura A Imprensa no Período Colonlal Etnias e Culturas no Brasil Explorações no Tempo O poliedro e a rosa Lugares comuns Notas à margem do problema agram Portugal e o Brasil na História Ensaios de Circunstâncias

Continua na 3o pág.)

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AFRANIO COUTINHO

POR ÜMA CRÍTICA ESTÉTICA

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

S E R V I Ç O DE DOCUMENTAÇÃO

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S dois ensinos ora reunidos foram pronunciados, como conferências — o primeiro em Salvador, em 1949, a convite de Anísio 'Teixeira, então Secretário da Edu-èaçao, inaugurando o curso público que aquela Secretaria patrocinou como parte do programa das comemorações do centenário da cidade; o segundo em São Paulo, no curso de Poética, promovido pelo Clube de Poesia daquela cidade. A ambas as instituições os agradecimentos do autor, que lhes pede vênia para publicação em volume.

Justifica-se a sua reunião por tratarem ambos do mesmo tema, visto de perspectivas diferentes. Compreende-se que haja reiteração de pontos, mas a repetição ainda é a maior figura da retórica.

Obedeceu à mesma preocupação de ressaltar o valor da contribuição aristotélica ao estudo da Literatura e à formação de uma crítica de orientação estética. Seu autor acredita que em Aristóteles estão os fundamentos da renovação da crítica segundo a perspectiva verdadeiramente poética ou literária.

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Para a execução dos presentes trabalhos, baseou-se nos livros constantes da bibligrafia anexa, aos quais deve a principal documentação e argumentação. Sua dívida é sobretudo relevante às obras lá mencionadas de Spingarn, Baldwin, Mac Keon, Herrick, Gilbert e Trowbridge.

Além disso, muito deve, para sua compreensão da doutrina literária de Aristóteles, à fundamental introdução de S. H. Butcher à sua edição da Poética.

O comentário da doutrina de Aristóteles tem constituído parte do curso de Teoria e Técnica Literárias, disciplina que fundou e desde 1951 vem sendo por ê/e ocupada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Distrito Federal.

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O CONCEITO ARISTOTÉLICO DA LITERATURA E DA CRÍTICA

M face do fenômeno literário duas atitudes podem assumir-se em última análise, e tendo como objetivo o seu estudo, a sua compreensão, a sua apreciação. Em primeiro lugar, é-nos possível encarar a obra literária, ou antes, "os valores da arte, como veículos de outros valores, econômicos, políticos, éticos, religiosos", e segundo essa concepção da literatura, inspirada nos ensinamentos de PLATÃO, levantam-se várias escolas críticas. De outro lado, há os críticos "formais", que, obe-dientes aos princípios formulados por ARISTÓTELES, naquele livro básico da crítica literária, a Poética, concedem à experiência estética uma finalidade em si mesma. Para os primeiros intérpretes da arte literária, os de orientação platônica, a obra de literatura não 6 outra coisa que um instrumento, por meio do qual se atinge um objetivo extraliterário. A literatura é a expressão de uma mensagem filosófica ou religiosa. Ou então, um documento de uma época, de uma sociedade, de uma raça ou de uma grande personalidade. As obras primas não passariam de testemunhos, que traduziriam a grandeza dos gênios criadores, das épocas

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ou das civilizações. E a finalidade da crítica literária se reduziria a um estudo da personalidade criadora, e redundaria, afinal, num julgamento moral, "do caráter do autor, à luz de sut biografia e a partir da premissa de que o autor é a -ausa de seu livro e de que um bom livro não pode ser produzido por um homem mau"; ou então será (a crítica) "um estudo genético do condicionamento social do autor, baseado no princípio de que suas atitudes político-econômicas serão determinadas por sua classe de origem".

Essa atitude diante da obra literária é a que tem dominado as teorias críticas nos últimos três ou quatro séculos, desde que os antigos foram redescobertos, sobretudo desde que as doutrinas dos retóricos romanos e helenísticos ou alexandrinos fizeram sua reentrada triunfal nas letras ocidentais, pelas mãos dos comentadores renascentistas, à frente os italianos. Esses eruditos e retóricos do Renascimento, CASTELVETRO, MlN-TURNO, ROBERTELLO, PlCCOLOMINI, SCALIGER, reintro- duziram no Ocidente as teorias clássicas, mas, pelo fato de ter sido o Renascimento mais romano do que helénico, e conseqüentemente mais propício à compreensão das expressões da mente romana do que do espírito grego, o mundo ocidental, no que tange às teorias críticas e literárias, foi imbuído das doutrinas de HORÁCIO tendo a sua Arte Poética monopolizado as teorias renascentistas .

E HORÁCIO foi o chefe de fila de um dos grupos de teóricos sucessores de PLATÃO em matéria de teoria literária.

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Houve três correntes de sucessores de PLATÃO. a) A primeira corrente é a de HORÁCIO, e para ela a

literatura só se justifica em termos éticos, é um ensinamento, quando muito um ensinamento agradável . Essa é a concepção didática da literatura, já explorada na Idade Média pela Igreja, mas que iria ser instrumento utilíssimo nas mãos dos adversários do protestantismo, durante a Contra-Reforma, e na dos catequistas e missionários. Os padres da Companhia de Jesus dela fizeram largo uso, haja vista o exemplo nosso da literatura jesuítica.

b) A segunda corrente é a que segue o livro Do Sublime, atribuído a um escritor conhecido como LONGINO. Para os críticos nele inspirados, a literatura resulta de um estado de transe quase místico da alma do autor, um estado de espírito do poeta comunicado ao leitor por intermédio das palavras. E a crítica. segundo tal perspectiva, é de natureza psicológica, uma apreciação da alma do poeta tal como se revela no poema.

c) A terceira corrente é a dos retóricos alexandrinos ou helenísticos, os quais focalizam a atenção crítica nos problemas técnicos e estilísticos da literatura. Sem embargo, eles se colocavam fora da literatura na adoção dos critérios de apreciação e análise, os quais, para eles, eram os critérios universais da linguagem.

Todas essas correntes, portanto, encontravam valor literário fora do poema, em algo diferente e situado além da arte. E assim, da ética, para a psicologia,

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para a estilística e a linguagem, oscilou a crítica literária nos séculos que se seguiram ao Renascimento. Uns viam o poema como reflexo da alma do poeta, e se interessavam primordialmente pela alma do poeta Do prolongamento dessa linha, prolongamento e exacerbação, — saiu o biografismo contemporâneo em crítica, para o qual a crítica não deve passar do levantamento da biografia completa dos autores. Não é a obra que lhe interessa. A obra passa a segundo plano, relativamente ao estudo da personalidade do autor. Máxime depois que, no século XIX, as teorias deterministas dominaram o clima científico, passou-se a acreditar numa verdadeira relação mecânica, obrigatória, necessária, determinante, entre o autor, os fatos de sua vida, suas doenças, as circunstâncias financeiras de sua existência, e a obra de arte que produziu. A influência do grande crítico francês SAINTE-BEUVE foi nesse ponto decisiva e marcante, pois desde as Cau series a crítica, mormente de influência francesa, não passou de mero biografismo literário, isto é, retratos psicológicos dos autores, para estabelecer-se a sua famosa "história natural" dos espíritos. Assim, a crítica convenceu-se de que sua preocupação precípua seria descobrir o homem sempre, mesmo e às vezes através da obra. E essa preocupação com o autor levou, repito, sobretudo depois dos exageros cientificistas do século XIX e das técnicas da filologia positivista germânica a situações quase ridículas, como sejam as de certos eruditos que empenham o talento em tarefas inglórias de vasculhar a vida de homens de gênio, nos seus mais mínimos detalhes, convencidos de que a desço-

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berta de um recibo assinado por èie ou da referência a uma de suas moradas até então desconhecida dos biógrafos, explicaria a natureza de sua poesia e aju daria a compreensão de seu gênio.

O outro grupo, cs didatas da literatura, tomavam-na como um instrumento ou guia de ação moral, e o século XIX também assistiu a essa volta à ética através da crítica de seus principais representantes, como um SHELLEY e um MATHEW ARNOLD na Inglaterra. Mesmo em nosso tempo, essa concepção da literatura reviveu nas teorias dos críticos marxistas, os quais vêem o valor poético não na obra em si mesma, porém em sua ação sôbre o auditório ou público, e sua origem para eles reside na classe a que o escritor pertence, cujo espírito ele interpreta e exprime. Nesse sentido a crítica marxista é de fundo horaciano.

Mas há outro grupo, que se originou, no fim do século XVIII e começo do século XIX, da atmosfera espiritual do romantismo e da influência de filósofos alemães, como HERDER e os irmãos SCHLEGEL. Madame de STAEL pode ser considerada a figura que divulgou a teoria chamada sociológica da literatura, coisa velha aliás, mas que só dessa época em diante encontrou sistematização doutrinária. Depois dela, é o filósofo e crítico francês TAINE que, sôbre todos, representa a corrente. Também aqui a literatura é encarada de fora, são os fatores extraliterários os eleitos para explicar o fenômeno literário. As instituições sociais, o ambiente físico, o meio — e TAINE procurou resumir sua teoria na famosa trindade raça, meio e momento. — explicariam as culturas e as obras primas. Segundo

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essa perspectiva, que teve enorme repercussão e influência, dominando até nossos dias os estudos literários, a crítica não passa de uma história, e os proble mas literários são mais históricos do que críticos. Se o estabelecimento de uma relação causai entre a sociedade e a literatura esclarecesse de todo a literatura, se o estudo do fundo de cena social e histórico do autor e do público explicasse completamente a obra, então não haveria mais lugar para a crítica, ou melhor, a crítica se confundiria com a história, não passaria no muito de história literária, e uma história literária em que o acento fosse posto antes sobre a história do que sobre a literatura. A isso se reduziriam os críticos dos últimos cem anos. São antes historiadores literários, e historiadores mais do que homens de letras. Basta examinarmos qualquer dos nossos volumes de história literária: nada tem de "literário" no sentido estético da expressão. São antes histórias sociais da literatura, ou no pior aspecto, meros catálogos cronológicos de biografias de escritores. E' que, na tentativa de darem uma explicação causai da literatura pelo estudo de suas origens sociais e históricas, os críticos sociológicos esqueceram ou não compreenderam que as relações entre a literatura e a sociedade não podem ser vistos senão em termos de influência, jamais como nexos de determinação.

* * *

Consideradas assim as várias perspectivas de estudo da literatura, — a didática ou moral, a psicológica, a filológico-gramatical, a sociológica, — devemos dizer

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que todas essas procuram encarar a literatura sem penetrar no seu âmago. São explicações exteriores à literatura. Em vez de averiguar a natureza íntima do fenômeno artístico; em vez de investigar quais as suas qualidades intrínsecas; em vez de encarar o poema (poema aqui tomado no sentido amplo de qualquer literatura de imaginação) em si mesmo, essas escolas críticas procuram explicações para a literatura fora da literatura, enxergam valor estético-literário fora da obra literária.

Há outra possibilidade de estudo literário e é para essa que desejo chamar a atenção. E' velha a teoria que a inspira. Vem de mestre ARISTÓTELES. PLATÃO não pretendeu criar uma crítica literária. De modo algum esse objetivo foi o seu. Seu método mesmo o contradiz. O que tinha em mira era mostrar que inclusive a poesia devia fazer parte de um mundo uni-versalmente bom. E para isso seu método dialético era excelente prova. Pois tal método jamais produziria uma crítica literária, isto é, uma crítica da poesia como tal, em si mesmo, em suas qualidades estético-íiterárias intrínsecas. O método dialético de Platão teve que representar sempre a poesia como entroncada em algum valor mais largo e mais elevado, apelando para sua compreensão para uma filosofia geral ou qualquer ciência ou teoria extraliterária. A poesia seria assim outra coisa que poesia, um documento filosófico, religioso, ou um testemunho social ou biográfico .

Para ARISTÓTELES, ao invés — na obra prima que é a base de toda especulação de crítica literária, e que

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deve ser a obra de cabeceira de todo bom estudioso das letras, a Poética (à qual se deve juntar a Retórica, aliás um simples capítulo da primeira), — para ARISTÓTELES, a literatura como toda arte, tem um valor em si mesmo, e a experiência estética possui uma finalidade em si mesma. Para èie, a literatura deve ser encarada como "poética", e não como "política" (no sentido em que a vêem os platônicos ). E a crítica constituirá uma análise e uma avaliação da obra literária como obra de arte, o centro de interesse sendo a obra ¿m si mesma, em seu valor intrínseco, em sua intimidade artística. "O fato essencial acerca da compreensão a que aspira o crítico literário é que é uma compreensão de obras literárias em seu caráter de obras de arte" (R. CRÂNE). A obra é o centro da preocupação crítica, e a obra em sua característica estético-íiterária.

A Poética, consoante à doutrina aristotélica, é uma ciência empírica. Seu objeto de estudo é uma coleção de coisas, isto é, obras de arte particulares, consideradas como objetos reais de uma espécie definida. Ela deve isolar tais coisas de todas as outras coisas, classificá-las em gêneros e subgéneros de acordo com suas qualidades intrínsecas, analisá-las e formular os princípios de sua composição interna. Seu resultado é uma série de generalizações indutivas, derivadas de uma acurada e sutil análise de poemas ou obras de arte determinadas. Quanto à análise dos poemas, ela é formal. A forma, segundo a terminologia aristotélica, é uma das quatro espécies de causa. Lembremo-las de passagem: a causa eficiente, isto é, um agente ou qualquer força externa que opera sôbre uma coisa; a

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causa final, ou finalidade de uma coisa; a causa material, a matéria prima, bruta, da qual a coisa é feita; e a causa formal, o princípio organizador e unificador da substância. As causas eficiente e formal são externas, porquanto não são inerentes ao objeto em si mesmo. Essas causas externas são subordinadas, na Poética, às causas internas. Digo subordinadas, não negligenciadas. HORÁCIO e LONGINO realçam as causas externas, HORÁCIO acentuando o papel da causa final ou propósito, definida como um efeito sobre o público; £X>NGINO trabalha acima de tudo com a causa eficiente, isto é, espírito ou alma do poeta. A escola gramatical c estilística lida com um aspecto do instrumento artís tico, isto é, com a causa material. E' intrínseca, mas parcial e unilateral. ARISTÓTELES, ao contrário, considera o poema em suas características internas, como unia coisa autônoma. A obra literária é concebida, como um todo feito de partes; a análise distingue as partes, os constituintes materiais com os quais a obra é feita, e estabelece o princípio de sua unificação — a forma — ou princípio dirigente que determina a ordem e a conexão das partes e reúne-as num todo coerente e singular.

Dessa maneira, segundo a perspectiva aristoté-lica, a obra de arte, — e no caso, o poema ou o romance, — é vista em si mesma, "como um todo, um sistema dinâmico de sinais servindo um propósito estético específico", e é apreciada e julgada por dentro. Não interessam, pois, senão secundária e subsidiària-mente, subordinados ao ponto de vista propriamente crítico, interno, formal, os dados exteriores sobre o autor, sobre o meio físico, social, histórico. Esses dados

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só devem interessar se servem o estudo da oora em si. Caso contrário são material antes para o sociólogo, o historiador, o psicólogo. Jamais para o crítico literário. Essa é a concepção digamos "poética" da literatura, em oposição à concepção "política" ou histórica. Um exemplo bem nítido: os grandiosos discursos históricos das peças de Shakespeare. O historiador irá estudar-lhes a autenticidade histórica. Ao crítico literário é coisa que não preocupa: enxerga neles apenas a grandeza literária, a beleza artística, e as analisa. Para o crítico literário não há relação mecânica entre a obra, o autor, e o meio sócio-histórico. Parte da e a ciência é um registro de fracassos das tentativas por premissa de que não é possível essa relação mecânica, estabelecê-la. Não há determinismo de meio físico, f\e meio social ou de personalidade. Pode haver certas relações entre o caráter do autor, sua ambiência social. e a obra que produzir. Mas pode igualmente deixar de haver qualquer nexo causai, psicológico. E, sobretudo, de uma perspectiva verdadeiramente literária, poética, a autêntica atitude crítica, é-nos lícito ignorar essas considerações para situar-nos puramente dentro da obra, apreciando-a em suas qualidades estéticas, intrínsecas. Ê o que se depreende das lições de ARIS-TÓTELES.

As teorias de ARISTÓTELES são, como é sabido, expostas na Poética, e na Retórica, a obra que não passa de um capítulo da Poética. Mesmo essa última, porém. não conhecemos de maneira completa. Acredita-se que. na forma por que nos chegou através das peripécias da história antiga e medieval, através das traduções latinas, persas, siríacas,, árabes, hebraicas;, ela

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não passa de uma pequena parte de um grande tratado sobre a arte. Mas, o que nos ficou já pode servir de base a uma completa doutrina, mormente, o que é indispensável, se colocada no todo dos livros de ARISTÓTELES, se estudada em conjunto com os demais.

Houve um lapso no conhecimento da Poética. Apesar de ter havido edições medievais em várias línguas, a influência da Poética nesse período foi diminuta, de jeito a se poder falar em "descoberta" renascentista da obra, quando as traduções e comentários latinos a divulgaram nas academias italianas dos séculos XV e XVI, irradiando-se, depois da Itália, pela França, Alemanha, Inglaterra, Península Ibérica.

Há, todavia, um ponto importante a acentuar no que tange à interpretação da Poética pelos eruditos do Renascimento, interpretação essa que se prolongou até o século XVIII, dominando a crítica ocidental. O fato já mencionado de que o Renascimento foi mais latino do que helênico redundou em ter sido o espírito ocidental completamente imbuído das doutrinas romanas, e, no que concerne à literatura, das doutrinas dos retóricos romanos e helenísticos, sobretudo de HORÁCIO. CÍCERO e QUINTILIANO. De feição que, mesmo obras gregas, como a Poética, passaram para o mundo ocidental através do veículo romano, no caso o reto-ricismo horaciano, ao que se deve a deturpação das teorias aristotélicas, e, mais que isso, uma verdadeira falsificação das mesmas. Houve uma sorte de fusão de ARISTÓTELES e HORÁCIO durante o Renascimento, uma união de doutrinas absolutamente contrária à natureza de cada uma. Para os críticos renascentistas o ponto era pacífico: HORÁCIO seguira ARISTÓTELES, daí

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o amálgama de princípios que caracterizou a teorìa literária do Renascimento. Eissa fusão de HORÁCIO e ARISTÓTELES, diga-se de passagem, era em desfavor de ARISTÓTELES, pois o colorido predominante era dado pela teoria horaciana da literatura como "ensinamento agradável", ou teoria didática e moral da literatura. Foi o que exprimiu PICCOLOMINI, um dos críticos re-nascentistas, quando disse: "A finalidade da poesia é persuadir, aparentando deleitar".

Só no século XVIII, com o advento da Estética, a ciência por cujas bases o kantismo foi responsável, e que foram destronadas as teorias ética e didática da literatura, embora por todo o século XIX, e mesmo presentemente, ela ainda encontre defensores. Mas, do século XVIII em diante, acompanhando o desenvolvimento da estética, foi criando vulto a concepção estética da literatura. E, na Alemanha, na Itália de Croce, cuja Estética surgiu em 1900, na Inglaterra de Bosanquet, cuja clássica História da Estética é de 1892, as idéias estéticas foram sendo aplicadas à poesia, desbancando as teorias ética e didática. Concomitantemente, foi-se compreendendo que a teoria poética de ARISTÓTELES nada tinha de didática e que esse sentido lhe foi emprestado pelos comentadores horacianos do Renascimento. Apreendeu-se a ver o caráter estético da concepção aristotélica. Dissociou-se ARISTÓTELES de HORÁCIO. O crítico inglês BUTCHER publicou em 1895 uma nova edição da Poética, com uma introdução que ficou clássica e que marcaria essa reinterpretação de ARISTÓTELES consoante às doutrinas estéticas. A influência da obra de BUTCHER foi decisiva sobretudo nos países de língua inglesa.

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Tal reinterpretação de ARISTÓTELES está ainda por ser feita nos países de língua portuguesa, nos quais a literatura é sobretudo marcada por um tom retórico e ético, devido sobretudo à influência dominante das teorias horacianas, de que não se libertaram completamente, mesmo depois do século XVIII, o grande divisor de águas no particular para as outras literaturas do Ocidente. Enquanto há dezenas de edições da Arte Poética de HORÁCIO em português, só me consta a existência de uma tradução, no século XVIII, da Poética de ARISTÓTELES em vernáculo. Portanto, mesmo quando conhecido, ARISTÓTELES O era através de HORÁCIO e dos comentadores de cunho horaciano. O verdadeiro sentido do aristotelismo literário, a riqueza de idéias e a profundidade de perspectiva, o conteúdo estético da Poética de ARISTÓTELES ainda está por ser valorizado. Só recentemente surgiu uma boa edição em português (Poética, de ARISTÓTELES, ed. Eudoro de Souza Guimarães & Cia. Editores, Lisboa, 1951), enquanto há diversas edições francesas excelentes, como as da Livraria Garnier e da Associação Guilherme Budé (Les Belles Lettres), inglêsas igualmente esplêndidas. como as clássicas de BUTCHER, BYWATER, HAMILTON FYFE, as de LANE COOPER, as da Loeb Classical Library e da Everyman. Em italiano, há a magnífica edição de AUGUSTO ROSTAGNI, e em espanhol, uma edição popular da Emecê, de B. Aires.

* * *

As teorias de ARISTÓTELES têm frutificado recentemente, sobretudo auxiliadas pelo movimento de reação contra o "positivismo" do século XIX, que dominou

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as teorias literárias através do culto da biografia e das interpretações genéticas do meio físico, social, histórico. Pode-se adotar a rubrica de aristotelismo para várias correntes críticas atualmente em voga nos países anglo-saxões e eslavos, batizadas como escolas "forma-listas" ou "estruturalistas". São idênticas, quanto ao objetivo, o exame ou análise das qualidades intrínsecas, estruturais, textuais, do produto literário, e quanto ao método de análise, o indutivo — o estudo acurado da palavra na página, do complexo estrutura-textura. como diz um dos críticos da corrente. Esse estudo é a principal conquista da crítica em nosso tempo e todos os esforços se dirigem no sentido de aperfeiçoar as técnicas e os métodos de análise, que é uma análise propriamente literária, bem diversa da crítica normativa e genética de outros tempos. Essa concepção aris-totélica da literatura resultará em libertar-se a crítica 1) da biografia; 2) da autobiografia, sob a roupagem do impressionismo; 3) da psicologia, em que se resumem todos os estudos da personalidade do autor; 4) da sociologia, pois não passam de sociologia os estudos sobre meio social e econômico do autor; 5) da filolo-fia e ciência da linguagem, da história, em uma palavra. pois são antes "históricos" os estudos dos fatores exteriores à obra de arte, históricos ou políticos. A crítica aristotélica será uma crítica literária verdadeira, isto é, uma crítica poética.

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A POÉTICA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

OMO tanta coisa mais, recebemos dos gregos, através do latim, a palavra poética. No sentido comum, predominante entre os modernos, a poética é a arte de compor obras poéticas, ou mais especificadamente, a obra ou tratado que reúne os princípios e regras da poesia, quanto à forma e à essência (Dicionário de la Lengua Española, da Real Academia Española). Neste sentido moderno a poética é um tratado de preceitos, uma preciptística, e dela fizeram largo uso as escolas clássicas e neoclássicas, do Renascimento ao Século XIX, enquanto não foram desmoralizadas pelo Romantismo.

Para bem analisarmos esse sentido moderno do conceito, faz-se mister esclarecermos o seu conteúdo entre os gregos.

A crítica literária na Grécia sempre tratou como dois gêneros distintos a oratória e a poesia, a que acrescentava duas outras divisões da literatura — a filosofia e a história. Essas distinções eram fundamentais, e ARISTÓTELES, ao escrever os dois mais famosos livros de crítica literária da Antigüidade, a Poética

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e a Retórica, deu curso a uma distinção corrente entre os seus compatriotas que meditavam sobre o problema, insistindo nas diferenças essenciais entre a oratória, estudada na Retórica, e a poesia, analisada na Poética, pondo ainda em relevo o fato de que, mesmo quando compostos em verso, os livros de filosofia e história eram outra coisa que não poesia, porque havia para ele diferenças radicais entre as várias formas de comunicação pela linguagem.

Ao compor os seus dois tratados de crítica literária — a Retórica e a Poética — ARISTÓTELES consubstanciou uma distinção corrente entre os gregos, não obstante, ao lado dessa distinção, podermos constatar que, não só entre os gregos senão também entre os romanos, a retórica preponderava sobre a poética.

Para os gregos, a retórica significava a teoria da oratória, era o conjunto de meios peles quais um orador logra persuadir um auditório: composição clara e harmoniosa, organização e apresentação convincente dos argumentos e das provas. Quanto à oratória, ARISTÓTELES distinguiu três tipos: a oratória política, a oratória forense e a oratória d© circunstância (pane-gíricos, elogios, sermões, pregação, etc.).

A poética, para os gregos, era a teoria da poesia, bem distinta da retórica. Há que insistir na distinção porquanto a sua confusão, derivada de que, mesmo na Grécia e sobretudo depois, nos mundos helenístico e romano, medieval, renascentista e moderno, a retórica predominava sobre a poética, — a sua confusão, dizia, foi a causa de muito desentendimento a respeito da natureza da poética, como teremos ensejo de assinalar.

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Na definição da retórica como a arte de persuadir um auditório, isto é, ao defini-la pela sua finalidade, os gregos puseram implícita uma noção didática ou moral. E, dado que a retórica dominava entre os gregos, a sua concepção — a concepção retórica — passou a dominar a definição da poesia, e a poesia tornou-se correntemente, uma forma de ensinamento ou pregação moral, conceito que, mais tarde, no mundo romano, HORÁCIO resumiria numa fórmula, que teve grande êxito his rico, como a maioria de suas sentenças, ao dizer que a poesia tinha por finalidade ensinar deleitando — docere cum delectare.

Mas, se foi a concepção retórica a que predominou no mundo antigo, se o conceito didático e moral da finalidade da literatura é que encontramos na maioria dos teóricos da arte literária na Antigüidade, conceito que a Idade Média e o Renascimento herdaram, há todavia que abrir um largo claro para nele colocarmos ARISTÓTELES, com a sua teoria estética da arte literária.

Embora predominando entre eles a retórica, os gregos distinguiam nitidamente a retórica da poética. inclusive no conteúdo ou assunto das duas, na retórica o discurso, na poética a lírica, o drama, a epopéia. E, ainda mais, a poética lidava também com a métrica, com a caracterização, com a técnica da construção de enredos, com a narrativa e o movimento e unidade dramática.

Essa distinção entre poética e retórica é em ARISTÓTELES que se acha claramente formulada. Para ele a retórica era a arte de descobrir os meios possíveis de persuasão em qualquer assunto, ou, mais especifica-

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damente, segundo os outros retóricos gregos e romanos, em oratória pública. Quanto ao conteúdo, a retórica clássica distinguia cinco partes: invent io, dispositio, elocutìo, memoria e pronuntiatio.

Inventio — é a arte de descobrir os argumentos, no que a retórica se aproxima da lógica. Dispositio — é a arte de apresentar o material numa introdução ou exordio, urna exposição dos fatos, uma confirmação ou prova e uma conclusão ou peroração. E' este o tradicional movimento retórico bem diverso do movimento do enredo na poética. A elocutio — ou estilo, é a escolha das palavras e seu arranjo na sentença. Os antigos, ARISTÓTELES, CÍCERO, QUINTILIANO, DIONISIO de HALICARNASSO, DEMÉTRIO, estudaram largamente o estilo, nas suas qualidades, suas regras,, nos artifícios que lhe dão beleza, as figuras. As duas últimas partes da retórica, a memória e a pronuntiatio, dizem respeito ao discurso, às regras da elocução de uma fala perante um auditório, ao modo de relembrar o assunto e de usar a voz e os gestos.

Assim delimitada às regras da oratória de persuasão, a retórica, entre os antigos, e especialmente em ARISTÓTELES, é, como dizia, diferente da poética. Embora interdependentes e quiçá se possa afirmar que a Retórica devesse ter sido uma parte do tratado maior da Poética por ele concebido e não chegado até nós senão no fragmento conhecido, no entanto os dois tratados de ARISTÓTELES são distintos como concepção. Um não se pode separar do outro, e o tratado da Retórica é indispensável ao estudo da poética, mas um diz respeito à formação do bom orador, convin-

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cente e docente, enquanto o outro — a Poética visa ao estudo das condições que fa/em um bom poeta — é antes um tratado filosófico sôbre a poesia, na teoria e na prática. ARISTÓTELES era um filósofo, e, como tal, dava base filosófica ao tratamento do assunto. Sua concepção da arte fazia parte de um todo doutrinário a sua filosofia. Além disso, ARISTÓTELES era um cientista, um naturalista, que partia da observação do fato, e. graças ao método indutivo, extraía ou estabelecia as generalizações adequadas. A sua teorização, portanto, não se construiu no vácuo, mas partiu da observação dos fatos, que no caso eram a literatura grega. Assim, o seu tratado sôbre a poesia, sôbre a literatura, como nós chamamos hoje, é um estudo do fenômeno poético, analisado indutivamente, derivando-se desse estudo leis de caráter universal e valor permanente.

Destarte definida, a Poética difere também das "artes poéticas" de HORÁCIO e seus imitadores modernos, BOILEAU, VIDA, POPE, LUZÁN, e outros teóricos do neoclassicismo, cujos tratados são antes coleções de preceitos ou preceptísticas, consoante uma concepção normativa da poesia e da arte em geral.

Todavia, a interpretação estética da Poética de ARISTÓTELES não é a corrente. O caderno de apontamentos, possivelmente de um curso dentre os muitos que ARISTÓTELES professou, e que é na verdade a Poética, não teve sorte. Ficou desconhecido pràticamente entre os gregos, e entre os alexandrinos e romanos, ou quando muito, o que era pior, era conhecido através de citações, trechos ou doutrinas isoladas, tudo mal traduzido e retraduzido nas línguas orientais então em

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voga. De modo que não foi o verdadeiro ARISTÓTELES da Poética o que os romanos julgaram receber, comentar e imitar, mas um ARISTÓTELES deformado, sobretudo devido à fusão das teorias retóricas com as poéticas, e domínio das primeiras sobre as segundas, como ocorria então na Grécia e em Roma. O que passou em julgado como sendo ARISTÓTELES foi antes um conjunto de doutrinas retóricas, que CÍCERO, HORÁCIO, QUINTILI ANO, em seguimento ao grego ISÓCRATES, codificaram em suas obras ou tratados de retórica.

E' um fenômeno curioso esse que se passa no mundo antigo da fusão entre a retórica e a poética. dominando a primeira, mais curioso ainda se nos recordarmos de que a diferença entre as duas perspectivas de tratamento literário foi uma noção também de origem grega. A retórica, com sua finalidade prática, era muito mais importante na educação e na vida pública, daí a contaminação de uma pela outra, e esse contacto era muitas vezes legítimo, ora a poética sendo utilizada pelo orador, sob a forma de movimento ou caracterização, ora a retórica penetrando na poesia; outras vezes, porém, era ilegitimamente que as duas coincidiam, como ocorre na preocupação comum do estilo entre os sofistas e muitos poetas do IV Século A. C, em que o estilo se transformou de meio em fim, ou mais tarde, entre os escritores da era imperial ou argêntea romana, nos quais a retórica dominava pelo estilo florido em detrimento da estrutura. Não é sem razão que os escritores da era barroca de seis-centos vão buscar à literatura retórica e florida da era

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de prata romana, — SÊNECA, LUCANO, TÁCITO, ESTÁCIO, e outros — os modelos de sua prosa e de seu verso contorcido e ornamentado.

Mas voltemos a ARISTÓTELES. A sua Poética passou assim despercebida no mundo antigo. As concepções retóricas dominaram, por necessidade pedagógica dada a importância da oratória na vida antiga, e também pelo prestígio de grandes nomes que a ela se dedicaram, grandes mestres sofistas, GORGIAS, PROTAGORAS, retóricos gregos como ISÓCRATES, e romanos como CÍCERO, HORÁCIO, QUINTILIANO, SÊNECA, e pela importância também das escolas de declamação romanas, que tanta influência exerceram na vida social e pública, e até na formação do estilo literário da era imperial. A literatura era, para esse grupo de doutrinas de fundo platônico, um instrumento para se atingir uma finalidade extrali-rária, era a expressão de uma mensagem política, filosófica ou religiosa, de um ensinamento qualquer — dbcere cum delectare. Tal concepção era a que convinha a uma civilização prática como a romana, e aos objetivos da Igreja Católica, sob cuja inspiração se construiu o edifício da cristandade medieval. Nos quinze séculos romano-medievais, a arte literária como arte é conceito inteiramente estranho, e, mais que isso, inconveniente. A literatura não poderia ter valor em si mesma; nem valor nem finalidade. Não poderia ser poética ou estética, mas somente política ou ética.

Todavia, na Poética de ARISTÓTELES é um conceito poético, e não político ou ético, da literatura o que encontramos. Foi o que não viram nem podiam ver os romanos, primeiro porque não conheciam bem e completamente a obra de ARISTÓTELES, depois porque a

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sua própria concepção retórica da literatura impedia de conceber a literatura doutro modo. E então a Poética do mestre estagirita entrou na história como mais uma preceptística. Quando, no Renascimento, eia foi redescoberta, retraduzida e comentada pelos humanistas italianos, ROBERTELO, MINTURNO, MADIO, SCALI-GERO, CASTELVETRO, não foi a Poética de ARISTÓTELES que ressurgiu mas um amálgama de HORÁCIO e ARISTÓTELES, que precisamente caracteriza a teoria do Re-nascimento. Como salientou em esgotante monografia um estudioso do problema da fusão de HORÁCIO e ARISTÓTELES na crítica literária renascentista, MARVIN HERRICK„ embora não haja certeza quanto à conexão direta da Arte Poética de HORÁCIO e da Poética de ARISTÓTELES, os críticos renascentistas consideraram ponto pacífico a dívida de HORÁCIO a ARISTÓTELES, as teorias de um tendo sido o seguimento das do outro. E esse acordo deu em resultado o amálgama ARISTÓTELES--HORÁCIO, o conglomerado de teorias literárias, que constituiu a doutrina literária do Renascimento.

Visto através dos óculos horacianos dos críticos humanistas — pois sabemos que o Renascimento foi mais romano do que helênico — a Poética, e com ela todas as teorias críticas de ARISTÓTELES, passou a ser encarada como uma preceptística ou tratado de normas e regras práticas, e interpretada como uma obra retórica. Daí a transferência das teorias retóricas, de CÍCERO e HORÁCIO, para a teoria poética.

No século XVI, ficou ARISTÓTELES pacificamente visto como um expositor da teoria didática, tal como HORÁCIO. Não se via oposição entre os dois, no que

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concordaram os críticos de seiscentos e setecentos, BEN JONSON, DRYDEN, DENNIS, DACIER, DR. JOHNSON, uma série de crentes na função didática da literatura, crença vinda da Antigüidade, e que os levava a encarar ARISTÓTELES e HORÁCIO como dois expositores concordes dessa teoria didática.

Com o advento da estética, do Século XVIII para o Século XIX, sob o impacto de KANT e das idéias românticas, é que a teoria didática da literatura foi cedendo o passo à teoria estética.

CROCE, BOSANQUET e diversos alemães são nomes de citação indispensável nessa reviravolta.

Olhos mais lúcidos surgiram para a compreensão da literatura como arte, autotélica, com finalidade e valor em si mesma, com características intrínsecas, independentes das circunstâncias de sua formação e do ambiente em que surgir. A explicação genética e a definição didática mostraram-se insuficientes como teorias críticas, enquanto a teoria não-didática ou estética se tornou cada vez mais segura de seus recursos de análise e interpretação.

Graças a ela a Poética de ARISTÓTELES foi compreendida de maneira bem diferente da .Arfe Poética de HORÁCIO e obras congêneres. Interpretou-se como obra estética, e não didática ou normativa, de análise do fenômeno poético. Um scholar inglês, S. H. BUTCHER, publicou, em 1895, uma edição da Poética, com tradução inglesa e magnífica introdução, em que mostra como as teorias aristotélicas em matéria de poesia permanecem em terreno estético e lógico e nada têm com objetivo éticos. À edição e comentários de BUT-

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CHER devemos hoje definitivamente a mudança de orientação no interpretar a Poética de ARISTÓTELES. Mudança que coloca a obra em contraste com a Arte Poética e as teorias horacianas e didáticas da poesia.

• • *

Essa longa digressão destina-se a pôr em evidência a natureza da poética, consoante o conceito daquele que foi o seu máximo intérprete A Poética de ARISTÓTELES, definida e caracterizada em confronto com a Retórica, como duas maneiras distintas embora correlatas de tratamento do fenômeno literário, ficou uma obra isolada e modelar de conceituação estética da literatura como dizemos nós, ou poesia como diziam os gregos.

A noção básica essencial da crítica antiga a respeito da poética e da retórica era de que, com serem distintas, cada qual possuindo seu campo de ação e seus métodos próprios, não deveriam misturar-se ou fundir-se,, como também não poderiam isolar-se. Ao contrário,, o que nos ensina ARISTÓTELES é que elas devem agir em comum, a obra de arte deverá mostrar um respeito equilibrado por ambas, que se conciliam no trabalho artístico. Essa norma suprema da compo-sição — a atenção igual às regras da poética e às da retórica — foi o segredo do êxito das grandes obras primas.

Mas retornemos à poética. Qual o conteúdo da poética ? Quais os seus assuntos próprios? Em ARISTÓTELES, a Poética inclui primeiramente o estudo da natureza da poesia, dos gêneros poéticos,

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da linguagem e expressão poética. Ao estudar a natureza da poesia, em cinco capítulos de seu livro indica a imitação como o critério distintivo da literatura. Depois, acentua o caráter comum a várias artes — o movimento. Estuda então o enredo, como o elemento central da tragédia, põe em relevo a necessidade da unidade e da magnitude. Aponta a ação humana e a unidade dramática, diversa da unidade lógica da retórica, como outros elementos da poesia. Os objetos da imitação poética são a personagem, a emoção, os homens em ação. A maneira da imitação é narrativa ou dramática. E a tragédia, que é a forma típica da poesia, depende essencialmente de uma realização imaginativa. Mostra como a finalidade da arte é o prazer, e não qualquer ensinamento de ordem moral, religiosa ou política. A arte tem pois uma função estética e não didática. Estuda a catarse como efeito da tragédia, e oferece da catarse uma interpretação estética.

Por esse rápido esquema, temos bem nítida representação do conteúdo da poética para ARISTÓTELES. Como já referi, há pouca preocupação entre os antigos quanto à teoria poética em comparação com a retórica e a oratória. Todavia, além de ARISTÓTELES, encontramos outros tratados, entre os quais o mais importante é o famoso livro Do Sublime, atribuído a LONGINO, que contém valiosa contribuição à teoria poética, embora seja uma obra também de retórica, especialmente de-dicada ao estudo do estilo.

Mas o tratado é o primeiro a introduzir na consideração da poesia o elemento psicológico, a paixão e a emoção, que seria a fonte de onde emanariam as

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qualidades mestras do estilo, a nobreza e a elevação de expressão. E' a paixão que empresta intensidade ao poeta, mediante o uso das imagens sensitivas que são as mais significantes. E' a intensidade a qualidade característica do poeta, em contraste com a ampu-losidade de orador. A elevação e a grandeza, o sublime na poesia é alcançado pela criação de imagens, pela realização imaginativa. Por suas qualidades de maior intensidade e paixão, o dramático é mais carac-teristicamente poético do que o narrativo, exemplificados os dois pela Ilíada e pela Odisséia. Esta é mais narrativa do que dramática, nela a fábula predomina sôbre a ação, a paixão degenerou em pintura de caracteres. Assim, como característicos da grande poesia. aponta o drama, a ação e a paixão.

Em HORÁCIO, a preocupação é maior com a técnica da poesia, com o artesanato, no sentido romano de ars, isto é, um corpo de regras a serem seguidas pelo artista na composição. Na primeira parte, sua Arte Poética oferece ao poeta que se inicia conselhos e orientações quanto ao modo de levar a efeito a composição, quanto ao plano, distribuição, escolha de palavras e boa redação. Concorda com ARISTÓTELES em que a forma poética mais importante é o drama, porém coloca a caracterização em plano superior à ação e ao enredo, ao contrário do estagirita. HORÁCIO acentua ainda o caráter didático da arte, ao afirmar que o poeta terá mais êxito se lograr boa combinação de útil e agradável.

Durante a Idade Média, a maior tendência antiga para a retórica se acentuou, e praticamente a retórica

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se transferiu para a poética, dominando-a inteiramente, e ambas limitando seu campo de ação à expressão, ao estilo, um estilo cultivado, ornamental e elaborado. Estilo era sinônimo de retórica. A Idade Média compreendia a poesia como composta de dois elementos — um assunto, representado pela alegoria, e o estilo, eloqüente e florido.

* * *

Ser-me-á lícito agora, após distinguir os dois campos da composição, os dois métodos lógico e imaginativo, os dois movimentos típicos da retórica e da poética, mostrando que numa o progresso é intelectual e lógico, de idéia para idéia, e na outra o progresso é imaginativo, indo de imagem a imagem, determinado emocionalmente, ser-me-á lícito, porque o interesse maior deste ensaio é o estudo da poética, tentar acompanhar o processo pelo qual as noções e princípios da poética encontraram aplicação na Antigüidade e na Idade Média, tal como mostrou Baldwin.

Primeiramente, é mister registrar que a distinção que, na Poética,, ARISTÓTELES estabeleceu entre o drama e a narrativa encontra plena justificativa e significação na prática dos antigos, gregos e romanos, de jeito que as duas formas, descritas por ARISTÓTELES como tipos, são exemplificadas por grandes obras. Assim, a poética antiga pode ser acompanhada no uso da tragédia grega e na tragédia e na comédia romana, bem como na épica virgiliana e na narrativa ovidiana e na prosa helenística.

O drama grego é um exemplo magistral da aplicação de regras poéticas, o de que nos convenceremos

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ainda mais se o examinarmos em contraste com a tragédia de SÊNECA, cujos elementos típicos são antes de natureza retórica.

Foi a tragédia grega, aliás a matéria prima que serviu de modelo a ARISTÓTELES, na Poética, para o seu estudo da tragédia, como a mais elevada forma de poesia. De modo que será suficiente destacar os seus elementos principais, tal como os viu ARISTÓTELES, para sentirmos o seu conteúdo poético. Em primeiro lugar, o seu caráter comunal e ritualístico, suas conotações com as crenças e sentimentos da comunidade. Esse caráter realçava-se muito bem no ambiente da representação, os vastos teatros ao ar livre, em que se comprimiam as multidões. A essas condições materiais se adaptavam a larga movimentação que ARISTÓTELES considerava qualidade dramática essencial, a máscara trágica e os coturnos, bem como a expressão, que o ouvinte moderno por vezes tem tendência a achar formai a oratória. E' que havia certas constantes na expressão, de acordo com as exigências do ar livre, e que consistiam na sonoridade, no elemento sentencioso e na lin-guagem direta. O ritmo é sempre presente e jamais a expressão é ampulosa ou oratória, mas sempre dramática, fiel ao ideal da economia. O verso é outro instrumento usado dramaticamente.

O caráter comunitário da tragédia grega exprime-se ainda por um elemento — o coro, manobrado dramaticamente, e introduzindo na peça o canto e a dança.

Quanto a temática, aqui é que reside sobretudo a maior característica da tragédia grega, na utilização de temas e tipos lendários, de mitos guardados na tra-

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dição e recriados dramaticamente, os quais são o testemunho talvez mais significativo das aspirações e memórias coletivas, tal como têm mostrado as modernas investigações da crítica literária ligadas ao folclore e a mitologia.

Através dessas personagens simbólicas, exercia-se o poder da caracterização, e, através de sua movimentação e atividade, a fabulação, pois, na tragédia grega, a ação resulta não somente de acontecimentos, mas da vontade humana, da vontade que decorre do personagem em ação. A tragédia grega é a tragédia da vontade humana.

Enquanto a tragédia grega se construiu na base do elementos poéticos, a tragédia romana de SÊNECA, afastando-se de seus modelos áticos, embora com a preocupação de imitá-los, repete apenas os elementos não-essenciais, sacrificando a poética à retórica. Sente-se que a influência das escolas de declamação de tanta voga no Império, orientava a composição das peças não só no que tange ao estilo ornamentado por toda a sorte de flores retóricas, mas também quanto à estrutura, coordenação e apresentação do assunto. São peças escritas para recitação e não para representação. O enredo é frágil, a caracterização resulta do método retórico dos estudos de tipos ou de pintura por traços típicos, comum nos exercícios escolares, e que se deviam menos ao poder criador da imitação da natureza, no sentido que lhe deu ARISTÓTELES, do que ao engenho inventivo.

Tanto quanto a tragédia, a comédia romana foge ao modelo ático, enveredando pela fixação de tipos,

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que, por sua vez, se arrastam por um enredo con-vencional .

* * *

Passemos agora ao domínio da narrativa, a outra divisão de ARISTÓTELES.

A Eneida é o poema típico do que se conhece como epopéia artística ou literária, em oposição à epopéia primitiva ou popular, como a Ilíada. Sem querer entrar aqui na polêmica em torno da origem comunitária dessas epopéias, do seu caráter primitivo ou não, o fato é que numas a transmissão de lendas ainda vivas se opõem às outras em que se processa a recriação de um passado já remoto. Mas em ambas o elemento épico está presente. E para ele, uma poética foi aos poucos construída. E essa arte poética está por inteiro representada na Eneida.

A epopéia, antes de tudo, é de inspiração e endereço coletivo, comunitário. No ponto de vista do estilo, é objetiva, de narração impessoal., por imagens sensitivas. Seus cenários são o fundo de cena de atividade heróica. O centro da epopéia são as pessoas, e a descrição é sobretudo de atividade pessoal — atitude, movimento, gestos, fala. Os personagens devem revelar-se a si próprios, e não são objeto de comentários nem reflexões. A epopéia se desenvolve na extensão, enquanto o drama na intensidade. Há nela uma enorme variedade de situações, personagens, episódios., que passam de um a outro numa continuidade sem a movimentação dramática, embora possa haver dramatização

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na epopéia. O estilo da epopéia é elevado, sonoro, sublime.

A Eneida enquadra-se à perfeição dentro da arqui tetura poética da epopéia. O seu movimento narrativo é guiado por uma idéia diretriz que lhe proporciona unidade. A arte da descrição em VIRGÍLIO é peregrina, sem interrupções de tempo e lugar; sua narrativa é enriquecida e intensificada inclusive pela técnica do drama, que ele aprendeu dos trágicos gregos, fato excepcional, que é, segundo um crítico, uma das maiores realizações da poética : haver aplicado o drama à nai -rativa sem sacrificar as oportunidades típicas da epopéia, tal como farão um DANTE e todo grande artista da narrativa.

A caracterização é inferior à narrativa, mais con-vencional, mais conforme à tendência romana do tipo do que à criação de indivíduos. No que concerne à expressão, ao estilo, VIRGÍLIO atinge o máximo da perfeição, dentro do gênero, graças à maior segurança no domínio da palavra e à energia na expressividade e à riqueza de imagens.

Em OVÍDIO, a poesia narrativa decai a um plano mais baixo, embora sua perícia se mostre exímia na execução técnica, todavia traindo antes um retórico do que um poeta. Serve para, comparativamente, pôr em relevo a arte de VIRGÍLIO. Nele as descrições se envenenam de decorativo e de amplificações. A poética é em grande parte sacrificada à retórica, inclusive na onipresente preocupação com a harmonia e o brilho do estilo.

Ao sair de OVÍDIO, a narrativa entra no reino dos romances gregos, em que o alexandrinismo imprime

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à narrativa o gosto do incidente excitante, da variedade incontrolada e da violência. E' o pleno domínio da retórica, no estilo difuso e no convencionalismo, na ausência de dramaticidade, na procura do efeito pelo sensacionalismo, e na ausência de caracterização.

* * *

Na Idade Média, duas linhas de evolução marcam o desenvolvimento da poética e da retórica. Uma, dominante, vinda de Roma e do mundo helenístico, cultivado também por necessidade, a necessidade da Igreja de exercer a sua docência universal no púlpito popular e na tribuna douta; era a retórica. A oratória de pregação monopolizou todos os gêneros de oratória, e nela se aperfeiçoaram os doutores da Igreja, aperfeiçoando ao mesmo tempo as técnicas e os recursos da retórica, como 'arte de persuadir um auditório. CÍCERO, HORÂ-CIO e QUINTILIANO forneceram sobretudo as linhas de orientação segundo as quais a poética desapareceu completamente dos espíritos preocupados exclusivamente com dar colorido de estilo e persuasão à universal arte da pregação.

Em baixo, porém, dessa massa de preocupação retórica um veio poético se mantinha, aparecendo por vezes mesmo nos sermões, e irá crescendo, abrindo caminho com as literaturas vernáculas ou românicas, na direção do Renascimento e da Modernidade. De modo geral, contudo, a poética na Idade Média ficou abafada pela retórica da escola.

A lírica trovadoresca é a mais notável forma de literatura vernácula, em seus inícios medievais, e sua

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mais destacada contribuição à poética consistiu no desenvolvimento da perícia métrica, devida à grande preocupação medieval com o "métier", e que tanta influência teria na poesia futura dos países românicos.

Outras formas poéticas vernáculas são as epopéias germânica e francesa, por meio das quais, sobretudo da última, a poética vernácula se firma definitivamente, na força do estilo direto, na viveza da narrativa, na caracterização épica, no estilo, mais simples e menos convencional na francesa, marcada esta ainda de grande movimentação.

A narrativa encontrou no vernáculo esplêndida oportunidade de experimentação de novas poéticas na arte de contar histórias, no romance, de que surgiu uma abundante literatura de histórias, como em CHAU-CER, CHRÉTIEN de TROYES, BOCCACIO, e a qual teria imensa fortuna nas literaturas românicas.

Em DANTE, excepcionalmente na Idade Média, en-contramos aquele equilíbrio ideal entre a poética e a retórica, mantidas unidas numa espécie de tensão que difere nitidamente da confusão e da subordinação.

Em DANTE, O estilo é o sublime, que LONGINO definiu como o estilo poético, e que não se confunde com o ampuloso da retórica. Ao contrário, caracteriza-se pela concisão, austeridade, quase ascetismo. Pela alegoria, o mais extremo realismo é posto a serviço do idealismo, da vida como expressão e testemunho do amor divino. Seu movimento narrativo é imaginativo. poético sem perder contacto, no entanto, com a lógica numa feliz associação de poética e retórica. E' um

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movimento progressivo, plano a plano, levado avante imaginativamente, movimento poético típico.

* * *

No Renascimento, uma nova dama ilustre — a lògica — vem substituir a retórica na formação dos meios de persuasão em todos os assuntos. A influência da lógica penetrou inclusive na criação das imagens, a retórica reduzindo o seu papel ao controle do estilo, ou língua ornada. Daí data a desmoralização da retórica e sua identificação, como sinônimos, na mente do homem moderno, com o estilo florido. O Renascimento ficou obcecado com o estilo, lógica e retórica irmanadas na sua produção e análise.

Além disso, como já foi salientado, o predomínio da retórica ao longo da Idade Média e pelo Renascimento, teve como efeito o desconhecimento ou a falsa interpretação, com visão astigmática e óculos retóricos, dos grandes tratados de poética de ARISTÓTELES ou LONGINO. AS teorias poéticas nutriam-se, como diz SPINGARN, nos tratados retóricos dos antigos, e só depois da redescoberta e difusão da Poética é que, sobretudo na Itália dos humoristas, os estudos críticos e as dis-cussões se intensificaram no sentido pròpriamente poético. Todavia, no Renascimento, as teorias poéticas ficaram coloridas de retoricismo. A VOSSLER se deve a sumarização da evolução das doutrinas renascentistas sôbre a poesia, que passaram por três estágios sucessivos da teologia, da oratória e finalmente da retórica e filologia.

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A mentalidade retórica do renascentista fez com que se aceitassem as lições e teorias clássicas sôbre e poesia como normas ou preceitos que, se seguidos convenientemente, seriam causa de excelência para os imitadores. ARISTÓTELES, misturado a HORÁCIO, passou a ser a fonte de preceptismo, CÍCERO O modelo de estilo, VIRGÍLIO de poesia épica e SÊNECA de tragédia. Era a doutrina aristotélica da imitação da natureza como motor das coisas, deformada para uma simples disciplina pedagógica e normativa de imitação de modelos literários.

De qualquer modo, a Renascença, no tocante à teoria da poesia, reflete a luta subterrânea da poética, sob a égide da Poética de ARISTÓTELES redescoberta e redifundida, desinterpretada e deformada, mas de influência crescente, — a luta da poética por libertar-se do domínio da retórica e lograr uma situação de reequilíbrio. Só a dentro do século XVII, por toda a Europa máxime por influência dos estudos italianos, é que as teorias poéticas se libertaram da tradição medieval re-tórica e dos estudos puramente métricos, retomando contacto com as teorias críticas e poéticas antigas, numa compreensão mais clara de que a poesia não se compõe somente de assunto e estilo ou forma, porém é dotada de uma estrutura intrínseca e de um movimento interno específico.

A Antigüidade, pela boca sobretudo de ARISTÓTELES, compreendera bem que a literatura envolvia dois aspectos— objetos de duas disciplinas distintas: de um lado, a narrativa e o drama, cada qual com sua estrutura e movimento típicos, alcançados graças à vivaci-

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dade de realização e à paixão, e estudado pela poética, uma forma de bela arte; e, do outro lado, uma estrutura lógica, por meio da qual se logra a persuasão do auditório ou leitores, e este é o campo da retórica, arte prática. Esses dois tipos de literatura tem um campo comum na expressão, e por isso há sempre o perigo de misturarem-se no culto da expressão, a beleza artística passando então a sinônimo de estilo ornado e de artifício retórico. Aconteceu isso na Antigüidade, na Idade Média e no Renascimento.

Nos séculos modernos, sob o impacto das doutrinas românticas, e com valorização do indivíduo, a cujo gênio e a cuja originalidade se entregou afinal a responsabilidade na criação de beleza e na eficiência artística, ficaram desacreditados os tratados de precep-tística nos quais, aos olhos dos modernos pós-românti-cos, se identificavam e confundiam a poética e a retórica. O neoclassicismo tanto abusou daqueles tratados que se viu neles a origem de toda a má produção poética de imitação, acadêmica e arcaica, e se levaram também ao cadafalso a retórica e a poética, irmanadas na responsabilidade da má literatura.

E, com isso, perdeu-se também o senso daquela distinção antiga tão necessária entre poética e retórica. Aqui e ali, este ou aquele crítico moderno a tem usado. Mas não há consciência generalizada, em crítica e teoria literária modernas, de distinção tão fecunda. Vozes isoladas a têm advogado. Alguns, como BAUDELAIRE, chegaram a defender inclusive a validade da regra, tão desacreditada pelo espírito romântico. São suas pró-

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prias as palavras seguintes: "E' evidente que as retóricas e as prosódias não são tiranias inventadas arbitrariamente mas uma coleção de regras reclamadas pela própria organização do ser espiritual; e jamais ns prosódias e retóricas impediram a originalidade de se produzir distintamente. O contrário, isto é, que elas, terão ajudado a eclosão da originalidade, seria muito mais verdadeiro". E, diz MARITAIN, "é da Renascença e de sua superstição da Antigüidade e de seu ARISTÓTELES empalhado (...) que procedem as regras artificiais dos gramáticos do grande século".

Em nossos dias, críticos de vanguarda tentam uma reabilitação das duas disciplinas, tal como foram vistas por ARISTÓTELES, não só com intuito pedagógico, senão também no uso crítico e na interpretação da literatura. Retórica e poética são disciplinas complementares de composição, e tratados de teoria e técnica literária cujo respeito tem constituído o segredo da arte literá-rária maior em todos os tempos, e cujo abandono ou confusão, a causa de vícios artísticos e de muita obra literária fracassada. Ao advogar, sob moldes renovados e bem compreendidos, o renascimento da poética e de sua indispensável contraparte, a retórica, mormen-te através da meditação da obra de ARISTÓTELES, estaremos reincorporando ao vocabulário crítico valiosos conceitos e reabilitando instrumentos mui fecundos de análise e interpretação do fenômeno literário, além de excelente recurso de pedagogia literária. E isso está fazendo a crítica literária em nossos dias, não somente revalorizando, em tratados e trabalhos de orientação

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mui moderna, os estudos típicos da poética, o seu conteúdo de assuntos, como também repondo em prática os métodos de ação da poética e da retórica no bom uso dos homens de letras, na criação literária e no trabalho artesanal. E' este um movimento destinado aos melhores frutos quer para a criação, quer para a análise crítica da literatura.

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EDIÇÕES

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1932, (ed. J. Hardy). ARISTOTE — Rhétorique — 2 v., idem, lb., Paris, 1932 (ed. M. Du

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La Poétique d'Aristote — tr., étude philosophique, por A. Hatzfeld, M. Dufour, Lile, 1899.

ARISTÓTELES, Retórica, ed. A. Tovar, Madrid, 1953.

São acima indicadas apenas edições modernas, aces-GÍveis; em geral, fartamente anotadas, contêm boa bibliografia ■ De todas as mais práticas e úteis são as da Coll. G. Budé. a de RosTAGÑI e a de Garnier. A de BUTCHER é precedida de magnifica introdução, e serviu de ponto de partida para a rein-terpretação da Poética. As de L. COOPER são adaptadas ao ensino moderno.

Edição geral de Aristóteles — e muito cômoda, em um volume, com excelente introdução e bibliografia é: The Basic. Worka of Aristotle, ed. R. Mckeon, Nova York, 1941.

Poética — Aristóteles — ed. Eudoro de Souza, Guimarães & Cia. Editores, Lisboa, 1951.

SÔBRE ARISTÓTELES

(Além dos comentários, notas e introduções das edições indicadas)

L. COOPER, A. GUDEMAN — A Bibliography oi the Poetica oi Aristotle — New Haven, 1928 (Bibliografia bastante ampla das obras consagradas à Poética) .

Obras gerais de história da crítica e da estética :

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A doutrina e a pràtica da escola de crítica neo-aristotélica de Chicago foram reunidas na excelente antologia: Critics and Criticism, ed. R. S. Crâne, Chicago, 1952. V. comentários de: E. Vivas, "The Neo-aristoleans of Chicago" Sewanee Review, Winter, 1953; W. Earle, "The Chicago School of Critics", Western Review, Winter, 1953; W. K. Wimsatt Jr., 'The Chicago Critics", Comparative Literature, winter 1953; S. T. Johnson, "A Discussion", Jounal of Aesthetics and Art Criticism, Dec. 1953; R. Marsh, "Town and Gown", Hopkins Review, Spring—Summer 1953.

A doutrina aristotélica em crítica literária foi discutida em uma reunião do English Institute da Universidade de Columbia, em Nova York, em 1951, tendo sido publicados os debates em English Institute Annual 1951, Nova York, 1952 (Quatro estudos sôbre método, sôbre a imitação e a catarse, e sôbre enredo) .

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — JOSÉ JANSEN ..................................... A mascara no culto, no teatro e na tradição

2 — ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON .......................................... José Lins do Rego

3 — PAULO RONAI .................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE .................................................... Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ...................................... Arquitetura Brasileira 6 — Lúcio COSTA ...................................... Considerações sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS ................... Forma e expressão do Soneto 8 — DJACIR MENESES ............................... Formação profissional do Advogado 9 — H. VON KLEIST ................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO................................ Monte Cristo, ou da Vingança 11 — Luís COSME .............................. ------ Música e Tempo 12 — JoAo CABRAL DE MELO ..................... Miro 13 — OTÁVIO DE FABIA .................................. significação do Far-West 14 — SANTA ROSA ....................................... Roteiro de Arte 15 — SANTA ROSA ...................................... Teatro, Realidade Mágica 16 — Josí CARLOS LISBOA ......................... Teatro de Cervantes 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ........................ Isabel a do Bom Gosto 18 — GILBERTO FREYHE .............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR ......................... Alguns Contos 20 — MÁRIO PEDROSA ............................... Panorama da Pintura Moderna 21 — ROSÁRIO FUSCO ................................. Introdução à Experiência Esteuca 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS .................... Realidade e Ficção 23 — DANTE COSTA .................................... O Sensualismo Alimentar 24 — LEDO Ivo............................................... Llcao de Mário de Andrade 25 — EUGÊNIO GOMES ................................. O Romancista e o Ventriloquo 26 — JOSÉ LINS DO REGO ............................ Homens, Seres e Coisas t 27 — OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA .. De várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA . ................... Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PASSOS ............................ A Imprensa no Período Coloniai 30 — MANOEL DISQUES JÚNIOR .. Etnias e Culturas no Brasil 31 — CTRO DOS ANJOS .............................. Explorações no Tempo 32 — OSWALDINO MARQUES ........................ O polledro e a rosa 33 — FERNANDO SABINO ............................. Lugares comuns 34 — PÉRICLES MADUBEIRA DE PINHO Notas à margem do problema agra io 35 — VITORINO NEMÉSIO .............................. Portugal e o Brasil na História 36 — WILLT LEWIN ...................................... Ensaios de Circunstâncias

Continua na 3o pâg.)

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PERO DE BOTELHO

3 FRAGMENTOS

ESTÉTICA, ÉTICA E POLÍTICA

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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O CINEMA COMO OBRA DE ARTE

1. A OBRA DE ARTE

M dos mais precisos e fiéis instrumentos até hoje inventados pelo homem para registrar, para captar os objetos da realidade, é, sem dúvida, a fotografia. Pois bem: nem ela, apesar da veraz lealdade, apreende este inundo e as suas coisas de uma maneira uniforme, reta e pura. O rosto de um mesmo indivíduo ou um pedaço da natureza, uma paisagem, mostram variações, maiores ou menores, segundo a hora, o lugar e o mo-mento em que foram agarrados pela câmara fotográfica. E isto apesar de que esta pretende funcionar e ser um regís-tro fiel da realidade, gravando com a ajuda da luz a sua imagem. E nesse sentido a fotografia não é arte, mas técnica, pois já se disse que traço característico da técnica é o ser ela uma entidade sem alma, que está sempre a serviço de; porém, se se mete uma na outra, isto é, alma na técnica, o seu ser será mudado, esta passará a ser algo diverso do que era anteriormente. E isto é precisamente o que acontece com aquela fotografia que por si cria beleza.

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Aliás, a arte nunca quis ser mera e exata reprodução fotográfica, isto é, conservar-se no mesmo mundo das coisas existentes com potência real e efetiva. Por isso pode ser dito que aqueles maravilhosos retratos renascentistas de Leonardo, Botticelli, Bellini ou Holbein, alem de serem fidelíssimos traslados de figuras existentes realmente, não são bem deste mundo, pois pertencem, de corpo e alma, ao reino da arte bela.

Nesta tentativa de deslindar o ser da obra de arte convém focalizar, talvez com algum proveito, um momento de uma realidade qualquer e na qual participe a arte; por exemplo, neste espetáculo: o admirável Nuovo Quarteto Italiano executando o Quarteto em dó, op. 59, numero 3 dos Rasoumowsky, de Beethoven. Dão-se aqui vários níveis da realidade, diferentes modos de ser isto ou aquilo. Há 1) uma realidade concreta: quatro músicos tocando uma música, 2) uma realidade física: os sons e 3) a presença de uma realidade de natureza ideal: a obra musical de arte, que surge dos sons mas que não se identifica com estes já que vai além, transcende a pura ou mera realidade sonora, pois, como diz Hartmann, musicalmente ouve-se muito mais do que está na mera mostração dos puros sons ou no que podem perceber os sentidos (1).

Qual será então o reino da arte? O seu mundo é o mundo dos valores, o mundo da beleza e a obra de arte só é arte devido à beleza que se junta a certos

(,1) NicOLA HARTMANN — Das Problem des geistigen Seina, 1933, p. 372.

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objetos. Por isso muitas vezes a arte tem de se libertar das formas ou da silhueta da natureza efetiva da coisa para alcançar maior autonomia, tem de passar do realismo ao impressionismo ou ao expressionismo para ser mais criaJcra de mundos, para ser mais poética. Esta fuga libertadora, na pintura de hoje foi dar no abstra-cionismo, que não é puro jogo à-toa como pensam os que o mal-entendem. A pintura que não aspira a re-presentar nada da realidade e se realiza criando formas, linhas e cores concertadas possui também a sua lógica, profunda lógica, como também a possuem as nuvens do céu; segundo nos dizem os poetas e a meteorologia. Arte é artifício e só há beleza artística na obra de arte. E semelhante libertação dos dados do real não significa caos nem leva à anarquia, e uma prova disto temos no seguinte: quando surgiu o verso livre todo mundo com veleidades literárias se julgou poeta e no entanto, hoje. andado o tempo, sabe-se que é a rima que mais facilmente permite aos não poetas poetarem. E também aqui deve-se fazer constar que até a liberdade está sujeita ou submetida a uma certa legalidade.

A arte, como a filosofia e todo saber realmente teórico, surge de ócio. O negócio é uma atividade de tipo negativo, que não deixa o homem ser plenamente ele mesmo, pois este estranho ente só se realiza plenamente com algum vagar, com um certo ócio. O negócio, negação do ócio, nec-otium, é o contrário do calmo lazer já que não passa de apressado fazer. O clima da obra de arte é o do simulacro, da metáfora, do mencionar um objeto fazendo uso de outro. Sobre este assunto,

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Platão já disse há muito de uma maneira insuperável que os artistas "deixam de lado a verdade do objeto para darem às suas figuras não as proporções que têm realmente, mas as que lhes parecem belas" (2).

A arte mesmo quando se inspira numa realidade real, coloca-a, transporta-a, para o mundo dos valores, onde as coisas propriamente nao são, mais valem: as flores e os frutos de um quadro, os personagens de um romance, não são, não existem. O valor-beleza, bondade, justiça — nao é algo habitante do "mundo oscuro del alma": é independente e só pede sensibilidade para ser apreendido assim como os prazeres só pedem sentidos para o gozo; aliás, neste caso, mesmo uma pedra só existe, ainda se no meio do caminho, para quem possa vê-la ou percebê-la de alguma forma.

Uma realidade concreta e real é um bloco de pedra-sabão; uma realidade ideal é uma estátua de Aleijadinho. O Aleijadinho ao trabalhar a pedra transforma uma realidade: faz a pedra virar arte, transfigura uma pedra em beleza. Transporta-a do reino da natureza para o reino do belo, faz a matéria tomar forma artística. Assim pode-se ver o quanto é diversa a reali-dade da rua da realidade da arte. Uma é filha da natureza; a outra é produto poético, fantasma, forjado pela imaginação criadora, como diz Platão:

(3). Uma

(2) PLATÃO — Sofista, 236 a.

(3) PLATÃO — República, 598 6; Solista, 236 b.

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é natura e a outra pura nutritura. E em toda obra de arte autêntica há sempre uma como recriação de mundos, criação de novo partindo dos dados do real, dados com os quais o artista criador tem sempre que contar para tirar da fantasia o seu rebento, o seu , fantasma.

A obra de arte desta maneira, é o resultado da confluência ou encontro de dois mundos: o da realidade real e o da realidade poética ou ideal. Temos aqui umas certas bodas do sensível com o inteligível. Por isso é que se pode dizer que o artista criador "forja na sua oficina, com o barro inerte da terra, um ser alado, impalpável, imperecedouro".

Aristóteles, com admirável clarividencia e essencial intuição diz que "a arte de certo modo imita e transcende a natureza", que toda obra de arte é sempre transcendente, vai além do percebido, que sempre ultrapassa o objeto da realidade real. Esta transcendência significa ampliação, algo que transforma e transfigura um mundo existente. Mesmo a mais audaz e rica imaginação criadora não retira o seu mundo do nada, pois toda fantasia, inclusive a desbragada em grau superlativo, conta com a realidade existente e só pode realizar-se partindo desta. Mas acontece que arte é apreensão ou intuição mais fantasia, é poesia no sentido de ser recriação de outro mundo a partir do visto ou sentido, é correio do captado através da sensibilidade; por isso será sempre a expressão de uma vivência do belo mais a invenção criadora do artista. E é preciso levar em conta o seguinte: o mundo da beleza artística

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não é o mundo natural. A sua voz não é voz entitativa, mas voz ou portavoz artificial de uma terra que é nossa mas que não é bem deste mundo. Uma obra prima da pintura pode reproduzir uma realidade às vezes repelente e a história está cheia de quadros belíssimos que retratam mulheres feíssimas. Pois aqui o que é feio é um objeto ou uma realidade representada, mas não a sua representação. O produto artístico é sempre poético, ente de existência irreal e que não tem ligação nenhuma com a sua matriz da natureza. Assim o trágico, sublime, melancólico, heróico, dramático, etc, enquanto categorias artísticas pertencem ao mundo do belo. A arte não será sempre bela, apesar de mostrar, às vezes, objetos, caras, realidades e mundos feios ? Na arte, diria Hegel, o espírito criador se liberta do conteúdo e das formas do finito. "Lo artístico", diz Garcia Bacca, "desvincula aparição e realidade, ser e verdade".

O belo, repita-se uma vez mais, é a alma da obra de arte. A beleza é uma espécie de fundo ideal — poderia dizer transfundo? fundo que transita e passa à frente para se mostrar? — que aparece exibindo-se através de uma singular transparência do objeto real. O belo não tem existência real própria como a tem uma árvore ou uma ponte; sempre precisa de outra realidade para poder se sustentar e poder ser; é valor em tal ou qual objeto. Aqui o real, a matéria que suporta a beleza criada, funciona como tela de cinema que, escondida. mostra alguma coisa e que ao ocultar-se, e pelo fato de se ocultar, deixa que surja a idealidade que é o valor, que é a beleza.

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E algo singularíssimo acontece no reino da arte: o real torna-se transparente à luz do ideal, a realidade se oculta para mostrar a idealidade. Traço que põe em evidência o caráter dos entes que contam com existência concreta é a sua intransparência, o seu não denotar outra coisa que não sejam eles mesmos: uma pedra deixa ver uma pedra, uma casa uma casa, um homem um homem. Na arte dá-se algo bastante dife-rente: uma pedra deixa de ser pedra, se esconde enquanto pedra, para mostrar uma estátua, um busto; um pedaço de pano, escondida a matéria pano, mostra uma obra pictórica; uma casa é um utensílio feito pelo homem para ser sua morada ou onde possa exercer as suas atividades, mas um dia surge um artista, Lúcio Costa por exemplo, e arquiteta uma que além de ser utensílio será também obra de arte devido a sua egrégia formosura. Pois é então o belo, o valor beleza, quando aderido a tais objetos que faz deles obras de arte, ao dar-lhes uma nova realidade ou forma de ser, ao transmutar-lhes sua entidade transmitindo-lhes esse algo misterioso que denominamos beleza e que transita através de palavras (Machado de Assis, Carlos Drum-mond de Andrade, Cecília Meireles), de sons (Vila Lo-bos, Camargo Guarnieri) ou da pedra talhada pelo escultor (Aleijadinho, Bruno Giorgi) .

O ser e o valer se acham em distintos níveis ônti-cos, são realidades diferentes. "As coisas belas são belas devido ao belo", se não houvesse o belo não poderia havei beleza, vem a dizer sobre o assunto uma pro-

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funda frase de Platão que expressa uma genialíssima intuição.

Enfim, e já a caminho do fim, umas poucas palavras sôbre a recepção da obra artística. Antes de tudo é preciso dizer que o espectador, apesar das pretensões em contrário, não tem nenhuma interferência na obra como tal; ele não lhe pode dar nada que ela já não tenha, muito menos beleza. A obra irradia» ou expressa um sentido, o seu sentido, e mostra beleza a quem tenha não só olhes e ouvido, isto é, sentidos, mas sensibilidade adequada e educada para tais misteres.

Toda e qualquer mostração, pura, simples, de algo só pede vista, olhar para ver: já a sua representação demanda do espectador interessado em deslindar o seu sentido algo mais do que o simples olhar sensível, pede interpretação. Por isso o gozo pleno da obra de arte requer uma sensibilidade inteligente, capaz de apreender tão raro mundo e o gosto não é outra coisa que a consciência artística do indivíduo liberta do cotidiano.

E entre o espectador e a obra pintura, música, literatura, escultura — é preciso que haja uma cordial aproximação, um clima que possibilite o que Heráclito chamaria um perfeito "ajuste de tensões como no arco e a lira". E como arte é fantasia, este ajuste deverá dar-se não no mundo natural ou real da convivência, mas em clima artificial de espectador-obra de arie, de "engano sabido" de realidade fora do real. Não há, pois, que a gente esteja a aferir e conferir uma obra artificial com as coisas da natura. São mundos diferentes

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que se encontram em diferentes degraus da total realidade do existente, pensado ou sonhado. A obra artística é engendro da consciência do indivíduo e o seu mundo se compõe de puras maravilhas, de festas; mais: é festival perpétuo, trate-se do Don Quijote, de uma tragédia de Esquilo ou de uma Cantata de Bach (4).

"Das Reich des Schõnen ist nicht eine Welt neben der realen Welt", "o império do belo não é um mundo no mundo real", são palavras de um filósofo contemporâneo e que poderiam ser de Platão ou Aristóteles, primeiros e profundos meditadores sobre o assunto. Assim, se perguntarmos por sua pátria, a arte nos dirá: "o meu reino não é deste mundo". E não poderemos dizer que ela não tenha razão.

2. A ARTE E A TÉCNICA

Mas o nosso tema se refere à natureza do cinema e não à da obra de arte. Porém, esta rápida pesquisa sobre os ingredientes da obra geral talvez possa facilitar a visão da índole própria da obra singular. E como o cinema para se realizar, para deixar de ser virtude para ser atitude, tem que assumir, mais do que qualquer das artes belas, graves compromissos com uma complicada técnica material, acho necessário precisar algo

(4) Recentemente um grande poeta dizia a um romancista: "Nós vos agradecemos certas madrugadas que inventastes e certas coros do céu, da terra, da água e certo andar do tempo nos campos e algumas flores que vão ficar para sempre na sua primavera."

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acerca das relações que há entre técnica e arte. Aliás. o cinema padece de uma ingratíssima condição que é o ser espectáculo e por isto depender de uma certa maquinaria para poder passar de potência a ato, para poder ir do virtual ao atual.

A palavra grega , . techné, terme, de onde vem o vocábulo técnica, significa tanto técnica, no sentido atual do termo, como arte bela. Os gregos usaram a voz tanto para uma coisa como para a ou- tra, isto é, contavam com um só vocábulo para nomear duas realidades distintas. Mas esta falta de nomes diferentes pode nos revelar algo de profundo com referência ao nosso assunto. Qual seria a razão do fenômeno?

À primeira vista parece hoje muito clara a diferença entre arte bela e técnica; mas só à primeira vista. pois após um exame mais acurado do problema damos com uma região em que não se sabe bem que é arte e que é técnica. Por exemplo, naquele aparente puro jogo de palavras que menciona a arte da técnica e a técnica da arte, pode-se registrar uma profunda relação — mais: inter-relação — entre os dois fenômenos. Esta frase diz que há uma técnica da arte, da obra de arte, e que existe uma arte da técnica. Quai será o sentido de tais expressões? Veremos: 1) de um técnico de primeira categoria, que faz a sua obra com zèlo e perícia, é costume dizer que é um artista, e do artefato, produto de sua atividade, que é uma verdadeira obra de arte, trate-se de um carro de bois, de uma ponte ou

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da feitura material (papel, tipos, encadernação) de um livro; 2) e toda arte tem a sua técnica: a) o saber como arquitetá-la e o saber como construí-la e b) a sua pròpria arquitetura ou estrutura.

Na Grécia tanto o artista como o artesão tinham o mesmo nome: , técnico. Que traço comum haveria entre coisas, para nós, tão diferentes?

A palavra técnica conceitua dois fenômenos distintos, a saber: 1) significa saber fazer ou fabricar algo ou saber manejar determinados instrumentos e também 2) significa pura e simplesmente o fazer ou fabricar coisas, já sem o caráter intelectual de saber. O vocábulo passa então a mencionar o simples fazer. O livro de Aristóteles chamado Poética trata fundamen-talmente da técnica poética, do saber como construir adequadamente as partes e a estrutura da obra literária, apesar de haver nele precioso material para uma ontologia da obra de arte, como já foi mostrado em outra obra do autor (5).

Existem hoje, por toda parte, livros e livros, para ensinar carpintaria, mecânica, funcionamento de motores, etc. Tais obras são técnicas na primeira acepção do vocábulo: tratam de um saber como fazer. A técnica neste sentido seria uma disciplina intelectual, humilde, mas de qualquer modo em relação com as faculdades intelectivas. Já na atividade do mero fabricar algo, o

(5) PERO DE BOTELHO — Tratado da Mente Grega — Candeia, Belo Horizonte, 1949.

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espírito como intelecto entra em dose assás parca, pois tal fazer é um puro agir: o pedreiro que ergue paredes, o indivíduo que planta batatas, o homem que fabrica pretensas obras de arte, o alfaiate de grande perícia, etc.

Algo que caracteriza tanto a técnica como a arte é c seguinte: ambas provocam uma, transformação nas realidades sobre as quais têm influência. Explico-me: a técnica e a arte modificam o modo de ser ou o ser de determinados entes. A técnica cai sobre a natureza para mudá-la, para lhe mudar a estrutura em seu benefício: faz ferramentas, desvia o curso dos rios, constrói estradas. Não sendo o homem um ente natural que vive na natureza como outro qualquer do seu mundo, ele não poderia subsistir se não lutasse com a ambiência ou cir-cunstâncias, se não construísse o seu mundo violentando a natureza. Também a arte faz as coisas cambiarem, pois de um pedaço de pedra pode fazer escultura, que é obra de arte. Vê-se então que a técnica transforma a realidade ou o modo natural de ser das coisas: faz, artificialmente, objetos que de verdade existem e funcionam, como uma mesa, uma geladeira, um navio. Mas a arte também transforma o mundo, porém em outro sentido. Ela não produz, como acontece com a técnica, outras coisas, outros entes reais, mas põe beleza em certos objetos. Uma cadeira, produto da técnica, feita pelo carpinteiro, realmente existe e funciona, já que se pode sentar em tão doméstico utensílio. Porém em uma daquelas cadeiras dos quadros de Van Gogh tal coisa seria impossível.

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A técnica cria um mundo artificial, pois transforma a realidade; a arte inventa um mundo artificial, mas em segunda potência, pois o seu mundo paira sobre a natureza. Platão diria que os deuses criaram a cadeira em essência, ou forjaram as suas condições de possibilidade, que o carpinteiro é o seu artífice e que o pintor seria, quem, por mimese, nLnyacs. reproduziria esta cadeira, isto é, tornaria a produzi-la de novo em outro plano, não no nível entitativo do marceneiro mas no mundo do artifício, de "realidade fora do real". Deus seria então criador, podendo o homem ser artífice (artesão) ou artista (produtor de obras de arte). Assim, tanto a técnica como a arte têm um sentido transcendente, do ir mais além, do transformar realidades. Mas nada na arte, diria o meu sutil e profundo mestre Garcia Bacca, deve "soar em tom real", pois "Io artístico desvincula aparición y realidad, ser y verdad".

A técnica, sendo instrumento, não tem objeto próprio e esta é a razão do porque ela sempre anda a sersiço de alguma coisa ou alguém, da polícia, do ócio, do negócio, inclusive da arte, pois toda ela tem a sua técnica especial que é aquela sabedoria do bem ordenar, harmonizar, equilibrar e podar o material que lhe serve de alicerce (5-a).

(5-a) Em inglês para cada um dos sentidos implícitos na idéia de técnica existe uma palavra: para o primeiro sentido technique (de evidente procedência francesa) e para o segundo sentido assinalado, o vocábulo craft, sendo o técnico, craitman. No mundo ocidental é do século XVIII a distinção clara entre artista e artífice. Tenha-se presente que foi nessa época que

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3. A ARTE E AS ARTES

A beleza artística, criação humana, só existe na obra de arte. Diz Heidegger que só há arte na obra de arte: "Wirklich ist die Kunst im Kunstwerk" (6). Mas na verdade não só há arte, no singular, como artes, no plural. Cada arte para criar a sua beleza, possui a sua peculiar forma de expressão, cada uma tem a sua própria linguagem. E isto é justamente o que as individua, que dá entidade própria a cada uma delas. Aqui a sua linguagem é a sua fazenda.

Existe, sem dúvida, um clima geral das artes, que é a beleza, o que as unifica e que também se poderia chamar atmosfera poética. Todas são filhas do belo e

surgiram a tecnologia e a indústria moderna com os teares mecânicos, máquinas a vapor, etc. E não se esqueça que tanto o artefato como o produto artístico são artifícios; o artífice e o artista produzem artifícios e daí o caráter de transcendência da produção de ambos. E em todo grande e genial artista há sempre um notável artífice, não sendo verdadeira a recíproca. Diz Ortega y Gasset que do fato de estar um ente em outro ente, isto é, o homem no mundo (Obras, V, p. 333), surge a necessidade daquele poder controlar éste em seu proveito: de onde a existência da tècnica, instrumento criado pelo homem para dominar ae suas circunstâncias. Em sua maravilhosa Meditación de la Tècnica ele faz uma tipologia da técnica segundo a sua presença na história e tem-se: 1) técnica do acaso (fazer sem saber), 2) técnica do artesão (mestres e aprendizes, utensílios usados pelo homem) e 3) técnica do técnico (a máquina faz tudo e usa homens para começar e parar as suas atividades).

(6) M. HEIDEGGER — Holzwege, 1950, p. 29.

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todas são produtos poéticos, apesar da natureza diversa do material empregado: luz e côr, som ou palavra, massas e linhas armadas no espaço. Assim as artes se unem pelo mesmo clima e se separam, se individualizam, devido à natureza do material utilizado ou pela forma de utilizá-lo. Isto possibilita a existência de uma comunidade das categorias estéticas, como afirma Croce, já que ordem, simetria, proporção, harmonia, equilíbrio, ritmo, etc, são encontraveis em todas as artes. E com pleno sentido posso falar, por exemplo, na arquitetura de um romance, na melodia de uma linha, no ritmo de um quadro ou na arquitetura, na melodia e no ritmo de um poema de Carlos Drummond de Andrade, voz poética das "mais altas de nosso país e de nosso tempo".

Acabo de fazer uma breve referência ao ritmo. Que é ritmo, afinal? Dizem os dicionários que se trata, em sentido próprio, da "organização do movimento dentro do tempo, com volta periódica de tempos fortes e tempos fracos" e, analógicamente, como "harmoniosa correlação das partes" em artes plásticas e na prosa (7). Aliás, Montaigne ainda fala em ritmo no sentido de rima, e no criador de obras de arte, como artífice ao referir-se a "peintres, poetes ou autres artisans".

Em toda obra de arte, dissemos, pode-se descobrir um certo ritmo, seja devido a movimentos medidos, tempos medidos, cores ou sons medidos. Este

(7) Oxiord Conciso Dictionary e Pequeno Dicionário Bra sileiro da Língua Portuguesa, ed. 1951. »

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ritmo pode surgir de uma sucessão temporal de sons, palavras, cores ou imagens da acentuação de sons, palavras, cores, imagens ou linhas, ou pode nascer da duração dos mesmos. Aristóteles em uma passagem da Metafísica aproxima, ou melhor, identifica, , ritmo, com , schema, esquema, esboço, melhor: esccrçp (8). O ritmo estaria dotado, segundo esse trecho de Aristóteles, de uma certa força configuradora ou estruturadora de algumas realidades, seria quem lhes daria efetiva atualidade, configurando a sua silhueta, dando vida à sua figura.

4. O CINEMA COMO OBRA DE ARTE

Que tipo de arte nasce da sucessão ritmada de imagens visuais registradas pela câmara fotográfica ? No cinema o ritmo tem uma função e uma importância capitais, pois êle surge das imagens, gravadas pela luz, foto-grafia, que se movem segundo um certo ritmo criando beleza. E este é o ritmo da obra artística como é o caso da arquitetura que apesar de fixar a sua criatura no espaço não impede que esta vibre em seu proprissimo ritmo.

As artes em geral são obrigadas a assumir compromissos, nem sempre honrosos, com a índole do material empregado por elas. Muitas vêzes este material impõe as suas condições às quais tem que se submeter a arte ou o artista, que nunca é absolutamente livre de

(8) ARISTÓTELES — Metafísica, 985 b 16, 1042 b 14.

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fazer o que quiser com o material. Mas o cinema padece mais neste sentido, pois tem compromissos, até agora, iniludíveis, não só com as outras artes, mas também com a indústria e o comércio. A obra artística, aqui, para ser realmente, depende de uma extensíssima organização econômico-industrial e deve ser vendida imediatamente: é mercadoria em demanda de mercado e. como discurso de político, sujeita em larga medida às oscilações e às ocasionais preferências do mesmo.

O cinema tem a sua origem e se funda na fotografia. Mas é preciso dizer: da fotografia com intenção artística. Esta vontade de beleza é que transforma a fotografia em arte fotográfica e deu nascimento ao cinema ao pôr-se esta em movimento. Um Gabriel Figueroa ou um Gregor Toland, fotógrafos, são homens que dominam soberbamente uma técnica para fazer beleza e criar arte, dirigidos pelos Bunuel, Orson Welles, Wyler e outros.

Esta jovem arte bela nasce, pois, da imagem da realidade gravada pela luz. Os seus compromissos com as outras artes são enormes: com a música, com a literatura, com as artes plásticas. Mas ela seria uma bastarda enciclopédia das artes se não contasse nos seus haveres com algum pecúlio próprio, se fosse somente um compêndio de música, artes plásticas e literatura. Mas tal não se dá. Já foi mostrado antes como toda arte transcende o seu material. Também o cinema ultrapassa o seu. E qual é este, qual a sua matéria prima, além da fotografia?

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Eis a sutilíssima situação: o cinema usa e abusa das demais artes não como artes, mas como matéria. O encontro de tais artes dá nascimento a uma outra que não é nem resumo nem abreviatura destas, pois de certo modo as transcende. Mais ou menos no mesmo sentido em que a literatura se serve de letras e palavras: como material para edificar a sua obra. No ci-nema a música, a literatura e a plástica deixam de ser artes para servirem de matéria ou material de outra obra. Tanto é assim que se a música aparece ou se mostra descaradamente num filme, este baixa de categoria artística. Aqui acontece, com todo o rigor, algo que rege sempre no mundo das artes belas: o material e a técnica devem conservar-se ocultos para mostrarem a beleza, para deixarem que esta resplandeça em sua plenitude. Como na pintura, a tinta, o tecido da tela, a parede ou a, madeira não aparecem e na música não se ouvem sons mas a linha melódica ou a estrutura harmônica, assim também o cinema não mostra o seu material e as artes utilizadas devem permanecer nas trevas, isto é, escondidas.

Assim, quem vai ao cinema e só vê plástica, música ou o fino roteiro ou script não verá cinema, mas outra coisa. Pois, como já disse, a arquitetura deste se acha apoiada em outras artes, que então funcionam simplesmente como instrumentos, quer dizer, como técnicas. Da mesma forma que o todo enquanto todo transcende às partes que o constituem, assim a obra de arte sem-

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pre ultrapassa ou sobrepassa, vai além do material que possibilita a sua existência, sejam sons, tintas, letras ou o barro inerte da terra.

5. QUE É CINEMA?

E como caracterização de sua entidade pode-se dizer do cinema como arte: é a obra bela que surge de certa sucessão ritmada de imagens visuais. Ou esta variante: imagens fotográficas que se sucedem segundo um certo ritmo, criando beleza ao dar harmônica estrutura a uma obra.

E são imagens, e não figuras em movimento, pois estas podem, na realidade, estar imóveis. São imagens em movimento, traslado de mundos inertes, imóveis, móveis ou semoventes.

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ARISTÓTELES E A ONTOLOGIA DA REALIDADE HUMANA

I

ARA poder examinar com certa precisão o assunto, tomo como texto fundamental: Ética a Nicômaco, de 1098 a 17 até 1098 b 8, isto é, mais ou menos uma página, senão menos, ignorando de propósito todos os demais escritos e filosofemas de Aristóteles sôbre estes e outros problemas. Ampliando o exame, faço, às vêzes, algumas rápidas e poucas incursões a outras partes da mesma obra. Devo advertir que as notas que seguem são puramente exploratórias; primeiras explorações, nada mais. Aliás, primeiras e urgentes: daí o estilo esquemático, quase de telegrama. Utilizo o texto grego da edição de Oxford (1942), aos cuidados de I. Bywater.

II

1. A experiência da vida — A riqueza da vida humana — e de onde vem capacidade teórica e agudeza de mente — nasce das experiências profundas e das espécies mais várias, vividas na alma: sejam estas pura-

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mente vitais ou mais ou menos intelectuais ou intelectualizadas, isto é, experiencias nas quais o entendimento toma parte atenta, nas quais o intelecto é colaboracionista leal. Para Aristóteles, sadio ativista (*), todo saber para ser possível, para funcionar realmente como tal, deve contar fundamentalmente com os alicerces da experiência de uma vida vivida em profundidade (não vegetada ou rolada como uma pedra pelo mundo que nada poderia "intimizar"). Todo saber teórico autêntico tem, por força, que partir de um rico mundo do existir, do viver como propriedade individual, porém mais do que nenhum, o saber sôbre as coisas humanas (1905 a 2), mormente e do mundo humano de que trata a Politica, "tomada a palavra em uma de suas acepções" (1094 b 10). E poder contar com um rico, senão riquíssimo, acervo de experiências vividas, é fundamental: por isso não é aconselhável que rapazes imaturos escutem lições sôbre tais assuntos, pois estas lhes cairão na alma inutilmente, não frutificando em saber de nenhuma espécie (e a política visa a ação. 1095 a) por lhes faltar a necessária virtude para tal; e diz Aristóteles que se trata de uma incapacidade por imaturi-dade não tanto devido ao tempo (extrema juventude), mas devido à própria vida (falta de riqueza interior, de experiência íntima, de experiência vivida "en el castillo del alma", como diria Teresa de Ahumada).

(*) Veja-se a importância da em sua filosofia, ou melhor, em toda a sua concepção do mundo: a substância por excelência é, segundo ele, a enérgueia, o ser agindo, o ser enquanto agente.

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Que fique, então, estabelecido o seguinte: o saber filosófico precisa de um mundo interno de ricas vivências em que assentar. Tais são as condições de sua existência real e efetiva, enquanto saber de excepcionalidade, enquanto saber de exceção, pelo objeto e pelo tipo de atividade intelectual.

2. Cada tema pede a sua peculiar exatidão. Cada assunto exige um determinado tipo de precisão ou rigor (1098 b 25), pois antes já foi dito (1094 b 25) que certamente "não se deve aspirar à mesma precisão em todos os conceitos como tão pouco se aspira a ela na manufatura de utensílios" (1094 b 12): seria tão absurdo aceitar uma demonstração provável que nos desse o matemático, como pedir exatidão ao discursador da praça pública (1094 b 25). Só se deve pedir a cada assunto exclusivamente o rigor que per-mite a natureza essencial do seu objeto, afirma Aristóteles. E o que êle diz, com palavras e expressões recentes, soaria assim: "os objetos determinam os métodos"; os objetos pedem, para serem conhecidos, métodos adequados aos seus respectivos modos de ser: métodos que obedeçam ou respeitem a natureza ontológica dos mesmos.

III

A Ética, como disciplina teórica, não como moral, significa uma pesquisa intelectual sôbre o bom e o justo (1099 a 20) partindo do que acontece na maioria dos casos, para saltar ao universal, pois nestes campos o que acontece em "realidade de verdade" é o primeiro e

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o primario, primeira coisa ou primeiro princípio (1098 b). No reino humano a realidade da existência outorga fundamentos a várias entidades.

IV

1. Ao homem pertence por ou natureza o ser cidadão (1097 b 10 e 1169 b 17), o comungar a sua vida com outras, o "viver em companhia" (1169 b 17) e ser socius. E isto significa, com todo o rigor, comunhão, e não o simples estar juntos no mesmo lugar como acontece com o gado (1170 b 12).

2. Quai a função, ato ou atividade própria do homem como tal ? Como funciona o ente humano ? Quai a finalidade, a meta de sua vida? Ou é que o seu viver não tem nem princípio nem razão de ser ? Será pura coisa, vagante, à-toa? (1097 b 25 ss).

O tocador de flauta, o escultor, o carpinteiro, enquanto flautista, escultor e carpinteiro, têm, todos, um ato, função ou atividade que cumprir: o exercício de suas respectivas funções; e isto será, justo, o que lhes pertence por natureza ou essência, enquanto tais, portanto, o fundo de sua (1098 a 5). O que fazem, isto são eles.

Tais são os pontos de partida da pesquisa de Aristóteles sôbre o bom e o justo, acerca da bondade e da justiça. Fois bem: como se viu, êle faz primeiro uma caracterização do homem, caracterização que é uma on-

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tologia regional de tal ente para depois dar início ao seu tratado; e a ontologia está fundada nas afirmações mencionadas. Uma, singularizando o homem por sua natureza ou ser socius, cidadão, ente comun- gante; e a outra, perguntando por sua função ou atividade própria, que aliás também soa como afirmação: de que o homem é contínuo transformar, fazer e agir constantemente com a sua vida. "A vida, diz êle, é uma atividade", (1175 a 10; 1168 a 5); que este anda à procura de algo (a felicidade constitui o fim da ação), que a sua vida é um constante ir a, que ela está no futuro, é futuração (*). O homem será então, segundo Aristóteles, um ente convivente que atua, sossobrante, à procura do futuro. E Ortega y Gasset hoje chegaria a afirmar que o "homem não tem natureza, mas história", e diz Heidegger que o tempo é o horizonte que possibilita a compreensão do ser, "do que sempre era".

V

Há duas espécies de saber: o carpinteiro e o geómetra indagam sôbre o ângulo reto partindo de diferentes pontos de vista e seguindo diferentes direções: o carpinteiro por lhe ser útil em sua profissão, e enquanto útil, e o geòmetra — diz Aristóteles — por ser procurador do veraz, "espectador da verdade",

(1098 a 31).

(*) Um dia dirá ERASMO DE ROTERDAM: "OS homens não nascem, fazem-se".

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VI

Qualquer arte assim corno qualquer indagação teórica e geralmente qualquer atividade e escolha, parece, tendem a um bem; por isso já afirmaram com discernimento, diz Aristóteles, que o bem é aquilo para cujo lado todas as coisas pendem (1094 a l). Alguma coisa situada no porvir estimula o devir do passado e do presente: o porvir devêm o passado, faz o passado devir.

VII

Segundo Aristóteles (1098 a 1) com relação à vida, ao viver, também vivem as plantas, o cavalo e o boi: uns sentindo somente, e outros sentindo e movendo-se, isto é, atuando, de certa forma. Que terá o homem como pecúlio, seu, e intransferível ? Há uma vida, ativa, da alma, uma região desta, que conta com o

, logos (1098 a 3), isto é, que pesquisa e medita. E esta constituiria uma propriedade exclusiva do homem; por isso pertence à sua entidade o logos, o ser porta-voz intelectual da realidade. O homem vive, olha e medita e devido a isso pode captar, apreender através do espírito, a natureza e sentido do "que há".

Vili

Os bens relativos à alma são os que mais própria e verdadeiramente devem ser chamados bens :

(1098 b 15). São por essência intrínsecos à alma,

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são pertences anímico?, não coisas externas como, por exemplo, uma roupa. E a felicidade — supremo bem, fim final, autárquico, apetecível por si e nunca por outra razão escura (1097 a 30) — é uma atividade da alma que se acha guiada pelo logos. E' algo final e auto-suficiente devido à sua autarquia : e ela constitui o fim da ação, dá razão ao agir (1097 b 20). E' mais virtuosa atividade ou ação excelentíssima. Daí que não se trate de algo visível ou que se manifeste no exterior, como a riqueza, o prazer, ou a honra tributada (medalhas, títulos, poderes, etc), pois nada disto pertence à natureza essencial da felicidade. Podem estar apegadas ou adendas a esta, mas não fazem a felicidade nem são partes constitutivas da mesma. Nota que singulariza a realidade anímica é o seu caráter de coisa escondida; de ente íntimo e mais da gente, do indivíduo indivi-duado por sua indivisibilidade, contornado pelo seu mundo.

Não se deve, pois, confundir a felicidade com a boa sorte como o fazem comumente os que, mal discernindo, confundem as coisas accessórias — ouro, boa fisionomia, boa casa, Cadillac — com as essenciais (1099 b 2).

IX

Felicidade quer dizer autarquia: se ficamos isolados, não carecemos de nada e a vida nos pode ser plenamente deleitável (1097 b 8); e é esta autarquia que caracteriza o supremo bem

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A felicidade já poderá ser definida como uma atividade da alma segundo a virtude mais excelente:

sabedoria,

complexa sapiência. E na sophia, dirá Aristóteles, "está a suprema forma de saber" (1141 a 15) e é a "mais excelente de todas as excelências humanas" (1177 a 20).

X

A felicidade é, pois, a coisa mais nobre e grata que há no mundo (1099 a 24). E há em Delos uma inscrição que diz:

O mais belo é o mais juste: o melhor: a boa saúde; o mais

agradável: conseguir o desejado.

XI

Neste fragmento da Ethica Nicomachea, composto de poucas linhas e que tomei como texto básico para ser seguido, diz-se do homem que:

a) por natureza é socius, cidadão, é con-viven-te (*); b) faz a sua vida, que é atividade (a vida constrói e

"traga sonhos", diria o poeta);

(*) Política, 1253 a 2-3.

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e) a vida enriquece a sua vida: tudo tem de aprender, sua vida é vacilante, oscila entre varios níveis de qualidade e quantidade (o cavalo e o boi, diz Aristóteles, já nascem, por assim dizer, sabendo nadar; o homem terá de aprender);

d) vai sempre a algo (o bem), sua vida é futuro.

Há algo que o homem procura sempre ao fazer ou consumir o seu destino e este algo é o bem: a) procurado por si mesmo e não devido a outra coisa; este injeta razão de ser à vida, e b) um bem para que seja próprio do homem deve estar alojado na alma, que possui o princípio do logos (o que não tem nem a planta nem o cavalo nem o boi); c) esse supremo bem, atividade anímica segundo a virtude mais excelente ( sabedoria) chama-se felicidade, eudai- rnonia, e constitui a razão, motor e chave da vida.

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INDIVIDUUM EST INEFFABILE OU APOLOGIA DO MUNDO EUROPEU

NÃO irei predicar-lhe nada acerca das várias mis-sões deste ente missionario que é o homem. Tampouco nada lhes direi sôbre a missão de quem medita, escreve e publica o fruto de suas meditações ( 1 ). Como não pertenço a classe dos pastores pouco me interessa o pastoreio (2). Sou simplesmente, mas com toda a complexidade do caso, um indivíduo, o que quer dizer: um eu indivisível a viver 'a sua vida como melhor lhe foi dado vivê-la: como , co.

(1) Trechos de umas páginas que deveriam ter sido lidas numa reunião realizada na Cidade do México em fins de 1949, quando saiu o livro do autor Tratado da mente grega

(2) Também não creio na educação do rebanho enquanto rebanho e gostaria de transcrever aqui umas palavras recentes de GABRIEL MARCEL com referência ao assunto. Diz ele: E' preciso retomar o que Ortega y Gasset já afirmou. Devemos renunciar definitivamente à ilusão de educar a massa porque a massa, enquanto tal, somente poderá ser magnetizada pela propaganda. O mundo dominado pela massa seria um mundo dominado pela propaganda. Portanto, a luta do filósofo só pode ser feita junto ao indivíduo. A partir do momento em que ele desejar falar à massa estará perdido, porque se contaminará."

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mo vida enterrada até aos ossos na tarefa _______ ingrata e magnífica — de captar intelectualmente o sentido substantivo do que há, do , do que sem- pre já era assim, para usar a curiosa expressão técnica de Aristóteles. E do fazer teoria — e sig- nifica visão verdadeira Ja genuína raiz das coisas — já se disse que "consiste precisamente em suscitar um festival perpétuo". Devido a isso os gregos colocaram na base do saber teórico, como sua origem e sua razão, um estado de inquietude mental e humana a que deram o nome de , admiração. A admiração destaca as coisas de seu cotidiano contórno e as faz problemáticas para o intelecto que aspira a apreendê-las em seu sentido. E segundo Robert Louis Stevenson, o esplêndido autor de A ilha do tesouro, todo livro é "in an intimate sense a circular letter to the friends of him who writes it", uma espécie de carta circular de seu autor a seus amigos, próximos ou distantes, conhecidos ou ignorados.

Mas aqui, e agora, farei propaganda de duas coisas deveras muito amadas: são elas a Europa e o indivíduo. Porém antes devo explicar-lhes algo sôbre esta aparente contradição minha, pois nem bem acabo de afirmar que não sou missionário passo a fazer propaganda . . . Trata-se do seguinte : a Europa é o homem que somos hoje, a vida que vivemos agora. E o indi-víduo, diz uma velha e egrégia frase, est ineffabile. . . Isto quer dizer que faremos a defesa de nossa vida verdadeira, que, pelo menos até agora, não creio que seja

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"la de arriba", segundo afirma a nossa grande e amada Santa.

Presenciamos hoje a agonia de uma centúria de coletivismos a entrarem, militantes, em nossas casas, para nos surpreenderem no setor mais íntimo de nossa morada. Foi a época, é a época, em que o grupo esmagou o átomo: na ciência, na filosofia, na arte, em nossa vida. O homem, ente singular — quase diria: singula-ríssimo — se pluralizou, tornou-se coletivo em sumo grau. E é precisamente devido a isso que em tais cir-cunstâncias, uma apologia do indivíduo soou ou soaria a algo perigosamente herético.

E não é por mera coincidência que nos dois países que nesta hora chegaram a ser os mais poderosos da terra — sinal dos tempos: em algo se parecem! — tal fato tenha alcançado seu maior volume, sua exagera-ção maior, isto é, aqui o individuum foi tragado por seu socius e pela ingênua idéia de um progresso coletivo, infinito e inevitável. Entretanto, para sermos justos, devemos assinalar uma capital diferença entre as duas nações: em uma delas a polícia não impede, armada, que se nade rio acima, isto é, pode-se ir contra a corrente, sem que isto signifique marcha para a morte.

Os dias que estão passando e que em parte ainda vivemos saturaram a alma do homem da coisa coletiva e do ambiente da colmeia ou comuna. O mundo havia perdido o ente em singular, mas agora, e de novo, ele o recupera para vida da esperança. Já começamos a ver que a verdade está do lado desta mônada não fe-

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chada — aliás: aberta e criadora — que é o indivíduo. E ele forma o centro do mundo, dizia Jesus Cristo, e daqui parte toda a metafísica, do homem e do cosmo, que fez Santo Agostinho.

Indivíduo em grego quer dizer átomo e em latim individuum significa o que não admite divisão, o que, dividido, deixa de ser o que era antes para ser outra coisa, ou é simplesmente o que não pode ser partido, por já ser a última redução admissível em um todo; e neste sentido o vocábulo faz referência ao singular, à coisa única. Há no mundo muitas pessoas chamadas Miguel, mas Miguel de Cervantes ou Miguel Ramos de Castro são únicos em suas peculiaridades, nas suas índoles, em suas grandezas e misérias, famosas ou anônimas. No mundo, o que tem mais individualidade possui também mais categoria, isto é, o que é mais singular é mais egrégio, já que é dono de qualidades mais próprias, seja uma obra de arte, um homem ou um vinho. Mas é bom dizer que de fato o indivíduo humano é o que tem mais alta hierarquia, singularidade e pecúlios íntimos e é preciso, além disso, que não se confunda singularidade com a coisa "exótica", "excên-trica" ou "rara".

A Europa, além de nos enviar seus artefatos e suas criações que são mensageiros da história do homem, seus tecidos, seus perfumes, seus livros, seu pensamento, suas máquinas de precisão e seus produtos agrícolas, sua ciência e sua técnica, seu vinho insuperável, sua música, sua arte jamais igualada, continua nos dizendo

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muitas coisas, apesar das más línguas (umas: mal informadas; outras: mal intencionadas...). Tais línguas, mais os missionários de idéias geniais, adotadores de chefes, e incorrigíveis filomitos, apresentam para que com eles trabalhemos as nossas vidas uns instrumentos carcomidos pelo tempo, que é perene fluir, dínamo que não cessa. A Europa foi sempre o Dionysios do mundo, a eterna inquieta, tristeza e esperança nossa, em per-manente procura de terras, mundos e "mares nunca dantes navegados". E aqui não faço referência a gritos de rua: a sua inquietude é a dos trágicos gregos, de seus grandes inventores e de seus artistas maravilhosos, é a de Pascal, de Dostoiewsky ou Kierkegaard, da nossa Ibéria, lusitana e espanhola, que, dona e possuída de enorme audácia, viajou pelo globo terráqueo a descobrir mundos novos, ou a de Hegel, seu último metafísico de grande porte; e pode ser também a do pacífico pai de extensa família chamada Johann Sebastian Bach, de prodigioso gênio e engenho para inventar novas belezas.

Todos nós sabemos bem que a invenção surge sempre de alguma espécie de agitação, mais absorção e transformação, que a criação artística nasce sempre de Sturm und Drané, da mais vária espécie, porém nunca deixa de ser Sturm und Drang; portanto, é o contrário do sonho e por isso não tem nenhum parentesco com o cismar da honrada e doméstica matrona.

Desejo fazer constar que este europeu desassossê-go a que fiz referência não tem nada que ver com as

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quarteladas, agitação do caudilho; e o caudilho é precisamente o nosso homem americano em estado bruto, o carneiro, adail do rebanho, mas carneiro sempre. A Europa, pelo contrário, mostra-nos hoje uma angústia não pessimista que anda à procura de justiça para os homens, mas sem assassinar o indivíduo, quer dizer: égalité avec liberte, igualdade social e econômica, mas com liberdade.

Na atualidade ela está realizando mui singulares experimentos para dar vira nuova a novas formas de vida e de convivência interindividual. Ela passou por uma dura experiência: o coletivismo morto ou agonizante dos últimos tempos e já começa a abandoná-lo. Se me permitirem, eu me arriscaria a profetizar um geral ressurgimento da mônada, do que é , do ente único em sua singularidade: na vida, na filosofia, na ciência, na arte. E não se esqueçam: repito que indivíduo em grego quer dizer r átomo. Quem tenha olhos, que veja, e, ouvidos, que escute. Não lhes conto fábulas, digo o que ouvi desse velho continente, terra do futuro, Novo Mundo do porvir e inventor da vida que conhecemos e vivemos hoje em fecunda crise.

Escutando bem as coisas destes dias, e, principalmente o mundo íntimo de nós que somos, fazemos e padecemos estes mesmos dias — tristes, mas, de certo modo, Deo gratia, com alguma ventura — poderemos dizer que o indivíduo, não o socius rebanho, mas o indi-viduum, anda ressurrecto. Aliás, alguém que foi sempre um rebelde de vanguarda, e por isso, precursor, em sua

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larga e fecunda vida, se recusava a ver no tu individuai um socius qualquer; daí que falasse com pertinente insistência no homem de carne e osso, isto é, num ente individuado por sua presença real, pelo seu corpo, sua carne e seu sangue, por sua vida, única e intransferível .

Individuum est ineffabile. . . Do ponto de vista lógico, gnosológico e ontológico o que é genuinamente singular nunca é predicado, jamais pode funcionar como predicativo. O singular, diz Aristóteles de forma soberba, é substantivo em sua constituição fundamental:

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ÍNDICE

O CINEMA COMO OBRA DE ARTE ............................... 3 ARISTÓTELES E A ONTOLOGIA DA REALIDADE

HUMANA ................................................................... 22 INDIVIDUUM EST INEFFABILE OU APOLOGIA DO

MUNDO EUROPEU ..................................................... 31

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — José .JANSEN ....................................

2 — ÁLVARO LINS, CAHPEAUX e THOMPSON .........................................

3 — PAULO RONAI .................................... 4 — CARLOS DRHUMMOND DE AN-

DRADE .................................................. 5 — Lúcio COSTA ..................................... 6 — LÚCIO COSTA .....................................

7 — PAULO MENDES CAMPOS .................. 8 — DJACIR MENESES .............................. 9 — H. VON KLEIST ................................

10 — ANTONIO CÂNDIDO .............................. 11 — LUÍS COSME ........................... . 12 — JOÃO CABRAL DE MELO ..................... 13 — OTÁVIO DE FARIA ............................... 14 — SANTA ROSA ...................................... 15 — SANTA ROSA ........ 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ....................... 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA ................... 18 — GILPERTO Freyre ............................... 19 — CLARISSE LISPECTOR 20 — MÁRIO PEDROSA ............ 21 — ROSÁRIO FUSCO ................................ 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS 23 — DANTE COSTA ................................... 24 — LEDO IVO ............ ......... 25 — EUGÊNIO GOMES ................................. 26 — Jost LINS DO RECO ............................ 27 — OTÁVIO TABQUINIO DE SOUSA 28 — LÚCIA MICUEL PEREIRA . .. 29 — ALEXANDRE PASSOS ............................. 20 — MANOEL DIÊGUES JÚNIOR 31 — CYRO DOS ANJOS ... 32 — OSWALDINO MARQUES ...................... ?3 — FERNANDO SABINO ............................ 34 — PERICLES MADUREIRA DE PINHO 35 — VITORINO NEMÉSIO ............... 36 — WILLY LEWIN ...................................

A máscara no culto, no teatro na tradição

José Lins do Rego Escola de Tradutores

Viola de Bolso Arquitetura Brasileira Considerações sobre a Arte Contemporânea Forma e expressão do Soneto Formação profissional do Advogado Teatro de Marionetes Monte Cristo, ou da Vingança Música e Tempo Miro Significação do Far-West Roteiro de Arte Teatro. Realidade Mágica Teatro de Cervantes Isabel a do Bom Gosto José de Alencar Alguns Contos Panorama da Pintura Moderna Introdução a Experiência Estética Realidade e Ficção O Sensualismo Alimentar Lição de Mário de Andrade O Romancista e o Ventriloquo Homens. Seres e Coisas De várias Províncias Cinqüenta Anos de Literatura A Imprensa no Período Colonial Etnias e Culturas no Brasil Explorações no Tempo O poliedro e a rosa Lugares comuns Notas à martrem do problema agrario Portugal e o Brasil na Hlsti'la Ensaios- de Circunstâncias

(Continua na 3o pág.)

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OLÍVIO MONTENEGRO

E N S A I O S

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO

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FUNÇÃO SOCIAL DA ARTE

MA boa corrente da sociologia moderna cada vez mais afirma a tendência para absorver o conceito das belas-artes no conceito das artes práticas e reduzir a um mínimo de expansão a liberdade do homem no domínio mesmo onde essa liberdade se impõe mais, que é o da ficção.

A virtude da arte é como se já não estivesse mais na sua originalidade de expressão, mas na sua utilidade; ou como se já não estivesse na pura beleza, mas na beleza atual.

Dizendo Çue por esse conceito exageradamente materialista de arte e beleza atual prefere à beleza pura, não é que vamos contrapor aqui uma à outra. Beleza pura entenda-se não no sentido especulativo ou místico da palavra, mas da beleza que exprime o que é real e mais dramaticamente vivo das coisas — e esta é sempre atual ainda que não vise à atualidade. O que nunca acontece com a arte intencional, feita de propósito para um momento, fotogràficamente exata mas no fundo arte documentária e pragmática, predisposta como qualquer ciência ao contágio de todos os fatos.

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A tendencia de quase tôda a literatura e de todas as artes plásticas modernas é para aumentar o prestigio, a influencia, o encanto sem mistério das reali-2ações mecânicas. Chega a se ter a impressão, mesmo entre povos de tradição do mais nobre idealismo, de que a arte vai sendo dos primeiros grandes gêneros de cultura a dar razão ao materialismo histórico, no que tem esse materialismo de mais rígidamente mecânico tanto o fenômeno político-social dos nossos dias parece ir esgotando a imaginação dos autores tôda a sua energia criadora, a sua liberdade de ficção, o seu gosto poético de aventura, até fazer dessa imaginação um como instinto servil.

Sempre que o Estado, em todas as funções da vida social, procura se substituir ao indivíduo, en-chendo-se de uma consciência de dever que transcende e absorve a de todos os seus membros, a arte é forçada a entrar em quadros, a tingir-se de cores patrióticas, a domesticar-se no serviço público. Isto desde Esparta, a cidade mais totalitária de tôda a antigüidade grega. Rara a cidade grega, mesmo a de vida menos brilhante, que não tivesse dado uma grande figura na filosofia, nas chamadas belas-artes, ou nas artes plásticas. A pouco civilizada Macedônia deu uma das maiores, que foi Aristóteles; Esparta não deu nenhuma, com todos os seus cantos frigios e as suas melodias dóricas. Deu bravos soldados como a Alemanha na-zista, mas nada de grande gênio literário ou artístico.

Para certos exaltados do sociologismo moderno, os que gritam por uma compreensão nova e mais realista das coisas, a teoria de uma arte desinteressada,

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sem alianças preconcebidas nem com a ciência nem com a moral, tem algo de uma cultura de estufa, luxuosa e inútil, e que repugnaria ao seu modo superior e fecundo de ver as coisas.

Imaginam as artes superiores como sujeitas, no tempo e no espaço, às mesmas e variáveis contigências das artes puramente técnicas, e o seu avanço como o da ciência, fazendo-se no plano progressivo da linha reta — isto é, menos intuitiva do que logicamente, menos por formas de criação do que por formas de sucessão.

Entre os modernos, foi Guyau dos primeiros a arquitetar uma sociologia estética como já se havia arquitetado uma sociologia educacional, uma sociologia econômica, uma sociologia religiosa, etc.

Ê no Problémes Esthetiques que ele conjuga a arte com a ação, com o desejo, com a paixão. Como se a paixão não fosse um inimigo natural da arte. Não fosse um elemento parcial por natureza. Parcial no sentido do seu exclusivismo, da sua visão obstinada de detalhe, da sua tendência mórbida para sacrificar o universal ao particular. As formas em que ela se encarna impressionam pela sua exuberância, a sua ênfase ardente; pela intenção melodramática. Por isto mesmo, os gêneros de literatura onde a paixão melhor imita os impulsos da sensibilidade artística são de uma ordem inferior, e mais propriamente formas de ação do que de arte: a oratória e o panfleto.

James Joyce, com a sua autoridade de mestre, em "Portrait of the artist as a young man", confessa

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que "a emoção estética está acima de todo o desejo e de todo o ódio".

Por outro lado, não há, ao que parece, nenhum exagero na observação de Ortega Y Gasset, quando, replicando à tese de Guyau, escreve que "os efeitos sociais da arte são uma coisa tão extrínseca, tão remota da essência estética, que não se sabe como, partindo deles, se possa penetrar na intimidade dos estilos".

É que na realidade a criação artística, como diz André Gide em "Pretexte", é um esforço gratuito, sem fins determinadamente úteis que sacrifiquem ou limitem o seu poder de identificar a verdade com o belo.

Falar em belo artístico bem sei que é falar numa palavra de sentido esquivo, vago, difícil. Mas o maior conflito entre os doutrinadores de estética vem precisamente da ausência de uma terminologia com o valor matemático dos números, única que parece satisfazer o gosto científico da definição dos ortodoxos em matéria de lógica, dos que fazem da razão dialética o caminho para todas as verdades. Os menos rígidos, porém, vêm nitidamente o belo artístico em todos os símbolos de vida que satisfazem por si mesmo, pela sua expressiva unidade e harmonia de representação, independente de qualquer demonstração ou de qualquer prova.

A arte é uma forma de melhorar e desenvolver a natureza. E um dos seus efeitos extraordinários consiste justamente em recriar a vida sob formas ideais

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e que não se contradizem nas suas partes; em em prestar a maior verossimilhança ao irreal — enfim, compensar a realidade comum de tudo o que ela não pode naturalmente dar ao homem em liberdade de espírito e de sentimento.

Não há esforço por isto mais doce do que o esforço do homem pela sua arte, para realizar-se a si mesmo em símbolos de um valor universal. Nada que se compare à volúpia do gênio criador, com o poder de se multiplicar pela imaginação em todos os homens. É o que explica que o trabalho do artista, por mais paciente e laborioso, não seja nunca um fardo, e sempre um gosto. Porque "só na ficção, no ato gratuito, para dizer como Pierre Quint, o homem acha enfim a sua sinceridade, a sua liberdade, a sua disponibilidade".

Aliás, sobre este velho tema o que mais espanta é o contraste entre a opinião dos grandes artistas, dos mais genialmente dotados, e a opinião dos homens de espírito científico, dos legisladores da ordem casual e lógica de todas as coisas. Assim é que não só Coleridge, em "Lectures on Shakespeare", mas Wilde em "Intentions", Walter Pater em "Miscellaneous", Conventry Patmore em "Principle Religio", William Black em "Essays", Baudelaire em "Art Romantique", todos são unânimes em marcar o caráter desinteressado da arte.

Desses autores, entretanto, poder-se-á dizer que já se acham muito distantes do nosso tempo, e que tinham da arte uma compreensão quase mística. Um grupo de estetas.

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as suas vinganças para se darem inteiramente aos seus concursos de poesia na célebre feira de Ocash.

Mas nada que se compare à íntima comunhão fácil de observar entre os povos às vezes mais distantes pela raça, pela língua, pelos costumes, e ainda pela sua posição geográfica, através unicamente da sua arte e da sua literatura. A solidariedade criada pela coincidência dos mesmos interesses materiais é sempre uma solidariedade de emergência, e varia na medida do egoísmo de cada um; é uma convenção mais do que uma solidariedade. Ela não fortalece essa ''consciência da espécie" de que fala Giddings, o principal centro de gravitação de toda a comunhão humana. É preciso um estado de disponibilidade interior — o homem livre dos particularismos intratáveis gerados pelo seu egoísmo — para que o jogo das suas afinidades mais secretas se exerça livremente.

Assim é que, se pelo sangue e por muitas das tradições da nossa história somos mais particularmente da comunidade dos povos latinos, pelo espírito somos da comunidade de todos os povos, e não apenas dos povos contemporâneos, mas dos mais distantes no tempo, e que sobrevivem eternamente pelo seu espírito e pela sua arte.

Na sua origem, toda arte, como toda ciência, tem um caráter empírico. E nessa fase o pensamento místico, a lógica bivalente, que entre os primitivos une num só corpo de representação o real e o irreal, o vivo e o imaginário, quando começa a especificar-se, o elemento da natureza é que predomina sobre os de qualquer idealização. Predomina o elemento que mais

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lhes enche os sentidos. O sentido visual, sobretudo. Tem razão Max Muller quando fala de uma "mentalidade visual" no primitivo, e que se compraz na representação de figuras, de gestos, do que existe de mais materialmente expressivo das coisas.

Não é somente o prurido sensual, o gosto do sexo que logo cedo cria no homem o amor pela dança. Há uma intenção menos grosseira, uma voluptuosidade menos animal que leva o primitivo a graduar numa forma lírica os seus movimentos. Que o levam à exaltação artística do próprio corpo.

De certo modo, a dança é como uma antecipação dos primeiros desenhos ou das primeiras esculturas. Mesmo a dança guerreira. Mesmo a dança religiosa dos grupos primitivos. Ela não significa apenas uma glorificação do heroísmo ou da fé, mas também uma glorificação do corpo.

Enfim, o que todos observamos na arte primitiva é a sua invariável dependência em relação ao que existe de mais exterior e sensível da natureza.

O mundo visto em termos de superfície e nunca em termos de profundidade era o mundo do homem arqueolítico. Por isto, os seus primeiros desenhos definem-se pelo mesmo traço balbuciante dos desenhos infantis, repetindo formas visuais de um sentido muitas vezes obscuro, que só com o tempo se avivam lü-cidamente — com um relevo de expressão e uma certeza de movimentos que neles como se antecipa a arte de um grande vigor escultural dos primeiros povos civilizados.

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As figuras de animais foram sempre os modelos da predileção do homem das cavernas. Provavelmente pela maior impressão de mistério que à imaginação do primitivo devia fazer o animal sobre os demais elementos da criação. De um lado, o tamanho e a força desproporcionais em relação ao homem de um mamute, um rinocerante, um elefante; de outro lado, a agilidade dos felinos como se uma força oculta animasse os seus movimentos, uma força invisível e magicamente poderosa. Isto para não falar na crença totêmica que em toda a parte fazia de certos animais o ancestral do homem.

É possível que só por deficiência técnica, pela falta de instrumentos adequados, o desenho tivesse precedido à escultura; mas o fato é que os desenhos achados nas paredes das cavernas, e como os conhecemos nas suas melhores reproduções, se destacam pela sua linha escultural, por um traço sólido e vivo, como dos altos relevos. A ausência neles de grandes conjuntos — dos conjuntos picturais que supõem já uma experiência subjetiva das coisas, ou uma imaginação mais conceptiva — é compensada pelo relevo e nitidez do detalhe.

Não se pode negar, principalmente nas artes plásticas, uma influência mais ativa do meio físico e social, mas sempre que essa influência não passa pela refração de uma idéia exerce-se cruamente, pelos sentidos — o que na arte devia ser criação fica sendo imitação. É este aliás o traço por onde mais se distingue a arte do primitivo da arte do civilizado.

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Enquanto os primitivos, por exemplo, foram na sua arte sempre fiéis à representação zoomórfica, os gregos, o mais civilizado dos povos antigos, foram fiéis à representação humana. Mas estes já trazendo para a sua arte uma experiência intelectual que não podia ter o primitivo. Assim que a arte grega como a arte de renascença não valem apenas pela sua significação exterior, pela sua riqueza plástica, pela sua ve-rossimilhança, mas pelas sugestões de espírito que a fortalecem de uma vida transcendental e nova. De outro modo, não seria arte no sentido propriamente criador da palavra. Seria ainda natureza. Uma natureza de segunda mão.

Não é fácil uma classificação rigorosa dos vários gêneros de arte de acordo com o desenvolvimento cultural do homem, a menos que se descobrisse uma constante de progresso na vida do espírito como há na vida material. E que o equipamento mental do indivíduo, os seus atributos de inteligência e de imaginação fossem menos um dom natural do que uma aquisição da vida exterior. Ainda neste caso, haveria uma subordinação necessária da arte à ciência, pelo muito que a ciência aumenta e refaz da experiência humana de todas as coisas.

Mas, se não é provável esse paralelismo lógico entre o desenvolvimento mental e os vários gêneros de arte; se não há esse acordo, esse doce equilíbrio, esse embalado crescimento da arte e da inteligência, há entretanto estados gerais de espírito que favorecem a preponderância de um certo gênero de arte em detrimento de outro, que criam preferências artísticas de

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um sentido e um gosto especiais. Foi o que aconteceu nas sociedades totêmicas primitivas com o desenvolvimento do desenho ou da escultura de animais, e na Grécia com a preponderância da arte plástica que melhor poderia exprimir a beleza e a força do homem. Apesar de toda a experiência que tinham os gregos da civilização egípcia, não foi a arquitetura a sua arte principal: foi a escultura.

É que nenhuma arte poderia realizar em termos mais concretos a mística do homem que dominava o pensamento grego — o homem tido como a medida de todas as coisas — do que a escultura, arte singularmente expressiva do individual, do único. E' uma arte sem os recursos das artes românticas — da poesia, do drama, da música, da pintura — sem côr, sem som, sem movimento aparente. Sem o aparato de nenhuma mise-en-scene; arte orgulhosamente econômica, e feita para exprimir caracteres e não situações. Com tudo isto, nenhuma arte mais própria para fixar essa não sei que virtude divina com que os gregos exaltavam a força e a beleza do corpo humano. Os gre-gos foram mais ortodoxos do que os artistas da renascença no seu humanismo. Deuses e homens eram tudo como de uma mesma raça. Os deuses da sua mitologia não passando de uma concepção mais heróica e mais poética dos homens das suas orquestras e dos seus ginásios.

Por tudo o que se sabe da escultura grega, a impressão dominante é que todas as demais artes da Grécia não foram, em última análise, senão variantes

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dessa arte principal. Foram como o seu desdobramento em outras formas, formas de um sentido mais extenso e de um simbolismo mais numeroso, no fundo, porém, fiéis à reprodução escultural. Mesmo a arquitetura, por mais paradoxal que pareça. Assim que os seus monumentos mais célebres, que eram os templos, não se distinguiam apenas pela sua simplicidade e economia de linhas, mas também pelo quase nada das suas dimensões. Não eram templos para fiéis e sacerdotes. Eram como pedestais.

Só as divindades políades se abrigavam neles. Por outro lado, que material poderia convir mais a uma

arte ansiosa da glorificação do homem do que o mármore e o bronze ? Não somente pela sua dureza e resistência que o tempo não destrói, mas pelas possibilidades plásticas que ele encerra. Como nenhuma outra arte, a escultura reproduz o homem com todos os seus relevos físicos, todos os seus detalhes de músculos e todas as flexões do corpo. E' uma matéria, o mármore e o bronze, mais bruta do que a matéria que em regra serve a todas as outras artes, porém, refeita pela mão do artista, ganha uma força mais concentrada de expressão, mais assimilativa de certos momentos divinos da alma como, por exemplo, os que refletem o estado de contemplação e de repouso. Nela imprimem-se melhor as energias intensas vividas profundamente e silenciosamente pelo homem.

Outra fase da história em que o espírito humanista de uma época se reflete mais pela escultura do que por qualquer outra arte foi a da Renascença.

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Rigorosamente falando, não há inconveniente na palavra Renascença como significando um movimento de cultura gerado da antiga civilização greco-romana, tanto o sentimento humanístico dos artistas da renascença viveu as mesmas exaltações do humanismo pagão da idade antiga. O pensamento cristão que refluiu da Idade Média perde aqui a sua ardência mística, a sua transcendência escolástica, o seu fundo de ascetismo, e humaniza-se. Pouco importa se, com um ou outro Savanarola, o pensamento cristão procure absorver misticamente o homem em Deus. No terreno das artes e das letras, a ascendência é sempre do homem e da natureza.

Não admira daí que a arte preponderante da Renascença tenha sido à maneira dos gregos, a escultura. Apenas enquanto os gregos procuravam recriar o homem à imagem dos seus deuses pagãos, na Renascença a tendência foi para humanizar Deus, para representar as cenas e os personagens da história sa-grada pela forma e no gosto da história profana. E nenhum artista parece-nos ter sido então mais representativo dessa tendência do que Miguel Ângelo — ter fundido com melhor arte o céu e a terra. A sua pintura não menos do que a de todos os grandes mestres da Renascença foi como uma variante da arte es-cultural, pela enorme atenção dada ao detalhe anatô-mico, a certas particularidades da forma, àqueles relevos físicos individuais mais expressivos de um caráter do que de uma situação.

Nos quadros que representam conjuntos de cena, rara a figura de que não sobressai com vigor imprevisto um traço particular e típico, que a torna incon-

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fundível no meio das outras. Sente-se em cada uma delas um valor próprio, e que, tomada a parte, e distante das outras, nada viria a perder da sua intensidade e precisão de efeito.

Não menos admirável dessa época é a penetração quase mágica com que o artista acaba por combinar o sentimento da vida sobrenatural com o desta vida, com que consegue adormecer o sensual no espiritual — as possibilidades de um prazer inocente e puro que abre ao mundo da carne; a inspirada confiança com que junta na mesma fé Deus e o homem. Já não falamos das suas Madonas pintadas quase sempre sobre modelos vivos e contemporâneos do artista, e em que a Virgem, conservando toda a car-nação e a beleza desses modelos, não fica menos Virgem. Mas em retratos que não são de Madonas: a Gio-conda por exemplo. Com ser um quadro profano, não se deixa menos impregnar desse mistério, ou desse duplo sentido de vida inseparável da imaginação de todos os grandes artistas da Renascença.

A escultura e a pintura foram bem as artes principais das civilizações pagas. Entre os povos, ao contrário, em que o sentimento da vida sobrenatural dominou sobre o da vida terrena, a arquitetura toma sempre o primeiro lugar na hierarquia das artes plásticas. Assim foi entre os egípcios antigamente, e foi também entre os árabes, e na Europa Medieval.

Somente em um sentido pode dizer-se da arquitetura que é uma arte quase rival das artes mais extensas e fluidas como a poesia e a música — quando pretende interpretar fatos da vida subjetiva, e pro-

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cura unir o infinito da alma ao finito das coisa3. Dá-se apenas que nesse esforço ambicioso de expressão a arquitetura não se apresenta sozinha, mas cercada de outras artes que a completam: da escultura e da pintura, artes que lhe são consanguíneas, tanto como da própria música ou da poesia em forma de cânticos, como na arquitetura religiosa. A música e a poesia sagrada fundem-se tão bem com a arquitetura religiosa que facilmente a transformam na imaginação dos fiéis em um todo uníssono e vibrante. Intensificam o seu extraordinário simbolismo de formas e de linhas.

Mas, apesar de todo o seu luxo monumental de expressão, no sentido do espírito é uma arte mais pobre do que as outras. De menos sugestão.

Por isto que é uma arte necessariamente limitada, dirigida sempre no sentido de uma utilidade. E é o que explica que as artes mais expansivas, como a poesia, a música e a pintura, quando aderem à arquitetura, se limitam igualmente. Ficam solidárias com o interesse ou de ordem social e prática ou de ordem religiosa que em regra subsiste por trás do plano arquitetural.

Dos estilos mais conhecidos de arquitetura talvez tivesse sido o barroco o mais livre e sôlío, o mais romântico no seu indeterminismo de linhas e de figuras. Embora sem as qualidades dinâmicas do estilo gótico que o precedeu.

Não foi em vão o nome de "Bíblias do Povo", dado às igrejas góticas da Idade Média. Este nome

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em uma forma sensível, plàsticamente sensível, os mistérios das sagradas escrituras. Bem intenso é o simbo-lismo da arte gótica com os seus arcos em ponta, as suas abóbadas fugidias, as suas altas e finas colunas, todas as suas linhas sempre na direção do alto, acompanhando com uma ligeireza aérea o elan das suas torres, tudo num movimento unânime e orquestral como uma grande e numerosa prece.

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EÇA DE QUEIROZ NOVELISTA

HA uma diferença entre novela e romance que vem de longe, do tempo de Bocácio. Foi o autor do "Decamerão" dos primeiros a empregar a palavra "Novela" para as obras de ficção inspiradas em fatos ou cenas da vida exterior.

De maneira que se ajusta perfeitamente com a tradição, o que, a esse respeito, e no seu livro "Progress cf Romance", de 1875, escrevia Clara Reeve. A novela ela a tinha como "uma pintura da vida real, enquanto o romance, em uma mais alta e brilhante linguagem, descreve o que nunca aconteceu, nem é fácil acontecer".

Em outras palavras diríamos: novela quando predomina a representação do que é materialmente sensível. Isto de um modo geral, bem se entende: porque, a rigor, é o seu tanto sutil e deslizante a delimitação das duas fronteiras — muita novela podendo se graduar em romance, e muito romance podendo se confundir com a novela, como "Chartreuse du Parme", no primeiro caso, o "O Jogador" de Dostoievski, ou o "Reflux" de Stevenson, no último, sem falar de romances e novelas de Balzac que se entrançam em tanta parte.

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O que, porém, não se põe em dúvida é a tendência para se sentir muito mais o romance do que a novela naquelas obras de ficção cujo enredo tem menos o caráter de uma reprodução do que de uma criação — obras que embora refletindo formas de uma concepção puramente imaginária, adquirem uma côr mais verídica do que a da própria realidade.

Henri Massis tem razão, quando em "Reflexions sur 1'art du roman" diz : "Si Balzac n'avait fait que copier ce qui avait été réellement, le roman, comme tel, n'existerait même pas", tanto para ele "o romancista é o homem que recebeu o dom de criar a vida pela imaginação".

Ainda pode-se por outro lado distinguir no romance maior unidade de estrutura, uma subordinação íntima e profunda, visceralmente feita, de todas as suas partes a uma nova dinâmica de vida. E também maior afinidade dele com a poesia, fácil de apontar na tendência para explorar muitas vezes um mundo supra-sensível, onde as idéias pelo seu fluido poder de representação pode tomar as formas mais plásticas.

Não exagera Arthur Symons dizendo a propósito de Balzac que "há um pensamento no fundo de toda a sua obra, todo um sistema de idéias, em que filosofia não é senão outra forma de poesia; e desta raiz de idéia é que brotou a "Comédia Humana".

O romance como perderia a sua verdadeira significação, a significação que a própria palavra sugere de uma aventura da imaginação, se a sua zona de experiência não se estendesse muito mais à realidade

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possível do que à realidade atual; se não viesse a ser antes uma lúcida expressão das formas imaturas, ou das formas larvarias de vida que se geram no mistério do subconsciente, para não se evadirem senão pela imaginação, pelo sonho.

Na novela a fantasia tem a bem dizer o papel de um vidro de aumento e de um prisma ao mesmo tempo: serve para alargar, dar uma variação e uma côr mais sugestiva e mais luminosa aos fatos da vida real. Não refaz porém essa vida em todas as misteriosas possibilidades com que a enriquece a imaginação do romancista.

Não a completa pela idéia em tudo o que excede à representação material do fato. Contudo, pelas estranhas e mesmo poéticas sugestões de que muitas vêzes a novela é capaz, nada mais fácil do que confundi-la com o romance.

Na língua portuguesa foi Eça de Queiroz quem melhor encarnou o gênio do novelista. Romântico na forma, ninguém pelo espírito mais realista do que ele. Eça de Queiroz à maneira de Teófilo Gauthier foi um escritor para quem o mundo exterior sempre existiu. E existiu não apenas como forma e côr. Cenográfica-mente. Mas como vontade e ação. Como realidade psicológica e social.

Ver foi a grande faculdade de Eça de Queiroz. Ver como quem ausculta, esmerilha, disseca; ver através das aparências. Ele bem que em muita parte se deixa adivinhar em Fradique, e de Fradique uma das virtudes que assinala com mais gosto é precisamente

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"o modo que tinha de pousar lentamente os olhos e detalhar em silêncio".

Não é, porém, diga-se com verdade, ver em detalhe, ver como quem decompõe, o melhor meio de simpatizar com o real, de surpreender o real no que ele porventura tem de mais profundo e diverso, de mais telúrico e divino — no grande mistério e na grande poesia dos seus contrastes. A visão persistente do detalhe leva sempre a certo pessimismo de ima-ginação e de idéia, a uma involuntária atitude de combate e de crítica, a um minucioso luxo de análise, que só o instinto dramático muito forte para produzir um interesse romântico vivo e duradouro. O interesse romântico que ainda hoje tem a obra de Eça de Queiroz, conservando-se, o que é admirável, em muita parte, cem o mesmo frescor e a novidade dos primeiros dias.

O lado talvez por onde Eça de Queiroz parece se aproximar mais da escola naturalista é o da sua tendência para valorizar o detalhe, para exagerá-lo, multiplicá-lo, sublimá-lo em pitoresco. Daí tanto se acusar nos seus livros, naqueles mesmos de uma construção mais sólida e viva, como o "Primo Basílio", certa interferência de planos fazendo com que figuras e fatos de valor secundário na concepção do romance, pareçam ganhar mais evidência do que os verdadeiramente centrais, os que deviam ser da primeira focalização. Foi a crítica em que a propósito do "Primo Basílio" insistiu Machado de Assis, ainda que com mais acridade do que era de esperar mesmo de um juiz severo. Mas era a crítica em que haveriam de insistir todos os que julgam o detalhe pelo detalhe, e

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não consideram o romance senão no seu sentido total, na sua visão de conjunto, como uma unidade indivisível .

A verdade, porém, é que parecendo imitar do naturalismo o gosto pela exageração do detalhe, esse gosto em Eça de Queiroz obedece a motivos psicológicos que não se encontram com os da maioria dos autores da escola naturalista, Balzac inclusive. Nestes a insistência pela reprodução minuciosa, atômica, es-crupulosamente discriminadora de particularidades da natureza e do homem, obedece a uma razão científica — a de tudo explicar, de dar a natureza como a natureza é. Um excesso este de objetivismo que no fundo constitui uma violação às leis da arte.

Quando na obra de ficção exagera-se o minúsculo ou o acidental pelo excesso de análise, e atrás de refazer a natureza em modelos que seriam de um interesse mais científico do que artístico, a observação, por menos que pareça, perde sempre aí o melhor da sua elasticidade para ficar em relação à liberdade de ver e sentir, como a idéia fixa está sempre em relação à li-berdade de conhecer e julgar.

O caso de Eça de Queiroz, entretanto, é diferente. Na sua preocupação do detalhe não se descobre o es-peciosismo científico dos naturalistas como Zola, ou como Huysmans, e mesmo como Flaubert. E por isto o que nele perde a observação em efeito minuciosamente fotográfico de representação, ganha em intensidade e colorido de visão. Não se endurece a sua observação nas análises maníacas com que entre aquê-

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les outros romancistas é comum se interromper o prp-cesso de associação e de agregação de imagens, processo este em que mais se apura a fantasia do autor do 'Os Maias".

Impõe-se a distinção entre fantasia e imaginação falando-se de um autor como Eça de Queiroz, em quem o maior poder foi sempre o de evocar, reproduzir, pintar, e não propriamente o de criar e descobrir. O da fantasia portanto e não o da imaginação. Não importa que muitos autores queiram atribuir maiores virtudes à fantasia do que à imaginação. Preferimos pensar como Coleridge, o autor da "Biografia Literária", e para quem a faculdade de facilmente evocar e combinar cabe à fantasia. E pela fantasia. diga-se ainda uma vez, é que melhor se identifica o gênio do novelista, daquele que, por muito que diferencie ou mude em novas aparências o quadro da realidade comum, não a desenvolve nem a enriquece dos quadros que se vêem como uma descoberta, e vão alguma coisa acrescentar à natureza, investindo-se desse modo os grandes artistas num como poder divinamente criador.

Ainda desse maior vigor da fantasia do que da imaginação o ar de novela que domina em toda a obra de Eça, na sua obra de ficção tanto como nas suas crônicas, nos seus artigos de polêmica, nos seus ensaios e até nas suas cartas íntimas. Em tudo o nervo e o arranque da novela. A sua verdadeira estréia, quando mais profundamente e nitidamente se exprimem aquelas qualidades de espírito que com o tempo não se fizeram nele senão mais fortes e mais auda-

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ciosas, data menos das "Prosas Bárbaras" do que do "O mistério da estrada de Cintra", a sua primeira novela. Nos melhores artigos do seu volume das "Farpas", como do volume das "Notas Contemporâneas", das "Cartas da Inglaterra", etc, o que neles surpreende e encanta mais o leitor, não é de certo o pensamento doutrinário, nem o senso histórico ou poético que de vez em quando os enriquece superiormente; mas é o vivo e dramático das suas imagens; a gesticulação, o movimento, a força, o relevo pictural que de repente toma toda a sua crítica de coisas e fato3 do tempo. E o traço dominante dessa crítica nunca deixando de ser o da caricatura. Aliás é precisamente na caricatura que a arte de escrever de Eça de Queiroz parece mais se misturar com a arte do desenhista, onde o seu poder de representar e dizer ganha os maiores e mais físicos relevos de expressão.

Não precisa o leitor lembrar-se das cenas de uma verve faiscante dos seus romances; basta evocar 03 artigos contra Pinheiro Chagas, a carta a Mariano Fina, das "Notas Contemporâneas", a carta a Camilo Castelo Branco, o perfil do Pacheco na "Correspondência de Fradique".

Nenhum escritor da língua portuguesa de espírito mais observador e crítico do que este autor de eternas farpas. Mas, talvez, seja menos entre os Que-vedos da sua península do que entre certos ironistas ingleses onde ele se encontre mais em família — e não tanto entre aqueles autores ingleses que mais exaltou, e de cuja influência em si mesmo falou mais alto, os Thackeray e os Dickens, mas entre os Fielding e os

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Sinollet. Sobretudo Smollet. Tobias Smollet, do século 18 devera ter sido de um delicioso encontro para ele. Pelo seu travo pessimista de um tão amargo quei-xume na figura de Matthew Bramble, e a sua ironia mordente, o fio agudo do seu sarcasmo. Em "Hum-phreu Clinker", Smollet passa revista a Londres e a outras cidades da Inglaterra com o mesmo rigor de análise, e o mesmo espírito feroz de Eça nos seus romances, ou mesmo em "Fradique". E, de certo foram as "Aventuras de um átomo", de Tobias Smollet, que haveria de inspirar as "Memórias de um átomo", de João da Ega.

Não admira o concurso de tantas e variadas influências sôbre o espírito de Eça de Queiroz: ele foi sempre um autor altamente receptivo, como todos os autores em quem a sensação do mundo exterior domina sôbre todas as outras, de uma imaginação antes visual do que conceptiva. Tudo o que evoque ainda que remotamente a paisagem do seu tempo e do seu meio, e por aqueles modos irônicos de expressão que tanto o seduzem, acaba por se cravar nele com a persistência e a fecundidade de um grande germe. A sua vocação artística, o seu contínuo e sempre vivo espírito de análise e de crítica é que ia naturalmente salvá-lo de toda a imitação servil, de influências que fossem como uma infecção.

Assim é que o seu espírito fazendo por muitos lados lembrar o daqueles autores ingleses mais da sua predileção, exerce-se entretanto com mais sarcasmo e uma verve mais estridente, uma verve que não raro chega ao delírio do cômico. O riso foi a arma de cri-

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tica de que mais se serviu Eça de Queiroz, e que ele próprio julgava de uma força de demolição inestimável. Daí dizer, a propósito de Ramalho Ortigão: "O riso é a mais antiga e ainda a mais terrível forma de crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta de uma instituição e a instituição alui-se."

Embora Dickens tivesse sido um dos maiores fervores de sua vida, e lhe parecesse "mais que divino". há todavia uma infiltração de otimismo na crítica do autor de "Martin Chuzzlewit", que lhe alarga a ironia em rasgos do mais inocente e franco humor; e nos seus piores sarcasmos, em livros como o "Dombey and Son", ainda sente-se um sopro de humanitarismo que lhes tira todo o laivo de sangue. Dickens era sentimental. O seu idealismo tinha inspirações de uma doçura que não se encontra na obra do autor dos "Maias".

Uma não sei que premeditação de vingança claramente transparece da veia cômica de Eça de Queiroz, e o afasta da linha dos grandes humoristas, dos que no seu humor excluem a caricatura e o riso em forma de vaia, excluem o cômico agressivo, combatente, de propósito para destruir — o humor de um Butler, de um Fielding ou de um Sterne para citar exemplos clássicos; ou, voltando para nós mesmos, do autor de "Braz Cubas". Estes não são revolucionários à maneira da maioria dos ironistas, não fazem do ridículo uma arma pessoal de combate ou de defesa; não riem nunca, e sorriem apenas às vezes com um certo travo, mas que não vem tanto do espetáculo da desolação alheia, como da própria e íntima desolação.

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Só por isto diz-se do humor que é uma forma de filosofia a que aderem os céticos muito mais do que os pessimistas. O grotesco e o trágico, o ridículo e o sublime podem se encontrar perfeitamente e harmonicamente na vida aos olhos de todo o bom humorista. Daí o ar desinteressado da sua crítica. Quase inumano. O cômico e o sério, o aparente e o real, o feio e o gra-cioso, tudo se apresenta a ele como têrmos de uma só equação — a da vida.

Não há parti-pris no grande "humour" : e ninguém por isto, como o humorista, para conservar nas situações mais difíceis ou mais perigosas a sua superioridade de espectador; e, ao contrário do ironista, a sua crítica vem mais de um impulso da idéia do que de um impulso do sentimento. Donde podermos dizer, sem cair em exagero, que os escritores humoristas são antes da família dos contemplativos, homens de introspecção, que partem da observação de si mesmos para a observação do mundo exterior. É o homem que se observa continuamente, capaz de achar-se igual aos outros, com os mesmos e psicológicos erros de vida, e que não se interessa com menos fleugma pelas suas contradições, e pelas deformidades do seu amor-próprio e da sua vaidade do que pelas dos outros. A vida como lhe pareceria menos vida sem a lei desses contrastes.

Com o ironista porém o plano de perspectiva é diferente, diferente a sua atitude em face do mundo. Não está pròpriamente na atitude de quem observa para o sutil prazer de descobrir, mas de quem observa para a satânica alegria de condenar. De fazer justiça,

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justiça social. "Achar o cômico (e quem o diz ainda é o próprio Eça no artigo sôbre Ramalho Ortigão) numa má instituição ou num mau costume, é pô-los em contradição com o bom senso e o bom gosto, anulá-los." Mas corno o bom senso e o bom gosto são tudo o que há de mais subjetivo no indivíduo, facilmente se transfiguram em formas de um mórbido e exigente idealismo. E tudo, depois, que não corresponde aos modelos dessa criação ideal, excita a indignação ou o riso. Não conservam, especialmente os pessimistas, em face dos contrastes da vida psicológica ou da vida social a fleugma ou aquela superior indi-ferença do homem de humor : são, ao contrário de um rigor quase pedagógico nos seus julgamentos moralistas. E daí, quando bem dotados de imaginação ou de uma rica fantasia, se lançarem àquele gênero de ficção onde as leis do bom gosto e do bom senso, criam um relevo mais perverso — o romance de crítica de costumes.

Em carta de 1873, a Pinheiro Chagas, Eça de Queiroz exprime com toda a sinceridade a sua ambição de escritor, dizendo: "A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa tal qual a fez o Constitucionalismo de 1830, e mostrar-lhes como num espelho, que triste país eles formam — eles e elas (referindo-se aqui aos homens e às mulheres típicas de Portugal). É o meu fim nas "Cenas da Vida Portuguesa". É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola — e com todo o respeito pelas instituições, as que são de origem eterna destruir as falsas interpretações e

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falsas realizações que lhes dá uma sociedade podre. Não lhe parece que um tal trabalho é justo?"

O plano da "Comédia Humana" de Balzac, com-preendendo "Cenas da Vida Privada", "Cenas da Vida da Província", "Cenas da Vida Parisiense", "Cenas da Vida do Campo", "Estudos Filosóficos", etc., e que havia de ter pesado naquela inspiração realista de Eça, é, bem se vê, incomparavelmente mais vasto, arquitetônico, e de um esforço mais criador. O plano entretanto de mais afinação com o temperamento do autor de "Os Maias", era mesmo o de uma história ao vivo da sociedade portuguesa, mas que ele não reali-zou, da mesma maneira que não realizou Zola a sua ambicionada história natural de uma família sob o segundo império, a dos Rougon-Macquard. O espírito apaixonadamente crítico de um, assim como o espírito postiçamente científico do outro, acaba por li-miter esse plano, ou melhor, por deformar em caricatura, ou em quadros de um realismo enfático o que deveria ser uma representação ao natural — uma história com todas as disponibilidades de espírito e os arrojos de imaginação de uma verdadeira história.

Não que faltasse a Eça de Queiroz a faculdade de pintar uma cidade fixando-lhe os flagrantes mais cênicos. Esta faculdade ele a tinha maravilhosa, como a de dar o interior de uma casa ou de uma sala com todo o quente ou morno da sua atmosfera. Ninguém tampouco deu como ele, em certos romances, figuras que fossem mais tipicamente nacionais, mais veridi-camente portuguesas. A obsessão, porém, da crítica caricaturesca, do riso como um ato de justiça, riso

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moralizador, não deixaria que a sua obra se projetasse em toda a extensão da balzaquiana e com o espírito filosófico que a tornaria eterna. Não são figuras apenas que se repetem nos seus livros com as mesmas taras de ridículo, ou cheias de gostos requintados: umas cidades elas mesmas vistas em toda a sua crua realidade política ou social; é Portugal, enfim, entrando em quase toda a sua obra como um invariável personagem que deixa de vez em quando na sombra os de carne e osso.

No fundo Eça de Queiroz devia ser grato, não a Taine, mas ao país que lhe inspira tanta verve e tanto espírito. Portugal é o seu personagem ubíquo. que extravasa das novelas para as suas crônicas, para os seus artigos de polêmica, para as suas cartas. De maneira que ele tinha toda razão de afirmar, como fez, escrevendo de Newcastle para Ramalho Ortigão: "Ou tenho de me recolher ao meio onde posso produzir, por processo experimental — isto é, ir para Portugal — ou tenho de me entregar à literatura puramente fantástica." Era como se fora de Portugal se esterilizasse a sua veia, o seu espírito caísse em nostalgia, e perdesse o velho e fogoso arranque.

No "Os Malas" é onde Eça de Queiroz acaba antecipando o que poderia ser mais expressivo do plano da obra que ele queria com o nome de "Cenas da Vida Portuguesa". Aí, com efeito, ele põe ao mesmo tempo resumidamente, vida doméstica, vida política, vida literária de Portugal. E talvez de tanta acumulação de quadros a impressão de fragmentário, de sobrecarregado que deixam "os Maias", onde os assuntos e muitas vezes

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os personagens parecem se comprimir para caberem todos no mesmo espaço. Este defeito aliás não passaria desapercebido ao seu bem vigilante senso de autocrítica, assim que uma vez escrevendo a Oliveira Martins, confessa: "Os Maias" são uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes!" Nenhuma modéstia nesta frase. Sobrecarregam "os Maias" não somente os episódios intencionalmente cômicos que nele se acumulam, mas os parêntesis, os longos parêntesis de doutrinação que às vezes se destacam com uma ênfase inconcebível em autor de tantos escrúpulos, e de tão exigentes pudores como Eça de Queiroz.

Seja como for, "Os Maias" é a sua obra mais expressiva, a obra em que mais ficam à mostra as suas qualidades mais fortes, tanto quanto os seus defeitos de escritor. E' o romance onde o seu talento pictural, a sua penetração psicológica, a sua força descritiva exercem-se em cenas sucessivas com mais surpresa, e também onde as suas prevenções de espírito se abrem em críticas da mais premeditada caricatura, não ganhando aí a sua ironia em mordacidade senão para perder em finura, e onde o seu secreto senso moralista toma em certas páginas um acento mais ostensivo. Muitos destes defeitos naturalmente decorrem de querer o autor experimentar em um só livro o plano de vários romances que no fim fariam as cenas completas da vida portuguesa, no período do Constitucionalismo. A preocupação de reconstituir a vida portuguesa desse período com uma aparência bem viciosa, bem estúpida e bem ridícula reponta em muitas das cenas do romance com uma insistência que apenas a maravilhosa fantasia

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do autor, os seus vivos recursos de expressão, conseguem atenuar. ele ptnta admiràvelmente, logo no começo do romance, a casa do Ramalhete, do antigo solar dos Maias, patriarcal e solene, como um símbolo que fosse da vida austera e máscula das velhas gerações que por ele passaram, das gerações de antes do Cons-titucionalismo, e de que Afonso da Maia, um dos seus personagens, parecia a última e suprema encarnação; mas pintando assim admiràvelmente a casa que era como o monumento em granito das ancestrais virtudes portuguesas, não pinta em cores menos vivas a vila Balzac, de João da Ega, espécie de símbolo das sensuais e viciosas tendências da vida portuguesa do nosso tempo.

Cenas, fatos e homens do romance não fogem à evidência de uma prova: a da decadência moral de uma família por força da decadência de toda uma sociedade. E para essa prova, não bastam, à fantasia ardente de Eça de Queiroz, as cenas de uma trágica revelação com que começa o romance, os episódios quase melodramáticos da vida de Pedro da Maia; era preciso alguma coisa que excedesse em muito o natural, que os Maias, os varonis Maias de outros tempos não se conspurcassem apenas por aventuras de um amor adulterino — e vem então o caso incestuoso de Carlos e Maria Eduarda. Um autor sem os compromissos morais de Eça, teria limitado o episódio dessa união incestuosa até onde ela foi involuntária. Até então Carlos não conhecia a verdadeira origem de Maria Eduarda. Mas assim falharia o propósito do livro. O essencial seria que Carlos continuasse, por duas vezes que fosse,

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o incesto para que dessa maneira ficasse provado que as suas virtudes cavalheirescas, vindas de antigos troncos, podiam já menos que a sua paixão sensual. Que ele era antes de tudo do seu tempo e do seu meio.

Uma crítica sôbre que insistiram vários autores portugueses contemporâneos da obra de Eça de Queiroz, e Fialho de Almeida mais do que os outros, foi quanto à uniformidade dos seus personagens — quase todos eles se salientando sempre pelas suas deficiências de gosto, de senso moral, de espírito do que por grandes virtudes. E em quase todas as suas novelas o adultério é como se fòsse a lei da vida.

Em carta a Fialho ele procura responder a essa crítica lembrando que os seus personagens não são de Paris nem de Londres, mas de Portugal, e a culpa por instinto seria menos dele do que do meio onde os foi encontrar.

Mes não: não nos parece bem uma resposta. Pois que, quando a sociedade portuguesa, ou os seus tipos mais puros, por absurdo, não fugissem senão ligeiramente às viciosas taras daqueles personagens, para um autor da força criadora de Eça de Queiroz, semelhante resposta seria antes uma modéstia, se não fosse um sofisma. Não há um homem bastante tolo ou bastante mau que um escritor de imaginação não o possa re-presentar em têrmos de uma natureza menos unilateral e mais universalmente humana.

De outra sorte não se compreenderia Dostoievski, e o romance deixaria de ser em qualquer sentido obra de arte para ser puramente cópia fotográfica, ser apenas o que desce à memória visual.

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Ninguém por outro lado já trouxe para o romance figuras de um ridículo mais estrepitoso, ou de uma maldade mais repugnante e cruel, nem maiores débeis, do que Dickens, o autor inglês que foi uma das suas admirações de toda a vida, mas raros os que dessem criaturas de uma humanidade mais pura, mais angèlicamente boas, e de uma energia viril e perfeita.

Na realidade o que influiu para a concepção dos Acácios, dos Dâmasos, dos Eusébios Silveira, dos Palhas, dos Teodoricos, dos Steinbrokens, e de tantos outros de uma mesma família de velhacos e de cretinos, como dos seus personagens femininos, das Amelias, das Gouvarinhos, das Luízas, das Vladomiras, etc, não foi o meio, mas o temperamento do próprio autor, o seu pessimismo, o seu espírito crítico, o idealismo moral que o levaria a conceber a arte como um instrumento não apenas de beleza mas de justiça. E a sua frase de uma carta a Teófilo Braga bem o sugere, a frase em que diz, referindo-se a Portugal: "Se já houve uma sociedade que reclamasse um artista vingador é esta!". Mas o que afinal fica dos seus melhores personagens não é a caricatura, não é o procurado vício português, é o seu traço de palpitante humanidade.

DUAS INFLUÊNCIAS: NATURALISMO E ROMANTISMO

Escrevendo em "Ecos de Paris" a propósito de Flaubert, a glória que Eça de Queiroz nele mais exalta é a de ter sido "um dos primeiros a dar à arte contemporânea a sua verdadeira base, desprendendo-a das

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concepções idealistas do romantismo, apoiando-a toda sôbre a observação, a realidade social e os conhecimentos humanos que a vida oferece".

Compreende-se que Eça descobrisse em Flaubert o seu grande mestre, e de Flaubert fosse o lado do naturalismo o que mais o encantasse. É desnecessário repisar nos pontos de contacto, já vistos por outros críticos, e que são fáceis de notar entre o "Primo Basílio" e "Madame Bovary".

Difícil dois autores de nacionalidade diferente que se encontrassem tanto pelo espírito, pela sua educação romântica, pela sua atitude crítica em face da sociedade burguesa, pela mística da forma que em ambos ainda era uma fidelidade ao espírito idealista do tempo da juventude, e de que nunca se separaram inteiramente, na fase mesmo mais aguda do seu naturalismo. Nem o próprio Zola, o mais cru de todos, e que ousa ele próprio confessar, como em "Romanciers natura-listes": "Je suis trop de mon temp, helas! j'ai trop les pieds dans le romantisme pour songer á secouer complement certaines preoccupations de rhétorique."

Mas em nenhum deles, e ainda menos em Eça de Queiroz, a imaginação verbal viria a dominar a imaginação visual e plástica, a imaginação do mundo exterior, e que os conduziria à representação menos de imagens de um gosto sentimental e lírico do que da realidade que fosse mais presente aos seus sentidos.

Pelo lado do seu pessimismo ainda Eça de Queiroz se colocaria na linha de Flaubert, este embora de um pessimismo mais denso, raiando quase pelo niilismo,

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o que de alguma sorte explica a sua teoria de uma arte marmórea, impassível, com um fim em si mesma. Uma arte que não fosse uma depuração mas uma imobili-zação da vida. E o sacrifício mais dramático feito a essa nova e tão ortodoxa doutrina foi certamente o dele mesmo, o do seu grande e conhecido martírio de artista insaciável de perfeição.

O autor de "Os Maias" não chegou nunca a essa consciência fanática da arte; e o naturalismo feito uma espécie de ciência aplicada à arte, "não devendo ocultar na sua científica necessidade de exatidão nenhum detalhe por mais torpe", ele o cultivou mais em teoria, nos seus ensaios e nas suas conferências, do que praticamente, nas suas novelas. João da Ega que é o tipo do "Os Maias" em que o autor mais se deixa interpretar, exclama certa vez: "A forma pura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco de um tipo, duma paixão, tal qual como se se tratasse de um caso patoló-gico, sem pitoresco e sem estilo!" Dir-se-ia um eco da sua conferência do Cassino. Eco que outra voz abafa: a do seu estudo sobre "Positivismo e Idealismo", onde já confessa: "O romance experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que jamais existiu, a não ser em teoria), e o próprio mestre do naturalismo, Zola, é cada vez mais épico, à velha maneira de Homero."

Eça de Queiroz, no seu amor aos fatos, nunca chegou aos excessos dos grandes mestres do naturalismo francês, sem excluir Flaubert, que veio a juntar mais de 20.000 documentos para escrever "Salambô", obra que lhe ia custar depois sete anos de trabalho, sete

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anos para digerir a sua montanha de documentos, e procurar transformá-la em um precioso monumento de arte, que nunca porém fica bem um monumento, e antes com alguma coisa do espesso e bruto da erudita montanha. O naturalismo de Eça não se exerceu propriamente em função de nenhuma tese científica, por muito que lhe impressionassem as teorias de Taine: exerceu-se mais rigorosamente em função de uma idéia moral, de um sentimento, ou de uma paixão. Era a experiência vivida o que ele mais punha nos seus romances, a experiência feita de sensações imediatas, de observação exercida ao vivo das coisas.

A sua fantasia era no contacto com o mundo exterior, que criava forças para se desdobrar nas combinações mais feéricas. ele seria naturalista independente de toda escola, de todo o progresso científico do século XIX, como o foram no seu tempo, dois séculos antes. John Bunyan, na Inglaterra, e Verrière, na França — capaz não só de reconstituir todo o real das coisas, nos seus detalhes mais obscuros, como de multiplicá-lo em novas e mais sensíveis aparências de vida. Mas que não fazem de nenhuma teoria científica a base da sua arte. Mesmo porque a ciência não vive senão de semelhanças, nao se nutre senão das coisas que se conformam em "tipos", que se arranjam em "classes" — só há ciência do que se repete. Este ipsimismo, porém, em arte, seria a negação da arte.

O que, pelo contrário, caracteriza o temperamento artístico, é a sua eterna tendência para fugir, pela imaginação, de uma realidade que muitas vêzes o comprime e abafa, e que é a realidade da vida

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comum; é a sua ousada rebeldia contra as formas in-sistentemente lógicas de ser.

Ainda os que muito se voltam para o mundo exterior, como Eça de Queiroz, eles não fazem da sua arte uma especialidade científica, e sem que nada sacrifiquem do espírito essencial da escola naturalista, encontram meio de fugir à tirania dos fatos e das coisas em que se repete a vida comum — refugiando-se no passado!

O crítico Álvaro Lins, distinguiu agudamente quando na sua "História Literária de Eça de Queiroz", fala do "senso histórico" que no autor da "Relíquia", ia às maiores surpresas de imaginação e de poder evocativo, restituindo ao passado uma vitalidade maravilhosa como não tem o presente. Aliás, entre os maiores romancistas da escola naturalista, bem que se nota essa fuga ideal — a disposição para refazer o passado, glorificá-lo como uma compensação do presente. Nota-se em Merimée, Stendhal, Balzac, Flaubert, e o próprio Huysmans.

Eça de Queiroz não fica a dever a nenhum deles no gosto de dramatizar o passado, sem nada sacrificar da sua verossimilhança histórica. Antes enri-quecendo-o de novos símbolos e mais humanamente verdadeiros. Tudo: paisagem, fatos e homens ele aviva em cores de uma rara fascinação, e dentro da sua verdadeira "atmosfera".

Há certas páginas na "A Relíquia" que elas somente bastariam para consagrar o gênio artístico do seu autor: são as que resumem em forma de sonho as

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cenas da morte de Jesus crucificado em Jerusalém. Talvez porque o espírito romântico tivesse a sua primeira raiz no cristianismo, não admira que em um momento de inspiração romântica o mais irreverente dos autores tocando assunto de uma tão sagrada tradição, não se denunciasse por nenhuma grave infi-delidade à memória dessa tradição. E até pelo con-trário, nos momentos decisivos a retocasse de uma luz épica. Desse-lhe todo o movimento, a palpitação, a côr de um fato que contasse com o testemunho dos nossos sentidos. E não apenas as cenas do Pretório que ele acende maravilhosamente aos olhos do leitor; mas tudo o que em redor — da cidade e da gente — vem contribuir para aumentar o seu patos, ou dar uma profundidade mais religiosa ao seu mistério.

Não importa que, de permeio, vez por outra, para o efeito artificial de contrastes, pela ambição de pitoresco ou cedendo ao demônio do seu gênio crítico, o autor abra um parêntesis de caricatura, com que antes escandaliza do que diverte o leitor. O prodígio da grande evocação histórica purifica tudo depois na nossa memória, mesmo os episódios de mau gosto com que em muita parte da "A Relíquia", parece se deprimir um pouco, a vis cômica do autor.

E o mais curioso é que é justamente neste livro onde Eça de Queiroz parece mais cruel com o Portugal dos seus dias, nas cenas onde deixa a impressão de substituir os Vascos da Gama, os Albuquerques, os Franciscos de Almeida doutros tempos, dos tempos heróicos e venturosos de Portugal, pelo vesgo, mole e vicioso Alpedrinha, que, ao lado de fáceis rameiras

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é visto numa parte e noutra do Oriente, como um símbolo ridículo.

Na "Ilustre Casa de Ramires", o autor bem que conserva uma maior gratuidade de espírito, mas de qualquer maneira sem já o calor, a flama, o brio, a endemoinhada veia das suas anteriores novelas. A sua ternura pelo velho Portugal, de fidalgos e aventureiros, era mais de raiz lírica: o passado português, corn os seus ímpetos de aventura, os seus arrojos messiânicos, venerava ele como a contraparte que imaginava de mais senso e mais gosto do Portugal que conhecia e vivia. Era ainda uma maneira de escapar à opressão do tempo presente, e igualmente satisfazer os anseios românticos da sua imaginação. Estes anseios porém, no "Mandarim", somente é que encontram a sua melhor expressão.

"Mandarim" é o livro onde a fantasia inventiva de Eça de Queiroz ganha por vezes audácias de uma maravilhosa imaginação.

Onde o seu poder associativo de imagens e de idéias atinge a uma força prodigiosa de combinações. Não partiu o livro de uma idéia original. A idéia dessa novela pode-se dizer que veio de Chateaubriand, do "Genie du Cristianisme". onde está escrito: "Oh conscience! ne serais-tu qu'un fantasme de l'imagination, ou Ia peur du chatiment des hommes? Je m'interro-gue; je fais cette question: "si tu pouvais par un seul désir tuer un homme á la Chine et héretier de sa fortune en Europe, avec la conviction surnaturelle qu'on n'en saurais jamais rien. consentirait tu á former ce désir?" A realização dramática de Eça de Queiroz

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dada ao tema contido nestas e nas palavras que seguem de Chateaubriand, seria para o autor do "Gênio do Cristianismo", se ele a tivesse conhecido, um dos grandes orgulhos da sua vida de escritor.

Ê o prodígio dos grandes novelistas: sobre um mínimo de verdade acrescentar um máximo de aparências que a confirmam; assimilar imediatamente de um fato hipotético ou real todas as conseqüências que ele encerre, adivinhá-lo em muitos dos seus possíveis de realização. A inventividade é a força sutil e fecunda desses escritores: saber operar como um pres-digitador sobre o que existe, sobre elementos que ou- iros descobriram; variando-os em forma e côr.

E quando esse escritor, como Eça de Queiroz, junta à força imaginativa, uma intuição psicológica de fulgurante penetração, dessas que vão longe no fundo dos caracteres e dos temperamentos, ele torna-se capaz de clarividências que espantam. E' o "O Mandarim", um dos seus livres mais naturais e escrito no estilo que ele tanto idealizou, em que linguagem e idéia, concepção e forma parecem tudo um — sem hiatos, como se tivessem vindo de um jato, e com todos os germes da vida que os gerou. E de certo por isto não se sente falsificação de caráter e do espírito do chinês, de tão estranhas idiossincrasias que atravessa o enredo dessa singular novela.

É que na realidade não faltou a Eça de Queiroz aquela virtude que ele sempre exaltou como a melhor qualidade do escritor, como a sua virtude de anjo — o saber ver em primeira mão, e pensar por conta própria, desprezando o conforto das idéias feitas. Desta

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virtude ele dá sinal não somente na maneira de como interpreta os personagens mais vivos dos seus romances, mas ainda na critica com que igualmente interpreta em crônicas ou em ensaios ou em simples cartas homens e costumes europeus do seu tempo. Se, às vezes, como em relação à América do Norte, ou em relação à Inglaterra, ele atira-se a generalizações que bem parecem de mero pitoresco, pretexto para jogo de imagens, não raro do mais brilhante efeito; em outros casos, porém, o que domina é o seu extraordinário poder de observação, o seu faro psicológico do homem e da vida.

Os retratos de Lord Beaconsfield, de Guilherme II, de Antero de Quental — as suas memórias sobre o canal de Suez, sobre os ingleses no Egito, como muitas das páginas de "Fradique Mendes", e as suas biografias de santos que ficaram inacabadas, mostram como nele se fundiam admiravelmente o novelista e o crítico, o historiador e o artista.

Nas suas "Reflexions sur l'art du roman" Henri Massis separa o romancista do artista. O romancista-éle diz, "inventa sem preocupação de estilo; sua linguagem deve ser direta, natural, toda em movimento; ele mostra, faz ver; a do artista sugere, evoca, dá o sentimento do objeto mais do que descreve".

Mas não é fácil legislar nessa matéria, tanto o artista pode se comportar no romance com todas as suas qualidades poéticas de invenção e de sugestão. André Gide é um deles, não fazendo os seus romances senão confirmar as palavras do 3.° volume do "Journal", onde

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confessa que "Le roman comporte une certaine lenteur de cheminement qui permette au lecteur de vivre avec les personnages et de s'habituer á eux." É confessa que prefere "sugerir a tudo dizer". E como André Gide, Meredith, Proust, Joyce.

Eça de Queiroz não tinha como aqueles a preocupação mais de sugerir do que de explicar, ou a preocupação de ser estrito e nu como um Stendhal; mas a preocupação artística da maior densidade no dizer, esta nunca abandonou o novelista. Às vezes essa densidade afrouxava, dilatando-se em retórica; mas só quando o excesso de zelo pela forma o descuidava da idéia. A verdade, porém, é que em poucos escritores dominava, como em Eça, a convicção de que o artista não se afirma pelo que pensa ou sente, mas pelo que exprime. Ele foi assim mais uma vez fiel a Chateaubriand, o seu sócio comanditário do "O Mandarim". De Chateaubriand é a frase: "on ne vive que par le style'.

Quando falamos de estilo não é no sentido retórico da bela forma, da frase sonora, cheia de embalo e de que tanto abusaram os românticos da época de Chateaubriand, e o próprio Chateaubriand, mas do estilo um pouco como pensava Remy de Gourmont, feito "uma especialização da sensibilidade", traduzindo não simplesmente idéias, nem sentimentos nem puras emoções; traduzindo o homem como ele se refaz pela experiência da sua cultura e do seu gosto — o homem na plena verdade de si mesmo. Apenas para o artista bem se exprimir, e na forma que nada sacrifique ou esconda da sua personalidade custa um esforço muitas vezes maior do que o esforço pelas verdades científi-

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cas, e que passam — as verdades que se baseiam sôbre leis, sôbre fatos e sôbre números. Não passam as que se baseiam sôbre a evidência ela mesma.

As !eis de Newton já foram postas em dúvida, e não só as leis de Newton, mas quantos princípios da Física do sáculo passado que pareciam mais sólidos do que as pirâmides do Egito. Só as verdades de Homero não são contestadas — o que ele há mais de mil séculos antes de nossa era exprimiu nas paixões dos deuses das paixões dos homens; e Shakespeare parece novo, como de ontem, porque nada ele diz dos segredos da vida humana, nos seus dramas., que a vida humana não confirme eternamente. E somente quando o escritor chega a esse poder de comunicação, a transfigurar-se no verbo, a sensibilizar as palavras que elas fiquem como de carne e sangue, é que dele se pode dizer que tem verdadeiramente um estilo.

E qual seria, pergunta-se, o critério para julgar de um verdadeiro estilo, de um estilo que seja a individualização do universal pelo verbo ? É que tenha ele a mesma unidade de expressão que tem a música. Todo o verdadeiro estilo tende a essa unidade, à maior harmonia do pensamento com a palavra que o exprime. Não há escritor — salvo os que fazem das mãos pés. e escrevem como quem escarva — que, para exprimir uma idéia ou uma imagem não procure entre muitas frases ou palavras, aquela que pareça a mais harmoniosa, a mais musical. Acontece porém que essa harmonia e essa música são impossíveis quando o fato não se encontra com a idéia, e a idéia não se encontra com a sua forma real de expressão.

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Os idealistas, os românticos, são sempre os que mais sofrem da inquietação da forma; não basta a eles o descrever e pintar, dar o relevo material das coisas: querem sobreviver no verbo, sobreviver nas suas impressões mais fluidas, nos seus pensamentos mais fugitivos. E todo o esforço pelo estilo é um esforço de sobrevivência. Poetas, os aparentemente mais espontâneos como Pouchkine, e prosadores de uma simplici-dade mais pura como Renan, ou da densidade transparente de um Pascal, e filósofos de palavra também aparentemente mais involuntária e cheia de fogo como Nietzsche, se não fizeram com Flaubert do suor, sangue, sentiram contudo a danação do verbo — do verbo que fosse o mais humanamente fiel a si mesmos.

£ afinal outra não foi a grande febre de artista do autor de "Fradique Mendes". Queria na verdade Eça uma prosa como a que diz Fradique: com "alguma coisa de cristalino, de aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por si, plàsticamente, realizasse uma absoluta beleza — e que expressionalmente, como verbo, pudesse traduzir desde os mais fugidios tons de luz até os mais sutis estados d'alma..."

E' donde vem precisamente o tanto emendar e corrigir dos seus menores trabalhos. Tudo por amor da perfeição de uma arte "inviolável e eterna". ele próprio o diz em uma carta ao Conde Arnoso; e ainda que diga humoristicamente, não falta à verdade: "O meu mal — são suas palavras — é o amor da perfeição — este absurdo afã de querer fazer as coisas mais corriqueiras sempre de modo mais completo e brilhante. Se se trata de espirrar eu tanto me preparo para que o

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espirro seja suave e musical, que a coisa termina sempre em carantonha, ronco e porcaria. Se se trata de mandar para um jornal a simples notícia de que um amigo chegou, eu tanto cinzelo e repulo que a notícia parece feita no Leitão ourives, e dá a sensação de que o amigo partiu!"

Esse amor, porém, de perfeição ao que Eça se refere, e que faz ao mesmo tempo as torturas e as delícias de todos os grandes estilistas, por mais saturado de idealismo que seja, ou parte de uma tendência vital — a de se encontrar o escritor na sua atitude permanente e única de ser, e que é impossível na ação: a ação depende rigidamente das circunstâncias, e está portanto subordinada na maioria dos indivíduos a formas convencionais de adaptação, a contínuas renúncias pessoais, a contemporizações. E quanto mais individualista essa ação mais primária, mais penetrada do que no homem é duramente animal, que é o seu egoísmo. Só pela imaginação o indivíduo liberta o que há de mais humano no seu instinto, como só pela expressão nitidamente pessoal, solidariza-se com a sua espécie ao ponto de nela sobreviver. E' o que, em uma palavra, chama-se a imortalidade dos gênios.

E' claro que Eça de Queiroz não chegou na sua obra a toda a disponibilidade de espírito necessária a um máximo de expressão em arte. Ao máximo de expressão que ele queria. De certo por deficiências de temperamento ou de educação. Pelas obstruções do seu pessimismo, que, não raro, o tornava unilateral na sua observação e no seu gosto. Daí certas eclipses do seu admirável senso crítico, c chegar algumas vezes a

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condescendências espantosas com o seu ideal de um perfeito estilo, para resvalar no vício exibicionista da frase, ou da pura retórica. É o que explica certas expressões de mau gosto fáceis de notar já hoje em muitos dos seus romances.

Não é menos verdadeiro, porém, que o escritor que por vezes incidia em frases bem inimigas da perfeição, foi o escritor que amaciou a prosa portuguesa, que lhe deu as flexões mais poéticas, e uma fluidez que não se conhecia antes dele.

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A VOCAÇÃO DE JOYCE

PRIMEIRA publicação de James Joyce foi um panfleto

"Et Tu Healey!" em defesa de Parnell. o célebre político irlandês. Tinha então Joyce nove anos de idade. Mas já tão intelectualmente maduro éste trabalho, que não faltou quem depois o pusesse em confronto com os de Joyce no meio dia da sua glória de escritor.

Joyce e Ruskin foram os dois gênios mais precoces que se conhecem em toda a história da literatura universal. Em ambos o sentimento da arte foi inseparável do sentimento da vida. Em ambos, arte e vida é como se fossem têrmos de um mesmo denominador comum: a vontade de ser! "To live, to err, to full, to triumph, to recreate life out life!" é a única ênfase de Joyce em "Portrait of the artist as a young man". E ainda em "Portrait", com voz mais confidencial, diz: "Não sei se fui menino em algum tempo. O passado é consumido no presente e o presente vive somente pelo que conduz do futuro."

Na vida religiosa sempre ouvimos falar dos eleitos, dos que por uma graça especial nascem marcados para uma não sei que feliz intimidade com os mistérios da

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vida sobrenatural — e neles vontade e fé fundem-se logo num só e inviolável querer. Na vida artística da mesma forma não são raros os casos de eleição, dos que nascem com um corpo e uma alma musicais, e como uma harpa, nada passa por eles sem arrancar um som, uma harmonia, uma vibração que dura séculos: os Ruskins, os Rimbauds. os Nietzsches, os Joyces. Conservam em todo o tempo, e a despeito de todas as circunstâncias uma personalidade inconfundível. Já nascem determinados por uma vocação.

O caso de Joyce é dos mais significativos. Filho de pais religiosos, com uma educação profundamente religiosa, à sombra dos padres jesuítas, os mestres que mais influíram na sua primeira formação intelectual, tudo nele fazia pressentir — mesmo aos superiores do Colégio tão experimentados em vocações espirituais — um futuro padre, um membro da Congregação. Tudo: a sua concentração, a sua disciplina, o seu isolamento, o seu gosto pelas questões teológicas da mais transcendental especulação. E até o seu tomismo.

Mas veio o que ele próprio havia de chamar ao anjo selvagem da beleza e da vida terrena" e o fixou na arte como no seu verdadeiro elemento, o mais consubstanciai com a sua natureza .sensual e lírica. Com o seu humano egoísmo de vida, da vida longamente filtrada pela sensação e pela idéia. Vida de uma experiência pessoal acima de toda imitação e de toda regra, difícil portanto de conciliar com os ideais ascéticos do cristianismo. E' donde vêm os conflitos morais e as dúvidas que agitaram a alma de Dedalus, o herói de "Portrait". e que na realidade foram os conflitos e as

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dúvidas do próprio Joyce. Resultado: o ideal da vida moralmente perfeita do cristão foi substituído pelo ideal da vida estèticamente perfeita do artista. Era assim o meio de realizar a sua própria vocação, aderir à sua verdadeira essência, descobrir-se integralmente a si mesmo.

Há muito da insubmissão nietzscheana em Joyce, muito do mesmo espírito insaciável de análise, do mesmo e quase físico desejo de verdade para que nunca pudesse ele descansar no seio da santa madre igreja como num largo seio materno: inocentemente.

Por mais que na adolescência o seu espírito se supersaturasse de religião, por mais que a sua imaginação se exaltasse com os mistérios da vida sobrenatural, e o pensamento de Deus o preocupasse com uma certa e mística inquietação, nem por isso ele perdeu nunca a consciência impíamente orgulhosa do próprio eu. Porque este pecado de Dedalus era o seu pecado. Como sua, bem sua, a interrogação de Dedalus: "Que é que vem do orgulho do seu espírito que o leva a se conceber sempre como um ser aparte de toda a ordem?" Ainda é Joyce nestas palavras de Dedalus: "Estava destinado a atingir a sua própria sabedoria à parte dos outros, ou a alcançar a sabedoria dos outros por si, e através de todos os enganos do mundo."

Todos os biógrafos de Joyce falam dessa imperiosa convicção de si mesmo que lhe não foi menos autoritária na juventude do que na idade madura.

Joyce era inda jovem quando foi apresentado ao poeta Yeats, de nome já universal, e conta Valéry

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Larbaud que ele se teria dirigido ao famoso poeta com estas palavras: "Lamento conhecermo-nos tão tarde. Vejo-o velho demais para sentir a minha influência."

O futuro autor de "Ulisses" tinha dessas arrogâncias de orgulho, e que só o muito gênio de que logo cedo deu mostra, salvaram do ridículo. De ordinário, porém, o orgulho de Joyce nunca se fazia sentir como um luxo de amor próprio, ou uma dilatação eufórica; era antes uma defesa da sua personalidade, uma profilaxia do seu espírito contra os contactos vulgares, ou as intimidades dis-solventes. Era uma certa reserva que ele não perdia mesmo entre os íntimos. Um ar de abstração de quase indiferença. Ainda é Valery Larbaud que escrevendo a propósito do seu primeiro encontro com Joyce, assim narra: "Foi em 1919, no atelier de um amigo, no cais Dupuytren. Miss Sylvia Beach nos apresentou. Joyce é um homem que não fala; é um homem frio; de aspecto severo." Stephan Zweig nas suas Memórias muito fala por sua vez das "esquivanças", do "isolamento interior", da "irritação" de Joyce, que nunca "viu rir ou estar verdadeiramente alegre".

Um crítico da revista "Roman" (Jan. 1951) também diz, referindo-se a Joyce: "Uma zona intransponível existia nele, uma tensão que ninguém ousava interromper, um ar distante. . ." Em verdade, muito jovem-o autor de "Ulisses" já deixava transpirar não apenas nos seus primeiros escritos mas em todo o seu ar, um homem para quem a solidão existisse antes no meio dos outros homens do que longe deles. Herbert Gorman, que é dos melhores biógrafos de Joyce cita uma frase muito expressiva de Eglinton quando este disse uma

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vez ao autor dos "Finnegans Wake": "Receio muito que nao haja dentro de vós bastante caos para fazer-des um novo mundo."

Este mundo novo ele o revela na sua obra da idade madura; um mundo novo onde os valores estéticos não são simplesmente valores formais; são acima de tudo valores vitais que servem a uma melhor união do homem com a natureza; que o distendem, mesmo, enfàticamente, nas coisas que o cercam. Já em "Portrait", o seu primeiro livro autobiográfico, Joyce mostra de como Stephano Dedalus, este personagem sensível, vendo certas árvores molhadas, e olhando certas ruas, certas casas, certos trechos de paisagem logo lhe acodiam per-sonagens, idéias, cenas que iam lhe dar uma vida estranha, de uma secreta importância. Em "Ulisses", Dublin, a cidade onde nasceu Dedalus, não é um personagem menos intenso nem menos presente nas cenas do livro do que os figurados como de carne e osso. Nao foi em vão que Joyce disse uma vez a Budgen, quando escrevia "Ulisses": "Hei de dar uma imagem tão completa de Dublin que, se um dia, a cidade desaparecer completamente da superfície da terra, seja fácil reconstruí-la a partir do meu livro."

E' preciso a visão do artista para essa vocação extraordinária, feita sôbre uma base de sensibilidade puramente. Só os grandes artistas têm o privilégio de viver a história sem estudar a história. Não vêem como quem observa e analisa; mas como quem descobre. Por isto mesmo eles nunca definem: revelam!

Admirável em Joyce é ele ter podido criar o mundo dos seus romances contra um outro mundo que

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lhe negava pão e água: o da sua vida quotidiana. Mas assim provou que a sua segurança não repousava nas coisas, e antes nele mesmo. Em "Ulisses", Stephano que ainda aqui é uma. encarnação do autor, encarece a necessidade como um grande conforto. A necessidade exalta em ação todas as virtualidades do homem, impele-o a uma afirmação extrema de si mesmo. Que foi o caso de Joyce que não traiu a sua vocação a despeito de todas as vicissitudes que o afligiram.

Estudante de medicina em Paris, e sem dinheiro, abandona a Universidade, já perto de obter um título rendoso, e vai estudar canto, aperfeiçoar a sua voz de tenor, que, segundo os seus biógrafos, lhe teria assegurado, se ele quisesse, uma carreira triunfante em todo o sentido.

Mas também abafa a voz de tenor.

Havia uma necessidade mais alta a satisfazer : comunicar ao mundo a sua mensagem de artista uma das mais profundas que já se procurou interpretar em termos de romance. Guerra, fome, exílio passaram por ele sem deixar vestígios; não o demoveram da obra que levou sete anos para fazer, e que se chama 'Ulisses". Começou a escrevê-la ao tempo da I Guerra, em 1914, quando se encontrava em Zurich, exilado.

E aí, em Zurich, que diferença da sua atitude e da atitude de Zweig, outro exilado! Porque foi em Zurich. no fundo de um tranqüilo bar, que Zweig travou conhecimento com Joyce. O avanço nazista sobre a Áustria, e já ameaçando a esse tempo os outros países da Europa, fazia um efeito trágico sobre Zweig. Toda a sua

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obra dessa época, a começar pelo drama com o bem expressivo nome de "Jeremias" ressente-se da imaginação pânica que então o possuiu e o traumatizou. O mundo que èie via ameaçado pelo furor hitlerista era justamente o mundo que estava nos seus livros. E Zweig que se dizia imprudentemente homem universal não podia passar sem uma pátria — a Áustria; o escritor que se dizia de todas as línguas não podia passar sem uma língua — a alemã.

Em parte explica-se o drama de Zweig. A civilização ameaçada era a que havia inspirado toda a sua numerosa obra literária, desde os primeiros ensaios da juventude. Uma civilização que estava na sua carne e no seu espírito. O sacrifício dessa civilização era o seu sacrifício.

A atitude de Joyce era, ao contrário, a de um homem absolutamente tranqüilo, de um homem que na sua obra coordenasse um mundo diferente do outro que ele tinha diante dos olhos; um mundo banal e cupido que pagava em sangue o crime da sua cupidez.

A arte de Joyce baseada sôbre uma experiência pessoal e não modelada sôbre velhos clichês, não corria o mesmo risco de destruição da obra de Zweig. Não há arte imperecível quando a arte é de segunda mão. Por isto, em cada século, de uma infinidade de obras que se produzem, ficam apenas as obras originais; as cópias desaparecem. O tempo, esse juiz mudo, as devora.

Joyce, em "Portrait", e falando pela voz de Dedalus, diz: "Quando tocamos no fenòmeno da con-

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cepção da gestação e da reprodução artística impõe-se uma nova terminologia e uma nova experiência pessoal." Prova de que para Joyce arte e criação são termos equivalentes. E como ninguém pode criar totalmente preso a uma tradição, comprometido com o passado, entre velhos modelos, sem sair da regra, o resultado é que o artista para se conservar com toda a sua liberdade de artista só há de ter uma pátria, que é o universo; e só há de ter uma família, que é a humanidade.

Quando Joyce fala de uma terminologia nova para a arte não é uma frase tão somente que põe na boca de Dedalus. ele vai de fato ao ponto de criar uma terminologia nova, um novo instrumento de expressão com o mesmo dinamismo de tensões da música stra-vinskiana, e dando ao romance os mesmos poderes da música sobre o nosso subconsciente.

Nada se pode imaginar de mais audacioso em aventura de espírito. Porque uma coisa é o estilo hermético, a linguagem rebuscada, obscura, difícil, com o seu sentido variando conforme o som, o ritmo, a posição das palavras, e outra coisa é uma linguagem feita como nova, rompendo a cada instante com todo o uso e toda a tradição. Uma coisa é a decantação verbal de Mallarmé, procurando para as palavras uma pureza química, limpando-as pela imaginação de todas as taras gramaticais, criando-lhes as flexões mais sutis. e outra coisa é um verbo novo, uma palavra nova que se adivinha mais do que se explica. Joyce nos seus últimos livros atira-se a essa vertiginosa experiência.

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E o estranho é que ele não foi negado, o que prova o poder divinatório dos gênios.

Nenhum autor, antes de Joyce, já se aventurou a pôr no papel, em linguagem escrita, os fatos, de uma fluidez que se diria inacessível do subconsciente do homem, os pensamentos ainda em estado germinativo, as formas imperfeitas de vida que há no fundo psíquico de cada um, nem reproduziu com uma visão tão dinâmica aqueles fenômenos sociais mais típicos da vida moderna. Aproximou, enfim, mais o romance da técnica cinematográfica e ao mesmo tempo da música. Donde a necessidade de multiplicar os seus poderes de linguagem, de explorar com um instinto criador todas as possibilidades da língua inglesa.

Conhecia Joyce dezoito línguas, e muitos dos dialetos dessas línguas, o que fazia o espanto dos seus amigos. Como espantava que ainda muito moço já conhecesse o sânscrito, o árabe, o grego. O norueguês, aprendeu aos dezessete anos para ler Ibsen no original. Essa sua singular atração pelas línguas estrangeiras, conhecendo-as muitas vezes nos seus detalhes mais íntimos de morfologia e de sintaxe, ao mesmo tempo que dá sinal da plasticidade enorme do seu espírito, da alma humanamente penetrável que era a sua, bem que revela a preocupação por uma língua de um poder mais imediato, mais concreto e mais rico de expressão do que a sua própria língua.

II

"Dublinners", foi o primeiro livro em prosa de Joyce; o livro de contos da sua adolescência de vinte

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anos. Mas a inteligência apaga nele o traço da idade. Dá-lhe uma maturidade gloriosa. Mesmo como na poesia de Rimbaud.

Nos contos de "Dublinners" não se encontra nenhuma das dificuldades do "Ulisses" ou do "Finnegans Wake". Mas o não sei que de ostensivamente pessoal na maneira não só de animar situações e caracteres como na maneira de valorizar poeticamente os fatos, e alongá-los mesmo em idéias, já força uma concentração do leitor.

De qualquer forma ''Dublinners" é bem a abertura dessa estranha e misteriosa sinfonia que termina com "Finnegans Wake". Vários personagens dos seus contos viriam a figurar depois em "Portrait" e em "Ulisses", como algumas das cenas e episódios neles levemente esboçados se graduariam depois nas cenas de uma significação muito mais complexa, e uma in-tenção muito mais dramática dos seus últimos romances .

Mas a verdade é que de "Dublinners" a "Finnegans Wake" o caminho é longo, e muito haveria de variar não só o clima, a paisagem e muitos dos tipos da sua ficção, mas também o seu método de elaboração e de composição. A sua técnica. O processo de impor os fatos, as idéias, as figuras. Na terminologia dos gregos, diríamos, a sua maiêutica.

Embora o seu método antigo de fabulação, e que é o dos contos, e depois do "Portrait", fosse incomparavelmente mais claro, mais simples, mais confortável para a inteligência do leitor, ele já não bastava às

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infinitas necessidades da sua arte. E veio então a experiência nova, a técnica diferente adotada para os outros romances, sem as risonhas claridades, as cores diáfa-nas que geralmente fazem de toda novela um doce e alegre passatempo.

Aquela causalidade mecânica a que é comum subor-dinarem os autores fatos e cenas dos seus romances, Joyce substitui pelo princípio da indeterminação como existe no processo da criação universal. Uma maneira assim de fazer da arte uma como outra natureza que fosse mais originalmente poética e mais misteriosamente profunda.

Por mais distância que exista entre as primeiras e as últimas obras de Joyce seria absurdo negar todo ar de família entre elas, e que o autor variasse caprichosamente no progresso da sua arte. Não. Já em "Dublinners" ele mostra-se bem fiel a qualidades que são típicas da sua forma pessoal de dizer. Do seu estilo. Uma delas é o horror ao lugar comum e o honor também à linguagem abstrata — a quanto leve ao impreciso e ao retórico. E já em "Dublinners" revela-se a sua tendência para chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, para qualificá-las de uma maneira indelével pelos seus caracteres individuais, mesmo quando essa franqueza pareça incivil ou imoral. Desde o começo foi esta uma das coragens esplêndidas de Joyce.

Por causa dessa coragem é que "Dublinners", escrito em 1905 não foi publicado senão em 1915. Em vários contos o autor chama pelo seu nome próprio

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ou de família a muita gente ilustre de Dublin tanto como de Londres — a rainha Vitória, o príncipe Eduardo, Parnell, Mr. M'Coy etc. E nem sempre esses nomes figuram com a veneração, o respeito, a untuosa deferência que os ingleses gostariam. Por outro lado não ardeu menos a pudicícia dos editores de Londres com os vivos de sensualismo, as ousadas sugestões que se podiam notar em alguns desses contos, no "An encounter", sobretudo.

"Ulisses", por sua vez, não foi proibido na Inglaterra e nos Estados Unidos senão por acharem o autor franco demais na concepção e na representação de muitas das cenas do seu romance.

O livro que se seguiu a "Dublinners" foi "Portrait of the artist as a young man". Autobiográfico.

Nos contos é a vida de Dublin que Joyce reproduz, flagrantes de uma fina sátira, ou flagrantes de uma fina poesia da vida da sua cidade natal. E' o meio em que ele nasceu. "Portrait" é a história da sua adolescência e que se passa no colégio mais do que na família. "Ulisses" é um mundo mais extenso, o seu mundo ria idade madura, em que havia de se estender cósmica-mente a sua visão de Dublin, como "Finnegans" seria o mundo tomado numa forma ainda mais transcendental, abrangendo menos o que pertence à história do que o que pertence ao ilimitado da mitologia e da lenda.

O livro "Portrait" que antecedeu "Ulisses" é uma obra-prima de verdade psicológica. E entretanto, na aparência, um romance sem romance. Sem enredo. Sem mis-en-scène de nenhuma espécie. Frio e nu.

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Ascético como o pensamento religioso em que por vezes se isola a alma de Dedalus, o seu herói. É preciso que o leitor se acomode bem à atmosfera do livro para sentir o romance que há dentro dele, e que tão pouco aparece. Para sentir o drama de uma vida que mal transpõe as fronteiras do mundo subjetivo, tanto fecha-se quase todo ele no círculo da vida interior.

Mas nessa região da vida subjacente, de uma imensa e perigosa mobilidade, flutuante como ela só nos seus planos de profundidade, indeterminada e sem forma como as sombras que a envolvem — nessa região ninguém mais à vontade, e com olhos mais lúcidos do que Joyce. E' o que aliás explica o estranho e difícil equilíbrio deste livro, onde é tão raro uma ênfase, um relevo áspero, um artifício, e onde as suas cenas mais intensas repercurtem antes na sensibilidade do que na inteligência do leitor.

Essa vitalidade romanesca é mesmo uma das melhores surpresas da arte de Joyce — o poder de largar pela idéia a experiência vivida, esgotar todas as suas possibilidades de representação.

O drama de "Portrait" pode-se resumir em poucas palavras: uma vocação de artista que por efeito de educação, influências de meio e de família ameaça tomar outra direção, a direção da igreja. E seguem-se então as reações pelo reajustamento da personalidade e que vão constituir os episódios culminantes do livro. Reações muitas vezes involuntárias, que chegam de súbito, invisivelmente, atravessando como um magneto

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a alma de Dedalus. Um longo drama, de uma introspecção por vêzes pungente. Mas vence o grito da vocação.

A especulação teológica, os mistérios da igreja, o simbolismo admirável de movimento e decor da liturgia cristã não o conseguem prevalecer em Dedalus sôbre as suas tendências mais profundas, acabando ele por integiar-se completamente na sua verídica personalidade de artista — ficar só e autenticamente o homem da sua vocação. Ficar livremente ele mesmo; sem compromisso que o possam limitar, os compromissos que ele próprio especifica: de "nacionalidade, linguagem, religião".

Tudo o que a esse respeito, diz Joyce pela boca de Dedalus, realiza depois, com a maior coragem, na sua obra posterior, '"Ulisses", que lhe custou, já o dissemos sete anos para se crever, e "Finnegan Wake" havia de lhe custar dezessete anos.

Explica-se: não é apenas uma técnica diferente que Joyce vai aplicar aos seus novos livros; ele procura uma matéria verbal suscetível de novas significações e novos ritmos. E muitas das palavras de uso comum, ou palavras arcaicas tomam não raramente, com ele, o sentido de uma linguagem virgem, cheia de um sangue novo e mais vivescente. Esta transmutação de valores verbais ele também já anuncia em "Portrait", a certa altura do diálogo entre Dedalus e o deão do Colégio, onde diz: "How differente are the words home, Cluist, ale, master, on his lips and on mine! His lan-

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guage so familiar and so foreign, will always be for me an acquired speech. I have not made or accepted its words."

Esta tendência de Joyce para dar à palavra um valor tanto quanto possível absoluto, transparece logo nos seus primeiros livros. Para não separar na linguagem o simbólico do real. Infundir à palavra uma vivência de ser animado. Substantivá-la no sentido da carne muito mais do que no sentido da gramática. Em "Ulisses", quando o leitor, a custo, começa a entrar no segredo da sua linguagem, não pode duvidar do triunfo de Joyce. Nota-se de quanto a palavra, neste romance, impõe-se mais pelas suas correspondências fonéticas, pelas suas associações motoras, pelo seu ritmo do que pelas sixas correspondências lógicas. Nenhum autor por isto mesmo que fosse mais espectador da sua obra do que Joyce, e que menos visse o leitor.

"Ulisses" foi no mundo da literatura uma experiência colossal que ainda hoje deixa a todo o leitor uma impressão atordoante. De caos muitas vezes. A multiplicidade e a obscuridade dos seus símbolos, e também o movimento de uma vertiginosa velocidade dos seus principais planos de ação não se oferecem como um favo de mel ao espírito de nenhum leitor.

Para que se venha a dominar a impressão de caos — um caos cheio de pontos dormentes — que o livro deixa na primeira leitura, faz-se necessário um grande esforço de adaptação sensorial e mental. E' necessário que o leitor colabore com todo o seu espírito diante da obra de Joyce, para então ver o que extraordinària-

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mente existe de força e equilíbrio na aparência de redemoinho de muitas das suas cenas. O que existe de maravilhosamente igual à vida.

Não se descobre em "Ulisses" essa hierarquia de planos em que comumente se desenvolve a ação de quase todos os romances, planos flue variam conforme o valor dos personagens e das cenas. Nada dessa arquitetura apolínea no livro de Joyce. O nome do romance vem do herói da "Odisséia". Joyce transporta para o plano das realidades práticas, sentimentais e históricas o que Homero realizou no plano da imaginação poética ou da concepção mítica.

As aventuras do herói de Homero desdobram-se em vinte anos, as do herói do "Ulisses" passam-se em um dia. Apenas neste curto espaço de tempo Leopoldo Bloom, o pacato e bom herói do romance de Joyce, vive uma vida incomensurável. Ao lado de Dedalus, Ful-lingans, Harries, Linchs e outros personagens, Leopoldo Bloom realizava &s suas aventuras mais diversas, passadas em si mesmo mais do que no mundo exterior.

Aliás em "Ulisses" os fatos mais dramáticos não se produzem diretamente, ou pelo método descritivo como nos outros romances: a memória, a imaginação, a idéia é que são os grandes veículos desses fatos. Bloom foi as encarnações mais diversas: pagem, prisioneiro da corte, prefeito de Dublin, imperador, imigrante irlandês, e até mulher percorrendo assim pela imaginação um grande ciclo do humano. E o curioso é que estes estados imaginários representam-se tão lùcidamente que desafiam o real. Mesmo em naturezas como as de Bloom, positivas e sóbrias.

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Estas naturezas também não fogem a uma certa vontade aventurosa de ser; apenas, nelas, esse impulso de aventuras não se exerce perigosamente, pela ação, mas, pacificamente, pela imaginação sonhadora. Bloom era assim; era da espécie dos que contraem em sonho o ideal da ação heróica, e fazem de uma ilusão a sua conquista. No fundo ainda uma forma de fugir à consciência de inferioridade que os persegue. Usam, esses pobres, da imaginação como de um afrodisíaco.

Em "Ulisses" os seus personagens principais deixam de vez em quando a impressão de naturezas voláteis em estado absolutamente livre, e que nelas mesmas quisessem experimentar todas as possibilidades do humanamente possível. pela análise das suas sensações e pela idéia.

Não há nada de extraordinário que o leitor se veja aturdido no primeiro contacto com "Ulisses", e tenha que reagir continuamente para não se deixar vencer pelo tédio de muitos símbolos que ele não penetra, e de cenas que, na sua sucessão veloz, parecem como o globo terrestre, imóveis. Mas quando se chega a tomar pé no turbilhão de idéias, de fato, de imagens, de abreviações cabalísticas que enchem as suas 732 páginas é que então se descobre a intenção do autor para recriar a vida com o máximo de conteúdo psicológico e o máximo de caracterizações físicas.

Como se não estivesse numa experiência de literatura, mas recriando a natureza.

Neste romance ainda mais do que nos seus primeiros livros Joyce não foge à denominação das coisas

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pelo seu próprio nome, mesmo quando isto possa escandalizar a3 almas tímidas. Daí a acusação de livro imoral que durante muito tempo fez de "Ulisses" um livro oficialmente condenado na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Acha-se imoral mencionar os órgãos genitais pelos seus verdadeiros nomes, mas não se acha imoral a natureza que os criou. Nem imoral possuí-los com todas as funções para que foram talvez imprudentemente criados. Aos atos de comer, beber, vestir pode-se emprestar uma significação psicológica, um valor artístico, sentimental, como o fizeram Huysmans, Barley, Montesquieu; aos da vida sexual, não. Joyce, e depois Lawrence provaram o contrário.

Bem poderia Joyce a propósito da imoralidade que se atribui a certas passagens do seu romance, repetir aquela resposta de um seu personagem, Stephano, a propósito da obscuridade que achavam nas suas palavras. "Acham, diz ele, as minhas palavras obscuras. A obscuridade está nas nossas almas, não é assim mesmo ?"

Não são somente obscuras as almas sem inocência, feridas do mal do pecado: elas são igualmente cheias de malícia, e emprenham com as palavras. A obscenidade em literatura, antes de ferir o pudor é a arte que fere em primeiro lugar.

Mas nenhum autor se conhece, no gênero do romance, que já imprimisse, como Joyce, um maior caráter estético à sua arte, e que se reflete menos no refinamento das idéias e das palavras do que no seu

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poder impessoal de projetar a vida, recriando-a em uma escala nova de valores.

Todo o extraordinário realismo de "Ulisses" nasce desse desprendimento do autor — da sua capacidade de colocar-se em face da sua obra como o divino criador em face da sua criação: sem imiscuir-se nela, sem tomar partido. E só assim seria possível a Joyce, reproduzindo em 18 horas a vida de Dublin, nela simultaneamente reproduzir os maiores problemas que ferem a vida do homem moderno.

A leitura de "Ulisses" tem que ser uma conquista não apenas da inteligência mas da sensibilidade do leitor. Uma longa conquista. E a primeira coisa que o leitor tem que levar em conta nessa leitura são os paralelismos constantes dos diversos e simultâneos planos psicológicos de ação em que o livro se desenvolve, as associações mais imprevistas de idéias, de sensações, de fatos partindo de todas as zonas sensíveis do homem e que parecem se entrançar no tempo e no espaço.

À primeira vista fica-se espantado que, em pouco tempo, se vendessem nos Estados Unidos 50.000 exemplares de "Ulisses", de um livro que, pelas sutilezas da sua técnica, e o seu intenso subjetivismo, é como se fosse escrito para uma reduzida elite de leitores; para superletrados. Mas é que a secreta e estupenda realidade que nem sempre se explica nele, sente-se. Há uma sugestão indefinível de muitas das suas cenas que aguçam e forçam o espírito do leitor. Como acontece ao observador menos prosaico ou convencional diante de certos quadros de Picasso ou de Klee, ou acontece

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com muitos que ouvem a música de Schonberg e Strawinski.

E' verdade que a linguagem gráfica por mais fkúdez que se lhe dê nunca tem as mesmas facilidades de sugestão da linguagem musical ou da linguagem pictural. Mas ao lado de várias e por vezes intransponíveis barreiras que o leitor mesmo de um vivo espírito e experimentado na arte de ler, vai encontrar na obra de Joyce, são tantos os horizontes que nela te abrem que esse leitor se compensará regiamente das obscuridades que não penetra com o que, num passo e noutro, ela lhe descobre em verdade do homem e da vida.

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PROBLEMAS DO ROMANCE EM DOSTOIEVSKI

I

JLN SNHUM gênero de literatura que tivesse sofrido até hoje maiores transformações do que o romance. Da sua primeira forma de uma graciosa e fugitiva poesia ou da forma seu tanto épica do período da cavalaria, o romance foi pouco a pouco assimilando as cores naturais da vida até a supersaturação do naturalismo do século XIX, até o romance documentário, o romance quase científico de Zola.

Dá-se, porém, que o real do romance manifesta-se com uma espontaneidade e uma fluidez que excedem às previsões da ciência; ele encerra uma natureza mais complexa e maravilhosa do que a da vida que diretamente incide sobre os nossos sentidos — da vida como ela se projeta no sólido e inerte plano euclideano das três dimensões.

Foi o romance de Dostoievski o primeiro a penetrar além desse plano explorando uma região até então quase virgem para a literatura romântica de todos os

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tempos, e região entretanto de um encanto magico — a da vida subterrânea, que emerge como uma flora ção selvagem do subsolo do homem.

Com Dostoievski o romance não conserva mais nada daquela fabulação poética ou heróica de antigamente — um jato de imaginação vivo e rápido como um sopro de luz — nem tampouco da crua e detalhada imagem da vida em que tanto se deixou materializar sob a influência do naturalismo do século passado.

Do romance naturalista, sem excetuar os melhores — que venha de um Zola, um Flaubert, um Gon-court — pode-se dizer que nada reproduz que vá além do verossimilhante, do longamente estabelecido e aceito, do cientificamente certo, do dois e dois igual a quatro. ele reflete bem a vida mas unilateralmente, compri-mindo-a numa paixão ou numa idéia, quando não a reflete nas suas linhas apenas de superfície. Deles bem se podendo dizer o que Aristófanes já dizia das comédias de Menandro: "Ó Vida e Menandro! qual de vós dois imitais um ao outro?"

Desta tendência para fazer do romance um espelho da vida é que nasce o extravagante esforço para adaptar à literatura métodos que não lhe pertencem, entre eles o apego ao documento, à pesquisa histórica, e a quanto possa levar o romancista ao máximo de objetividade e de impersonalidade — essas duas satisfações orgulhosas da ciência.

O romance de Dostoievski, muito mais do que o de Stendhal, foi uma reação violenta contra esse conformismo intelectual que ameaçava um dos gêneros

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mais plásticos e mais fecundos da literatura. Possui o romance um tecido mais dútil e indeterminado do que qualquer outra arte. E, conforme Thibaudet, ele tem a seu favor espaço e tempo. O espaço e o tempo, poderíamos acrescentar, de toda a eten idade, e que Shakespeare não parece, em muitos casos, e contra a lei do drama, senão furtar ao romance para a sua poesia.

Shakespeare foi incontestàvelmente o poeta que melhor conseguiu transpor para os termos do drama as realidades do romance ou, em outras palavras, quem melhor pareceu alargar no romance os limites do drama, desdobrando sob as formas mais diversas de ação e de pensamento o caráter dos seus personagens, aumentando-lhes de um ponto por vezes sobreumano a sua significação natural.

Mas este ideal shakespeareano de uma representação em grau superlativo da vida, ninguém no romance realizou com mais força do que Dostoievski — uma força sublime e trágica. E mais é do romance do que de qualquer outra arte juntar o fantástico, o puramente imaginário ao real mais sensível e concreto, fundir profundamente um com o outro. E' do romance tornar verossimilhante o absurdo. Comandar o impossível. E nessa forma de ficção em que a realidade do sonho acaba subvertendo a da consciência, a lógica do instinto derrotando a lógica da razão, não é o sentimento da unidade da vida o que mais se procura; mas o infinito da vida. Não é propriamente o termo homem mas o termo destino, que o ultrapassa.

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Henri Massis, em "Réflexions sur l'art du roman", acha que "o romancista é o homem que gosta de contar historias, é Dostoievski que, encontrando na rua um operário sem levar a mulher de braço, mas acompanhado de um filhinho, logo imagina todo um drama".

Apenas convinha acentuar que este drama imaginado por Dostoievski não se confunde com as histórias que em regra os romancistas gostam de contar — histórias de um caráter puramente descritivo, episódico e sentimental, no fim deixando mais a impressão de reproduzidas pela memória do que criadas pela imaginação. Deixam tais histórias quando muito a im-pressão de contos para crianças grandes, e que valessem ùnicamente pela vivacidade e colorido do enredo.

A concepção de romance em Dostoievski nada tinha de comum com a dos romancistas mais célebres do seu tempo, mesmo aqueles por quem na sua juventude confessava uma admiração sem limites — George Sand, Balzac, Dickens. Os seus romances não representam a idealização de nenhum sentimento ou de nenhuma paixão com sacrifício de valores outros colaterais que os possam modificar, contradizer ou negar — com sacrifício dos imponderáveis psicológicos que sempre pesaram na sua escala dos valores vitais.

No seu "Journal d'un écrivain", Dostoievski explica-se bem dizendo que o romance para ele não passa de "um meio para experimentar, em personagens como os da vida, a verdade inteira das suas idéias".

E assim deve ser: só a idéia vivificada pela imaginação para aprofundar em mistério a fácil evidência

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das coisas, intensificar em aventura o quotidiano da vida, fundir caracteres fortes, cheios de determinação, de audácia, de amor e de ódio, marcando-os como a uns verdadeiros símbolos de humanidade.

A idéia donde nasce a grande atmosfera dos romances de Dostoievski e transforma em símbolos universais tantos dos seus personagens, é a da solidariedade humana baseada na dor — do amor se renovando no sofrimento como no seu principal e mais doce elemento.

Assim é que o seu realismo nada tem que ver com o realismo mecânico, de fundo material e grosseiro, dos romancistas da escola de Medan, realismo muito gordo de fatos e ávido de descritivos. São romances por isto mesmo sem nenhum mistério, mas o mistério, bem ou mal é a alma da ficção. E daí o papel preponderante e ativo do sonho em todo o romance, o sonho como uma manifestação explosiva e sem forma do real, uma solitária aventura do instinto.

Não se contam da obra de Dostoievski os trechos em que ele exalta o sonho como uma misteriosa fonte de verdade; com alguma coisa de profético e libertador para a vida íntima do homem. E' do romance "O Idiota" o trecho onde se lê: "A extravagância do teu sonho faz sorrir e ao mesmo tempo sentir que este tecido de absurdos encerra uma idéia, mas uma idéia real que pertence à tua verdadeira vida, a uma vida que existe, e que sempre existiu no teu coração; vejas no teu sonho a profecia que esperavas."

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A verdade porém é que o sonho como ele vai se encarnar no pensamento e na ação dos seus personagens, manifestando-se como uma suprema libertação dos sentidos, tem de certo um interesse infinitamente mais dramático. Os sonhos que embebedam a vida de Ivan Karamazov, Raskolnikof, Ordinov. Intensos e lúcidos na sua exaltação. E tão violentamente sugestivos que o próprio leitor a cada passo parece vacilar, como os personagens, entre o estado onírico e o estado real. Sem bem saber se está nas nuvens se está na terra.

Não é pois nenhuma mentira dizer-se que, na arte, a realidade que mais comanda não é a que tem raiz nos nossos sentidos, mas a que irrompe em nós como uma explosão da nossa natureza subterrânea. Talvez por isto a afirmação de André Gide no seu "Dos-toievski", achando que "o verdadeiro artista fica sempre semi-inconscieníe de si mesmo quando produz". Isto não quer dizer que todo grande romancista ou todo grande poeta escrevam sempre em um estado de acesa inspiração. Com Dostoievski pelo menos a inspiração nem sempre lhe vinha como água da fonte. Ela mostrava-se às vezes bem rebelde. Dura de acordar. Apenas uma vez em movimento nada detinha a sua flama enorme.

Os fatos que mais enriquecem os romances de Dostoievski não interessam tanto pelo que exprimem em ação; interessam sobretudo pelo que exprimem em idéia. De gestos, desejos, impulsos, atos dos seu3 personagens bem se poderia dizer serem mais formas de pensamento do que manifestações de vontade. E

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dessa confusão de categorias — o pensamento dissol-vendo-se em ação, e outras vezes a ação parecendo abstratar-se como o pensamento — nascem as grandes e trágicas sombras em que se aprofunda a misteriosa vida dos seus romances.

"Nada pode existir de mais fantástico e inverossí-mel do que a realidade", é uma frase bastante significativa de Dostoievski. O difícil é alcançar essa realidade, surpreendê-la nos seus flagrantes mais típicos.

E tanto faz a realidade do mundo psicológico como a do mundo físico: não a perceberemos jamais pelos meios comuns de observação, a olho nu. Num e noutro caso impõe-se uma graduação extraordinária de todos os meios de percepção. Não é a mesma coisa a natureza vista aparentemente, a "grosso modo", e vista nas suas individuações profundas. No primeiro caso a natureza pouco oferece de extraordinariamente novo à vista do observador. Mas se ampliamos a observação do mundo exterior logo começa a grande transfiguração.

Basta por exemplo o uso de um simples microscópio, e veremos essa insignificância líquida que é uma gota d'agua ganhar um áspero maravilhoso; o grão de areia crescer, tomar proporções inacreditáveis, e os corpos atômicos, inertes e vagos, enchem-se de um tão frenético movimento como se intimamente os animasse uma alma de demônio. Enfim: tudo fica "fantástico e inverossímel" e nem por isto menos real.

No mundo psicológico repete-se o mesmo prodígio, senão em maior escala ainda. Basta que alar-

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guemos pela sensibilidade e pela imaginação a nossa faculdade de percepção e de análise, e logo os sentimentos, as atitudes, os gestos aparentemente de uma insignificância da gota d'agua, ficam de um interesse dramático raro.

Disse Einstein que "Há coisas absolutas no mundo, o essencial é que se saiba olhar profundamente para elas." O romance de Dostoievski significa precisamente uma experiência ao vivo da alma humana de formas absolutas de ser. ele procura dar uma expressão efetiva, tragicamente efetiva, a todo o potencial de vida que existe no homem. Experimentar do instinto e da paixão todas as suas formas possíveis de expressão: esgotar todos o seu "pathos". Não há, por isto, personagem de Dostoievski que não viva uma vida perigosa.

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O HOMEM E O ARTISTA EM DOSTOIEVSKI

II

IZ André Gide que raramente um autor de romance chega a fundir-se com tanta naturalidade nos seus personagens como Dostoievski.

Aliás o primeiro grande romance de Dostoievski pode-se dizer que foi o da sua própria vida. De um drama não menos comovente e trágico do que os da sua melhor ficção. E' possível mesmo que o instinto ficcionista lhe dirigisse a vida no sentido terrivelmente trágico que ela teve.

Ainda hoje constitui um problema para a crítica indagar se o homem é inseparável do artista, ou pelo contrário, se a arte esconde o homem. Nesta última hipótese seria a arte como alguma coisa de angélico, feita de momentos de inspiração, de estados emocionais específicos que varreriam completamente o homem do artista. E daí falar-se tanto do contraste entre a vida e a obra de certos escritores como se uma fosse independente da outra, ou se repelissem.

Não se acerta por exemplo em concordar o acento divinamente lírico, a doçura de um tão suave misticis-

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mo da poesia de Verlaine, da sua poesia inefável de "Sagesse" com a desordem que se via no homem com a sua concupiscência e os seus excessos de boêmio; da mesma maneira que não se identifica o sólido senso pedagógico nem os pensamentos desinteressados e vivos que se encontram no "Emílio" de Rousseau, com o selvagem egoísmo do homem que manda para a roda todos os filhos; nem por outro lado se encontra uma fórmula para conciliar em Bacon o cortezão e o filósofo, ou em Rafael o grande libertino e o pintor de Madonas.

E' uma questão esta que depende do ponto de vista mais ou menos ortodoxo que se tome. O que não se compreende, porém, é nenhum artista que possa se idealizar a tal ponto no seu esforço criador, passar por um tal processo de decantação espiritual que nele se dissolvam os outros elementos da sua personalidade. E que viesse a fazer da arte um ato eterno da inteligência, um imotivado fiat do espírito, ou um milagre da sua inspiração.

Temos antes para nós que quanto mais o artista possua a força de clarificar do homem as suas tendências mais altas, dar expressão aos seus impulsos mais secretos, ou desenvolver em todas as formas possíveis de ação o seu potencial de inteligência e de vontade, tanto melhor, mais afirmativo na sua arte.

No que toca a Dostoievski o homem sempre esteve presente no romancista, presente com todas as suas contradições. Gide disse bem: "Je ne connait pas d'ecrivain plus riche en contradictions et en inconsequences que Dostoievski."

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Dostoievski não dava a impressão de um, mas de vários homens ao mesmo tempo. Assim também os personagens dos seus romances. Raramente ele figurou seja que personagem com uma existência singular, única, mas sempre acompanhado de um duplo, de outro ego, que quando mais o contradiz, mais o desenvolve e o completa.

Mas das suas contradições pessoais poderia se dizer a mesma coisa que das contradições dos seus personagens: longe de significarem insuficiência de caráter, significam antes uma maior vitalidade do instinto, uma tensão interior que se parte muitas vezes nas direções mais diferentes. Às vezes mais opostas.

Só uma contradição não vingou na vida de Dostoievski: foi a carreira militar que no começo seguiu. Esta carreira é que menos cruzava com os caminhos da sua vocação. Mas a vocação é como um dom sagrado — uma espécie de graça com todas as fidelidades perfeitas da graça. E uma necessidade de salvação como a que acompanha os eleitos não deixa nunca as grandes vocações que elas se percam ou se neguem.

O caso de Dostoievski é um dos mais típicos dessa feliz predestinação. Filho de um médico cirurgião que não era menos impassível nem menos frio nos seus processos de educação doméstica do que nos seus processos cirúrgicos, e queria talhar à sua própria e insí-pida imagem o caráter de cada um dos filhos, viu-se Dostoievski logo cedo obrigado a compromissos morais que não haviam de lhe torturar menos do que os com-promissos de dinheiro que o perseguiram na idade adulta.

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Menino e só, o único conscio de Dostoievski feito um prisioneiro da casa paterna eram as leituras: leituras de Shakespeare, Hugo, Walter Scott, Dickens, George Sand, Pouckine, Joukosvski e de outros autores não menos românticos que haviam de excitá-lo até a febre.

Desgraçadamente, porém, a carreira que o pai acabou escolhendo para ele nao era das que afinassem mais intimamente com leituras de Shakespeare ou Joukosvski : a carreira de engenheiro militar. Talvez a mais em conflito com o seu temperamento.

Disciplina, espírito geométrico, o culto do nacional pelo nacional são 03 predicados que mais aderem ao caráter da vida militar, ou que mais o exprimem: liberdade de espírito, gênio de aventura, o culto romântico da humanidade pela humanidade é, pelo contrário, o que Dostoievski defendia acima de tudo.

A ordem que deve prevalecer para o soldado é consubstanciai com o principio da mais rígida disciplina; para Dostoievski a ordem per excelência é consubstanciai com o princípio da mais extensa liberdade. Uma ordem o seu tanto boêmia. Nada disto impede entretanto que ele chegue a oficial. Apenas a voz marcial do tenente não consegue abafar a voz profética do escritor que então já se faz ouvir em traduções dos romances de Balzac. Na tradução de "Eugene Grandet", conta um dos seus biógrafos, Pers-ki, que acaba ele pondo muito mais de si mesmo do que do autor.

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Projetou depois a tradução da obra de Schiller. Mas não traduziu Schiller. Começa agora uma tradução mas de outro texto diferente. Começa a traduzir e a interpretar em atos do mais dramático vigor mas é o seu próprio destino. A decifrar-se ele mesmo. E o primeiro capítulo de tão extraordinária obra foi a sua demissão voluntária do posto de tenente-engenheiro, um gesto loucamente audacioso para quem não contava com outros meios seguros de subsistência, e enchia-se de dívidas.

Mas neste gesto louco estava o bom senso da 6ua vocação, e que ele exprime com a maior verdade nestas palavras: "A vida é um peso morto quando se perde ao melhor do seu tempo em ocupações que nos deixam estéreis." Depois disto seguem-se outras atitudes de Dostoievski. O esforço para estender o plano da sua personalidade, Dostoievski antes de realizá-lo no romance com os seus personagens, realizou-o consigo mesmo em experiências da mais vertiginosa aventura.

E curioso: ao contrário de Balzac, na sua escala de valores o que menos contava era o dinheiro, era o ouro. Muitos são por isto mesmo os episódios dos seus romances que confirmam a sua frase escrita a propósito de Nekrassov, no "Journal d'un ecrivain", onde diz : "somente à multidão, à gente fraca e timorata é que o ouro pode parecer uma segurança".

No mundo que Dostoievski traz para os seus romances o capital de maior circulação nunca veio a ser o ouro; nunca o ouro a verdadeira substância da verda-

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deira riqueza e da vida, e sim o homem ele mesmo, com as suas fraquezas, o seu egoísmo, a sua brutalidade, e também com a sua ternura, as suas ilusões e o mistério da sua inteligência e do seu coração.

Há, neste particular, um episódio da vida de Dostoievski que é bem característico, e parece arrancado de um dos seus romances : um médico, amigo da família, para corrigir o gênio dissipador de Dostoievski leva-o para morar juntos. Queria ensiná-lo a ser econômico. Mas foi Dostoievski um péssimo discípulo. Os clientes do seu amigo médico, sobretudo os mais miseráveis o atraíam com uma simpatia quase mórbida. Arrastava-os docemente para os cantos do gabinete médico, e ganhando de todos eles uma confiança ilimitada, ouvia-lhes as confidencias mais íntimas, e acabava sempre por distribuir a um por um tudo o que tinha, e quando faltava do seu, não lhe faltava argumentos sensíveis para forçar a bólsa do médico, do seu mestre de economia.

Outras vêzes eram os criados que o roubavam sem a menor cerimônia, e que ele deixava fazer risonha-mente por amor a uma não sei que singularidade de expressão que descobria neles, e que o encantava. A imaginação do romancista sempre lutou em Dostoievski contra todo o senso burguês e seguro de vida. Foi esta imaginação de certo, mais do que uma paixão revolucionária que o havia de levar às reuniões do grupo Petrachevski, e daí ao episódio mais trágico da sua vida — o seu degredo de dez anos, sendo quatro de trabalhos forçados na Sibéria, quatro anos de uma transmigracão de corpo e alma para o inferno, a fim de que

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uma vez mais, como no sacrifício de Jesus, nele se glorificasse a natureza humana.

ele próprio se espanta do milagre, quando escreve: "Existe na natureza humana uma grande reserva de vitalidade; verdadeiramente não acreditaria que existisse tanto, se o não soubesse por experiência." Não se refere por certo Dostoievski à vitalidade física, mas à vitalidade do espírito mais forte aí do que todas as provações da dor.

Como tantas vezes confessa na sua correspondência íntima, era a falta de silêncio a sua maior dor de forçado: a falta de silêncio e de solidão na Sibéria. Não poder estar só um minuto. Sempre rodeado dos mesmos indivíduos e das mesmas vozes. Não sentir o silêncio! Não poder nunca tomar contacto com a sua vida interior. Concentrar-se. E' a suprema tragédia. A tragédia de quem visse obstruído o caminho para identificar-se a si mesmo, e fosse tomado da angústia pior do que a do homem que se vê no deserto — a angústia de perder a consciência do seu sexo e da sua humanidade. De sentir-se coisa mais do que homem.

Os romances de uma vida colossal, que chega ao dilírio, da sua idade madura, como os "Possessos", ou "Os irmãos Karamazov", não parecem senão uma desforra desses anos de dramática negação de si mesmo. os seus anos de morto-vivo.

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A HUMILDADE DE DOSTOIEVSKI

III

A HUMILDADE e o amor foram os dois sentimentos mais presentes em Dostoievski e crescem eles com um pcder ainda mais comovente de expressão no caráter e na ação dos seus personagens. Os horrores da Sibéria não fizeram senão avivar pelo sofrimento essas duas grandes diagonais da sua vida.

Stefan Zweig no seu livro "Trois Maitres" diz: '"Todo sofrimento engendra na sua alma um novo desejo de sofrimento, uma sede inextinguível, deverante de novas coroas de martírio." Poucos homens foram na verdade de uma humildade mais franciscana, mais inesgotável de renúncias do que Dostoievski. André Gide numa das suas admiráveis conferências sobre o autor do ''Crime e Castigo" conta que não se via em Dostoievski "nenhuma pose, nenhuma cenografia. ele não se considera nunca um super-homem; nada de mais humildemente humano do que ele; e chego a pensar que um espírito cheio de orgulho não o compreenderia inteiramente" .

O orgulho para Dostoievski — que entretanto era descendente de nobres pelo lado paterno — havia de

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parecer pior do que um pecado contra a vida; era uma injúria contra Deus ou contra a humanidade. O orgulhoso é sempre um homem unilateral; não sai nunca das paredes do seu egoísmo, não confraterniza. Não se desencarna pelo espírito para aderir às mil e uma indeterminadas formas de ser que a vida tem. Toda a verdade está nas suas opiniões; toda a vida está na sua vida. O orgulhoso, se bem analisarmos é por isto mesmo um homem impróprio para a verdadeira ciência tanto como para a verdadeira arte.

É preciso uma docilidade de espírito, uma imaginação sutil e plástica que levem o cientista ao possível de todas as hipóteses, como para a verdadeira arte faz-se necessário uma certa e particular humildade, uma predisposição íntima para sentir a vida como um dom, uma misteriosa graça e não como um prêmio.

Esta humildade de uma essência filosófica ou cristã nada tem que ver com a humildade que é ao mesmo tempo renúncia de todo o amor próprio. Que é humilhação. A humildade dos vencidos. Esta induz 'ao medo da vida; põe o homem na dependência de tudo o que o cerca. E' a água dormente que engendra o miasma. A humildade de Dostoievski é doutra espécie; parte antes de um grande amor à vida; de uma paciente esperança em face do mistério universal. Mais livremente o homem se submete mais se relaciona, mais entra em conjunção com outras vidas, e conseqüentemente mais se desdobra e se fortalece no plano da natureza. E' a água corrente que cede a todas as curvas e a todos cs acidentes do seu leito para ir juntar-se ao mar.

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"Aquele que se abaixa será elevado", é a palavra das escrituras.

Dostoievski tinha essa humildade de gosto cristão, humanissimamente cristão. De um homem sem as desconfiança e as premeditações do orgulho. As suas cartas, mesmo as mais íntimas, quase todas dão testemunho da disponibilidade enorme do seu amor-próprio, que1 nunca, porém, havia de chegar a uma abdicação de personalidade.

Há um episódio da vida de Dostoievski que é bem característico, e não diz menos do homem do que todas as suas cartas íntimas. Este episódio que André Gide descreve no seu livro sobre Dostoievski vem dele ter atribuído a si mesmo um crime idêntico ao que se conhece da confissão de Stravoguine, contra uma menor que é violentada e depois se suicida cheia de vergonha. Deste crime lhe teria vindo então um grande remorso, e com o remorso a necessidade de uma confissão, e que fosse como uma espécie de penitência.

Tal como reproduz Gide a confissão de Dostoievski fèz-se da forma mais dramática. "ele quis procurar, diz Gide, aquele diante de quem esta confissão lhe devia doer mais; era incontestávelmente Turgueniev. Dostoievski não via Turgueniev há muito tempo, e com ele não andava nas melhores relações. Ivan Turgueniev era um homem de posição, rico, célebre, universalmente honrado. Dostoievski armou-se de toda a sua coragem, ou talvez cedeu a uma espécie de vertigem, a uma misteriosa e terrível atração.

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Figuremos o confortável gabinete de trabalho de Turgueniev. Este à sua mesa de escrever. — Alguém bate. Um criado anuncia Teodoro Dostoievski. — Que quer ele? — Manda que entre, e ei-lo sem mais preâmbulo a contar a sua história. — Turgueniev o escuta com estupor. Que tem ele a ver com tudo isto? Certamente o homem enlouqueceu! — Finda a história, grande silêncio. Dostoievski espera da parte de Turgueniev uma palavra, um sinal... Sem dúvida acredita que como nos seus romances, Turgueniev vai partir para ele, abraçá-lo chorando, se reconciliar. . . mas como nada disto vem:

Turgueniev é preciso que eu diga: "eu me desprezo profundamente..." Espera ainda. Sempre o silêncio. Então Dostoievski não se contém mais e, furiosamente, acrescenta:

— "Mas eu lhe desprezo muito mais ainda. E' tudo o que eu tinha a lhe dizer. . . e saiu batendo a porta."

Este último e indignado gesto do seu amor-próprio não contradiz a humildade da sua confissão, e que chega a ter um sabor medieval. Havia sempre em Dostoievski uma constante de resignação que o enchia de uma força invencível na dor. Isto explica que os anos do seu presídio na Sibéria, quase oito anos, não lhe tivessem esgotado o espírito, não lhe esterilizassem a sensibilidade, e pudesse depois escrever sobre este mesmo presídio uma das obras mais célebres da literatura universal, a sua "Recordação da Casa dos Mortos", que se costuma comparar, pelo medonho horror dos quadros vivos que aí aparecem, à "Divina Comédia" de Dante.

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Epilético nunca fez da sua epilepsia um tabu, ou um mal vergonhoso que precisasse esconder como se esconde um estigma infamante. Nenhum complexo lhe veio desse mai vulcânico para pertubar jamais a inspiração do seu gênio. ele acaba mesmo por transpor para o romance, em análises de uma fulgurante penetração toda a experiência íntima da sua moléstia.

Nada do que é humanamente da vida, do que é uma contigência da natureza pode constituir um objeto de repugnância ou de humilhação para os verdadeiros humildes.

O escritor que de vez em quando, nas suas cartas, alude às terríveis crises de epilepsia que muitas vêzes o vinham apanhar no melhor do seu trabalho de romancista, e estupidificá-lo, é o mesmo que, sem nenhum falso constrangimento, costuma aludir a deficiências do próprio caráter, e confessar, como certa vez, em carta ao seu amigo Maicov: "Tenho um mau caráter, mas nao sempre, é a minha consolação." O apóstolo São Paulo não falou outra linguagem, quando disse em carta aos Coríntios: "Não faço absolutamente o bem que amo e faço o mal que odeio."

A zona de maior sensibilização do homem é a do seu amor próprio literário, quando ele é escritor: tudo o que não a entumesce de gozo a deixa em sangue e pus. Não há nunca limites para a vaidade literária. E ela tem quase sempre a coragem de todas as presun-ções. Poucos, muito poucos os escritores que falam da sua arte como de um trabalho de forçado. Dostoievski porém, mais do que Lessing e do que Poe, tinha essa

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franqueza humilde. Nunca escondeu as dificuldades do seu talento e da sua arte.

Entretanto se existe obra que pela sua força incandescente de expressão, pela dramaticidade vertiginosa das suas cenas, pela terrível exuberância das suas figuras deixe a sensação de involuntariamente criada, de ter sido ela toda fundida em ardentes sopros de inspiração, é a obra de Dostoievski. Mas Dostoievski não se faz de gênio por isto. No seu "Jornal de um escritor", pelo contrário, ele acha que "o mais inteligente dos homens é aquele que pelo menos uma vez por mês se reconhece imbecil". Grande blasfêmia há de parecer esta frase para a maioria dos nossos autores que ao menos uma vez por dia se acham gênios!

Em Dostoievski o pecado do orgulho não era o seu pecado. Assim é que já escritor de uma fama universal nem por isto mostrava maior confiança na sua obra, ou em si mesmo. E' o que bem resulta da sua carta de 1868 a Apoio Maicov, onde fala das suas agonias de autor na mesma voz tímida e anciosa dos estreantes. E fala assim a propósito de que livro? A propósito do seu grande romance "Idiota". Chega a dizer: "Agora não se trata mesmo de sucesso, é preciso evitar a queda definitiva.-" E logo mais adiante: "Enviei enfim a 2.a parte. Que lhe dizer ? Não posso nada dizer de mim porque perdi toda opinião. O fim da segunda parte me agrada; mas que dirão os leitores? O resto, não; como na primeira parte, vazio. Quisera somente que o leitor o lesse sem se enfadar. Não pretendo nada além disso."

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Por outro lado a prova de que nem sempre a inspiração lhe vinha como coisa do Céu, abundante e fácil basta recordar as palavras de uma carta sua, de 1864, ainda ao poeta Maicov, onde, a propósito do "Crime e Castigo", diz: "O romance é longo; tem seis partes. No fim de novembro existia já uma grande porção escrita; quase risquei tudo! Agora posso dizê-lo: o que existia não me agradava. Uma forma, um novo plano me arrastaram. Recomecei. Trabalho dia e noite, e entre tanto avanço pouco."

E em outra carta, ainda a propósito do mesmo romance: "Trabalho como um forçado, apesar dos lindos dias que gostaria de aproveitar; estou dia e noite no romance. "

Outras vêzes nem para um artigo a inspiração lhe parecia ajudar, como o confirma éste outro trecho de carta: "Trabalhei no artigo até hoje (um artigo sôbre Bielenski) e enfim terminei rangindo os dentes. Dez folhas de romance são mais fáceis de escrever do que estas duas folhas. O fato é que escrevi este maldito artigo, bem contado, umas cinco vêzes pelo menos, e depois risquei tudo e modifiquei o que estava escrito. Enfim mal ou bem acabei; mas estou tão abatido que me dói o coração."

São curiosas as suas cartas a Maicov. Numa delas, que data de outubro de 1870, ele chega a essa confissão extraordinária: "O trabalho que me prende agora é o começo de um romance (refere-se ao "Os Possessos") para o Mensageiro Russo no qual vou trabalhar dia e

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noite durante seis meses pelo menos. Sem dúvida existe nele alguma coisa que me excita para escrevê-lo, mas em geral, para mim, não há nada no mundo que me desgoste mais do que o trabalho literário, isto é, escrever romances e novelas."

Mas que não se veja nestas palavras uma confissão de impotência. Elas vêm provar apenas uma verdade: que as concepções dos maiores gênios não acham facilmente a sua forma correspondente de expressão. Toda idéia, é claro, implica uma forma; mas nem toda forma é fiel à idéia que ela procura representar. E nenhum melhor exemplo do que o de Dostoievski, do que o da sua luta feroz por urna expressão que nada traísse de si mesmo e da sua grande mensagem. O esforço que mais exaspera e cansa é o de reagir contra a violência das idéias e das emoções que lhe chegam em torrente atroz de concentrar-se para achar a forma sensível e única que os exprima. Esta, sim, é que foi a sua grande der. Em Dostoievski a sua prodigiosa imaginação romanesca tinha que completar-se com o senso artístico da frase, este senso artístico que partindo da sensibilidade e do gosto exige o maior esforço para cristalizar-se num estilo que seja a encarnação inviolável do seu próprio espírito. E' o que de certo modo confessa o próprio Dostoievski, já no fim da vida, em 1880, quando escreve a Mme. Goussiera: "Estive como forçado na Sibéria durante quatro anos, mas o trabalho e a vida de forçado eram muito mais suportáveis do que minha existência atual. De 15 de junho a 20 de outubro, escrevi perto de vinte folhas de um romance, e fiz aparecer o "Jornal

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de um escritor", três folhas. E ainda não posso descuidar o estilo; devo escrever como artista; eu o devo a Deus, à poesia, ao sucesso obtido pelo que já publiquei, e sobretudo à Rússia que lê, e que espera o fim do merj trabalho."

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OS ROMANCES DE DOSTOIEVSKI IV

D OSTOIEVSKI começa escrevendo dramas. In-fluência seguramente de Schiller, uma das suas maiores devoções literárias da adolescência. Mas os dramas que ele escreveu nunca foram publicados, e nem deram nenhum vivo sinal do seu gênio. Não era certamente o drama o gênero de arte que mais convinha à natureza da sua mensagem.

O drama tende sempre para a ação como para a sua forma mais precisa e viril de ser: a idéia, o pensamento filosófico, a cogitação introspectiva nunca aderem ao espírito sintético e rápido do drama como é possível no romance.

Só Shakespeare elevou o drama à categoria das artes poeticamente mais densas sem coisa nenhuma sacrificar dos seus atributos essenciais de movimento e de ação.

Pelo caráter de muitos dos seus personagens não seria difícil aproximar o poeta inglês do século XVI do romancista russo do século XIX. Em Shakespeare

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como em Dostoievski todos os caracteres são fortes, ines-gotáveis de energia, de paixão, de vontade. Com toda a tensão psicológica dos seres totais.

A coexistência de estados psíquicos diferentes ou furiosamente contrários, e que se cruzam sem se fundirem jamais é uma das realizações mais dramáticas do romance de Destoievski tanto como do drama de Shakespeare . Na obra de ambos é comum a loucura e a sabedoria coexistirem no mesmo indivíduo sem lhe alterar a identidade, e comum também a imbecilidade juntar-se 20S melhores caracteres para refazê-los em uma humanidade mais altruística como não é possível ao orgulho da inteligência; outras vezes são sentimentos liricamente puros, de uma candura divina, e que uma bestialidade mórbida interrompe de repente.

Daí poder-se dizer que em Dostoievski o heterogêneo é unidade como na natureza. Adaptar ao romance uma realidade tão profunda e de impossível previsão como a da vida foi o maior triunfo do gênio de Dos-tcievski. Não enraizá-lo a nenhuma tradição.

A primeira condição para um autor ver além do seu tempo é conservar entre as maiores tentações da vida presente a sua virgindade de espírito, a sua liberdade de imaginação, sem maiores compromissos com as figuras, as coisas e as idéias do passado; antes, pelo contrário, com o poder de sensibilizar o passado em tudo o que a sua história conduz de essencialmente vital para o plano infinito da realidade universal.

Dostoievski possuía essa força d© imaginação. Por isto talvez nunca tivesse ele escrito as suas memo: ias.

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achando que era "uma pobre coisa o recordar". Demais os olhos de Narciso não eram os olhos de Dostoievski. ele não vivia à procura da própria imagem. Recordava-se em outros, nos seus personagens, nunca em si mesmo. André Gide disse certo: "Dostoievski ne s'est jamais cherché; il s'est eperdument donné dans son oeu-vre." A vida que na verdade mais o atraiu não foi jamais a vida vivida mas a vida que vem a ser, a vida de amanhã.

De poucos autores pode-se dizer como de Dostoievski que não fazem da sua arte uma habilidade da memória ou uma mera ginástica da inteligência, mas uma dinâmica criação do seu espírito.

Dois são os problemas que dão aos romances de Dostoievski um interesse permanente e sempre novo: o da consciência moral e religiosa em face da libido do homem, e vice-versa. No fundo é o eterno conflito entre o ser e o não ser, entre a liberdade do instinto e a tirania da razão.

O não sei que de misterioso e sagrado que se mistura a cenas de um realismo brutal, e os fulgurantes contrastres em que se agita a vida dos seus personagens. a sua fuga para Deus no momento às vezes em que os pecados mais imundos parece desgraçá-los para sempre — tudo isto acaba dando aos romances de Dostoievski o ar de uma criação fantástica.

Até um certo ponto Dostoievski conseguiu realizar pelo romance o que Nietzsche pregou em termos mais de abstração, como filósofo — a vida perigosamente vivida, a vida feito um triunfo do instinto e não uma

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imposição do hábito. Mas, diferente de Nietzsche, Dostoievski não reduz o papel do homem comum, não trata o homem comum como um sobejo da natureza, nem tão pouco faz da vontade de poder uma virtude dos eleitos, um signo como o da graça jansenista.

Deve realmente ter sido de um grande embaraço para o filósofo alemão o encontro com a obra de Dostoievski, pelos sentimentos ao mesmo tempo de atração e repulsa que essa obra lhe havia de produzir. Nietzsche o confessa ele mesmo quando, escrevendo em 1866 a George Brandes diz : "Dostoievski foi o único autor a me ensinar alguma coisa em matéria de psicologia, mas nem por isto repugna-me menos aos meus sentimentos mais profundos."

Compreende-se esse sentimento de repulsa em quem como Nietzsche tinha assumido tão violentos compromissos com a raça dos super-homens. Que não foi propriamente a raça dos personagens de Dostoievski. Ninguém como Dostoievski mais perdido de ternura pelos humildes, e toda a sua obra respira de qualquer maneira um sopro de religiosidade, excita-a aqui e acolá um ardor místico que o ateísmo vociferante de Nietzsche repele e condena. Não há nos romances do escritor russo um herói que seja talhado à imagem e semelhança dos heróis da concepção nietzscheana.

Não é tanto a vontade de poder, um desejo imperial de vida a força que eletriza os personagens de Dostoïevski: é mais a vontade de ser. Dostoievski liga-se à família de Schopenhauer mais do que à família de Nietzsche.

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Nas figuras de Dostoievski nunca é uma ou outra tendência que se exaltando mórbidamente vai tomar o comando de todas as outras tendências, ou absorvê-las numa única e devorante paixão. Não é isto. Isto pertence a Balzac. O que faz de uma impressão tremenda os personagens de Dostoievski é que eles são a presa de múltiplas tendências ao mesmo tempo. São homens em ebulição, que fazem e se refazem dentro de si mesmos como num forno de alta temperatura. É como se caos inicial subsistisse neles.

Stefan Zweig não se excede quando, a propósito dos personagens de Dostoievski escreve: "eles não repousam nunca, eles combatem, eles não dormem, são febris, agitados, tensíssimos; neles tudo é superlativo." Às vezes é como se fossem sonâmbulos, tomados da vertigem do movimento, da ação aventurosa e cheia de perigo, homens em quem a fome de sensações inéditas ou a fome de se realizarem superlativamente deixasse num estado permanente de choque.

Nada se pode comparar aos efeitos terrivelmente dramáticos, e tanto mais dramáticos quanto mais verdadeiros que Dostoievski consegue desses desajustamentcs íntimos, desses desequilíbrios de personalidade, desse perigoso jogo de valores psicológicos, e em que tudo se ganha ou tudo se perde.

Em quase todos os seus romances, porém mais par-ticularmente no "Possessos" e no "Os irmãos Karama-zov" é que vemos refinar-se o gênio de Dostoievski posto na observação e na análise justamente daqueles contrastes de sentimentos e daqueles conflitos mentais

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que impelem o homem às últimas fronteiras de si mesmo.

Raskolnikoff, Kirilov, Ivan Karamazov, como Dora Pavlovna, Stavroguine, Alioche, Muichkine são todos personagens que em cada gesto, em cada movimento deixam ver a obsessão que os domina, a idéia fixa que os devora como um cancro: a de serem livres, mas absolutamente livres. De serem fora da regra: além do bem e do mal.

Quase todos os grandes personagens de Dostoiei-vski — e eles foram legião — não sofrem e não lutam como uns danados senão para a maior liberdade possível de ser, e mesmo por uma liberdade impossível. A vida exerce sobre eles uma fascinação selvagem, diabólica, implacável. Daí o impulso furioso com que se lançam a ela como a um pélago insondável, e muitos apenas para nele se agitar e morrer.

É difícil para os que têm — e com que volup-tuosidade! — o hábito e o gosto da vida prudente, da vida entre um copo de leite e uma água de Vichi, sentir e amar a população meio de demônio, meio de anjos dos romances de Dostoievski.

São de uma raça que mal se aproxima da nossa raça: dos que preferem morrer pela sua vida à segurança de uma vida que seja uma paródia da morte — a vida achatada pela rotina, comprimida em fórmulas, feita a máscara e não todo o rosto do homem.

Em "Possedés" — para citar aquele romance confessado pelo autor como vindo mais profundamente das

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suas entranhas — vemos o caso singular de um personagem, Kirilov, que chega a desejar frenèticamente a morte por amor à vida. É um paradoxo. Mas que importa ? Os heróis de Dostoievski são os pioneiros de uma nova raça. Eles não cortejam a felicidade, eles não cobiçam fortuna, eles não adoram homenagens, como as cortezãs; eles combatem pela última verdade, pelo eu universalmente humano. O seu querer não se fez de pequenos e furtivos desejos, mas de desejos totais. Eles têm a loucura da liberdade.

Kirilov, por exemplo, que quer Kirilov ? Toda a sua vontade tende com uma aplicação feroz para uma coisa única: conquistar-se a si mesmo, chegar a uma independência moral absoluta, libertar-se de todo o medo. Do medo maior de todos que é o da morte. Tudo é possível ao homem sem medo, e para quem a morte não constitui um antinômico da vida. O homem a Kirilov quer afirmar a sua liberdade ainda que pelo suicídio. ele raciocina assim: "Se Deus existe tudo depende dele, e nada posso sem a sua vontade. Se ele não existe tudo depende de mim, e então serei capaz de afirmar a minha independência. . . É me matando que afirmarei essa independência de maneira mais completa."

Os personagens de Dostoievski não são da mesma estrutura mental dos outros homens. Eles têm o "uncommon sense". São de uma massa psicológica muito complexa e efervescente para uma comparação com os homens da espécie comum. Mas a alma russa está dentro deles, no mistério das suas dores e na sôfrega sede de humanidade que os atormenta.

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AINDA OS ROMANCES DE DOSTOIEVSKI

V

ÃO importa à crítica tomar isoladamente este ou aquele romance de Dostoievski, nem de cada romance este ou aquele episódio, ou esta ou aquela figura. Importa é o sentido total e humano da sua obra: o seu espírito profético.

Mesmo porque poucos romances podem ser mais detalhados do que os de Dostoievski, tal a massa torrencial de fatos e de idéias que circula por todos eles, o mar de sugestões que deles se desprende, o seu mistério.

São romances que deixam sempre a impressão não de longamente pensados, mas de vulcanicamente criados . É como se brotassem de uma gestação monstruosa; fossem sonhos terríveis, desses que oprimem tragicamente o indivíduo, embora gerados no doce silêncio e na obscuridade do sono.

Apenas em Dostoievski os seus sonhos fazem-se em um estado de ardente vigília, em um estado agoniado de febre. Eles revestem por isto um ar mais fan-

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tástico ainda. Não é de admirar portanto que Dos-toievski refizesse tanto os planos dos seus romances, refizesse-os conforme o vento móvel e áspero da sua inspiração.

Uma vez ele próprio confessa, escrevendo a Mai-cov: "Penso que em média para um romance, me vem no dia seis planos diferentes. Minha cabeça transforma-se em moinho." Seis planos, ele disse. Poderia ser dez, cem. É fácil reproduzir toda a estrutura e o plano de uma vida que se pode rever a cada hora, fotografar homens e coisas, adaptar a certas idéias fatos que se conhecem bem. Para um trabalho destes o olho, a mão e a memória é o que mais conta.

Para recriar o homem, porém, penetrar na atmosfera oculta do ser, tirar das suas profundidades virgens o segredo da vida já é uma tarefa menos fácil, e que requer uma outra dinâmica do espírito. A vida vista assim nos seus estados germinativos de ser reflete tantas faces diferentes, promete tantas possibilidades de expressão que não é fácil fixá-la em um só plano e de uma só vez.

Mas quantos fossem os planos de Dostoievski eles haviam de gravitar em torno de uma realidade sempre presente aos seus sentidos — a de uma só e integral humanidade; não a humanidade dividida e contrafeita por arbitrárias desigualdades econômicas, e mais todos os convencionalismos políticos e sociais que não fazem senão redobrar essas desigualdades com força cada vez mais cínica.

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No "Os Possessos", e no "Os Irmãos Karamazov", é que Dostoievski parece concentrar mais esforço pa: a exprimir toda a mensagem que o inquieta. São os seus livros mais profundos, mais ardentemente inspirados, e por isto mesmo mais informes. Em nenhuma filosofia nem em nenhuma literatura o problema do homem nas relações da sua vida material e da sua vida espiritual, foi tratado como naqueles dois romances com tão aceso e bruto realismo, com mais furor de análise e mais es-pírito de descoberta.

"Não existe obra de arte sem colaboração de demônio ." Esta frase de Wlliam Blake é como se fosse inspirada diretamente na obra de Dostoievski. Nada por exemplo de um fundo mais demoníaco, de um impulso mais infernal do que a curiosidade maligna e insaciável de tudo sentir e saber que parecia excitar todos os seus personagens. E eles bem que se conheciam uns aos outros; conheciam-se profundamente; eles como arrancavam do outro a palavra da boca antes que ela fosse pronunciada, e como traduziam dos outros o pensamento que ainda não se acabou de formar, tudo pela monstruosa atividade do seu subconsciente.

Não se conhece problema de natureza social e humana de uma maneira ou doutra não fosse posto à prova nos romances de Dostoievski. E sem que para isto desnaturasse o sentido da verdadeira ficção, ampliando porventura em termos de filosofia os termos do romance.

Dostoievski apenas transpõe para novas e mais dramáticas formas de idéia e de ação o que ordinària-

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mente é tratado de forma especulativa. ele humaniza o abstrato.

Ê o que explica o mundo de uma fascinação estranha dos seus livros. Os seus homens parecendo de uma'especie nova e mais real do que pode criar a natureza. Homens todos possuídos de uma terrível energia. A energia é para eles a eterna delícia. A energia é que faz deles uns fanáticos da vida. "Levo os meus lábios ao copo encantado, e não o deixarei sem primeiro ter visto o fundo", é como Ivan Karamazov exprime o seu gosto de viver. Esgotar até o fundo o copo encantado, até às fezes que amargam. Aliás na atmosfera em que se movem os personagens de Dostoievski, a dor é o elemento de maior saturação. Ê a dor que afinal os humaniza, os elastece mais docemente, e parece preservar neles, mesmo no maior ódio, um coração de criança.

Nicolau Stavroguine, a encarnação da energia refletida, glacial, tranqüilamente feroz onde parece re« cuperar a sua humanidade perdida é no momento em que vai ao bispo Tikhone para ler sua confissão, isto é, no momento em que uma súbita dor de consciência passa por ele como um golpe de raio.

É o que também acontece com o romântico e vago Stepan Trophimovitch: a dor de sentir-se abandonado pela ingratidão da família e dos amigos é que de súbito lhe vai aguçar nova e mais verídica percepção das coisas; o seu espírito somente aí acende-se em inesperadas clarividências, que o levam a uma filosofia divina, e que ele exprime nesta exclamação profunda: "Para se

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libertar o homem do mundo e para se vir a ser completamente livre, é preciso perdoar, perdoar, perdoar."

Outra figura de uma extraordinária significação do "Os Possessos" é a de Chetov, quando ele recebe nos braços, e com um amor ainda mais cheio de ternura, a mulher que o abandonara por outro, e que arrependida volta espontaneamente para ele. Nem uma sombra de ciúme. Nem uma recriminação. Tudo com a maicr simplicidade, e que drama nessa simplicidade!

Aliás de cada uma das grandes figuras de Dos-toievski pode-se dizer que é um símbolo, um símbolo da humanidade vista sob um signo diferente e mais gloriosamente humano.

Não acreditamos, como querem alguns críticos, que se mais vivesse Dostoievski, em outras obras daria maior clarificação, ou uma mais tranqüila solução aos muitos problemas psicológicos que tempestuosamente agita em quase todos os seus romances.

Poucas obras de ficção de tantas verossimilhanças, de tantas e profundas afinidades com o mais profundamente real do homem do que a de Dostoievski. As obscuridades ele mesmo o explica através de um dos seus personagens, nestas palavras: "a verdade real é sempre inverossímil; e para torná-la verossímil, faz-se necessário envolvê-la de um pouco de mentira". Dostoievski condescendeu o menos possível com a mentira ou não fez da mentira muitas vezes senão como uma outra face e mais profunda do real, e daí a muita diversidade de opinião no julgamento da sua obra cheia dessas verdades que transcendem os cálculos da ciência.

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O espírito da ciência,-aliás, é um espírito avaro: restitui sempre em definitivas verdades muito menos do que absorve em fatos. E não retém senão o que é mais da superfície dos homens e das coisas, aquilo que é susceptível de medição e de prova, o que está nos limites da experiência possível. As suas verdades não são nunca por isto mesmo as verdades da poesia e do romance, e que dependem menos da inteligência lógica do que da inteligência intuitiva, menos da razão do que da imaginação.

Nenhum autor como Dostoievski que levasse a sua mão mais perto do "coração selvagem da vida", que auscultasse tão no peito do homem para ouvir-lhe os últimos segredos.

Observando bem dois são os personagens que a descoberto ou veladamente, interferem em toda a obra de Dostoievski dominando o pensamento e a ação de todas as outras figuras: Deus e a Rússia. Extraordinário e dando bem a medida do gênio de Dostoievski é que apesar disto a sua obra não se deixa infeccionar nem pela propaganda religiosa nem pela propaganda política. Não se fecha em tese: não se formaliza em cátedra nem em tribuna.

Seria inútil procurar nos romances de Dostoievski uma definição do seu credo político. Encontram-se sugestões, grandes sugestões de formas solidárias e universais de vida social e política, e a que por vezes se mistura uma concepção mística de governo.

Mas a igualdade que ele aspira e defende para todos os homens é a que está no plano da natureza, a

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igualdade entre os iguais, não a igualdade absoluta, e que faça de cada indivíduo simplesmente um número. É donde vem de certo a crítica que ele faz ao socia-Jismo no "Os Possessos", por exemplo, vai se encontrar o seguinte trecho de diálogo:

"Escutai, Stavroguine: nivelar as montanhas é uma grande idéia; ela não tem nada de ridículo. Eu estou com Chigalev! Basta de educação, já temos ciência demais! O que no mundo mais importa é a docilidade. A sede de instrução não é senão uma sede aristocrática. Basta que se tenha uma família ou qualquer afeição para que nasça logo o desejo de propriedade. Destruiremos este desejo: autorizaremos uma licença desenfreada; abafaremos no ôvo todo o gênio. Reduziremos tudo ao mesmo denominador: a igualdade absoluta. Só o necessário nos é necessário, tal será dagora em diante a divisa do gênero humano."

Em outra parte do mesmo romance um outro personagem vai exprimir-so também sobre o socialismo, e com o mesmo espírito crítico. Exprime-se nestas palavras: "O socialismo na sua essência deve ser ateu. porque ele proclama como artigo primeiro que quer construir o seu mundo unicamente sobre a razão e a ciência. Em todos os tempos, e na vida de todos os povos, a razão e a ciência não têm cumprido senão funções secundárias e subalternas, e continuarão assim até o fim dos séculos."

No "Jornal de um escritor" as restrições ao socialismo ateu e românticamente igualitário fazem-se maiâ

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claramente. Mas apesar de tudo isto o regime soviético adotou Dostoievski. Como se entende? Pelo fato talvez de que ninguém mais do que o autor do "Humilhados e Ultrajados", de "Pobre Gente" viveu nas suas próprias emoções e nas suas necessidades a vida do povo, dos humildes; ninguém mais que ele combateu os orgulhos de raça, de sangue, de Estado. O amor de Dostoievski à Rússia, era um amor o seu tanto místico, em que exaltava da Rússia menos formas históricas de ser, par-ticularismos nacionais e políticos do que o seu gênio maravilhosamente plástico, o seu "destino pan-europeu e universal". Não se sente por isto nenhum chauvinismo, nenhuma superstição patriótica nesta exaltação. ele via na Rússia a grande virgem, a grande substância da civilização moderna, conservada pelo sofrimento em um estado de relativa pureza.

No seu discurso pronunciado em Moscou, quando foi inaugurado o monumento de Pouchkine, em 1880, ele prevê para a Rússia um papel extraordinário na unificação possível de todos os povos achando que "a divisão entre slavófilos e ocidentais não é senão o resultado de um gigantesco mal-entendido". Deste discurso ainda é o trecho em que imagina a Rússia "como um terreno de conciliação para todas as contradições européias e só a alma russa para resolvê-las, a alma russa universalmente unificante".

Parte Doatoievski para essa crença numa missão particular do povo russo, do fato por ele posto de vez em quando no maior relevo, que a alma russa com um

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poder maior de sacrifício, amando mais o sofrimento do que o bem-estar, é por isto mesmo mais compenetravel com todas as nacionalidades.

Mas até onde a inspiração do romancista é capaz de encontrar-se com as verdades da história só o tempo o decidirá.

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OS CADERNOS DE CULTURA

Direção de José Simeão Leal

1 — JOSÉ JANSEN...................................... A Mascara no Culto, no Teatro e na Tradição

2 _ ÁLVARO LINS, CARPEAUX e THOMPSON........................................ José Lins do Rego

3 _ PAULO RONAI ...................................... Escola de Tradutores 4 — CARLOS DRUMMOND DE AN-

DRADE .............................................. Viola de Bolso 5 — Lúcio COSTA ..................................... Arquitetura Brasileira 6 — LÚCIO COSTA.................................... Conslde-ações Sobre a Arte Contem-

porânea 7 — PAULO MENDES CAMPOS . . Forma e Expressão do Soneto 8 — DJACIH MENESES............................... Formação Profissional do Advogado 9 — H. VON KLEIST .................................. Teatro de Marionetes

10 — ANTÔNIO CÂNDIDO ........................... Monte Cristo, ou da Vingança 11 — Luís COSME....................................... Música e Tempo 12 — JOÃO CABRAL DE MELO . . . Miro 13 — OTÁVIO DE FARIA.............................. Significação do Far-West 14 — SANTA ROSA...................................... Roteiro de Arte 15 — SANTA ROSA...................................... Teatro, Realidade Mágica 16 — JOSÉ CARLOS LISBOA ... Teatro de Cervantes 17 — JOSÉ CARLOS LISBOA .... Isabel, a do Bom Gosto 18 — GILBERTO FREYRE............................. José de Alencar 19 — CLARISSE LISPECTOR .... Alguns Contos 20 — MARIO PEDROSA................................ Panorama da Pintura Moderna 21 — ROSÁRIO FUSCO.................................. Introdução à Experiência Estética 22 — CARLOS DANTE DE MORAIS . . Realidade e Ficção 23 — DANTE COSTA ................................... o Sensualismo Alimentar 24 — LEDO Ivo ........................................... Lição de Mário de Andrade 25 — EUGÊNIO GOMES ............................... O Romancista e o Ventrilóquo 26 — JOSÉ LINS DO REGO .... 'Homens. Seres e Coisas 27 _ OTÁVIO TARQUINIO DE SOUSA De Várias Províncias 28 — LÚCIA MIGUEL PEREIRA . . . Cinqüenta Anos de Literatura 29 — ALEXANDRE PASSOS.......................... A Imprensa no Período Colonial 30 — MANOEL DIEGUES JÚNIOR . Etnias e Culturas no Brasil 31 — CYRO DOS ANJOS............................... Explorações no Tempo 32 — OSWALDINO MARQUES ... O Polledro e a Rosa 33 — FERNANDO SABINO............................ Lugares Comuns 34 — PERICLES MADOREIRA DE PLINIO......Notas à Margem do Problema Agrarl.) ?S — VrroHiNO NEMÉSIO ..................................... Portugal e o Brasil na História 36 — WILLY LEWIIN .................................... Ensaios de Circunstâncias

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ROTEIRO DO

CONTO HÚNGARO

Seleção, tradução e notas de PAULO RÓNAI

REVISÃO DE AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA

M I N I S T É R I O DA EDUCACÃO E CULTURA

S E R V I Ç O DE DOCUMENTAÇÃO

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ANYÜKNAK

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PREFÁCIO

Isolada em pleno centro da Europa, por causa de seu meio de expressão, a civilização húngara é uma das menos conhecidas do velho Continente. Entretanto, sua literatura não carece de obras dignas de serem traduzidas. Algumas o foram para o alemão; poucas para o francês, o italiano e o inglês; nenhuma, por assim dizer, para o português. A versão de uns poucos livros húngaros, de línguas intermediárias para o nosso idioma, é devida ao acaso de um êxito momentâneo de best-sellers (e que, até agora, não coube a nenhuma obra realmente forte).

Mas a tradução de um único romance de Mikszáth ou Móricz, por exemplo, por mais poderoso que fosse, revelar-nos-ia apenas um único talento e um só modo de ver, de reagir e de exprimir. Uma antologia da prosa, com preponderância de trechos de romance, teria sempre algo de fragmentário. Uma antologia de poemas exigiria um poeta brasileiro conhecedor do idioma húngaro e suscitaria o dilema de verter em prosa, despojando assim as poesias de seus atributos mais essenciais,

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ou de procurar equivalencies arbitrárias entre os ritmos de dois mundos poéticos totalmente diversos.'

Uma antologia do conto húngaro constituiria o meio mais indicado de nos aproximarmos não somente da literatura, mas da alma húngara. As proporções limitadas do gênero permitiriam apresentar todo um grupo de escritores de valor; seu conteúdo objetivo constituiria uma imagem, ora propositadamente traçada, ora inconscientemente refletida, de um ambiente exótico e excitante. Essa necessidade foi sentida a tal ponto que já saíram em português numerosas antologias do conto húngaro, infelizmente compiladas por organizadores pouco escrupulosos. Ignorando a Hungria e a língua húngara, fizeram eles sua escolha dentro da escassa matéria traduzida noutros idiomas, sem obedecer a qualquer critério de hierarquia literária, cometendo erros de interpretação a cada passo.2

Não é ainda desta vez que o público brasileiro e o português poderão obter, através de uma ampla antologia, desejável por tantos motivos, uma imagem panorâmica da literatura magiar3 e, através dela, da vida húngara. Talvez um dia se me ofereça oportunidade de

1. A tarefa inversa foi tentada em Budapeste, há uns quinze anos, por um aspirante a poeta, em Brazilia Üzen ("Mensagem do Brasil"), pequena antologia da moderna poesia brasileira, em versos húngaros.

2. Ver meu artigo "Cinco Antologias contra uma Literatura", em Província de São Pedro, n.° 6.

3. Adoto a forma magiar em obediência à ortografia em vigor, embora a considere errada. A forma original deste adjetivo, com que os húngaros se designam a si mesmos, é magyar (pronúncia? módior, em duas sílabas, com i semiconsoante) .

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empreender um trabalho desses, em que, sob o impulso da saudade, tente reconstituir com parcelas de escrita um mundo que já foi meu, e que os acontecimentos submergiram para sempre.

Por enquanto, o meu objetivo é diferente. Por sugestão de meu caro amigo José Simeão Leal, criador e animador desta série de cadernos, resolvi apresentar neste volumezinho como que uma documentação para ilustrar o trabalho de outro amigo, Herman Lima, Variações sobre o Conto, publicado nesta mesma coleção. O leitor encontrará aqui produções de todos os contistas húngaros mencionados nesse interessante ensaio (e de mais alguns que nele não figuram).

Mesmo assim, procurei escolher os contos de tal forma que apresentem quase todos os tipos do conto moderno e todas as suas variantes dentro da literatura húngara; temperamentos artísticos e escolas literárias diferentes; atmosferas e estilos diversos; numa palavra, material ilustrativo para uma teoria do gênero. Talvez o volume forneça sugestões ao estudioso da literatura comparada, interessado em saber como as correntes literárias do Ocidente europeu repercutiram numa comunidade nacional de língua não indo-européia.

Faltam, naturalmente, muitos contistas húngaros nesta breve coletânea, cujo limite cronológico é 1939, começo da segunda Guerra Mundial e fim de uma época histórica. Mas podemos afirmar que os que nela figuram são dos melhores; para o meu gosto pessoal, 6ão mesmo os doze melhores representantes do gênero na Hungria. Se nem sempre escolhi, desses autores, o conto

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que julgo o de mais valor, foi ou por motivo de espaço ou pela impossibilidade de conseguir o original. Como quer que seja, com todas as suas limitações, os doze contos do livrinho foram escolhidos entre vários milhares.

As notas biobibliográficas do fim do livro contêm os esclarecimentos necessários acerca dos autores, assim como sôbre os originais utilizados para a tradução. Aqui, gostaria apenas de chamar a atenção para a variedade de subgéneros encontráveis neste punhado de contos.

"O Ferreiro da Catarata" é característico da tendência anedótica e apologal, herança oriental das letras húngaras. "Da Cobra e Outros Horrores" é o título de uma simples narrativa rural, com forte conteúdo folclórico. Enquanto "Na Linguagem dos Pássaros" é uma pequena fantasia, divertida no seu artificialismo esti-lizado, em "Uma das Histórias do Soldado Raso Harras Rudolf" deve-se ver um espécime em que a evocação de atmosferas prevalece sôbre o enredo e as persona-gens. "Noite de Natal" renova o batido assunto do "conto de Natal", dentro dos moldes tradicionais do gênero, pela apresentação de um tipo pitoresco da boêmia da capital húngara. Em "Conto de Ninar" a ingenuidade dos contistas antigos mistura-se a um pouco de cinismo budapestense para desenvolver uma lenda de arrabalde. "Tragédia" marca a invasão do realismo; a anedota e o folclore passam ao segundo plano para ceder lugar a uma literatura objetiva, de tendência e influ-ência sociais. "Aventura Búlgara" pode ser considerado

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exemplo da utilização do absurdo dentro de uma realidade não deformada por intuitos cômicos. "Prólogo" seria um "conto cósmico", refletindo a mortal angústia de uma época de apocalipse. Em "O Criminoso" há um conto filosófico escondido por trás da sátira ao conto policial. Em "Madelon, a Cachorra", vemos o enredo diluir-se como mero pretexto para a reprodução das impressões de uma sensibilidade supercivilizada, com forte contribuição de reminiscências livrescas. Em "A Casa do Terreno Baldio" tem-se o produto original de um novo realismo poético.

Ficaria encantado se este mostruário, além de contribuir para a definição do conto moderno, despertasse entre os leitores o desejo de conhecer outras produções da literatura húngara.

Para não multiplicar as notas, dou no fim do volume um pequeno léxico dos termos húngaros ocor-rentes nos contos.

Meus agradecimentos ao querido amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, cuja revisão, tão competente quanto afetuosa, constitui um modelo de colaboração criadora.

Rio de Janeiro, fevereiro de 1954.

PAULO RÓNAI

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O FERREIRO DA CATARATA

MlKSZÁTH

Prezado Senhor!

V. S." acaba de me remeter o seu livro sobre A Teoria do Conto, pedindo-me que o leia e lhe escreva uni prefácio.

Apesar do que o seu pedido tem, para mim, de amável e desvanecedor, não posso atendê-lo. Deus me livre de ler jamais o seu livro. Se for mau, eu poderia aprender nele algo de errado; se for bom — isto é que seria então um verdadeiro perigo para mim.

Devo-lhe naturalmente uma explicação. (Quem sabe se ela não poderá servir de prefácio?) Começá-la-ei dizendo que durante a minha infância morava em nossa região um mestre ferreiro, de nome Strázsa János, cuja mão era leve como a espuma, de forma que fazia as mais complicadas operações de olhos com tamanha habilidade que a sua fama se espalhou até Kassa e

(*) Efetivamente Mikszáth escreveu este conto como resposta a um jovem escritor que lhe pedira um prefácio para o seu livro.

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mesmo até Pest. Era mestre, especialmente, na ablação da famosa catarata verde, operação que nem sequer o Prof. Lippay, especialista famoso na época, conseguia executar.

Esse Lippay Gáspár, oftalmologista na Universidade de Pest, conversando, certa vez, com colegas de Viena entre dois copos de cerveja da Stadt Frankfurt, trouxe à baila o célebre ferreiro.

Os confrades, professores Arlt, Stellwag e Jager, ouviam-no descrentes como São Tome:

— Ora essa! Não é possível! Como poderia um ferreiro, que vive batendo na bigorna com o martelo, de sol a sol, fazer essa operação, tão delicada que nós mesmos não conseguimos executá-la?

Lippay encolheu os ombros: — Pois deve ser verdade. Eu não vi, mas pessoas

afetadas por essa enfermidade, que eu tinha mandado embora como incuráveis e completamente cegas e que ele curou, essas me viram.

É pena que eu ignore o nome latino da doença, pois ao escrever sobre coisas de medicina é bom a gente exibir uns termos que ninguém entende. Assim, não posso reproduzir os argumentos dos três cientistas. Sei apenas que, no fim, disseram a Lippay:

— Escute, confrade! Mande vir um dia esse tal ferreiro à sua Universidade, e nós todos iremos a Pest vê-lo operar.

Lippay topou o negócio e confirmou-o com um aperto de mão. Algum tempo depois, ao aparecer-lhe

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um doente afligido da mesma doença — um alfaiate de Kecskemét — manteve-o na clínica e escreveu ao Sr. Strázsa János convidando-o a vir sem demora tirar uma catarata e mandando-lhe dez florins para as despesas da viagem. Ao mesmo tempo avisou os colegas vie-nenses.

O caso deu muito que falar; algumas pessoas de idade ainda hoje o lembram. Deixando cavalos e ferraduras com o seu auxiliar, Strázsa János vestiu o casaco novo em rôlha, afiou na mó pequena os seus instrumentos de furar e cortar, deu um sopapo no aprendiz por estar de nariz para o ar enquanto fazia andar a mó grande, e tomou lugar num carro de bois que transportava lã da fazenda Zichy para Vae. Lá, à noi-tinha do dia seguinte, faltando-lhe a coragem de embarcar no "fumarento", pôs-se a pé a caminho de Pest e andou a noite toda, até que, já com o sol bem alto, chegou à Universidade, na Ujvilág-utca.

Felizmente encontrou o Sr. Professor Lippay no respectivo laboratório. Cumprimentou-o com bons modos:

— Louvado seja Jesus Cristo! Aqui estou. — Eternamente! É você o Strázsa? — Sou eu mesmo, às suas ordens. O professor via diante de si um homenzinho atar-racado,

ágil, de olhos de lagartixa. — Quando chegou? — Agorinha mesmo. — Como assim? Nao veio nenhum trem agora. — Pois é; vim a pé — respondeu Strázsa János.

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— A pé? De noite? — Exatamente. — É uma pena. Que é que você pretende fazer agora? —

perguntou o sábio médico, visivelmente decepcionado . — Tirar a catarata que o senhor quer que eu tire. — E acha que terá a mão bastante calma para isso? O Sr. Strázsa encarou o professor com surpresa: — Como nao? Não é nenhum bicho vivo para se mexer. — Mas se você andou a noite toda, como afirma.. então

não dormiu e deve estar cansado.

O ferreiro sorriu;

— Que é que tem? Não vim nas mãos. Faz muito tempo, Sr. Professor, que não ando nas mãos; só mesmo quando era menino de colo.

— Está certo, isso é lá com você. Quero apenas avisá-lo que sábios professores de Viena vão assistir à sua operação, e eu ficaria bastante vexado se você não se saísse bem.

O ferreiro assegurou-lhe que a coisa não tinha im-portância, nem valia a pena comentá-la. Então o Prof. Lippay mandou buscar os confrades vienenses, hospedados no vizinho hotel Aranysas. Chegados, foram introduzidos, juntamente com Strázsa János, na sala de operações, onde já os esperava o alfaiate doente, homenzarrão forte, que lembrava o Sansão da Bíblia.

("Que tolice! — dizia consigo Strázsa János. Se o mundo é mesmo governado pela Providência, como

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é que um homem desses vira alfaiate em vez de ferreiro?") — Veja, amigo Strázsa — disse Lippay — é este

o seu paciente. O ferreiro mal chegava à altura do peito daquele gigante:

talvez nem lhe enxergasse os olhos. Mandou-o sentar e examinou-lhe atentamente o olho esquerdo. A menina do olho estava tapada por uma membrana cor de pérola, de grêtas raiadas.

— E' mesmo a noite caindo — resmungou. E foi ver o outro olho. Este era o pior dos dois, pois a catarata já estava

excessivamente madura. Os médicos vienenses examinaram-no também, através

de seus óculos. — E' uma operação melindrosa — disse Arlt, refe

rindo-se ao olho direito do doente. — Exige uma precisão de que a mão humana é quase incapaz.

Nesse ínterim Strázsa János tirara o casaco e entrara a retirar do cano das botas vários canivetes, separando uns e repondo outros, até que escolheu um deles e o afiou na extremidade do cinto.

— Pelo amor de Deus! — exclamou espantado Lippay. — Será que você pretende operar com esse canivete de esfolar rãs?

O ferreiro limitou-se a fazer um sinal com o so-brolho: sim, era com aquilo mesmo.

Na mesa havia vários ferros. O professor apanhou, no meio deles, um escalpelo Graefe, e meteu-o à força na mão de Strázsa János.

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—- Não — disse este com menosprezo — não serve. Repeliu o escalpelo e abordou com o seu canivete o

alfaiate assustado. A lâmina relampejou e, como que descascando uma maçã, deslizou por sobre o globo ocular com extraordinária leveza; um instante, um relâmpago, e a catarata havia desaparecido.

— Que homem danado! — exclamou Arlt, estupe fato.

Strázsa János enxugou o canivete na manga da camisa. — Muito bem — disse com satisfação. — Uma

das janelas já está aberta. Os austríacos apressaram-se em apertar aquela mão

calosa, mas Lippay não se conteve. — Olhe, Strázsa — exclamou irado — você é de

uma temeridade incrível! Sabe o que está arriscando? Sabe o que cortou, o que não cortou? Tem idéia da res ponsabilidade que assume perante Deus e os homens? Sabe você o que é a retina, a esclerótica, a coróide. a glândula lacrimal, etc.? De onde parte e aonde vai cada nervo? Sabe o que é a afacia, o glaucoma, o leu- coma? Confesse: não sabe.

— - Para que haveria de saber, Sr. Professor? — Sabe que bastava você desviar-se um milímetro

para a esquerda ou para a direita, e cegava logo oa dois olhos?

Strázsa János começou a prestar atenção. — Quanto à catarata que você acaba de retirar —

continuou o professor — sabe você que, segundo as es-tatísticas, em cada duas mil operações só uma dá certo?

— Será? — disse o ferreiro, perplexo.

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— Sim, pois o cristalino pode encarquilhar-se e, neste caso, rasga-se o sustentaculo durante a operação, sendc que parte do corpo vítreo penetra na ferida, ou, então, dilui-se a casca e o núcleo se desloca ou afunda no corpo vítreo.

— Não será tanto assim — disse o ferreiro, impres-sionado, com umas gotas de suor a molhar-lhe as têmporas.

— Venha cá — chamou-o o especialista, cada vez mais animado. — Vou-lhe mostrar sobre o olho vivo do paciente como é que estas veiazínhas e estes nervos se comunicam com o outro olho.

O professor entusiasmava-se ao desvendar o mapa milagroso do olho com os seus riachos, os seus rios. Strázsa János olhava com os olhos à flor do rosto e escutava, enquanto os cabelos se lhe arrepiavam todos. De repente deu uma pancada desesperada no cano da bota, murmurando de si para si: — "Agora viraste cachorro, Strázsa János!"

Tinha a impressão de cair das alturas, de alguma torre ou coisa parecida; de nem ser mais ele mesmo, apenas o seu próprio fantasma.

Terminada a explicação, o professor convidou-o a operar o outro olho do doente (coisa bem mais fácil); ele, porém, pôs-se a tergiversar, a buscar evasivas, e só a muito custo pegou do canivete. Mas o instrumento — meu Deus, que lhe terá acontecido! — começou a tremer-lhe a mão. Debruçou-se sobre o doente, mas sentiu uma tontura, empalideceu, e o braço recaiu-lhe inerte.

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— Ai de mim, Sr. Professor — choramingava — não vejo. .. não sei. . . já não me atrevo.

Informado de como o olho constituía um mundo complicado, que conseqüências um pequeno tremor de sua mão, uma palpitação mais forte do seu sangue, um deslizar mínimo do canivete podiam provocar, nunca mais teve a coragem de operar uma catarata, e até se recusou a tratar o terçol mais insignificante.

... A mim, caro Senhor, acontecer-me-ia a mesma coisa. Se chegasse a aprender no seu livro tudo o que a ciência exige de uma obra literária, nunca mais me atreveria a escrever um conto.

Sendo o que se me oferece no momento, subscrevo-me, etc...

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M1KSZÁTH

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DA COBRA E OUTROS HORRORES GÁRDONYI

STÁVAMOS sentados, à noite, ao pé do fogo dos pastores, perto do curral. Achava-se conosco Szanyi Antal, da fazenda do barão. ele também é rabadão, homem já idoso, embora não saiba quantos anos tem. Nestas bandas a gente não é muito dada a contar os anos. Pouco importa a idade, contanto que se viva.

O cigano Sárkõzi atreveu-se a chegar, por sua vez, junto ao fogo. De verão vive de fazer adobes na orla da floresta, dormindo ao relento. Assim ele também sente falta de companhia humana, posto que despreze o camponês, como este despreza o cigano.

A noite era suave, estrelada. No campo, a música ondeante dos insetos. Miska, o zagalejo, atira, uma vez ou outra, um galho seco em cima do fogo.

— Pois é — diz o cigano — outro dia por um triz não fiquei rico. Ao voltar para casa, de noite, vejo uma cobra de crista, danada de grande, a dar voltas pela estrada. Não é que vem direitinho em cima de mim? — "Raios te partam — digo-lhe eu — foi a minha boa sorte que te mandou para cá." E grito para ela: — "De onde vens? Aonde vais? Em que escola estudaste?" — pois são as três perguntas com que a gente pode fa-

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zer parar as cobras. A.minha parou. Então liquidei a bicha a pauladas. '

O cigano lançou um olhar em redor, como se temesse alguma observação. Ninguém falou. Então ele soltou uma baforada do cachimbo e prosseguiu:

— Que eu fique cego se não é verdade. A peleja íoi dura, porque o bicho se saracoíeava feito o Diabo. Mas fina'mente, no momento em que ela me ia pulsr na cabeça, dei-lhe uma cacetada no meio do corpo. Estava morta. Aí eu pego da faca e corto-lhe a cabeça. Não vê que encontro as três pedrinhas: uma vermelha, outra branca, a íerceira verde! Que eu me afunde aqui mesmo, se não é verdade. Bem, digo, agora não troco a vida nem mesmo com o imperador. Pois vocês sabem para que servem as três pedrinhas? Não sabem? A vermelha quebra todos os cadeados. A branca faz cair todas as algemas. A verde torna a gente invisível. Pensei comigo: — "Vou logo experimentar a verde. Vou-me aproximar do galinheiro: se me enxergarem, a pedrinha não presta; se não me enxergarem., presta." O luar alu-miava bastante, mas eu andei na sombra. — "Tomara que alguém venha" — digo para mim; mas não vejo ninguém. Vai não vai, de tanto me aborrecer apanho um ganso. Eu dizia: — "Já que não posso me regaar com ganso assado, pelo menos vou-lhe apalpar a coxa." Mas não é que naquele momento o Demo me traz o criado? ele me cai em cima com o bastão: — "Que é que está fazendo?" — "Não bata em mim, tio István — digo-lhe eu. — Estava apenas experimentando as pedrinhrs." — "Que pedrinhas?" Conto-lhe o caso, ele não me acredita- Quero-lhe mostrar as pedrinhas, não

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estão mais lá. E lá ficamos nós dois matutando no que foi o erro. Pois eu tinha-me esquecido de rezar o padre -nosso em cima das pedrinhas! E' tão certo como eu esta'- aqui.

— Coisa parecida me aconteceu também uma vez — declara Szanyi Antal. — Apenas, eu perdi oca ião ainda melhor do que essa. Uma noite o meu zegalelo me acorda e diz que anda no Cseres um cavalo preto. — "Está bem — digo-lhe — prenda o bicho." E ele me respondeu: — "Foi o que eu quis fazer, mas. quando joguei o cabresto, vi que o danado não tem queixo." — "Puxa — disse eu — é o próprio Diabo." E de repente me lembrei do que me contava meu avô. No Cseres existe uma caverna cheia de tesouros. No tempo de meu avô. toda sexta-feira santa abria-se a caverna e uma mulher saía de lá, pedindo a quem encontrava que entrasse na caverna e levasse o tesouro. Mas ninguém tinha coragem de entrar. De uma feita, três pastores resolveram ir buscar o tesouro. A mulher ficou muito satisfeita, e disse que um carneiro de fogo pularia por cima da cabeça deles, mas não deviam ter medo. Depois encontrariam um soldado veterano que daria voltes com a espada em redor do corpo, mas desse também não deviam ter medo. Afinal encontrariam três leões bramin-do. Desses também não deviam ter medo, pois eram de pedra os três. Se passassem por tudo aquilo, trariam tantos tesouros quantos quisessem.

Tudo isso é contado por Szanyi Antal entre baforadas, vagarosamente, com todc a seriedade, a ponto de eu mesmo sentir calafrios nas costas.

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— Bem — continua ele — os pastores chegaram até o soldado, mas se assustaram tanto que voltaram correndo. Ao lembrar-me de tudo isso, não consegui mais dormir. Pensei em Duli Péter, que dizem que é feiticeiro.

— E é mesmo. — Fui vê-lo logo depois do amanhecer. Eu lhe conto. ele

me ouve sem dizer nada, depois me pergunta: — 'Tor que é que você me conta tudo isso?"

— "Porque dizem por aí — respondo — que você é feiticeiro." — "Lá isso é verdade, pois nasci com dente. Mas não sei de nada, de tesouro nenhum." — "Pois eu lhe dava a metade se você me ajudasse a consegui-lo." ele olha o chão diante de si durante algum tempo, depois me diz: — "Experimente você. Faça uma vela de breu preto, outra de breu branco, uma terceira de cera branca. Bote incenso no meio. Depois enterre as três numa encruzilhada, deixe ficar lá sete dias e sete noites. Então pode retirá-las, leve-as à floresta, e lá corte com um só golpe, de um galho de amendoeira, umas varas brotadas este ano. Chame o cachorro. Vá aonde pensa que o tesouro está enterrado; quando chegar, reze sete padre-nossos e sete ave-marias. Depois diga às varas: — "Eu vos con juro, varas novas, a vos virardes para o lado do tesouro! Eu vos conjuro, almas impuras, a vos retirardes do tesouro escondido sem deslocá-lo nem para cima nem para baixo, e a me deixardes carregá-lo para eu me servir dele para maior glória de Deus Nosso Senhor, em benefício dos órfãos e dos pobres!" Depois quando as varas se virarem para o lado do tesouro, você poderá partir com a vela na mão. A vela vai-se apagar

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onde estiver o tesouro. Lá, você deve esconjurar de novo as varas. Depois, se o rochedo não se abrir sozinho, cave a terra. Mas, muito cuidado: não olhe para dentro da cova. Para isso você tem o cachorro: ele é que deve olhar primeiro. Pois, se você olhar primeiro, não terá mais poder sobre o Mau." Foi o que fiz. Comprei o material para as velas, sem regatear. Pois ia esquecendo: o feiticeiro me disse que eu devia comprar tudo pelo preço que exigissem primeiro. Depois fabriquei as velas. Na primeira sexta-feira depois da lua nova fui à floresta, perto do rochedo. Cortei as varas. Disse as rezas. Com pouco, elas se mexeram, de fato. Mas o meu cachorro não quis olhar para dentro da cova. Não quis mesmo, por mais que eu o forçasse; não houve jeito! Eu já estava suando frio com medo de olhar, por acaso, para a cova; preferi parar com a escavação.

Calou-se, fitando as brasas. Não disse mais nada. Nós também ficamos calados. Do redil, ouvia-se um ou outro balido. Ao cabo de um quarto de hora, mais ou menos, o cigano abanou a cabeça:

— O Diabo leve o cachorro!

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NA LINGUAGEM DOS PÁSSAROS

SZOMORY

A o crespúsculo, na Ilha Margarida, o Sr. Professor Horeb estava sentado sozinho num banco, debaixo dos plátanos, arejando em todas as direções, como um ga-sómetro, a cabeça pesada. O chapéu de coco jazia surrado no banco, com a peculiar afeição que levam certas vestimentas a compartirem seu destino e sua melancolia com o próprio dono. Eu mesmo fui sentar-me ao lado do Sr. Prof. Horeb, atraído por uma afeição objetiva, embora não sem a ironia com que a gente se senta ao lado de uma dessas carecas sábias.

— Que linda cabeça tem o senhor, professor! — disse-lhe, enternecido. — E' pena que viva esconden- do-a, filosoficamente, debaixo do chapéu.

— Cabeça ¡inda é a de Teopompo, ou a de Széche- nyi István — respondeu-me declinando o cumprimento com modéstia bem informada. — A primeira exigência de uma cabeça linda, plasticamente falando, é a oarba, uma barba cheia, espessa e créspa, como por exemplo a de Anacreonte, a qual, por assim dizer, absorve e de vora a pele num mato de pêlos, uma barba onde o rosto

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mergulha e desaparece para sempre. Mas em que é que posso servi-lo? — perguntou com a superioridade a'go distante dos orientalistas em relação a qualquer leigo. __Já que o senhor está estudando a época de Salomão — insinuei — talvez queira esclarecer as minhas trevas com alguma lenda.

— Está ouvindo este chilrear dos passarinhos? — revidou o professor Horeb com uma interrogação que, na prática dos sábios, eqüivale a uma introdução.

— Estou — respondi interessado. Nos galhos, acima das nossas cabeças, havia, com efeito,

uns pássaros assobiando. — Estes aqui são melros — retornou o professor Horeb

— mas aqueles de que eu lhe quero falar eram simples pegas, que moravam num cipreste, na época do rei Salomão. É um conto antigo, um conto da Mi-drache, se me dá licença, e que talvez você já tenha ouvido. . . Ainda assim, vou repeti-lo, porque o seu sentido simbólico tem para mim valor eterno.

— Para mim também — respondi sem convicção. — Pois bem, aquilo era um casalzinho de pegas muito

comuns, sentado num cipreste da região onde o rei Salomão construiu o seu templo. Você sabe que esse templo era uma das maravilhas do mundo, para maior glória do Senhor. Todo o Oriente, da Fenícia a Carmânia, só falava naquele edifício, que, de seus dezoito terraços de mármore, sobrepostos uns aos outros, exalçava até os céus mais alios a sua admirável fileira de colunas no meio de uma multidão tão maciça de águias e leões de ouro que superava qualquer construção do Egito e parecia uma fortaleza digna, de fato, de ser

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escolhida pelo próprio Jeová para moradia definitiva. Assim sendo, o rei Salomão, alegre, veio dar uma vol-tinha no seu jardim e sentou-se num banco de pedra, precisamente debaixo do cipreste, onde as duas pegas chilreavam. Era de lá que se descortinava melhor o panorama do templo, e o rei contemplava com satisfação a sua grande obra, esfregando as mãos peludas. Anuvi-ou-se-lhe a fisionomia apenas por um instante, ao lem-brar-se do orçamento, de todas aquelas faturas de cujo montante ainda devia uma parte aos faraós pelos blocos de mármore e ouro, outra parte ao rei de Tiro pelos troncos de cedro, escolhidos e extrafinos, que este lhe remetera do Líbano, cif Ofir, como dizem os comerciantes. No entanto, como o Sol se estivesse pondo, precisamente, acima das fileiras de colunas, o templo, com sua massa infindável de pedras, parecia destacar-se em ouro puro sobre o céu. "Tanto faz!" — exclamou o rei encantado. — "Pouco me importa o que custou!" E já ia pegar da sua lira portátil para entoar o mais feliz Cântico dos Cânticos, quando, de repente, sua atenção foi atraída pela voz dos passarinhos (que, como todos sabiam, ele compreendia tão bem como a linguagem humana). Pois naquele mesmo instante o pego estava dizendo à pega: — "Salomão está-se dando ares com este templo. Pois bastaria que eu desse um pontapé na cúpula para todo o calhambeque vir abaixo!" O rei Salomão ficou todo brabo, como costumava ficar por qualquer bobagem. Mandando vir à sua presença o tagarela atrevido, repreendeu-o duramente na linguagem dos pássaros: — "Que foi que você dissei, seu pego atrevido?! Você faria vir abaixo o meu templo com um pon-

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tape?!" E levantou a mão para esmagá-lo. "Perdão, grande rei! — pipilou o passarinho. — Tenha Vossa Majestade compaixão de mim, desta vez. Eu só falei tudo aquilo para fazer farol diante da minha noivinha. pois não vê que o tempo da junta vem aí?" —"Está bem, vá embora!" — respondeu-lhe o rei com indulgência, pois, em sua sabedoria, compreendia todos os mo-tivos íntimos, inclusive a vaidade de uma peguinha. Cessada a cólera, tomou da lira e retirou-se, com o manto a pairar-lhe por trás, enquanto o passarinho voltou à árvore e pousou de novo no galho, no meio da folhagem espessa, a eriçar as penas. — "Que é que o rei queria contigo?" — perguntou-lhe a fêmea. — "Pediu-me com muito jeito que não lhe derrubasse; o templo" — respondeu o macho.

— Que sem-vergonha! — disse eu. — Não é mesmo? — disse o Sr. Professor Horeb. Mas de repente apanhou o chapéu no banco, atirando um

olhar magoado aos melros sentados no plátano.

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NOITE DE NATAL

HELTAI

X STO aconteceu ainda no Natal de 1917, mas não o contei a ninguém. Até hoje não sei o que devo pensar do caso. O protagonista morreu logo depois. Era um solteirão seco, vegetando à toa, sem fantasia nem sentimentos, jogador inveterado, metido em pequenos negócios escusos mas seguros. No clube, onde ninguém gostava dele e onde ele não gostava de ninguém, apelidaram-no "Cobra-de-Cobre". Casmurrão, nunca falava de si mesmo, nem sequer quando bebia, o que lhe acon-tecia com freqüência, sobretudo pelo fim da guerra, quando a sorte o abandonou de repente. Durante muito tempo, Cobra-de-Cobre não quis acreditar que isso fosse possível. Mas aos poucos teve de se conformar com a mudança do mundo em seu redor. Os demais viam a vida de outro modo, faziam outra idéia do dinheiro: as emoções baratas, os joguinhos estavam acabados. Apareceram novos-ricos, campeões do mercado negro, e outros camaradas ousados, cavalheiros de tudo arriscar e arrostar, que passaram cruelmente por cima do infeliz Cobra-de-Cobre. Aos poucos veio a perder tudo o que

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tinha. Durante meses, durante anos não fez senão perder. Nós outros, jogadores, bem conhecemos essa obstinada maldade do baralho, que se volta contra a gente com a força de um ódio quase pessoal, impelindo-nos sem dó nem piedade para a miséria, a loucura, a morte. Que pecados estaremos expiando em tais lances? Qual a mão que nos estará castigando? Tolo aquele que não sabe que não é ele que joga com o baralho, mas sim o baralho que joga com ele!

Cobre-de-Cobre foi vendendo aos poucos seus móveis, as suas cigarreiras de ouro e prata, os seus botões de camisa com brilhantes, os seus alfinetes de gravata. Abandonou seu belo apartamento, indo morar num hotel; depois, quando nem a este podia pagar, alugou um modesto apartamento de dois quartos em algum lugar lá nos confins do Lipótváros, entre terrenos baldios e moinhos de luzes vermelhas. O apartamento era de um jovem médico, que não podia utilizar-se dele por estar prisioneiro de guerra na Sibéria. A jovem esposa do médico voltou a morar com os seus pais para poder alugar o apartamento e ganhar com isso algum dinheiro. Foi assim que Cobra-de-Cobre obteve os dois quartos. Na porta do apartamento permanecia a tabuleta de letras douradas: Dr. Dévai Zoltán. Consultas das 3 às 5 da tarde, e no consultório se achavam os livros do doutor, austeras obras científicas, que inspiravam a Cobra-de-Cobre um nojo enorme. A não ser isso, estava satisfeito: o apartamento era calmo, silencioso, no primeiro andar de um edifício construído entre dois terrenos baldios, a vinte minutos do bonde. Cobra-de-Cobre não via nunca

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o bairro à luz do dia: passava as noites a jogar cartas, voltava antes da alvorada e dormia até a noite seguinte.

*

Na tarde de 24 de dezembro de 1917 jazia, como de hábito, na cama, entorpecido e cansado. Estava acordado, mas não abria os olhos. Ouvia remexer no quarto contíguo a amante, a boa velha Giza, a única pessoa do mundo, que ainda tinha algo com ele. A boa Giza devia ter sido outrora alegre e bonita: agora era triste, na melancolia de um murchar prematuro. Bem sabia Cobra-de-Cobre o que a velha Giza estava fazendo: devia estar enfeitando uma arvorezinha de Natal com velinhas, bombonzinhos, fitinhas, berloques e outras ninharias, e colocando ao pé da árvore o vigésimo par de chinelos ou a vigésima piteira de espuma-do-mar daquela ligação de vinte anos. Cobra-de-Cobre nao quis tomar parte nisso. Deixaria a boa Giza ir-se embora na ponta dos pés, como viera... e agradecer-lhe-ia amanhã. .. Sim, amanhã, não hoje. . . pois ele também deveria ter dado algo. . . Quis até dar. . . uma blusa, três pares de meias de seda. . . chegou a calcular o preço. Quis ga-nhar aquele dinheiro, mas, como tantas outras vêzes, só conseguiu perder até o último tostão que tinha. Pouco lhe importava, aliás. . . no ano passado não acontecera a mesma coisa? Assim a boa Giza se acostumaria . ..

A boa Giza foi-se embora. Cobra-de-Cobre acabou por abrir os olhos. O quarto estava às escuras, mas Cobra de-Cobre encontrou o conhaque mesmo na es-

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curidão. Sorveu, na garrafa, um bom gole pela oitava ou décima vez, depois virou-se para a parede a fim de cair de novo no sono. Não queria levantar-se. Para quê? No clube não havia jogo: assim, a sua vida não tinha sentido algum naquele dia. Começara a beber de manhã, e cada vez, ao acordar, repetia o gole. Talvez conseguisse ir até a madrugada; depois venderia mais alguma coisa e tentaria novamente a sorte. Fechou os olhos. De repente ouviu um toque de campainha. Primeiro pensou que era a boa Giza que voltava.. . mas depois se lembrou de que a chave da porta estava com ela. Quem seria? Fosse quem fosse, ele não se levantaria. Mas a campainha tocou outra vez com violenta impaciência. Chegaram a bater à porta. Cobra-de-Cobre saltou da cama furioso, mas ao mesmo tempo, quem sabe, com a secreta esperança de receber algum dinheiro. . . sim, talvez alguém se tivesse lembrado déle.

*

Ao abrir a porta, deparou com um soldado, um velho infante de bigode caído.

— A quem é que o senhor procura? — perguntou- lhe Cobra-de-Cobre furioso.

O soldado perfilou-se: — Ao Sr. doutor. — Aqui não mora nenhum Sr. doutor — berrou Cobra-

de-Cobre. E quis dar-lhe com a porta no nariz. O soldado, porém,

não se deixou afastar:

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— Sr. doutor, pelo lamor de Deus. . . a minha filhinha. ..

Empurrou a porta e entrou pela antecâmara. Cobra-de-cobre repetiu, enraivecido:

— Repito-lhe que aqui não mora nenhum doutor. O soldado arfava, via-se que vinha de longe e tinha

corrido. Falava aos arrancos: — Vi a tabuleta no portão... em todo o bairro não

há outro médico... a minha filhinha. . . cheguei hoje de licença. . . então os senhores, os senhores medi os mandam embora assim. . . sem mais nem menos. . . um homem pobre. . . um pobre soldado cuja filha única... Sr. doutor... se crê em Deus. . .

Ajoelhou-se diante de Cobra-de-Cobre, o qual se tornava cada vez mais irritado, em parte sob a influência da bebida.

— Então não quer compreender? Não sou mé dico . . quantas vezes devo repeti-lo? Estou apenas morando aqui. Se não me acredita, pergunte ao por teiro .

O soldado, sempre de joelhos na frente de Cobra-de-Cobre, riu um riso amargo:

— Pois sim... o porteiro não é tolo para dizer a verdade. . . eu já sei. . . estão combinados, eu já sei.. . os senhores médicos não gostam de ir à casa de um doente pobre numa noite de Natal. . . Sr. doutor, se o senhor crê em Deus. . . que vai ser de mim, se aquela coitadinha morrer?

Ergueu para Cobra-de-Cobre um olhar implorante, desesperante, com os lábios convulsos, as mãos juntas. Cobra-de-Cobre agarrou-o pela gola e sacudiu-o:

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— Levante-se! Não compreende? Não sou médico, não posso auxiliar a sua filha. Vá procurar um doutor! Um médico! Eu não sou médico.

Repetiu essas palavras umas dez vezes, mas era como se falasse a um surdo. O soldado levantou-se. fitou Cobra-de-Cobre com os olhos contraídos.

— Dr. Dévai Zoltán — disse devagar. — Con sultas das 3 às 5 da tarde. Veja a tabuleta. Dr. Dévai Zoltán, tenha a bondade de vir comigo. É o dever do senhor. . . Não tenha* medo, eu lhe pago.

Bateu no bolso. Cobra-de-Cobre fez um gesto aborrecido e quis abrir a porta. Mas o soldado embargou-lhe a passagem. Tinha o rosto transtornado e fitava Cobra-de-Cobre com ar de ameaça. Agora foi ele quem berrou:

— Vens comigo, canalha, ou te> mato! Pegou de um revólver e apontou-o para Cobra-de-Cobre.

Cobra-de-Cobre, embora não fosse covarde, 8ssustou-se. Era tempo de guerra... o homem era soldado, voltava da frente. . . para ele um tiro, uma vida a dele ou de outro, não devia contar muito. Estava cem a filha doente. . . era noite de Natal. .. não encontrava médico.. . e tinha um revólver na mão. . .

O soldado, como se lhe atinasse os pensamentos, disse:

— Vou-te matar. . . depois me matarei a mim também. Raios partam o mundo inteiro, se minha filha morrer!

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Era uma velha praça da reserva, com um bigode cinzento a cair-lhe triste sôbre a boca, e os olhos cheios de lágrimas. Cobra-de-Cobre encolheu os ombros. Que fazer com semelhante louco? Não o convenceria de jeito algum.

— Está certo. Vou. Espere apenas que me vista. O soldado sentou-se na antecâmara e esperou. Cobra-de-Cobre bebeu o que lhe sobrava de conhaque e

vestiu-se com estudada lentidão. Ria e se indignava ao mesmo tempo, e torniava-se cada vez mais bêbedo!

— O meu chapéu... a minha capa. . . onde foi mesmo que os botei?

Ao reaparecer na antecámara, cambaleava. Abraçou-se ao soldado e deu uma gargalhada:

— Sou o Dr. Dévai Zoltán. Vou ver a, doente. Ê o meu dever. . .

E os dois partiram para ver a menina doente: um louco e um bêbedo.. .

*

Levaram muito tempo a chafurdar na neve, na lama e na escuridão. Cobra-de-Cobre não tinha a menor idéia do lugar por onde passavam. O frio restituiu-lhe um pouco a lucidez, e quando, ladeado pelo soldado, entrou no quarto miserável, tinha a caboça regulando mais ou menos bem.

Uma mulher magra e triste estava sentada à cabeceira da cama, onde jazia uma meninazinha loura, franzina, de oito a dez anos. Arfava-lhe o peito, as faces

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ardiam. A mulher triste levantou-se, cedendo o lugar a Cobra-de-cobre.

— Que é que tem? Ninguém respondeu. Era dele que esperavam resposta a

essa pergunta. Cobra-de-Cobre descansou a mão na fronte da menina: — Febre, vê-se logo. Está com febre.. . O soldado acenou com a cabeça, sua mulher também.

Febre! O médico sabia tudo! — Está doente há muito tempo? Foi a mulher quem respondeu. Havia quatro dias. .. não

chamaram médico, pensavam que aqui!o ia passar. . . Aliás, o marido só chegara naquele mesmo dia. . . Também faltava dinheiro. . . Mas pouco antes a menina perdera os sentidos, e isto os assustara muito.

Cobra-de-Cobie segurou a mão da menina e olhou fixo diante de si. Febre. Aí terminava a sua ciência. Que devia fazer, que devia dizer? Olhar-lhe a garganta? E que é que veria ali? A menina.. . sem dúvida, precisava de auxílio. . . deviam chamar era um médico, um de verdade, o dr. Dévai Zoltán, aquele que estava preso na Sibéria. . . lá também fazia muito frio, os pri-sioneiros tintavam no campo.

— O senhor não receita? — perguntou o soldado. ansioso.

Cobra-de-Cobre deu tento de si. Provavelmente ficara muito tempo imóvel, mergulhado em reflexões, com os dedos exangues da criança em sua mão de jogador .

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— Não, não... — disse precipitado. — Parece- me que não será nada grave. . . aliás, não é da minha especialidade. . . para se tranqülizarem de vez. . . seria melhor chamarem um pediatra.

O soldado voltou a rir com aquele riso amargo: — Esta é boa! A quem, doutor, nesta cidade amal-

diçoada, em noite de Natal? Receite, doutor. — Mas. . . — Receite, doutor! — repetiu o soldado com voz rouca.

— Receite, senão.. . E novamente sacou do revólver. Cobra-de-Cobre rendeu-se. Sentou-se e escreveu a receita,

uns rabiscos de palavras latinas sem sentido, de algarismos à toa. e assinou: Dr. Dévai Zoltán, acrescentando o endereço. E entregou-a ao soldado para que a mandasse aviar. Este agradeceu efusivamente e deu-lhe vinte coroas. Cobra-de-Cobre não quis aceitar. mas o soldado fazia questão: tinha dinheiro bastante. . . o doutor tinha-se incomodado. . . Cobra-de-Cobre mudou de idéia e embolsou o dinheiro com a esperança su-persticiosa do jogador quebrado. Quem sabe se não lhe daria sorte? Então devolvê-lo-ia ao soldado com juros. A mulher triste beijou-lhe a mão. A menina, de olhos fechados, jazia imóvel. O soldado foi correndo à farmácia .

Cobra-de-Cobre voltou a casa. Estava contente consigo mesmo. Saíra-se bem com a receita. O farmacêutico perceberia que a receita não tinha sentido algum, diria ao soldado que não fora escrita por médico. Então o soldado levaria outro médico para ver a menina. Seria

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um médico de verdade, escreveria uma receita de ve -dade, a menina sararia. . .

Deitou-se e adormeceu. Na tarde seguinte, bem cedo, já estava no clube.

Observava-se nele alguma mudança. Parecia como que engomado, tinha no rosto uma expressão solene. Rondou as mesas de jogo muito tempo; via-se que pretendia jogar, mas todos estavam fartos dele. Afinal, à falta de melhor parceiro, abateu-se sobre mim.

— Venha jogar pique. — Não jogo.. .

— Por favor.. . imploro-lhe. . . preste-me êsse favor de amigo. .. o jogo mais barato que quiser.. .

— Por que está insistindo assim? — Sei lá! É uma superstição. Quero pôr à prova a minha

sorte. . . Implorou-mo com tamanha humildade que tive pena dele.

Jogamos, e eu perdi. Cobra-de-cobre ganhou cem coroas. Ficou feliz. Acabava de ganhar pela primeira vez em dois anos.

Permaneceu mudo um instante, depois disse: — Não lamente as cem coroas. . . vou-lhe contar

alguma coisa em troca. .. Foi então que me contou esta história, inclusive o fim. Às dez da manhã, o soldado viera bater novamente à porta

com ar radiante, cheio de gratidão. . . A menina sentia-se melhor... Tomara o remédio. . .

— Que remédio? — perguntara Cobra-de-Cobre. — O que o senhor receitou — respondera o soldado.

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— Aviaram a receita? O soldado ficara espantado: — Como não haviam de aviá-la, se foi o Sr. dou

tor quem a escreveu? *

— Escute — disse-me Cobra-de-Cobre. — Conhe ço-o muito tempo. Sei que você é sujeito péssimo, in veterado no vício, um incréu. Não acreditará que isto aconteceu, nem que possa ter acontecido assim como lhe conto: eu, bêbedo, garatujei alguma tolice ilegível, o farmacêutico aviou-a, e a meninazinha sarou. Mas digo-lhe, eu, o Cobra-de-Cobre, digo-lhe por minha fé: há alguém que cuida das crianças, dos loucos e dos bêbedos...

Embolsou o ganho e acabou a frase sorrindo:

-- ... e talvez, um pouco, dos jogadores também.

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UMA DAS HISTÓRIAS DO SOLDADO RASO HARRAS RUDOLF

KRUDY

M soldado andejo apareceu na cidade. Vinha descendo a noite: das chaminés da cidade-zinha as

fumaças corriam fugidias, rasgadas, diante do vento sul; as casinhas agachavam-se com os lampiões, os fogos, que guardavam na barriga; o soldado andejo chegou acompanhado de um torvelinho até o portão, como se seus camaradas o tivessem seguido, saídos da batalha. Bruno, o carcereiro, que fumava o cachimbo perto da alfândega, como quase todas as noites em que a mulher do guarda amassava pão e frigia bolachas, examinou-o da cabeça aos pés com olhar entendido.

— Mais um que vai amanhecer na gaiola — disse ao guarda-fiscal, seu amigo.

De fato, ao cabo de uma hora Bruno era chamado à Estrela de Ouro, com as chaves, os grilhões, a lanterna de capacete ferrado, o cacete de miolo de chumbo e o andar de touro. O soldado conseguira quebrar a cabeça de um freguês da taverna com a caneca de estanho; houve barulho; o taverneiro teve de interromper o seu

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exame da lista da loteria de Linz, quis ver num relance os resultados, não encontrou os números dos próprios bilhetes e pegou de uma arma antiga; o criado lerdo, ofegante de felicidade, saiu correndo em busca de Bruno.

— Atirem com a lâmpada no chão — gritava o andarilho para os seus camaradas invisíveis.

Mas foi dominado, posto a ferros e levado ao cárcere.

O cárcere estava encaixado na muralha, ao pé da qual brincavam crianças durante o dia e, de noite, amantes clandestinos iam-se esconder nas moitas, que nem morcegos. No portão de madeira havia um buraco, por onde às vêzes olhos ardentes de fera fuzilavam para o passeio e outras vêzes as crianças ouviam um cantarolar de ébrio ou um choro amargo vindo de baixo do chão. Que podia haver nas trevas, onde águias presas viviam estridulando, epiléticos debatendo-se, doidos errad ios uivando, velhas dementes berrando obsceni-dades?

Quando o soldado andejo foi atirado à cadeia,'esta não tinha outro morador senão um velho mentecapto. Tão velho e tão mentecapto que permanecia a um dos cantos a tremelicar, sem nunca olhar pelo buraco para o mundo de fora, nem sequer quando a rameira da cidade, de faces pintadas de cinabrio, aborrecida, desfraldava as vestes no passeio, embora em tais momentos os presos costumassem amontoar-se à porta.

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O soldado andejo (de nome Haïras Rudolf, homónimo do valete de paus, o que motivara mais de uma briga entre ele e os camaradas) deu umas palmadas no colega para avisá-lo:

— ô velho, se te der na veneta meter o fogo, não deixes de me avisar!

Nisto deitou-se no chão, pôs as mãos sob a cabeça e foi fitando o escuro. Antes de adormecer, bem que teve alguns remorsos, pois viera visitar aquela cidade não para brigar, mas para ver uma moça, perguntar-lhe como ia o filho de ambos e se não julgava bom ligarem os barcos de suas vidas. Em suas peregrinações (pois o soldado percorrera países longínquos), propusera-se mais de uma vez fazê-la jurar, sob uma imagem santa, que lhe tinha sido fiel. Na Valáquia, onde os carros são puxados por mulheres, resolveu não mais trabalhar; quando voltasse, a moça ia mantê-lo, servindo os fregueses. De regresso à Hungria, na Estrela de Ouro, ouvira falarem mai dela ("no passeio da muralha você encontrará Andimandi de saia desfraldada, quer vente quer não vente") e fora isso que o levara a brigar como um danado.

Assim ficava o soldado a pensar, a cismar à vontade, sem uma palavra, de pálpebras cerradas como soem fazer esses maltrapilhos, que preferem não abrir os olhos, por verem apenas, de todas as lindas paisagens dos países mais brilhantes do mundo, os dedos do próprio pé a se exibirem pelo buraco da bota.

Mais tarde a Lua deu um olhar pela frente da porta. A luz fez surgir o velho, que entrou a andar

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pela cela, depois retirou dos seus andrajos uma ponta de lápis e começou a escrever na parede.

O andarilho apoiou-se nos cotovelos e fitou o ancião, cuja mão tremia na parede cheia de rabiscos e garatujas deixados como lembranças dos presos. Havia, ali, inúmeras biografias escritas com sangue, fuligem, carvão, face, dentes e unhas. Viam-se homens e homen-zinhos, crianças, mulheres dançantes, pernas, mãos, bengalas, olhos de pestanas eriçadas, ouriçozinhos, forcas, juizes de óculos, cachorros de três pés, gatos de costas arrepiadas, mortos de bigodão deitados em cai-xões, mulheres caindo em toneis com as pernas para o ar, patinhos passeando, meninos orelhudos a andar enfi-leirados. Letras e nomes a se misturarem, a se acotovelarem, a chafurdarem juntos como os andrajos numa feira de trapos. Nomes de mulher que cheiravam a morte. Um nome de mulher com outro de homem, rodeados de uma coroa zinha, como se vê nos cartões de participação. Corações gravados à faca, semelhantes a outros gravados nos troncos das árvores do passeio lá fora.

Quanta infelicidade, quanta humilhação devia haver naqueles corações, verdadeiros farrapos de ninhos de gralha que fizeram questão de se eternizar ali como num fotógrafo! Todos aqueles noivados, casamentos, felicidades publicados na parede da prisão só serviam para o Diabo ter de que rir no vento norte.

O soldado andejo continuava metido com seus pen-samentos, enquanto o velho mentecapto acabava o seu trabalho. Depois, afastou-se com um movimento rígido, militar, fez continência aos próprios gatafunhos. Na

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parede lia-se em letras tortas: "Aqui isteve Francisco José e ara inha Elizapete. Foi ótimo".

O andarilho quis perguntar o que fora ótimo, mas com o velho não se podia conversar. Deu umas galopadas ao longo da parede caiada de amarelo, soltou uns relinchos, bateu nas coxas: estava passeando a cavalo. O luar retirou-se da prisão. Veio uma escuridão mesmo de dormir.

*

De manhã retiraram o louco, a fim de que fosse para outra cadeia noutra cidade, mas para o soldado o médico municipal sugeriu mais um dia de ar de gaiola.

O andarilho levou o dia à porta, a espiar o passeio através do buraco.

Ao meio-dia passou um grupo de crianças perseguindo um meninozinho maltrapilho e estridulando com o vento:

— Bastardo!

E desapareceram como estrelinhas por trás das nuvens. O andarilho disse com os seus botões que o menino

perseguido bem podia ser o seu filho. De tarde, uma mulher, de saia vermelha, faces rubras,

olhos de porcelana, apareceu, toda dengosa, no passeio. la e vinha como uma sentinela, espiava os transeuntes com a cabeça virada de lado, de esguelha, até que de noite um bêbedo surgiu no passeio, titube-ante, furioso, lutando aos berros com inimigos invisíveis. A moça agarrou-se-lhe, como se ele fora sua salvação.

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Pela trança o soldado reconheceu Andimandi, seu único amor. Depois, apenas veio o temporal de primavera e varrer o

passeio frio, por entre as moitas cúmplices, pelos caminhos em serpentina. Assobiava, soprava, castanholava o vento, como para divertir o soldado, que desejava o regresso de Andimandi, ainda que fosse no braço do velho mentecapto ou de outro qualquer, mesmo corada, fumegante de vício e gozo. Mas não pôde re-vê-la.

De noite, quando o luar voltou Ia visitar os noivados e as lembranças da parede da cela, o andarilho levantou-se depressa e, aproveitando a breve luz, gara-tujou na parede com o canivete: "Aqui estiveram o soldado raso Harras Rudolf e sua noiva Andimandi". Pensou mais um bocado, e depois acrescentou ele também: "Foi ótimo".

Na manhã seguinte, expulsaram-no da cidade. Aqui e ali os montes estavam cobertos de neve, e ele retomou o caminho.

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CONTO DE NINAR

MOLNÁR

(Este é um conto para viúvas adormecerem os filhìnhos e também para bons filhou adormecerem os velhos pais cansados. Deve ser contado sem pausas, correntemente, a princípio com vivacidade, como se tósse coisa verdadeira, depois cada vez mais baixinho e mais devagar, para que, ao chegar ao tim, a pessoa a quem o contem esteja dormindo. )

UMA barraca do Parque de Diversões havia um homem esquisito. Chamava-se Závoczki. Esse Závoczki era um malandro de marca maior, ofendia a todo o mundo, batia em muita gente, a algumas pessoas até feria com faca, roubava, pilhava, trapaceava, mas nem por isso deixava de ser um ótimo rapaz, a quem a mulher amava muito. Era esta uma empregadinha que, até os dezessete anos, servira numa casa judia, quando, no Parque, num domingo de folga, conheceu Závoczki, que usava uma calça de duas cores, sendo uma das pernas amarela e a outra vermelha. Závoczki trazia nos

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cabelos uma peina de pinto, atada por um barbante, cuja extremidade lhe chegava ao bolso. Závoczki puxava o barbante e a pena de pinto começava a mexer-se na cabeça. Todos riam a valer, e as criadas mais bonitinhas tomavam o carrossel em que Závoczki fazia essa brincadeira. Foi lá que a empregadinha conheceu Závoczki, com quem passou o dia inteiro, e, embora tivesse de voltar para casa até às dez da noite, não voltou nem sequer às onze: permaneceu no Parque toda a noite, e no dia seguinte não mais teve coragem de voltar. Daí em diante ficou com o rapaz da pena de pinto, nunca mais se empregou, e mostrou-se tão boa e tão meiga. e era uma empregadinha tão bonitinha, que o Závoczki a levou para o cartório e casou com ela.

Pois esse rapaz era o pior gatuno de todo o Parque. Ora fazia de pelotiqueiro diante de alguma barraca; ora passava meses a jogar cartas, enganando parceiros. Depois de feito algum roubo, não trabalhava enquanto lhe sobrava dinheiro. Às vêzes trancafiavam-no por alguns dias no xadrez. Então a mulher passava o dia e a noite chorando, e, embora soubesse que o marido não podia sair da cadeia, preparava-lhe a cama para poder pensar que ele voltaria dentro em pouco. Závoczki, por sua vez, continuava impertinente, mesmo na prisão, e por isso metiam-no em uma solitária. Nessas ocasiões a coitadinha chorava muito e dizia: — "Como sou infeliz! Como sou desgraçada!"

Faltava dinheiro em casa e Závoczki ficava envergonhado com a falta de dinheiro. Doía-lhe o coração ao ver a linda criadinha de rosto branco jantar somente

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côdea de pão, mas, para que a mulher não o percebesse, gritava-lhe com maus modos:

— Não há dinheiro que chegue para você, mulher de uma figa!

Então a de rosto branco encarava-o triste e quase chorava. Závoczki erguia o punho:

— Não chore, senão lhe quebro a cara! Saía, fechava a porta com estrondo, escondia-se no

quintal e passava a noite chorando amargamente. Mas a de rosto branco não se atrevia a chorar nem sequer quando sozinha, porque o da pena de pinto lhe tinha proibido chorar e porque as mulheres sabem reprimir o choro. Pois é. Durante o dia os dois pensavam um no outro, mas Závoczki não dizia uma palavra a respeito disso; apenas dava uma surra no porteiro ou esfaqueava, de costas, algum guarda, e depois azulava. Era homem de rompantes, um malandro definitivamente perdido, bom para a forca desde muito tempo.

Um sábado de chuva, Závoczki, sentado à beira de um fosso da Hermina-ut, jogava cartas com outro malandro. Chovia, ia caindo a tarde, mal se viam as cartas, cujos desenhos coloridos a chuva, aliás, já tinha lavado. Tudo isso pouco importaria a Závoczki, que conhecia as cartas pelas costas, mas levou o outro cavalheiro a interromper a partida.

— Obrigado, cavalheiro — disse.

E saiu do íôsso. — Isto não é coisa que se faça — berrou Závoczki.

— Não adiantaram nada as minhas trapaças: você me

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ou todo o dinheiro, os três haci que eu tinha. Vamos continuar!

Mas o outro alegou que chovia e estava muito escuro. No dia seguinte estaria pronto para a desforra. E retirou-se rápido como uma flecha, com os pés nus a patinhar no lodo.

Então Závoczki pegou da faca de cozinha e foi andando. Andou até além da Francia-ut, lá onde fica a linha da Real Estrada de Ferro Húngara. Por ali é que costumava passar o Sr. Linzmann, caixa do curtume, que toda noite de sábado levava a féria aos operários. Závoczki agachou-se junto ao leito da Real Estrada de Ferro Húngara à espera do Sr. Linzmann, para esfaqueá-lo e tomar-lhe o dinheiro. Mas esperou em vão: o Sr. Linzmann já tinha levado o dinheiro e até já voltara à cidade com a pasta vazia. Závoczki perdera a oporíunidado. Por aí se vê o efeito nefasto do jogo: faz a gente descuidar-se dos negócios mais importantes .

Então Závoczki trepou em cima dos dormentes da Real Estrada de Ferro Húngara. Duas lágrimas lhe escorreram pelo rosto sujo, empalideceu, sorriu, gritou: — "Zeller Júlia! Zeller Júlia!" (era o nome de mulher), empunhou bem, com as duas mãos, a faca da cozinha, voltou-a contra si mesmo e enterrou-a no coração. Morreu imediatamente e foi rolar ao pé da linha da Real Estrada de Ferro Húngara, com um baralho sujo e três peloticas brancas no bolso, a pena de pinto nos cabelos, e nos lábios o nome da empregadinha mansa: Zeller Júlia! Zeller Júlia!

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II

Závoczki foi enterrado na vala. O arcebispo de Esztergom não se deu ao incômodo de pronunciar a oração fúnebre. Quem se incomodou foi a mulher, que lá estava numa roupinha preta que ela mesma fizera durante a noite. Todo o mundo no edifício consolou a Júlia de rosto branco, dizendo-lhe: — "Deus é grande, livra de seus carrascos as empregadinhas maltratadas, você ainda é moça, Deus lhe dê descanso, assim é muito melhor. Deus é grande, você ainda é moça." Júlia acenava com a cabeça, com os seus olhos tristes dava razão aos vizinhos, dizia até: — "Obrigada, senhora porteira. a senhora é muito bondosa, Sra. Braun, obrigada, Sra. Stufenberger, todas são muito boas comigo, obrigada, Sra. Braun." Chegou a dizer: — "O senhor tem razão, Sr. comissário, assim é muito melhor. Deus que dê paz ao finado." Pois Júlia tinha vergonha de confessar ao comissário que sem nenhum motivo especial se podia gostar de um gatuno como Závoczki, mesmo depois da morte, o que é realmente uma vergonha. E já no dia Seguinte ao do enterro pegou a fazer uma roupinha de criança, pois esperava um bebê para o mês.

Quanto a Závoczki, puseram-no de tarde na terra gratuita, mas só ficou ali até a noite. Quem conhece as leis sabe que k porta da Delegacia todas as noites aparece o carro verde para levar ao xadrez os indivíduos que os guardas zelosos recolhem durante o dia. Da mesma forma, um grande carro verde aparece todas as noites no cemitério para levar os malandros que se ma-taram com as próprias mãos. Estes não vão para o In-

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ferno, vão primeiro ao Purgatório. Lá, examinam-lhes o caso, como foi, o que houve. No fim de tudo, mais de um acaba por ser encaminhado ao Paraíso.

Pois Závoczki foi também embarcado no carro verde junto com os demais, a faca grande no coração. Ao lado dele havia um homem molhado: estava molhado por se ter atirado ao Danúbio. À sua frente, uma mulher com uma corda no pescoço: era uma pobre senhora que se tinha enforcado. Nos outros não se via nada. Em cado um deles havia umas balinhas que tinham atirado contra si mesmos. O carro ia sacolejan-do, enfiou na Kereszturi-ut, dali virou rumo ao xadrez, pela noite escura. Assim até o romper da aurora, quando cs cavalos principiaram a correr, depois a galopar desesperadamente. Závoczki espiou por um buraco e viu o carro descendo, por uma estrada muito larga, a algum vale envolvido em névoa côr-de-rosa. Agora o carro voava, as rodas andavam no ar, cidades e aldeias passavam, mas tudo isso já não doía a Závoczki. A faca cravada no coração já o tornava insensível a qualquer dor.

O carro parou. Os ocupantes desceram um após outro, e foram levados pelos guardas a uma grande repartição. Tinham de esperar na ante-sala, onde não era permitido fumar: apesar disso, o ar cheirava a fumaça e muitos cuspiam. Veio um contínuo de óculos, chamou-os um por um. Afinal chegou a vez de Závoczki: aproximou-se da mesa de um delegado.

— Como se chama? — perguntou-lhe este, sem tirar os olhos do grande papel em cujas divisões escrevia.

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— Závoczki Endre. — Idade? — Trinta e dois. — Natural de?. . . Závoczki não respondeu. O delegado, sem encará-lo,

perguntou-lhe: — Lugar ignorado? Závoczki acenou com a cabeça. Aí o delegado levantou

os olhos: — O senhor tem o direito de voltar por um dia

para ver se esqueceu alguma coisa na Terra. Quem morre naturalmente, como convém, não volta, pois não deixou nada inacabado. Mas quem se suicida não morre naturalmente, e às vezes esquece alguma coisa, causan do, com isso, dor a alguém na Terra. Fale.

E enoarou-o com severidade, como se costuma encarar os suicidas. Závoczki respondeu:

— Esqueci-me de esperar o meu filhinho que es tava por nascer. Depois me arrependi de não o ter es perado, pois gostaria de vê-lo; mas agora é tarde. É uma coisa triste, mas eu sou bicho macho: o que está feito, está feito; prefiro ficar.

Encheu o peito de ar e desafiou o funcionário com um olhar atrevido. Seus olhos cintilavam como a faca de cozinha que trazia fincada no peito.

— Levem ao xadrez este tratante sem entranhas! — berrou o delegado.

E os guardas pegaram Závoczki e empurraram-no para o xadrez, e Závoczki riu deles durante o caminho todo, e abanou a cabeça dizendo:

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— Vocês são uns tiras ordinários, vocês não pres tam, seus tiras de uma figa!

Nisto os guardas deram uns pontapés em Závoczki, enquanto um deles segurava o cabo da faca para que não lhe caísse do coração.

III

Závoczki passou dezesseis anos no fogo do Purgatório . É uma grande mentira dizer que o fogo do Purgatório queima. O fogo do Purgatório não passa de uma luz rosea muito forte, na qual a gente permanece sentado anos a fio até que se limpe dos pecados. Com o tempo Závoczki se acostumou com toda aquela luz e teve a impressão de ter-se limpado bastante. Começou a tecer planos, porque o seu coração se purgara e gostaria de ver o filho, de quem nem sabia se era menino ou menina. Assim, quando, certa vez, o delegado passou pelo fogo côr-de-rosa e perguntou a todos se não tinham alguma queixa contra os empregados, Závoczki pediu licença:

— Por favor, Sr. delegado: será que tenho ainda o direito de voltar à Terra por um dia, para apanhar uma coisa que esqueci?

-- Sim, tem direito — disse o delegado com bran-dura, pois tratam-se com cortesia aqueles que passaram muito tempo no fogo. — Faça o seu pedido.

No dia seguinte, Závoczki foi fazer o pedido. O delegado entregou-lhe um papelzinho pelo qual lhe concediam vinte e quatro horas de licença. Levaram-no à adega, e tiraram-lhe do coração a faca, em troca da

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qual lhe deram um número, que ele teve de guardar no bolso. E foi-se, andou, andou, até que chegou à fábrica de juta de Ujpest. Lá, perguntou com bons modos onde morava a viúva Závoczki, operária da fábrica. Indicaram-lhe o endereço e ele se dirigiu para lá.

A mulher morava numa dessas casinhas de operário que formam grupos de seis, todas iguais. Era domingo, de manhã, um domingo de sol. Ela continuava a mesma empregadinha de rosto branco, apenas um pouco envelhecida. Závoczki viu-a, porque ela estava sentada à janela, a coser. Havia na janela dois vasos de flores vermelhas ordinárias e uma cortinazinha, que não o impediam, porém, de ver a mulher. Esta tinha um ar manso e grave.

Závoczki bateu. A porta abriu-se e apareceu na soleira uma menina. Podia ter os seus dezesseis anos. Imediatamente Závoczki reconheceu nela a sua filha. Severa, a menina perguntou-lhe:

— Que é que o senhor deseja? ele cobriu com a mão esquerda o lugar do coração, para

que a mocinha não visse o buraco aberto pela faca no paletó. Agora bem que podia voltar, pois vira a filha. Mas era preciso dizer alguma coisa: a menina perguntara-lhe o que desejava. Então botou a mão direita no bolso para tirar as três peloticas com que sabia fazer mágicas tão engraçadas:

— Eu sei fazer uma porção de mágicas. . . E fez uma careta para ver a filha rir. Mas a filha não riu.

Era severa e grave como a mãe.

— Vá embora — disse-lhe ela.

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— Vá embora — disse-lhe ela.

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E ia pegar na maçaneta para fechar a porta na cara daquele mendigo. Tinha a mãozinha branca, de dedos finos. Nesse momento Závoczki sentiu renascer-lhe toda a cólera que o fogo levara dezesseis anos a extinguir. A amargura subiu-lhe que nem um mar crescido, e ele deu uma pancada na branca mãozinha que ia fechar-lhe a porta na cara para sempre. A menina encarou-o, voltou a pegar na maçaneta e fechou o portão. A chave rodou na fechadura. Závoczki ficou do lado de fora. A sua cólera se aplacara e ele sentiu-se terrivelmente envergonhado por haver batido na filha. Perplexo, olhou para todos os lados e sentiu uma dor no coração. Depois virou-se e entrou a caminhar. ele mesmo não sabia para onde ir. Mas os mortos, mesmo querendo, não sabem ir para outro lugar senão de novo para a morte.

Era alta noite quando chegou ao grande edifício de onde saíra. Lá o pessoal já sabia de tudo. O porteiro acolheu-o com um trejeito. Závoczki baixou a cabeça e, mudo, subiu ao primeiro andar, onde tinha de apresentar-se. O delegado já o esperava. Tomaram-lhe o númeiro e, em troca, devolveram-lhe o facão com um berro:

— Você é mesmo o último dos gatunos. Volta do outro mundo para dar uma surra na filha.

ele não respondeu uma palavra sequer. Apenas, quando lhe repuseram a faca no coração, soltou um suspiro muito grande. Pegaram-no, atiraram-no em uma carreta de ferro e empurraram-no para o Inferno. Assim passou ele do fogo côr-de-rosa para o fogo vermelho,

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onde ficará ardendo até o fim dos tempos, uivando de dor. Termina aqui a história de Závoczki. Quanto à filha, voltou para o quarto a ter com a mãe. — Foi um mendigo maltrapilho — disse. — ele

me fez uma careta muito feia, e eu quis fechar-lhe a porta na cara. Nos olhos dele havia um fogo terrível. Os olhos choravam, o rosto ria. Eu quis fechar o portão na cara dele, mas não vê que ele me dá uma pancada na mão! Uma pancada grande, que fez barulho.

A mulher olhou para o chão, como se procurasse alguma coisa, e perguntou com voz trêmula:

— E depois? — Depois foi-se embora. Mas eu ainda estou tremendo.

ele me deu uma piancada na mão, mas não doeu. Foi como se alguém me tivesse tocado com ternura. A pancada daquela mão calosa, grosseira, era como o toque de uns lábios, de um coração.

— Sei — disse a mulher baixinho, e continuou a coser. E nunca mais falaram naquilo, e viveram até morrer, e o

conto acaba aqui. Dorme, filhinha.

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TRAGÉDIA

MÓRICZ

ODOS falavam nas bodas da filha do velho Sarudy, que iam celebrar-se no dia seguinte. Depois do almoço, os ceifeiros deitaram-se junto às medas ou sob as ten-dinhas improvisadas com forcados e ancinhos, e onde urna ou outra saia cobria de alguma sombra o rosto dos homens deitados, o bastante para não se apanhar insolação.

No vasto campo amarelo aquela gente industriosa como as formigas mexia-se com alegria, entregue ao grande trabalho desumano que se diria não ter limite nem fim: encontravam prazer em agitar os braços, em bater papo, e os moços e as moças beliscavam-se, entre gargalhadías, com as mãos e com palavras, como se aquilo fosse a principal tarefa da vida.

Kis János tomou a sopa de maçã que lhe trouxera o filho sardento e parvo, que se parecia com ele de maneira espantosa. Correu os olhos em torno, mas teve preguiça de ir até a primeira meda e deixou-se cair no campo ceifado onde estava. Pôs o chapéu no rosto,

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e ali mesmo adormeceu. Ouviu ainda que Sarudy Pál mandar-a até matar um bezerro para as bodas.

Nisto adormeceu. Ninguém lhe dava importância, nem sequer o próprio

filho. Este pegou a panela de barro para ver se o pai lhe deixara alguma coisa no fundo. Não deixara nada. A panela estava lão vazia como se o cão Bodri já a tivesse lavado com a língua. O menino derribou a louça e foi atrás do cachorro buscar avelãs.

Ao acordar, Kis János, antes de tudo, lambeu os beiços. Em sonho tinha participado de um casamento e se fartara a valer. Mal-humorado, notou haver esquecido tudo: o lugar onde estivera © os pratos que comera. Se ao menos não tivesse acordado!

Acostumado a renunciar a tudo em toda a vida, não levou muito tempo a lastimar-se; virou-se para o outro lado e quis dormir novamente. Não conseguiu.

O rosto, sob o chapéu, tornara-se-lhe vermelho que nem camarão cozido. Atirou ao chão o chapéu de palha, preto de tão ensebado. Um ventinho fresco e agradável veio afagar-lhe a pele.

— Raios que partam esse velho Sarudy! — ex clamou de si para si. — Tenho trabalhado bastante para ele toda a minha vida; bem que me poderia convi dar para as bodas da filha. A gente se fartava de uma vez.

Enristou o polegar: — Terá sopa: uma boa canja amarela, gorda. Que

bom! Vou comer uma terrina.

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E já devorava a canja, atulhando-se do talharim cortado em caracòizinhos amarelos que lhe desciam pela faringe aos punhados.

— Vamos trabalhar, pessoal! — gritou alguém. Kis János nem se mexeu. Lembrou-se de ter ido

uma vez, em criança, a um casamento. Era até parente da família; entretanto, de todo o banquete só lhe sobrou uma perna de galinha.

Foi tomado de uma cólera impotente, um furor selvagem. Cerraram-se-lhe os punhos e sentiu que poderia, agora, dar um golpe. . . mas um tal golpe que tudo ficaria em pedaços.

Mas, como visse ainda o polegar em riste, voltou-lhe o pensamento anterior:

— Depois, repolho recheado. . . Comeria uns ses senta. . . pelo menos cinqüenta, na certa.

— Vamos trabalhar! — gritaram-lhe. Reergueu-se penosamente. Sentia-se faminto.

Olhou para a vasilha de barro preto. Vazia. . . Aliás. mesmo que estivesse cheia, seria de coisa ruim.

Com desdenhoso furor deu um pontapé na vasilha, que se rachou. Como já estivesse remendada com arame, o fio prendeu-se a uma das sandálias de Kis János.

— Diabos te levem! — xingou, livrando-se do tram- bôlho com um coice. — Enquanto eu viver, terei de aturar sempre esta miséria! Esse velho safado não me convidará.

Ficou de mau humor o dia todo, mas ninguém deu por isso. Kis János era um desses homens invisíveis, que nunca ninguém percebe. Passara assim a vida

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inteira; nem um momento sequer fora uma criatura interessante. Nem forte, nem fraco; nem pequeno, nem grande; nem coxo, nem peitudo; nele nada havia para chamar a atenção. Era como um homem; tinha um par de olhos e um nariz. Tinha bigode, também. Nunca lhe ocorria pensamento algum. De manhã, levantava-se; de noite, deitava-se; chegado o momento, casou-se. Foi a última vez que se fartou; também apanhou uma in-digestão daquelas. . . Não foi soldado. Da sua aldeia não terá saído mais de dez vezes, e só para ir à feira. Durante a vida só riu de verdade uma única vez, quando o pai quis desancá-lo por ter comido sozinho toda a terrina de nhoques: ao vibrar o golpe, o velho perdeu o equilíbrio, caiu e bateu com a cabeça na pa-rede. Morreu disso.

Só uma coisa lhe interessava: comer. Era o motivo que o levava a surrar de vez em quando a mulher; e se uma que outra vez pensava em algo, era em como seria bom comer. Nem isso, porém, chegava a conceber direito. Claro, a experiência não o podia ajudar.

Quando, à noite, os homens, terminado o serviço, foram contar ao patrão o que haviam feito (nessa aldeia cada trabalhador ia jantar em casa), o velho Sarudy disse-lhes:

— Olhem, pessoal: amanhã, todos, homens, mulheres, poderão vir à boda de minha filha. Poderão comer quanto couber em vocês.

Kis János ficou aturdido. Teve medo, medo de não poder dar conta do recado. Os demais exultavam, davam vivas; ele, calado. Estava atrás dos outros; já ia escurecendo; ninguém lhe prestou atenção. Então

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ê!e, com os outros, encaminhou-se para casa, a passos pesados. Em casa, jantou caldo de farelo. Comeu sem dizer

palavra. Enxotou com um pontapé o gato que lhe trepava pelas canelas miando. Não pensava em nada, mas experimentava sensação estranha, como se tivesse de executar uma tarefa extraordinária, a maior da sua vida. Não sabia bem porquê, mas as bodas do dia seguinte enchiam-no de medo.

Passou a noite em claro. Acordava freqüentemente, revirava-se, inquieto, e, quando procurava lembrar-se do que o esperava, sentia-se presa de viva inquietação.

Enristou o polegar: — Para começar, terá sopa de galinha. . . Vou comer uma

gamela. Sorriu. Se juntassem numa gamela toda a sopa de batata,

sopa de cominho, caldo de cerveja, de farelo, de geléia, que ele já comeu em toda a vida.. . Deus do Céu, talvez nem exista uma gamela tão grande, nem sequer na adega do arcebispo de Eger! Agora se quisessem juntar a comida boa que ele já comeu. . . era capaz de nem dar para encher a velha vasilha que ele arrebentara com um pontapé.

Súbito, teve a impressão de estar com a sandália presa à vasilha pelo fio de arame. Deu um coice. Se estivesse deitado numa cama, ela desabaria no mesmo instante; mas o catre de palha não ligava muito aos seus estrebuchamentos. E olhem que o coice foi bem forte. Com ele Kis János desejou afastar de si a pobreza .

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No dia seguinte, despertou mal-humorado. Ao esfregar dos olhos o mau sonho, sentiu nitidamente uma espécie de peso no peito, como se estivesse apertado por faixas.

Franziu o sobrolho: — Raios partam o velho Sarudy! Hoje vou comer-

lhe a fortuna. Tenho cavado bastante a terra dele. Não se animou a comer coisa alguma de manhã. À hora

do almoço nem provou a comida, com medo de não ter fome à noite.

Em outras muitas ocasiões, depois de uma briga com a mulher, acontecera-lhe passar o dia sem comer, a não dera a isso a mínima importância. Dessa vez, porém, tremiam-lhe os intestinos e a fome produzia-lhe vertigem.

Apertou os dentes, as maxilas fortes, largas, de ossos grandes, e olhou para a frente com os olhos côr de cinza. Lutava consigo mesmo com o furor tenaz de uma fera. Mas venceu, conseguiu não comer-

— Cinqüenta repolhos recheados! — repetia con sigo mesmo, e com decisão férrea ceifava o trigo rítmi- camente que nem uma segadeira.

O mundo já não existia em torno dê!e. Não via o vasto campo, nem as pessoas que trabalhavam a seu lado; não tomava conhecimento de ninguém, de nada; não tinha passado, nem futuro; todo o seu ser se endurecia numa única, firme resolução. Ia ao encontro das bodas como de uma tarefa sobre-humana. Sentia as entranhas, o ventre, transformados, capazes de um trabalho imenso. Ao encarar o mundo com os olhos cinti-

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lantes, sentia-se com forças para atirar até os feixes de trigo, à própria garganta, como o auxiliar da debu-lhadora os lançava no tambor.

Afinal entardeceu, acabaram o trabalho. Na casa do velho Sarudy as bodas, começadas ao meio-dia, estavam no auge. Nem sobrava tempo para se prepararem; tinha de sentar-se imediatamente à mesa posta.

Kis János encontrou lugar a um canto. Melhor assim. Ficaria encostado à parede; o inimigo que viesse. Fora com a mesma resolução feroz e cega que um de seus antepassados enfrentara um exército de dois mil t.ircos.

Veio a sopa. Kis János não pediu repetição, mas também não disse que

chegava. A cozinheira deu-lhe um prato de barro, bem fundo, e encheu-o até às bordas. Na superfície havia uma grossa camada de banha amarela que já nem formava olhos, mas sé fundia num único lençol.

Kis János agarrou a colher de pau e entregou-se à tarefa com tranqüila gravidade. Tremiam-lhe os intestinos, e mal podia reprimir a sofreguidão. À décima colherada experimentou um espanto terrível.

Teve a impressão de estar saciado. Empalideceu, compreendendo que assumira uma tarefa

excessiva. Percebeu a sua pequenez humana. Como um vento, passou-lhe pelo cérebro a idéia de que não conseguiria dar conta do recado.

Franziu o cenho: na fronte abriam-se-lhe rugas perpendiculares, as largas maxilas de ferro fecharam-se com rumor, e voltou a enfrentar o inimigo.

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Com o gesto mecânico de quem, com a foice, descreve um arco da direita para a esquerda, levou a colher à boca ritmicamente, até o prato se esvaziar.

A essa altura sentiu vertigem e um enjôo dos diabos. A comida era demasiado gorda para o seu estômago habituado a papas e caldos fracos, insipidus, feitos sem banha.

Vieram os bolos de ricota, gostosos, gordos, cheios de torresmo e creme. Ganhou um prato bem cheio.

E Kis János pegou do garfo de cabo de osso amarelo e quebrado, e, com a mesma tranqüilidade de pouco antes, pôs-se a amontoar os bolos na boca. Já não sentia o gosto da comida. Experimentava uma pressão interna, e quis sair para o ar livre ou, pelo menos, soltar uma boa praga cabeluda. Correu os olhos pela multidão com infinita mágoa e tristeza. Todos riam, devoravam alegres — e ele sentia que tudo estava acabado. Já fora além da quantidade que em qualquer outra ocasião tinha comido de uma assentada. Mas rangeu os dentes e estendeu o prato para receber a terceira iguaria. Eram lentilhas com carne de porco. Ali, entre os trabalhadores e agregados, não se observava a ordem habitual, que lá dentro o padrinho determinava em versos. Davam-lhes o que ficava mais perto. Este comia de uma coisa, aquele de outra; Kis János, de tudo.

Aquilo continuava assim, sem descanso, sem parar. Veio o repolho recheado. — Cinqüenta! — disse consigo Kis János, com os olhos

toldados de um véu. Entre os repolhos havia grandes pedaços de carne. Kis

János, ao querer engolir, depois de três repolhos

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enormes, um desses pedaços coriáceos, mal cozidos; difíceis de roer, levantou-se, aturdido. Sob as espessas sobrancelhas, os olhos quase lhe saltavam das órbitas, as veias do pescoço inchavam, grossas como cordas.

O que lhe sobrava de juízo fê-lo sair correndo. Estava perto da amoreira quando se livrou do perigo. O

pedaço que lhe entupira a garganta e por um triz não o estrangulara, voltou à bôca.

Seus olhos encheram-se de lágrimas, e cerrou as maxilas com tamanha força que não as abriria nem sequer à cunha.

E disse consigo, com a embriaguez da paixão: — Rebenta, cachorro! Engoliu a carne novamente. Ainda dessa vez o pedaço não passou. Fincou-se na

garganta, e não descia nem subia. As duas mãos do homem tateavam o ar; o corpo magro e

comprido deu uma viravolta e estatelou-se. Presa de horríveis convulsões, estrebuchava no chão sem

um grito, até que por fim se aquietou. Ninguém notou que ele se sumira, como ninguém jamais

notara a sua presença, nem sequer a sua vida.

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AVENTURA BÚLGARA

KOSZTOLÁNYI

D EVO contar-lhes este caso. Outro dia ouvi alguém dizer, numa reunião, que nunca viajaria num país cuja língua não falasse. Dei-lhe razão. A mim, também, o que numa viagem me interessa, em primeiro lugar, são as pessoas, muito mais que os objetos dos museus. Ouvindo-as falar sem entendê-las, acabo por sentir-me quase surdo espiritualmente, como se assistisse a um filme mudo sem música nem legendas. E' enervante e aborrecido.

Depois de sustentar essa tese, lembrei-me de que, como no caso de qualquer outra tese, o contrário não era menos certo. E' uma distração infernal passear no estrangeiro, indiferente ao barulho das bocas, encarando com espanto quem nos dirige a palavra. Que nobre solidão, meus amigos, que independência e irresponsabilidade! Vem-nos a impressão de nos havermos tomado uma criança de colo, sob tutela. Nasce-nos uma espécie de inexplicável confiança nos adultos, mais sábios do que nós. Deixamo-los falar e agir por nós, para depois aceitarmos tudo de olhos fechados, ou melhor, de ouvidos fechados.

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Raramente pude experimentar esta sensação, pois, como vocês sabem, falo dez línguas. Na realidade, experimentei-a uma única vez, quando, a caminho da Turquia, atravessei a Bulgária. Neste país passei apenas vinte e quatro horas, todas, aliás, no trem. Foi lá que me aconteceu o que vou contar-lhes, e que seria pena não relatar. Afinal de contas, posso morrer de um momento para outro — basta um capilar sangüíneo rebentar no coração ou no cérebro — e ninguém mais, estou certo, poderá ter experiência igual, em tempo algum.

Era noite, por volta da uma e meia. O expresso corria comigo por entre aldeias e> montes desconhecidos. Não conseguia dormir e fiquei no corredor a sorver um pouco de ar. Não tardei a aborrecer-me. Da beleza da paisagem via apenas umas manchas negras; o aparecer, de vez em quando, de um ponto luminoso, era um acontecimento. Em redor de mim, todos dormiam o sono dos justos; não havia vivalma nos corredores.

Aprontava-me para voltar ao compartimento, quando, com uma lanterna na mão, surgiu o condutor. um búlgaro atarracado, de bigode preto, que parecia ter acabado a sua ronda noturna. Já examinara a minha passagem havia muito tempo, não tinha mais nada que fazer comigo. Mas, como que para cumprimentar-me, agitou levemente a lanterna e piscou os olhos para mim, depois meleu-sei a meu lado. Evidentemente aborrecia-se, éle também.

Não tenho a menor idéia sobre como e porque, mas nesse momento resolvi, custasse o que custasse, bater um papo com ele, e um bom papo, demorado, saboroso.

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KOSZTOLANYI

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Perguntei-lhe em búlgaro se fumava. Era tudo o que sabia dessa língua, tendo-o aprendido num aviso afixado no trem. Além disso, conhecia, quando muito, cinco ou seis palavras, das que a gente apanha em viagem queira ou não queira, como "sim" e "não", e outras assim. Mas juro-lhes, os meus conhecimentos não passavam disso.

O condutor levou a mão à pala do boné. Saquei da cigarreira e lha estendi. Com profundo respeito ele apanhou um cigarro de ponta dourada, tirou do bolso uma caixinha de fósforos, acendeu um fósforo e em seu idioma totalmente desconhecido, sussurrou-me um provável "às ordens". Por minha vez, alcancei-lhe o meu isqueiro, de chama azul, e repeti como uma pega a palavra que acabara de ouvir pela primeira vez na minha vida.

Fumávamos, os dois, ardíamos, largando a fumaça pelo nariz. Era decididamente um princípio animador. Ainda hoje, ao lembrar-me disso, sinto-me lisonjeado, orgulhoso do senso psicológico com que preparei aquela cena. Meu conhecimento dos homens permitira-me plantar a sementezinha que, como hão de ver, se transformaria em frondosa árvore, sob a qual ia descansar das fadigas da viagem para de manhã poder retirar-me enriquecido de experiências invulgares.

Devem reconhecer que desde o primeiro momento eu adotara uma atitude certa, impecável. Tinha de dar a crer que era um búlgaro de truz e conhecia a língua pelo menos tão bem quanto o professor de Literatura da Universidade de Sofia. Por isso mostrei-me algo ente-diado, displicente, guardando-me sobretudo de tagarelar.

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Dirão que isso não dependia de mim; tanto faz. O que caracteriza os forasteiros é desejarem falar constantemente a língua do país em que se encontram, cometendo excessos neste pormenor a ponto de logo revelarem a sua identidade. Os indígenas, pelo contrário, restringem-se a gestos, a sinais. E' preciso arrancar-lhes à força cada palavra. Então, como que adormecidos, eles lançam um ou outro termo surrado, gasto pelo uso, do rico tesouro da sua língua materna que trazem escondido no fundo de si mesmos. Em geral evitam os rodeios escolhidos, as construções corretas e literárias. Limitam-se a falar o menos possível, no que têm toda a razão, pois, se tivessem de pronunciar uma conferência de várias horas ou escrever um livro de centenas de páginas, seus ouvintes ou críticos não tardariam a demonstrar, com alguma razão sem dúvida, que ignoram escandalosamente a língua materna.

Estávamos, pois, fumando, o condutor e eu, num desses silêncios íntimos de que se originam as aproximações verdadeiras, as afinidades efetivas, as grandes amizades, que duram a vida inteira. Eu estava grave e jovial, ora enrugando o cenho, ora para variar, desen-rugando-o, e lançando a meu companheiro olhares atentos. Mas, afinal, era preciso iniciar a conversa, cuja possibilidade mágica pairava no ar, acima das nossas cabeças. Dei um bocejo e um suspiro. De repente, pus-lhe uma das mãos no ombro, arqueei as sobrancelhas transformando-as em enormes pontos de interrogação e, erguendo de chôfre a cabeça, murmurei:

— Hem?

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O condutor, a quem esta manifestação de interêsse deve ter acordado alguma lembrança da meninice, uma semelhança com os modos de algum camarada que lhe costumava perguntar, daquele jeito: — "Que é que há, velho?" — teve um sorriso e pôs-se a falar. Disse umas quatro ou cinco frases, e calou-se, aguardando resposta.

Eu também aguardei, e não sem motivo. Matutei para ver o que havia de responder-lhe. Após breve hesitação, tomei partido e disse-lhe:

— Sim. Fora a experiência que me ensinara isto. Cada vez que

não presto atenção à palestra ou alguma coisa me escapa, também na Hungria costumo dizer: — "Sim." Sempre me dei bem com isso, ainda que parecesse aprovar algo que deveria censurar. Em tais casos pode-se fazer crer que se aprovou ironicamente. As mais das vêzes o "sim" pode também ser "não".

O acerto desse raciocínio ficou demonstrado lumi-nosamente. O condutor tornou-se muito mais loquaz. Mas, depois, infelizmente, voltou a calar-se, numa grande expectativa. Perguntei-lhe, então, com acento interrogativo, algo perplexo e admirado:

— Sim? Isto, por assim dizer, rompeu o gelo de uma vez. O

condutor abriu-se e entrou la falar, a falar durante um quarto de hora, dizendo coisas engraçadas e, sem dúvida, interessantes, o que me permitiu, nesse ínterim, não dar tratos à bola para saber o que diria em resposta .

Alcançara o primeiro êxito decisivo. Tagarelando sem fim, enquanto as palavras lhe corriam dos lábios,

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o meu interlocutor deixava patente que nem por sonho me tomaria por um estrangeiro. Entretanto, por mais sólida que parecesse, eu tinha de corroborar-lhe ainda mais essa convicção. Mesmo que provisoriamente ficasse dispensado da obrigação, para mim sumamente penosa, de responder, podendo tapar a boca com os meus cigarros de ponta dourada, como que indicando as3im que ela estava "ocupada" e não lhe sobrava tempo para falar, nem por isso podia deixar de dar atenção ao meu devotado divertidor e, de vez em quando, tinha de alimentar o fogo da conversa.

Como o consegui? Não com palavras, mas representando, como um ator, um ator de primeira, com todo o corpo. O rosto, as mãos, os ouvidos, até os dedos dos pés, tudo eu mexia como era conveniente, fugindo, porém, aos excessos. Fingia atenção, não a atenção esforçada, de antemão suspeita, mas a outra, que ora se cansa e se dispersa, ora acorda e revive. Cuidava de tudo. Às vezes, indicava-lhe, por um gesto, que não compreendera o que ele acabara de dizer. Vocês naturalmente julgam que era o que havia de mais fácil. Pois estão enganados. Era o que havia de mais difícil. Como realmente não entendia patavina de toda aquela tagarelice, eu tinha de cuidar de que a minha confissão pão fosse demasiado sincera e convincente. Não falhava, pois o condutor limitava-se cada vez a repetir simplesmente a última frase e eu respondia com um sinal que significava: — "Bem, isto é outra coisa."

Depois, já nem precisava alimentar a alegre chama crepitante de conversação com a lenha miúda de lais invenções: ele ardia sozinho como uma fogueira.

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O condutor falava sem parar. De que? Eu mesmo gostaria de sabê-lo. Talvez do regulamento ferroviário, da própria família ou da cultura da beterraba. Tudo era possível. Só Deus saberia dizer de que ele falava. Fosse como fosse, pelo ritmo de suas frases adivinhei que estava expondo uma história, longa, alegre, acidentada e conexa, que progredia num largo ritmo épico em direção ao desenlace. O meu interlocutor nao tinha pressa. Eu, tampouco. Deixava-o desviar-se, perder-se cm episódios, sair do rumo como um riacho, para depois fazer meia-volta e regressar ao cômodo leito escavado da narrativa. Freqüentemente ele sorria. A história devia ser picante, com pormenores apimentados, talvez até licenciosos e escabrosos. O condutor piscava os olhos para mim com um ar entendido de cúmplice, e ria. Eu ria também, mas nem sempre. Às vêzes não lhe partilhava de todo a opinião. Não querendo viciá-lo apreciava moderadamente o bom humor realmente genuíno, vindo do íntimo do coração, com que animava a sua narrativa.

Eram três horas da manhã — havia uma hora e meia que estávamos conversando — quando o trem começou a diminuir a marcha, aproximando-se de alguma estação. O condutor pegou da lanterna e pediu licença para saltar um instante. Assegurou-me, porém, que ia voltar em seguida e contar-me o desfecho, isto é, o melhor daquela história engraçadíssima.

Debruçei-me pela janela, banhando no ar fresco a cabeça atordoada. No céu cinzento as peônias do amanhecer iam desabrochando. Estendido a meu pés via um lugarejo que cheirava a coalhada. Na estação havia

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camponeses esperando e algumas mulheres de cabeça coberta com lenço. O condutor falava búlgaro com eles, tal qual comigo, mas com resultado melhor, pois aqueles passageiros o compreenderam imediatamente e se dirigiram para os carros de terceira classe na extremidade do comboio.

Ao cabo de alguns minutos, lá estava o condutor novamente ao meu lado, com o sorriso, ainda não res-friado, nos lábios, e retomou a sua história, dando risadas mal contidas. Daí a pouco veio o final que me prometera e que o fez estourar numa gargalhada. O riso sacudia-lhe o ventre. Era mesmo um sujeito sabido, um camarada formidável. Sempra entre risad s, levou a mão ao bolso do paletó e saccu de lá um li-vrinho magro, atado com um elástico, do qual tirou uma carta amarrotada, suja, sem dúvida elemento orgânico da história, ou talvez a explicação dela, e a pôs na minha mão para que a lesse e comentasse. Que havia de fazer, meu Deus! Eram uns rabiscos, escritos a lápis e meio apagados, em letras cirílicas, que infelizmente não conheço. Mergulhei na leitura da carta, enquanto ele, apartado, examinava o efeito. — "Sim" — res-mungei — "sim, sim" — afirmativa, negativa e interro-gativamente, meneando de vez em quando a cabeça como para dizer: — "Isto é bem dêle!" — ou: — "Incrível!" — ou: — "E' a vida!" E' uma frase que se adapta a todas as situações. Na vida não apareceu nunca nenhuma situação que não admitisse essa fórmula — "E' a vida!" — empregada mesmo quando alguém morre. Apalpei a carta, cheirei-a — cheirava levemente a mofo — e, como não pudesse fazer outra coisa, devolvi-a.

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O livrinho encerrava, ainda, um mundo de coisas. Logo depois o condutor retirou dali uma fotografia, que, com grande surpresa minha, era a de um cachorro. Abro-chei os lábios como se fosse um apaixonado de cães, mas vi que o condutor não estava de acordo. Parecia zangado com o animal. Tornei-me sério, pois, e rangi os dentes para este. Mas o meu espanto chegou ao cúmulo quando o condutor tirou da capa do livrinho om objeto miste-lioso, enrolado em papel do seda, e me pediu que o abrisse com as próprias mãos. Abri-o. Continha apenas dois botões, dois grandes botões de osso, verdes, para capa de homem. Sacudi-os na mão, fazendo-os soar, como se eu fosse um aficionado de botões, mas o condutor arrancou-os das minhas mãos e escondeu-os no livrinho, depressa, como quem não quer mais vê-los. Depois deu uns passos, virou-se e encostou-se à parede do carro.

Não compreendia mais a situação. Aproximei-me dele e vi uma coisa que me enregelou o sangue nas veias. ele tinha os olhos rasos de lágrimas. Aquele homem forte, gordo, chorava. A princípio chorava como um homem, escondendo as lágrimas; mas depois entregou-se ao choro sem reservas, com a boca em convulsões. as omoplatas a tremer.

Para dizer a verdade, a profunda, inextricável confusão da vida deu-me vertigem. Que era aquilo? Que nexo existia entre aquela infinidade de palavras, o riso e as lágrimas? Que é que um tinha com outro: a carta com a fotografia do cachorro, a fotografia do cachorro com os dois botões de osso verdes, e tudo isso com o condutor? Era uma loucura ou pelo contrário, uma ex-

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plosão de sentimentos normais? Seria que tudo aquilo tinha algum sentido, em búlgaro ou qualquer outro idioma que fosse? Sentia-me presa de desespero.

Agarrei com força o condutor pelas espáduas, a fim de incutir-lhe coragem, e gritei-lhe ao ouvido, em búlgaro, três vezes:

— Não, não, não! ele, afogado em lágrimas, balbuciou outro mono-sílabo,

que podia significar: — "Muito obrigado pela sua compaixão", mas também: — "Seu canastrão ve-Ihaco, canalha miserável!"

Aos poucos volveu a si. Arfava menos, enxugava o rosto com o lenço e voltou a falar. Mas o tom mudara totalmente. Desta vez fez-me perguntas breves, cortantes. Sem dúvida, perguntava-me: — "Como é isso? Há pouco você me disse "sim"; por que, logo depois, disse "não"? Por que aprova o que desaprovou? Vamos acabar de uma vez com essa brincadeira suspeita. Resolva: sim ou não?" As perguntas sucediam-se cada vez mais rápidas e ásperas, como o fogo de uma metralhadora que me visasse. Não podia evitá-las.

Aí via-me desamparado da sorte, caído numa emboscada. Salvou-me, porém, o meu desembaraço. Empertiguei-me, encarei o condutor com frio desdém, da cabeça aos pés, e, como quem não quer decair da sua dignidade, dei meia-volta e retirei-me, a passos largos, para o meu compartimento.

Deixei cair a cabeça na almofada amarrotada e adormeci imediatamente, como quem é fulminado por um colapso. Acordei por volta de meio-dia, com um sol forte esquentando a vidraça. Alguém batia à porta do

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compartimento. O condutor entrou e avisou-me de que devia saltar na próxima estação. Mas não se resolveu a sair: permaneceu a meu lado com a fidelidade de um cão, e voltou a falar, baixinho, com irreprimível fluência. Talvez se desculpasse, talvez me acusasse da desagradável cena noturna. Assim como assim, o seu rosto mostrava um arrependimento profundo e sincero. Mantive a minha frieza; permiti-lhe apenas que atasse as minhas malas e as levasse para o corredor.

No último instante, porém, tive pena do homem. ele já entregara as malas ao carregador. Pondo o pé no estribo, lancei-lhe um olhar mudo, que dizia: —"O que você fez não está certo, mas errar é humano." Depois acrescentei bem alto, em búlgaro:

— Sim. Essa palavra exerceu efeito milagroso. O condutor

serenou, acalmou-se, voltou a ser o que era. Com um sorriso de gratidão nos lábios, permaneceu à janela, imobilizado em continência, paralisado pela felicidade, até que o trem, partindo, o fez desaparecer de meus olhos para sempre, para nunca mais.

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PRÓLOGO

KARINTHY

OR aí — disse o porteiro, conduzindo-me à porta do subterrâneo. — O senhor desce as escadas, vira à direita, segue o corredor até o fim, depois vira à esquerda até chegar ao letreiro "Diretor".

Percorri os estreitos corredores perguntando a mim mesmo porque o diretor morava debaixo da terra. Mas logo compreendi que o andar térreo estava todo ocupado pela companhia de revistas. Devia ser mais fácil administrar tudo dali de baixo. Mais fácil e muito mais econômico. Era um mundo complicado de alçapões, vigas e bastidores; lâmpadazinhas elétricas pontilhavam a escuridão, onde pairava um cheiro de madeira branca e óleo.

No gabinete do diretor fazia calor. As paredes da adega estavam cobertas de ricos e pesados tapetes. Ele mandou-me sentar numa poltrona macia e ofereceu-me um havana. O rosto escanhoado brilhava atrás da escrivaninha, gordo e saliente; os olhos zombeteiros, extintos, moviam-se distraídos. Na escrivaninha, à sua frente, havia uma porção de botões de campainha com os quais brincava.

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— Ia telefonar-lhe — disse-me. — Pensei que não encontraria o caminho.

Acenei com a cabeça, lembrado da advertência que me haviam feito: devia tomar muito cuidado com ele.

— Foi Sua Excelência quem o recomendou — de clarou-me. — Eu mesmo, aliás, costumo ler os seus trabalhos. Faz parte da minha política dar emprego a moços de talento que querem subir: assim a gente se associa forças novas, e os senhores, por sua vez, acabam obtendo alguma coisa indispensável, sem a qual nem o maior talento pode realizar nada. Acabam conhecendo a vida mais de perto.

Balbuciei algumas frases convencionais. Admirava muito a empresa, todos aqueles fios que vinham juntar-se nas mãos de uma pessoa só. ele me ouvia de papada frouxa.

— Desta vez trata-se de um serviço menor — volveu displicente — mas se ficarmos satisfeitos um com o outro, haverá mais.

Olhou-me de esguelha com sarcasmo frio e cruel: —Aqui se pode ganhar.

Riu e bateu-me no ombro. • Respondi com um ricto e senti geladas as faces. Do lado

do corredor ressoou um ruído prolongado, uma série de estertores borbulhantes, abafados num rufar de tambores. O diretor fitou-me com benevolente desprezo .

— Não tenha medo — disse para tranqüilizar-me. — Estão ensaiando.

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— Como é interessante! — respondi, ainda com arrepios. — Ainda não me acostumei. Estão levando e coisa tão a sério?

Levantou-se e começou a passear pelo quarto, com as mãos nos bolsos. Só então notei que ele manquejava.

— Pois é, meu amigo, tem de ser assim. Uma empresa destas só se mantém com o máximo de disci plina. Todos têm de dar o que têm de melhor; não estamos brincando. As nossas despesas são elevadas, não podemos enfrentar riscos, e o público deseja ver alguma coisa. No momento da premiere, não pode haver a menor falha: tudo o que é pobre, fraco, enfermiço, tem de ser eliminado nos ensaios. Tudo deve funcionar como um mecanismo. O público não deve perceber esforço, aparas, minudências.

Parou na minha frente e pôs—me as duas mãos no ombro: — A um artista com o talento que você tem não

faz nenhum mal olhar um pouco para trás dos basti dores.

Sua voz se tornou mais confidencial: — Não é? Será que um homem como nós dois

(estarei ofendendo-o?) não se interessa mais por isso do que pela representação já pronta? Nós outros, que fazemos as coisas — não é mesmo? — gostamos de ver de perto como se fabrica o sensacional. De tomar parte nele, não é?.. . Depois, você só pode lucrar em conhecer a parte técnica. . . Perdem-se ilusões, está certo, mas ganha-se algo que se valorizará mais tarde: um bocado de superioridade, de ironia, que nos permite oríentarmo-

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nos tão bem entre os homens. Talvez, quem sabe? — e piscou um olho com um riso brutal — uma situação-zinha também, mais tarde um pouquinho de poder. . . que tal, rapaz? Pense bem. Um titulozinho talvez... alguns privilégios que só poucos conhecemos.

Aproximou-se da mesa e apertou um botão: o quarto escureceu-se, mergulhou numa luz vermelha. Mal percebi que a parede da frente se abria devagar. Por trás dela estendia-se uma planície tenebrosa, de céu crepuscular, cruzado de listras purpureas e alaranjadas. No meio erguia-se um morro, abrupto, com uma sebe extensa no alto. Estava soprando um vento frio.

— Por aqui — disse o diretor. — Siga-me sempre. Cuidado para não tropeçar.

Trovoadas vinham de longe, foguetes subiam ao céu. Andávamos num soalho improvisado, e o diretor iluminava o caminho com uma lanterna. De repente, percebi cobras serpeando aos meus pés: eram soldados. Os canhões recomeçaram a troar, a paisagem aparecia por vezes à luz de um foguete, e eu via tropas avançarem penosamente por atalhos íngremes e estreitos. Entre as árvores jaziam cadáveres.

— Está vendo? — disse o diretor, apertando outro botão, o que fez derramar sobre todas as coisas uma luz solar. — Tudo é verdadeiro. Aqui não se olha a des pesas. Árvores de verdade, está vendo? Chão de ver dade, armas de verdade. Os cadáveres também são verdadeiros. Como se tivessem morrido na cama, sobre almofadas. Pode apalpar qualquer deles. Isto vai dar ilusão perfeita.

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Levou as mãos à boca formando porta-voz, e gritou para o sótão, cujas tábuas se cruzavam numa altitude infinita sobre nós:

— Olá, Mayer, luz para à esquerda! Aqui, no primeiro plano, quero um combatezinho, se possível com corpo-a-corpo. E mais som, muito mais som! Aquele soldado está fora do lugar: tiro nele!

Um estrondo terrível sacudiu os montes. Explodiram minas, e o eco esmoreceu devagar. Depois, berros e lamentos, estertôres, relinchos de cavalos, borbulhar de lama. O diretor voltou-se para mim:

— A encenação está bastante homogênea, não acha? Pois não se deve esquecer que a obra em si, compilada pelos autores da casa, é confusa e às vêzts ininteligível. O material foi tirado de muitas fontes. . . Aníbal, César e Napoleão, entre outros. O enredo é escasso, mas há abundância de situações e cores. Estamos movimentando grandes massas; isto dá sempre um efeito seguro.

Como eu não soubesse responder-lhe, começou a filosofar:

— Naturalmente, você, moço idealista, está pen sando que não é interessante levar peças antigas, tantas vezes remastigadas, que há mil anos já não tinham sentido. Eu bem sei disso, meu filho. Embora não pa reça, leio o que vocês escrevem. Bem sei que seria preferível começar algo de novo, algo mais belo, cheio de talento, espírito e força, de mocidade, novos pontos de vista, uma nova moral para a humanidade renovada. Que nesta cena magnífica, tão bem montada, neste des campado enorme., encimado pelo nosso grandioso lustre, o Sol, se deveria representar um drama novo, em am-

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biente novo, com as lições novas de uma beleza nova.. . que se deveria tentar, por fim, alguma coisa ... Talvez nós também saibamos escrever e representar como os antigos... ou até melhor, com mais arte, mais verdade.. . Quem sabe? Talvez não fosse nem bom, nem belo, nem justo, o que eles fizeram, e que nós estamos admirando por inércia, por hábito. . . E' o que você pensa., meu rapaz, mas que fazer? O que o público deseja é isto, acredite-me a mim, que sou comediante velho. O público deseja clássicos, não há por onde, e eu — sou homem de negócios, o que importa dizer que quero viver bem. For aqui, por favor, voltemos ao escritório .

A porta fechou-se atrás de nós e o diretor refeste-lou-se na sua poltrona.

— Bem, passando ao nosso negócio — disse a olhar distraído para as unhas — eu precisaria de um prólogo para esta peça. Em versos, naturalmente. Não muito comprido, e fácil de recitar. O assunto não é, absolutamente, difícil; você tem todos os dados. . . Agora, eu penso que no prólogo não se deve referir o conteúdo da peça: deixe que o público se surpreenda pela milésima primeira vez com o desfecho que já viu mil vezes. . Estou pensando apenas num desses troços para animar, você compreende.. . Alguma idéia de conjunto, que os autores se esqueceram de colocar na peça.. . Como se o diretor falasse ao público, com calor e entusiasmo, dizendo assim: "Eu quis isto e aquilo, comunicar-vos sensações nobres e sublimes, senhores e senhoras. .. hombridade, desinteresse, patriotismo. . ." O que, afinal de contas, é verdade, pois rüa peça há tudo isto, se bem

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me lembro; mas você deve fazer crer que é por causa disto que o diretor representa a peça, e não por causa dos lucros. . . Você saberá fazer isto otimamente. Depois eu mandaria incluir esse prólogo no programa impresso.

Encarou-me com expectativa, mas sem insistência. — Olhe — disse de repente — você faz isto num

instante. Para que adiar? Aqui tem uma saleta cômoda. Fecha-se a porta forrada, o barulho da cena fica por fora, você se senta na poltrona, põe na mesa uns bons charutos — quer este bock? — uma garrafa de uísque. . põe-se a sonhar — não é? — como vocês poetas costumam fazer, e dentro de uma hora ou duas teremos o prólogo no papel. Ficarei até às onze, passarei lá, e concluiremos o negócio imediatamente. O primeiro a quem mostrarei o seu trabalho será Sua Excelência; a um moço não faz nenhum mal que a Academia lhe acompanhe as atividades. . . um bocado de imortalidade — que diabo! — sobretudo podendo-se assinar um valezinho, à vista. Tudo isso não há de custar muito a um homem com. o seu talento: umas rimas boas, algumas imagens, e pronto.

— Realmente — disse de mim para mim, sentado na poltrona verde da saleta, um charuto na boca, fitando a fumaça — não me custará muito. Não conheço a profissão? Não tenho as minhas imagens?"

Encostei a caneta no papel, fitei-o, e escrevi, meditando e distraído: "ai", e escrevi "meu Deus", e, de novo, "ai", e de novo "meu Deus"... Os minutos e as horas foram passando e as linhas multiplicaram-se no papel. . . Uma só palavra, cem, mil vêzes em seguida. . .

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KARINTHY

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ai. . . ai. . . ai. . . em letras cada vez maiores. . . cada vez mais espasmódicas, teimosas, infinitas.. . E além dos meus olhos enevoados, dos meus beiços frouxos e caídos, o meu pobre cérebro atormentado revirava devagar, com mortífera volúpia, esta boa imagem: vinham buscar-me, levantavam-me com bons modos — não é? — não me empurrariam como lá fora se empurravam os bastidores . . . falar-me-iam gentilmente, acalmar-me-iam, sen-tar-me-iam num carro.. . Que bom, depois, na cela fresca do hospício, ficar sentado a olhar sem fim as paredes brancas. . . e saber que ninguém pode fazer-me mal, que ninguém pode falar comigo. . . porque não sou mais homem e não tenho de responder pela minha alma!

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O CRIMINOSO

Esboço para romance policial

MÁRAI

MAGINEMOS la vítima. Que pode ela ter sentido? Fora naturalmente encontrada em sua poltrona ao lado da janela, entre sentada e deitada, de bruços na mesinha, onde se viam, ainda, o cachimbo, o jornal da tarde e um vaso de flores derrubado. A água derramara-se na toalha de croche; as flores — diga-se logo com exatidão, como convém tratando-se de crime: seis rosas amarelas — jaziam espalhadas no tapete, de pétalas caídas. Lá estava o morto, curvado, cabelos em desalinho, um pouco de saliva a borrifar-lhe o peito muito branco da camisa. Evidentemente, devia ter sofrido nos últimos instantes. Agredido à traição, nao morreu logo depois do atentado; segundo o laudo médico, há de ter vivido mais algum tempo, talvez uns vinte a trinta minutos. Os traços do rosto decompuseram-se dolorosamente. Fora o criado nobre quem o encontrara nesse estado, às nove da manhã. Isso quanto à vitima, num capítulo inicial, com toda a objetividade, como se fosse a mera exposição dos fatos nos autos da polícia.

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Acessòriamente, algo acerca das exéquias. A notícia da tragédia suscitou geral consternação. O presidente do Conselho mandou um telegrama, altas autoridades, dignitários da Igreja vieram dar pêsames. Durante algum tempo, segundo dizem, reclamou-se um inquérito, até nas esferas oficiais; mas depois os cochi-chos silenciaram, não se tomou nenhuma medida, as autoridades não se opuseram ao sepultamento. O enterro foi brilhante, sendo que no cortejo se viu um bispo e vários desembargadores. Isto no tocante às formalidades; será o bastante para se compreender, desde já, a importância pessoal da vítima.

Logo a seguir, apresenta-se o detective. Faremos de conta que o leitor sabe tudo a respeito; por isso ele não dirá "well", não acenderá o cachimbo, não esfregará as mãos, não repetirá a cada instante que "o caso é sobremaneira misterioso". Como se Sherlock Holmes nunca houvesse existido numa das ruas laterais de Baker-Street, o leitor deverá imediatamente ser posto a par do segredo do detective, tornar-se seu cúmplice, ou seu auxiliar. — "Pois é, o nosso detective é assim — pensará ele, honrado pela confidencia. — Quem não gostar dele que vá procurar Sherlock Holmes." Naturalmente o detective já não é muito moço. Gosta de tocar violino, nas horas vagas lê unicamente livros sérios, Proust e Joyce, e despreza os romances policiais. A meu ver, só a literatura tem mistérios; a vida faz trabalho de açougueiro, os assassinos são uns calouros, todos eles voltam sorrateiramente, no penúltimo folhetim, a ver a cena do crime, ou esquecem no lugar o Jimpa-cachimbo com impressões digitais; basta o inves-

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tigador ficar à espreita, de capa verde transparente e impermeável, e convidar o criminoso, em voz alta, algo displicente e acessóriamente, com palavras elegantes. a não fazer tanta cerimônia e entregar-se de vez. O detective naturalmente goza de grande consideração na praça, na sua profissão é de primeira categoria, e ganha muito bem; quando faz bom tempo vai jogar o seu golfe à fazenda, perto de Reading, onde é tratado como um gentleman de direitos iguais; tem certo menosprezo ao ofício, que já sabe de cor e salteado, e mostra mais interesse pela solução de um rébus norueguês do que pela de um triplo assassínio. Isto no que diz respeito ao detective.

É por volta das dez da manhã que ele é chamado pelo chefe da comissão policial. Preferiremos apresentar a polícia sob cores antes simpáticas, e não como o conjunto de burocratas cretinos — como geralmente o fazem os autores de romances policiais — que nada conseguiriam sem o genial auxílio do detective particular (ó Inglaterra, liberalismo!). Seria mais um grupo de pessoas profissionalmente lógicas e teimosas, que perguntam meio desorientadas, em conformidade com as prescrições: — "Que fim levou o criminoso?" O de-tective resmunga. Deixa na antecâmara o chapéu e a capa; na sala mortuária porta-se como se estivesse em visita. Traz na mão direita uma lente, na esquerda o último livro de contos de Maugham.

O delegado expõe-lhe os resultados do inquérito. O velho criado nobre vestiu no amo o chambre às dez da noite, depois desceu à sala de jantar do pessoal, pre-parou um ponche com o adegueiro e o cozinheiro; fica-

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ram os três a bebericar até meia-noite, depois foram deitar-se. Das criadas, Madge foi a única a passar a noite fora de casa, devidamente autorizada a visitar o filho doente. O detective passa logo a interrogá-la. Fala com a moça, bonitinha, um tanto corada pelo susto, cordialmente, como uma pessoa civilizada se dirige a uma senhora; não a chamará, pois, "minha filha", nem lhe dará palmadinhas nas faces. Dos depoimentos do criado nobre e de Madge deduz-se um perfeito álibi.

Desde as dez da noite a vítima permanecera sozinha no quarto. Segundo o costume, fechara-o por dentro, à chave; de manhã, fora preciso arrombar a porta. Verificou-se que ninguém tentara abrir as janelas nem por dentro nem por fora; não houve mão estranha que mexesse na fechadura da porta, ninguém procurou abri-la com chave falsa. Em todo caso, examinam-se as cinzas no cinzeiro, os rastros na estrada. Heróico, o detective experimenta o copo de água, já morna, em cima do criado-mudo da vítima. Tudo isso minuciosamente, nos moldes clássicos. Está enfadado o leitor? Bem-feito: para que foi meter-se a 1er um romance policial?

Não se encontra coisa alguma, está claro. O detective resmungará o well duas ou três vêzes, esfregará o queixo com o polegar e o índice em atitude pensativa, acenderá o cachimbo, lançará sôbre o delegado um olhar expressivo, escutará, irônico, o relatório profissional do sargento, que "viu no jardim uns vestígios de botas", cheira a camisa da vítima, entra na despensa, ajeita a corrente de couro rasgada do elevador de serviço, tudo isto sem falar, assobiando (uma ária de Gluck) e, volta

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e meia, abanando a cabeça, com um sorriso. Será que já tem alguma suspeita? Seja como for, pede ao inspetor que mande examinar a vida pregressa da vítima. Discrição, muita discrição!

Agora principia novo capítulo do romance. Que espécie de homem foi a vítima? Pergunta simples, à qual o detective vai responder sem rodeios. A vida da vítima abre-se diante do leitor — e agora o enredo do nosso livro passa, deveras, a ser tão interessante como o de um romance policial. Essa, naturalmente, está cheia de segredos, porém os olhos de lince do detective descobrem-nos um por um. De quando em quando, o morto ia, de tarde, a um botequim numa das ruas laterais de Oxford-Street, onde bebia sherry e fumava o seu cachimbo, caladinho. Por quê? Não se sabe. Um dia apanhou na rua um pedaço de papel vermelho, examinou-o durante algum tempo, e depois, cauteloso, atirou-o no chão. Tinha uma gravata verde-escura, que punha de preferência a outras; por vezes, ao pronunciar certas palavras, tocava a perna da cadeira com o índice e o dedo médio, dando nela três pancadinhas. Às vezes era procurado por pessoas suspeitas: um vigário, um alquilador, um negociante de objetos religiosos; levava tempo a conferenciar com elas na solidão de seu gabinete. Depois, essas pessoas desapareciam, e durante meses não era visto com nenhum desconhecido. Mostrava-se afável com o netinho, ao passo que à netinha, limitava-se a cumprimentá-la com cortesia, sem nunca sentá-la nos joelhos nem brincar com ela. Gostava de cogumelos apimentados; como compreender isso? Em geral: que homem é aquele que gosta de cogumelos

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apimentados? Acendia o cachimbo com as mãos trêmulas. Tinha um relógio de algibeira fabricado em Genebra, a que dava corda com uma chave; já não se lia na tampa interna o nome do relojoeiro, como se misteriosa mão o tivesse apagado da lisa superfície de ouro. Ao jogar cartas, tossia muito.

O detective enxuga a fronte. Em toda a sua acidentada carreira jamais encontrou pessoa tão misteriosa como essa! Que desejava ela? O que ela desejava, evidentemente, era viver. Para tal fim, fazia tudo, como se estivesse em conspiração com ura ou vários cúmplices: tomava remédios e refeições, dava passeios, pelo verão ia nadar e andava a cavalo. Queria viver sessenta ou setenta anos, talvez até mais, aquele homem misterioso. Por que? Nunca o disse a ninguém. Usava de vários disfarces e aparecia aos olhos dos outros sob formas diversas. O detective juntou as fotografias encontradas entre os objetos do morto. Em tais fotografias vemo-!o de calcinhas, disfarçado em bebê, ao colo de uma senhora de idade, a chupar o dedo e a fitar a máquina com expressão a um tempo astuta e inocente.

Outra fotografia mostra-o fardado, com ar muito esperto, segurando entre os dedos, displicente, um cigarro. Em outra, ei-lo trajado de burguês, de paletó preto, abraçado estreitamente — por motivos desconhecidos e intuitos inexplicados — a uma senhora de cabelos em caracóis. Noutra, lá está ele de suíças coladas nas faces, grossa corrente de ouro a pender-lhe do bolso do colete. Deixou, ainda, um retrato em que fita o ar diante de si, de bigodes pontudos, cabelos penteados e

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alisados, uma expressão de exaspero e susto como a dos assassinos nos retratos das fichas policiais. No colete de fustão contam-se sete botões de madrepérola. Por fim, numa fotografia de amador, executada provavelmente alguns meses antes da tragédia, temo-lo encostado a uma árvore, com uma das mãos para o alto, a outra a apertar o chapéu, os olhos volvidos para um lago margeado de salgueiros como quem chama ou faz sinais a alguém. Esta, talvez, a mais suspeita de todas as fotografias.

De posse dos dados cuidadosamente reunidos, o detective evoca o último dia da vítima. Levantou-se às nove e meia, decifrou as palavras cruzadas do Times, leu os resultados das competições de tênis de Wimbledon, mandou extirpar os calos, lanchou peixe assado em vez do ham and eggs habitual, foi a um banco, recebeu juros foi a outro, recebeu juros também, foi a um terceiro, onde capitalizou os juros recebidos nos outros dois. Essa atividade econômica, elogiada depois unanimemente nos necrológios, esgotou-o bastante. Almoçou, dormiu meia hora. Depois do chá, quis ler, mas no livro que retirou a esmo da estante deparou pensamentos, descoberta inesperada, que o aborreceu. Às cinco e meia foi ao clube, jogou bilhar, permaneceu algum tempo sozinho, sentado a um canto da sala de leitura, a olhar diante de si, sem falar com ninguém, sem pensar em nada, quer dizer, levando vida social. Voltou para casa às nove, jantou peixe com aspic e coxa de carneiro com muito vinho. Depois do jantar, no salão, quis pegar uma mosca, mas enfastiou-se e subiu cedo para o quarto. O que aconteceu depois é mais ou menos conhecido. Como sabemos, fechou a porta por dentro, à chave. Não

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se verificaram vestígios de arrombamento nas fechaduras das portas nem das janelas.

— Quem matou a vítima? — pergunta agora o detective, em voz alta.

Estamos no gabinete do chefe do Scotland Yard. Afundado na sua poltrona, o primeiro funcionário da importante organização policial escuta com expressão atenta e de ânsia as palavras levemente maliciosas do distinto profissional, palavras que terminam por perguntas oratórias. A vítima, cuja vida pregressa nós é agora inteiramente conhecida, permanecera sozinha, de noite, no quarto onde ocorreu o crime. Na véspera e. em geral, nos sessenta e cinco anos anteriores, sentira-se bem disposta; falara em ir jogar golfe no dia seguinte e reservara lugar na ópera, para o fim de semana. Não pode, pois, tratar-se de suicídio; aliás, a autópsia não revelou nem escoriações de qualquer espécie nem sinais de envenenamento. A vítima, com muita astúcia. queria viver, e, para tal firn, ia desenvolvendo habilmente, havia sessenta e cinco anos, todos os esforços possíveis. Quem o matou? Com que instrumento? Que arma oriental é essa que não deixa indício nos tecidos do corpo, que espécie de veneno esse que o exame de laboratório dos intestinos não consegue revelar? Quem é que mata as pessoas, afinal? — pergunta agora o detective levantando mais a voz e dando uma pancada na mesa. Que bando invisível ou disfarçado é esse que trabalha tão organizadamente, pelo mundo afora? Não falemos agora em casos de calouros, em que o criminoso volta ao cenário, depois de haver cometido o crime, de maneira visível, à faca ou à bala. . . Não falemos dos

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MADELON, A CACHORRA

SZERB

"Desejo inatingível o do homem, Miragem inatingível, falsa mira."

Võrõsmarty

ÁTKY JÁNOS, doutor em Filosofia, tinha diversas maneiras de se defender contra a monotonia da própria existência. Quando criança, ao comer chocolate, conseguia, às vêzes, imaginar que estava comendo salame. Mais tarde, gostava muito de bebidas misturadas. O gim no vermute assemelhava-se ao vigoroso fantasma de pinheirais mortos. No vinho tinto a gente derramava um pouquinho de curaçau e aquilo ficava feito uma mocinha de dezesseis anos que devia ter-se casado desde então. Quanto ao rosto das mulheres, João esquecia-o sistematicamente.

— "Como é que é mesmo Jenny? — meditava certa tarde de outono em Londres. A pequena igreja dos metodistas de Gales, diante da quai se encontrava. estava coberta de hera. — "As igrejas de Londres conservam de maneira milagrosa, no meio dos automóveis. o ar da verdadeira fé."

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Sem demora anotou o aforismo, pois era homem metódico. Depois voltou a Jenny. Faltavam cinco para as seis. Se até às seis não se lembrasse do aspecto de Jenny, aconteceria uma desgraça. Era verdade que Jenny trajava geralmente tailleur azul escuro, mas seria arriscado estabelecer este fato como definitivo. Sem a menor dúvida, havia em Jenny urn certo ar jennino, mas num matiz tão pálido como os que distinguem entre si as diversas espécies de chá. Afinal, todas as mulheres eram Jennies.

— Hallo, is it you? É você? — perguntou Jenny, chegando.

A pergunta era das mais oportunas. "A primeira e a mais difícil tarefa em qualquer encontro é o estabelecimento da identidade", anotou Bátky, desta vez apenas mentalmente. Ali estava ele com uma senhora estranha que dizia bobagens e se indignava porque ele a esperara em lugar diferente do combinado. Bátky deixou-a esgotar a sua indignação e depois lhe perguntou:

— Não quer tomar chá em minha casa? — Absolutamente — disse Jenny fora de si, como de

cada vez que essa possibilidade era mencionada. Depois, como de cada vez,- foram tomar chá na casa de

Bátky. Jenny falou dos fregueses. Um senhor de idade comprara

um atiçador de estilo Jorge, uma madona de madeira e uma estatuetazinha negra. Mas quanto tempo levara! Os jacarés continuavam muito procurados. Sim, e depois vieram dois moços, sem dúvida ar-

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tistas. e disseram a Jenny que ela era como um quadro italiano. Como se chamava mesmo aquele famoso pintor italiano?

— Giovinezzo Giovinezzi — sugeriu Bátky. Isso mesmo. E haviam-na convidado a jantar,

também. Ela, porém, não fora. Uma senhora decente não podia ir.

Jenny, com efeito, trabalhava numa loja de objetos de arte.

E a Condêssa Rothesay tinha estado lá, de novo. — Ah, sim? — perguntou Bátky, meio desperto. —

Rothesay. . . esplêndido. Um nome histórico. Um de seus antepassados já foi enforcado por Jaime I da Escócia, lá para as bandas de Saint-Altans. Em casa vou averiguar isso. Como é mesmo a Condêssa Rothesay?

— Uma mulher estranha. Pode-se dizer, até, es-tranhíssima. Entra, aponta um objeto qualquer, por exemplo um candelabro, e compra-o. . .

Bátky voltou a mergulhar em seus pensamentos. Em casa, enquanto Jenny preparava o chá (era o que, em

toda a ligação deles, ela apreciava mais sinceramente), Bátky foi verificar o item Rothesay. Um deles fora realmente enforcado. Bátky imaginou um lago escocês, os dois galgos tradicionais diante do castelo, e o conde, melancólico, a colecionar marfins e a embriagar-se, sozinho, ao amanhecer, no vão de uma janela. A condêssa, católica de coração, deixava entrar clandestinamente, por uma porta oculta, jesuítas dis-farçados em médicos. No céu, nuvens de configuração trágica.

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Depois do chá, Jenny esperou com indiferença que o seu destino de mulher se cumprisse. Bátky continuava calado.

— "Agora, se Jenny fosse a Condêssa Rothesay, eu poderia dizer-lhe: — "Milady, como pôde fazer isto? Como pôde arriscar assim a sua reputação? Não sabe que no apartamento vizinho Mrs. Bird vive espreitan-do-nos. . . De mais a mais. . . como pode uma Rothesay cujo antepassado foi enforcado em circunstâncias tão trágicas humilhar-se a ponto de privar comigo, pobre burguês, simples sábio? Os galgos do conde estão em nosso encalço. . . Fuja, senhora, imediatamente, retire-se..." E quando ela se dirigisse à porta e já se encontrasse no limiar, de cabeça levantada como num desafio, dir-lhe-ia: — "Oh, milady, fique pelo menos a centésima parte de um segundo, mesmo que a danação eterna venha depois. . ."

E atirou-se aos pés de Jenny. Ela acariciou-lhe os cabelos com certo embaraço.

Depois tudo se processou como de costume. Mais uma vez, Jenny esqueceu no quarto uma vestimenta

e, ao voltar para apanhá-la, já encontrou um Bátky terrivelmente amargo. ele dizia consigo mesmo que estava desperdiçando a vida com horríveis pequenas Jennies, quando desde a infância desejava Condês-sas Rothesay. A história, para ele, era um mundo tão cheio de erotismo como para outros os camarotes dos teatros, e um verdadeiro amor precisava de, no mínimo, uns séculos de passado. E então, Jenny. . . tudo isso não passava de onanismo e mentira.

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— Quçi é que você tem? — perguntou Jenny. — Nada. Apenas será melhor você não voltar mais.

Mulheres de mãos vermelhas devem permanecer em casa. Também procure emagrecer nas coxas. Em suma, desapareça.

Passou dias a fio trocando pernas nas ruas infinitamente silenciosas, onde, segundo suas informações, a aristocracia inglesa morava durante a temporada que vinha passar em Londres. Às vezes, grandes caminhões cruzavam-lhe o caminho, ostentando o nome de alguma firma famosa. Deve haver sarau em algum palacete, pensava excitado. De vez em quando conseguia travar conversa com os parentes de um ou outro porteiro.

"O caráter principal da aristocracia é a invisibili-dade", anotou. Em seguida, após alguma reflexão, acrescentou: "Mulheres louras não gostam de peixe, mas entram em êxtase quando lhes oferecemos aranha-do-mar."

Na manhã do domingo, porém, aquela aristocrática solidão começou a lhe pesar, e foi dar uma volta no Regent's Park para completar a sua coleção feminina com alguma das caixeirinhas que por lá passeavam. Sua atenção foi atraída sobretudo pela multidão incrível de esquilos que divertiam os transeuntes, assim como pelos cachorros. Na sua frente viu passar uma cadela preta extremamente interessante, parecia com um terrier escocês, porém muito maior e mais diabólica: devia ser alguma invenção nova. O animal, que, excitado, arras-tava consigo uma senhora, parecia buscar alguma coisa e, ansiosa, andava farejando o chão. Por fim parou diante de um monumento e, com a excitação feliz de quem

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alcançou o alvo, pôs-se a executar o programa essencial do passeio. Mas a execução parecia encontrar obstáculos íntimos, pois tornava-se demorada. A cachorra exibia contorções as mais estranhas, sem por isso deixar de andar à roda, o que oferecia espetáculo muito penoso. Vários meninos ingleses observavam interessados a operação e comentavam-na com explicações reveladoras de grande competência. A senhora desviava os olhos com nervosismo.

— Se a senhora quiser, tomo conta da cachorra — disse-lhe Bátky. — Enquanto isso, vá dar de comer aos esquilos, sim?

— A idéia não é má — disse a dama, entregando o animal a Bátky.

— Perdão — gritou este atrás dela — como se chama a cachorra?

— Madelon — respondeu ela. E passou adiante. Naquela noite Bátky voltou para casa enriquecido de uma

cachorra, pois perdera a dama no meio da multidão. Lembrando-se de que os cães possuem um instinto admirável, entregou-se a Madelon para que ela o conduzisse. Madelon levou-a a Hamstead Heath, onde no alto da colina, se estava preparando um lago artificial. Admiraram-no algum tempo, e depois Madelon, distraída e silenciosa, retomou a marcha. Andaram horas a fio. Tarde da noite chegaram a Golder's Green, extremidade de Londres, onde Madelon acabou por fazer meia-volta, e, tranqüila, retomou o caminho da cidade. Aí Bátky compreendeu que a cachorra o enganara.

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Chamou um táxi e, sacrificando o almoço do dia seguinte, levou Madelon para a própria casa.

Teve uma noite agitada. A cadela não quis comer, nem beber. Esquadrinhou os móveis de Bátky com desconfiança, depois recolheu-se a um canto e entrou a uivar. Pela madrugada, Bátky não agüentava mais; dirigiu-se a uma casa de chá que ficava aberta a noite inteira e ali cochilou umas horas, debruçado numa mesa de mármore.

O Sol nasceu sob o signo da cachorra. Bátky voltou. Madelon ainda vivia; mais ainda: dormia descan-sadamente na cama dele. Parecia um xale preto de orla franjada. Ao lavistar Bátky, entrou a rosnar, furiosa, e continuou a recusar a comida.

Bátky deixou-se cair numa poltrona e procurou pensar sistematicamente. Que fazer de Madelon? Dá-la de presente ao Museu de Kensington, onde se via grande número de cães empalhados? Mas o seu coração de humanista repeliu tal projeto. Educá-la e familiarizar-se com ela? A vontade humana, às vezes, realizava milagres. Essa idéia, afinal, tranqüilizou-o.

— "Acabaremos por nos acostumar um ao outro — disse consigo. — Sempre desejei um animal, para não estar tão sozinho. E' pena que Madelon desça da cama unicamente para molhar a chapa de mármore diante da lareira."

Mais tarde, escutou cabisbaixo as censuras da arru-madeira bêbeda. Estava acostumado a ser mal compreendido pelos homens.

— Ao cabo de um ou dois meses, talvez consiga fazê-la passear comigo. Numa bela tarde de primavera

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daremos uma volta em Regent's Park. De repente, a senhora que me confiou Madelon virá a meu encontro. — "Minha senhora — direi — eis o que me entregou: guardei-o fielmente. Madelon cresceu um pouco nesse ínterim, não é mesmo? Talvez tenha engordado tam bém, mas não a ponto de prejudicar-lhe as formas. Em suma, vê-se que passou os últimos meses em companhia de um intelectual. Não penso que isso lhe tenha influ enciado de modo desfavorável o desenvolvimento. . ." Depois, palavra puxa palavra, iremos tomar chá, talvez assistir a um filme, quem sabe?"

A senhora, tanto quanto lhe era possível lembrar-se dele, era bonita e simpática, de espaduas extremamente retas. Vestia-se com simplicidade e bom gosto. Devia ser a esposa de um jovem mas abastado comerciante de tabaco. O pai era funcionário honrosamente encane-cido de uma grande companhia de seguros. Tinham uma casinha nalgum subúrbio, talvez em East Ealing, numa daquelas ruas de sessenta casas iguais de cada lado, nas quais a vida, também, devia ser exatamente igual. Oh, pequena burguesia inglesa, hora do chá, calmas tardes de inverno, ao pé da lareira, uma palavra cada meia hora, e essa mesma sobre o Príncipe de Gales. . .

De tarde, a campainha tilintou. Bátky sacudiu as suas cismas burguesas e foi abrir. Era a dona da cachorra .

— Vim buscar Madelon — disse com simplicidade. — Oh, oh, sobretudo oh! — disse Bátky, perdido na

contemplação dos admiráveis caminhos do destino. — Sente-se, minha senhora. Madelon ainda está viva.

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Mas como foi que me encontrou? Afinal, Londres é uma cidade grande. . . ,

— Nada mais fácil — respondeu ela. — Ontem entregou-me este livro para que eu o segurasse enquanto ficava com Madelon. No livro havia uma carta endereçada a Bátky János, Francis Street. . . logo pensei que era você. Vim de tarde para encontrá-lo em casa. Quero pedir-lhe perdão. . . calculo o que Madelon deve ter feito durante a noite. . . coitado!

— Oh, já estávamos ficando amigos — notou Bátky com reserva. — Passei a noite a acariciá-la, lembrando-me de que a sua mão a tinha tocado.

— E' muito amável — disse a senhora tirando o chapéu.

Só agora Bátky percebeu quanto era bela. — "Sempre gostei das esposas dos comerciantes de

tabaco. Têm nos cabelos algo do nobre amarelo do tabaco da Virgínia."

Prepararam o chá, e, enquanto a senhora o servia, Bátky aproveitou a ocasião e anotou num papel: "Os amores começam em setembro ou janeiro."

Depois do chá sentou-se aos pés da dama e reclinou a cabeça nos seus joelhos. Imaginou que estavam na casa dela, em East Ealing. Nas paredes, toda a família, dependurada, inclusive o avô, de suíças; o fonógrafo tocando canções de Natal; tudo calmo e invariável; o Império britânico repousando em alicerces firmes; Madelon, junto à lareira, a brincar com um gatinho.

Os lábios da senhora tinham um gosto de geléia de morangos feita em casa. Ao despir-se, tinha os gestos calmos e mansos de quem sabe que amanhã será outro

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dia. Sua personalidade irradiou tamanha resolução que Bátky nem se espantou daquela inesperada conquista. Aquilo parecia natural nelas depois do chá. Jenny também fazia assim.. .

— Voltarei — disse a senhora ao anoitecer. — Terei imenso prazer nisto — volveu Bátky com forte

convicção. — Não me quer dizer o nome? — Oh! pensei que me havia reconhecido. Deve ter visto

a minha fotografia nos jornais mais de uma vez. Sou a Condêssa Rothesay.

E foi-se embora. Esse acorde final desagradou a Bátky. Gostava de que os

outros dissessem a verdade. Costumava romper com as mulheres que pretextaram haver extraído um dente quando na realidade tinham passado o tempo com outro homem.

— "Por que se envergonhava ela de ser esposa de um jovem mas abastado comerciante de tabaco? Os ingleses eram de um esnobismo incurável. Se eu tivesse uma casinha em East Ealing, com vovô dei barbas de- pendurado na parede, nunca me lembraria de negá-lo."

Aquela mentira desapontou-o tanto que nem sequer se apaixonou por ela. A solidão começou a pesar-lhe como um teto que fosse desabando sobre ele. Nas ruas de Londres estava sempre anoitecendo; caía uma chu-vinha fina; velhos senhores passeavam em Camden Hill em busca de um descanso infinito. Só no bairro Kensington havia dois milhões de senhoras de idade. A vida não tinha mesmo sentido. Em alguma parte, no fundo de um castelo escocês ou ao pé de árvores se-

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culares, numa aldeia mergulhada em sombras, alguma condêssa desiludida estava pondo fim a seus dias.

Alguns dias depois a dama reapareceu. Passaram novamente uma tarde agradável. Bátky estava

de um humor expansivo e sensível. Falou de Budapeste, onde os cafés filtravam para a rua uma luz íntima, os garçons sabiam qual era o jornal preferido do freguês e pobres misteriosos varriam de noite a linda neve branca.

— Como se chama você? — perguntou ele depois, na esperança de que, após tantas confidencias, ela tam bém fosse sincera.

— Já não lhe disse? Sou a Condêssa Rothesay. Bátky tornou-se frio e protocolar. Compreendeu

que nunca se aproximaria verdadeiramente daquela mulher; e de que servia o amor se não havia também um contato espiritual entre as duas partes?

— Partirei amanhã — disse. — Vou a Paris, onde meu pai é sineiro de Notre Dame.

— Quando voltará? — perguntou a senhora. — Nunca mais — respondeu Bátky com gravidade. — Como quiser — disse ela encolhendo os ombros. E desceu as escadas às pressas. Alguns dias depois o Sunday Pictorials trazia novamente

a fotografia da Condêssa de Rothesay. Era ela. "As mulheres são enigmas" — anotou Bátky num

papelzinho, que guardou cuidadosamente.

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A CASA DO TERRENO BALDIO

GELLERI

INDA se lembrava do nome: Pettersen István. Havia muito tempo, o senhor professor, ao entregar-lhe a caderneta cinzenta do curso primário, chamara-lhe assim. Na subprefeitura, quando ele fora buscar a carteira de trabalho, um servente de paletó azul e quepe de pala viera examinar, de cara fechada, o grupo de operários, e bradara: "Pettersen István!" Era também ele. Depois, via-se no meio de rapazes suábios, que traziam fixas no chapéu preto e redondo flores da primavera, empalidecendo como se, elas também, houvessem bebido aguardente com os rapazes. A alguma distância dos recrutas uma que outra mocinha ou mãe esperava, corada de emoção. Todos penetraram no salão onde havia senhores sentados ao longo de mesas compridas. À frente das mesas, um charuto apagado na boca, o médico militar passeava com as mãos atrás das costas. A fila dos rapazes despidos encaminhava-se para a craveira, depois passava diante do médico. Aí também ele era Pettersen István, declarado apto ao serviço militar; botaram-no em um pelotão de metralhadoras e manda-

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ram-no para Montenegrq. "Olhe, Pettersen — disseram -lhe depois, havia alguns anos, numa oficina de serra-Iharia — que posso fazer com você, se falta serviço?" Entretanto já numa casinha do bairro se falava em Pettersen István: ele e a Maria, se tudo corresse bem. . .

Agora, esgueirando-se entre raras casas minúsculas, ele se dava a si mesmo outro nome: cachorro.

Tinha mesmo algo de um vira-lata, enquanto ia de um lado para outro e de costas curvas, encolhido, espiava pelas janelas a ver como se jantava lá dentro.

O céu estava coberto. Um ventinho fraco passeava pelas ruas. Aqui embaixo, quase não se lhe sentia a mordedura fina; mas lá nos montes o seu toque devia ser gelado. Até então Pettersen dormira em qualquer mato. As frutas roubadas pareciam mais saborosas de noite. Na primavera e no verão havia cabras pastando nas encostas; aproximava-se delas, imitando-lhes o grito, e ordenava-as. As casas do morro tinham galinhas errantes que escapavam para fazer ninhos entre o feno ou o mato. Saqueava-as, às vezes vivia tão bem que chegava a colher flores e caçar borboletas.

Mas o outono tornava a grama pontuda e picante. E, como se um rio invisível corresse pela terra dentro, todas as glebas estavam úmidas.

Tinha de se recolher à cidade. Um grande terreno baldio bocejava, preto, entre duas

ruas. Enveredou por ele e, ao dirigir-se para o centro do

terreno, tropeçava em pedras espalhadas, em meios tijolos. Na obscuridade juntou alguns e fez com eles uma cama. Mais longe, uma mancha clara: foi ver. Era

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um desses sacos de papel em que se guarda cimento. Rasgou-o e achatou-o sobre os tijolos. Depois, deitou-se, cobriu a cabeça com o braço e adormeceu.

Acordou inteiramente úmido, como que molhado de suor. Ao levantar-se, todo o corpo lhe tiritava de frio. Assustado, pôs-se a correr, para aquecer-se.

O enorme terreno, sob a escuridão cinzenta, começava a clarear.

Pettersen voltou à cama dura, sentou-se e olhou em torno de si.

Por toda parte, meios-tijolos de rostinho vermelho; pedras, um chão sujo de cal. Ali havia outrora um forno de cal; depois que o derrubaram, deixaram por ali os tijolos, umas telhas borradas de fuligem.

Longe, nos confins do terreno, dormiam algumas casas esparsas. Era muito raro alguém passar pelo terreno deserto coberto de lixo.

À frente, os montes estavam cheios de outono; as noites haviam de estar cheias de vento e chuva. . .

Pettersen não tinha grandes pretensões. Deu seis passos à frente, seis para um lado, e encheu a medida com tijolos. Seria o tamanho de sua casa. Depois, foi à procura' de ferramentas. Encontrou uma grande cesta, sem asas, um balde furado, uma porção de panelas velhas. Continuando a dar a volta do seu império, encontrou também mangas de paletó atiradas ao mon-turo, calças em farrapos, uns pregos enferrujados. Encheu o balde e a cesta de tijolos, transportou-os para junto da "sua casa". Destinava importante papel a uma pá de lixo enjeitada, com a qual afrouxou o solo friável:

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em vez de argamassa, espalhou nos tijolos a poeira formada de cal e escória, e alisou-a nas brechas.

Havia no terreno baldio um homem a construir a sua casa. Levantara um muro multicor para abrigar o corpo contra as noites, e agora, apesar dos borborig-mos do estômago, sentia-se tomado de uma serenidade divina. Aquele terreno estivera vazio. O material com que ele fazia a casa lá estivera havia anos, olhando para o Sol, escondendo-se debaixo da neve, agüentando as grandes chuvas do outono. E agora escolhera os melhores tijolos e fizera com eles a sua casa. Colocara as telhas em ripas, remendadas de cem pedaços. E no telhado o homem deixara um buraco redondo. De lá devia sair a chaminé e deitar fumaça quando a neve tivesse revestido tudo, e aquecer a vida de um vagabundo a quem o senhor professor, a subprefeitura, as moças, a comissão de recrutamento e o front chamaram Pettersen István.

Ninguém reparou que uma coisa fora construída no meio do terreno. A entrada era um buraco maior, coberto por um pedaço de saco que servia de porta. A altura do todo foi tamanha que por pouco não roçou a cabeça do dono. Tinha seis passos de largura, seis de comprimento: o tamanho de uma cela de prisão. Sim. Pettersen já tivera essa honra, em compensação de um pequeno roubo. Nada mau, aliás, pois cumprira a pena duflante o inverno. Mas desta vez os seis passos eram bem diferentes. Podia levantar a porta, sair ao ar livre, andar, chegar à esquina, pedinchar. E' claro que agora até o pedinchar é diferente. Enquanto balbucia choroso: — "Há dez dias, patrão, que não como; me dê um níquel

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para comprar pão" — Pettersen sonha com uma cama, sonha até com uma estufa! Talvez o coração nem agüente a felicidade no dia em que um tubo de estufa apontar no telhadozinho.

Primeira noite! O vento vem lamber as paredes da choupana como uma fera. Ofega, funga, como uma fera que sente a presa lá dentro. Mas a presa, acocorada ao pé do murozinho, está abrigada. Por enquanto aqueça a casa com o próprio corpo, estufa que recebera a ração de meio pão e umas gramas de toicinho. Não importa. O que importa é a segurança, e essa choupana, e que a chuva, quando se põe a cair de noite, felizmente escorrega nas telhas fiéis e resvala no chão.

Pettersen continua a vadiar como dantes; apenas agora, quando está exausto ou o vento sopra demais, há uma coisa que o chama.

A Nâni. E' ela que o chama. Sim, a casa lhe faz sinais através da

noite, como outrora a vovó, que sempre escondia avelãs e maçãs numa das muitas saias. E no colo dela fazia mais calor do que em qualquer outro lugar.

Às vezes Pettersen encontra nas ruas outros men-dingos. Entreolham-se sem falar. E' como quando duas sombras se cruzam no chão e passam uma pela outra, em silêncio. Às vezes ele desejaria abordar um cego guiado por meninazinha e convidá-lo a jantar.

Infelizmente, não consegue pedinchar o suficiente para comprar uma cadeira ou um crucifixo, um dos menores, é claro, só para lembrar-lhe a casa da aldeia.

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Assim, acaba, uma noite, por galgar a cerca do belchior. De olhos fechados, encontra a estufazinha cambaia que já escolheu de dia e, ao lado, um belo tubo de dois metros, em forma de cotovelo. Ocorre-lhe que não se deveria fazer aquilo. Mas se precisa tanto de estufa, se ela lhe vai prestar tão grande serviço! Pagará um da: dois-três perigo, então, não serão nada para ele. Gostaria de deixar um papelzinho com as palavras: "Vou pagá-la..."

Mas não, sabe que não é possível. Já sabe que ninguém gosta que mexam no que é seu. Sobretudo de noite.

Mas aqui está a estufa, quente como uma ovelha, e o tubo da estufa, tal qual o cabo do cachimbo de seu avô. Que bela fumaça vai brotar dali! Arranjar com bustível não é difícil. Vai pela estrada um caminhão cheio de lenha, amontoada numa torre, umas duas toneladas mais ou menos. Pois a gente vai manquejando, segue o caminhão pelo rasto, como o corvo segue o rasto do semeador pelos campos. Apanha os pedaços que caem e joga-os na cesta abençoada, para a qual, aliás, Pet-tersen já fez uma asa com fio de arame. Mas às vezes não quer cair nada do alto do caminhão. Então a gente, com uma vara comprida, como aquela que uma árvore deu de bom grado a Pettersen, cutuca o montão. Aí a lenha começa a escorregar. Nem precisa muito: só o bastante para secar, todos os dias, os galhos úmidos e a porção de detritos amonturados em redor da estufa.

Esta tem três pés. Ganhará três lindos meios-tijolos para tapete. Tem uma boquinha bonita,, a grelha inrscta; Estêvão teve sorte: não encontrou ninguém no

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caminho, e no dia seguinte achou até uma caixa com alguns fósforos.

Acende-se o fogo. De início, uma fumaça rala amarga, levanta-se, apertada entre as paredes. Mas dentro da fumaça há um rebuliço de estalidos que parecem dançar como bailarinos e transmitem ao ar o calor de seu corpo agitado. As centelhas saltitam na estufa como quando os ferreiros batem, bim-bam, o ferro na bigorna. . . O próprio fogo é como o rosto de uma mocinha, a mudar sempre de cores, ora pondo um véu azul, ora mostrando uma fita verde ou amarela nos cabelos, enquanto sopra numa gaita de foles. No fundo, uma chama parda, côr de urso, dança à voz do fogo.

E o homem adormece embalado pelo fogo e pelo calor, no regaço das paredes silenciosas. Dormem-lhe em redor também umas panelas, apanhadas, é verdade, no monturo. O único prato, esbeiçado, fora retirado à lata de lixo da rua. Mas areia e cal não faltam: o homem, de manhã, apenas acorda, sai da casa, senta-se na pedra que faz as vezes de cadeira e põe-se a es-fregar as velhas panelas. Depois, pega o balde remendado e vai buscar água no poço municipal, na quarta rua. Lá vem o balde de volta, cheio de água, uma água bonita, branca, parecida com vidro.

Três vezes Pettersen vai e vem com a água, e já tem panelas limpas. Só falta agora topar com um galinheiro para alimentá-las.

— Que diferença faz — diz com os seus botões — mesmo que tire três ovos por dia de um galinheiro em que as galinhas põem cinqüenta? Quando muito, a pa-

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troa vai abanar a cabeça: já se viu, a polpuda não pôs o ovo! No dia seguinte, vai suspeitar da amarela. Mas, meu Deus, para que uma galinha pôr ovos sem parar?"

Sim, esta noite haverá banquete em homenagem à estufa, às panelas, ao prato e à colher. Nunca pensara que esses objetos fossem seres vivos a tal ponto. Podemos até cochichai-lhes aos ouvidos, e eles nos encaram com ar tão amigo, e ouvem-nos em silêncio confidencial, tais quais umas bonequinhas inteligentes. E, quando somos dono de tantas coisas é-nos permitido esperar que um dia também nos apareçam os bons quitutes que outrora coziam naquelas panelas. E o homem começa a desejar um copo, mesmo que tenha servido para lamparina em sufrágio da alma dos mortos. Infelizmente não aparece nenhum.

—"Para que negar? — diz consigo Pettersen, exa-minando o depósito de ferro velho com os olhos feitos óculos de alcance. — Uma cama de verdade não faria mai nenhum. Mas esta é que nao se pode abafar. Er grande e pesada demais; como é que a gente vai passá-la por cima da cerca?"

O homem tem um pengò inteirinho. Já é novembro: começara a juntar esse tesouro desde setembro, filler por filler.

Com esse capital vai ter com o ferro-velho, um homenzarrão que quase arrebenta as calças, de tão gordo.

— Born dia, patrão — cumprimenta-o. E acrescenta logo: — Queria comprar uma cama. — Escolha — diz o ferro-velho.

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— Já está escolhida. E' esta aqui. E o indicador de Pettersen aponta uma cama com-

pletamente enferrujada, retorcida e trôpega. — Quanto trouxe você? — pergunta o ferro-velho,

cheio de tato. Pettersen gostaria de exibir-lhe ao mesmo tempo a moeda

e o coração e dizer: — "Tenho um pengõ e a gratidão de minha alma." Mas são os olhos que devem exprimir tudo isto, a saudade, e a decepção também, quando o gordo pede três pengõ, três vezes mais! E nem acha muito.

— Três pengõ! não está satisfeito? Dezembro, janeiro, fevereiro. . . mais três meses,

filler por filler... só na primavera é que teria aquilo junto. "Parece que vou mesmo ficar obrigado a abafar esta cama

uma noite desta" — pensa Pettersen. Mas diz em voz alta: — Tenho um pengõ. Agora o senhor me entrega

a cama. Para o senhor não serve e eu não tenho onde dormir. Tenho uma choupanazinha — acrescenta, mas a situação lhe parece desesperadora.

O ferro-velho olha para o cachorrinho que late atrás da sombra de um passarinho que levantou vôo. ele tem ali milhares de pengõ em velharias: martelos, armações de guarda-chuva, halteres, e até um balouço desses que se usam nas feiras, um torno, uma barbaridade de pregos, ferros, tesouras e bigornas. Se quisesse, poderia equipar oficinas, erguer existências caídas. Naturalmente, todos vêm procurá-lo com a mesma história: sou um estreante, tenho uma oficinazinha, uma casinha,

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precisaria de um remendo de chaminé, uma janelinha de ferro, uma porta qualquer, umas vidraças, uns ganchos, um machado.. . Um garotinho vem pedir uma forquilha para a canoa.. . E' claro, de graça levariam tudo. Às vêzes, quando amanheceu de bom humor, ele só pede mesmo uma ninharia. Agora que o cachorrinho latiu para a sombra do pardal, encara aquele barbudo e infeliz Pettersen.

— Você é judeu? Pettersen, afirmativo, acena com a cabeça. — Não, você não é judeu — diz o ferro-velho de

olhos relampejantes, mas sem se zangar com a mentira. — Mas escute: me dê o pongo e leve a cama. Tôda ela vai-lhe custar dois pengó. Está vendo éste mea- lheiro?

Pettersen está vendo. É um mealheirozinho de esmalte azul, com caracteres hebraicos e, em pinguinhos brancos, a palavra Sião.

— O restante você vai colocar aqui aos poucos, quando puder. Assim, pelo menos, nao ficará vazio.

E Pettersen, honesto, volta de vez em quando ao ferro-velho e traz o filler. Há na loja uma enorme chapa de ferro, de caldeirão: talvez o homem não a venda nunca. E' nas costas dessa chapa que Pettersen anota com giz quantos filler já atirou no altar de Sião.

Certa vez compra um martelo por dez filler. O cabo, arranja-o a crédito; um dia vai pagá-lo.

Nesse ínterim, na casa, todas as noites, abre-se uma cama, um leito humano, a pelo menos meio metro do chão frio, cheio de trapos, tão macios que Pettersen cuida sentir o calor de outros tantos cachorrinhos tépidos.

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Agora inventou uma nova fórmula de pedinchar: — Sr. doutor — implora com aquele ar miserável,

barbudo — só me faltam três filler para passar a noite no asilo. Já não faço questão de comer, mas não posso dormir no chão.

E' mais ou menos o que repele, ora persuasivo, ora ineficiente, atordoando os ouvidos dos transeuntes.

Sem o saber com certeza, ouve dizer que vem neve. Mesmo isso não o assusta muito. Já abriu uma fossa bem grande e encheu-a quase todinha com carvão, retirado da escória de uma fábrica das vizinhanças.

Ora, uma noite duas pessoas conversam na casa. — Vamos, deita-te — diz Pettersen — se queres. E a mesma voz acrescenta: — Não tires a roupa: seria melhor, mas não faz

bastante calor para isso. De manha, vê-se uma criadinha sair de gatinhas de sob o

saco da porta. Pois é, tudo foi combinado com o Pista: agora que tem uma cama para se deitar, uma parede para abrigá-los, uma fossa cheia de escória de carvão, tudo está diferente.

Ela aceitará serviços de arrumadeira e de lavadeira. Cobrará pouco, mas trará metade da comida para Pettersen .

Agora vai buscar água, porque o homem continua dormindo, estendido, num cansaço feliz. A noite foi ótima: Ana acabou despindo-se, e a cama, embora desse muitos estalidos, não desabou. E' por isso, sem dúvida, que o homem sorri, mesmo dormindo.

Ana acende o fogo. Que pena que não haja agora cabras nas encostas! Ela daria um pulo até lá e, quando

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Pettersen acordasse, o leite fresco já estaria na mesa, fumegando. Mas há outra alegria. Na atmosfera morna do quarto, Ana desnuda o busto e lava-o. Lava-se em água quente, água amiga, acariciadora, e sente como sai toda a sujeira antiga, como se está tornando bonita. Há quanto tempo não tem este prazer! Pettersen já possui até um pente. Numa resolução repentina, Ana lava os cabelos e ata-os num lenço como uma esposa de verdade. O homem, ao acordar, entra a rir: é tão bom, assim, a dois!

Às vezes, é Ana quem vai ao ferro-velho pagar o filler da prestação no mealheiro.

— Que é isso? — diz o gordo. — Agora são dois? E acrescenta com um gesto para o ventre da

mulher: — Cuidado para não serem três. Ana responde rindo: — Pois é. Por isso mesmo nós precisávamos de

uma mesa e duas cadeiras. Já têm um pengo para gastar nisso. — Um dia destes vou jantar em casa de vocês —

diz o ferro-velho, que já sabe que Ana e Pettersen vivem de pedinchar.

E, como ele é tão camarada, Ana lhe pede que, se ali pelo verão tiver um carrinho de criança, o guarde para eles.

... Mas, antes mesmo que caia a neve, aparece um senhor de faces vermelhas, cinqüentão, acompanhado de outro com jeito de corretor.

Pettersen está à frente da casa e o instinto lhe diz que aqueles dois não lhe trazem nada bom. Por

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tcdos esses meses já passou por ali mais de um senhor — mas esses dois se aproximam com um ar espantado e escandalizado ao mesmo tempo.

Ana está na casa, remendando as meias de um jovem senhor; Pettersen saíra para ventilar as idéias. Quando os dois senhores estão bastante perto, Pettersen tira o chapéu e saúda:

— Boa noite, patrão. Não há resposta. O mais importante dos dois respira

fungando, fita Pettersen e de repente estoura: — Safe-se daqui! A voz é como uma pancada numa mesa: — E' mesmo revoltante! Quem foi que o autorizou

a fazer estragos no meu terreno? Faz-se cada vez mais vermelho, enquanto olha para a

fumaça que sai, mansinha, da chaminé. Pettersen continua imóvel. Em cima, o céu anuncia neve.

Sem levantar os olhos, parece-lhe ver o rosto cinzento das nuvens. Que dizer?

Começa a explicar em tom humilde: — Sr. doutor, a gente não tinha onde dormir, ia

de um lado para outro, eu mais a mulher, e aqui havia tanto tijolo, e a gente fez esta choupana. Quando viesse a primavera, eu ia trazer para cá um pouco de terra preta, e a gente fazia uma horta.

Diz tudo isso num tom cantante, chorão e adula-dor, como um animal humilde.

— Como, você ia fazer uma horta no meu terreno? Pettersen, acostumado a tirar uma coisa de um

lugar, outra de outro, e levar o roubo para casa em perfeita paz do coração, está perturbado. Como se al-

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NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS

1. MIKSZÁTH (1847-1910)

Kálmán Mikszáth (em húngaro, Mikszáth Kálmán), cuja vida coincide com o período mais pacato da história de seu país, teve uma existência feliz. Foi jornalista e deputado. Iniciou sua carreira literária compondo contos e crônicas que o tornaram famoso em pouco tempo: Nossos Irmãos Eslovacos e Os Bons Pa-Jots. Escreveu também romances deliciosos, dos melhores da língua magiar: O Guarda-Chuva de São Pedro, O Caso do Jovem Noszíy com a Maria Tóth, A Cidade Negra, etc. Escritor de uma arte consumada, que se finge de ingênua e sem recursos, exprime-se numa prosa matizada, que aproveita todas as riquezas da língua e da tradição literária húngaras. Sua cozinheira achava que ela mesma podia ter escrito os livros do amo, de tão simples e naturais que eram; a critica de hoje considera-o o grande pintor consciente e consciencioso de uma época.

Mikszáth escreve como quem conta uma anedota, empregando os rodeios e o movimento da conversação. O conto escolhido exemplifica bem esta característica; escrito como resposta a um jovem escritor que pediu prefácio para um volume sobre o gênero conto, constitui uma introdução natural a esta pequena coletânea. Note-se que pela sua técnica, que revela aos bons leitores um conhecedor de todos os segredos da arte, Mikszáth desmente a lição, que pretende dar, sobre a necessidade de o escritor ignorar tais segredos.

(A respeito deste grande prosador remeto a meu artigo 'Kálmán Mikszáth, Um Romancista Húngaro'" em Cultura, n.° 2, 1949.)

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na preponderância das lembranças, numa diluição dos contornos em que se confundem realidade e sonho. A seus olhos o assunto tem pouca importância: o que lhe interessa são os atalhos que o encontro fortuito das palavras, a magia dos nomes geográficos, a evocação dos velhos costumes e modas lhe abrem à fantasia. Suas divagações, leves e caprichosas, talvez um pouco frivolas, são sempre ricas em surpresas e achados.

Entre outras obras publicou: O Fantasma de Podolin, A Diligência Vermelha, Viagens de Sindbad (romances), Os Contos Tlistes do Homem Alegre, Álbum de Budapeste, A Chama Azul (contos).

Original utilizado: A Betyár Alma ("O Sonho do Cangaceiro"), Budapest, Athenaeum, 1920.

6. MOLNÁR (1879-1952) Francisco Molnár (Molnár Ferenc em húngaro) foi um dos autores teatrais

modernos mais representados no mundo inteiro. Seus triunfos obtidos no primeiro quarto do século nos palcos de Budapeste (O Diabo, O Lobo, O Cisne, O Moinho Vermelho) dentro em pouco se transformaram em sucessos internacional. Se, apesar do extraordinário instinto cênico, da excelente dialo-gação, do espírito brilhante tão caracteristicamente budapestense, Molnár não conseguiu exercer ação renovadora sôbre o teatro, foi porque seus êxitos retumbantes o desviaram cedo dos problemas da época, tornando-o antes um divertidor que um crítico da sociedade.

A melhor peça de Molnár é Liliom, Lenda de Arrabalde, representada, por assim dizer, em todos os países (pela última vez em Nova York, na estação teatral de 1948, sob o título de Corroussel) e várias vêzes adaptada pelo cinema; o germe desse drama famoso é a narrativa incluída nesta coletânea.

(A obra-prima de Molnár, a meu ver, é um romance para crianças, Os Meninos da Rua Paulo, de que há tradução brasileira, feita por mim, na Coleção Saraiva — São Paulo, 1952) .

Original utilizado: Az Érdekes Ujság Dekameronja (Antologia da Revista Érdekes Ujság) vol. I, Budapest, Légrády, 1913.

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7. MÓRICZ (1870-1942) O romancista Sigismundo Móricz (em húngaro, Móricz Zsig-mond) foi,

ao lado do poeta Ady, um dos chefes da grande revolução intelectual que, tendo como órgão a revista Nyugat ("Ocidente"), renovou as letras húngaras do comêço deste século. Narrador instintivo e poderoso, foi o primeiro que, depois dos camponeses das anedotas e da literatura anterior, bondosos, desajeitados e ridículos, apresentou os habitantes da aldeia húngara em sua trágica realidade, esmagados por miséria secular, cheios de ódios e recalques, entregando-se aos impulsos das paixões com bestial rudeza. Em seus romances "provincianos"' — Ouro na Lama, O Facho, Até o Sol Raiar — criou um estilo novo e forte, rotulado de naturalista, em que a linguagem falada fecunda profundamente a expressão literária, ao passo que em seu ciclo histórico Transilvânia conseguiu comunicar a suas páginas o sabor arcaico e a imaginosa energia do magiar do século XVII.

No conto traduzido, o escritor deu propositadamente à personagem um nome dos mais banais; há milhares de camponeses húngaros que se chamam Kis János ("João Pequeno") .

Original utilizado: Tragédia, Budapest, Nyugat, s. d.

8. KOSZTOLÁNYI (1885-1938) Desidério Kosztolányi (em húngaro, Kosztolányi Dezsò) foi um dos

escritores húngaros mais integrados na literatura européia. Estreou como poeta, com As Queixas da Pobre Criancinha, de inspiração crepuscular, em que interpretava o desnor-leamento da alma infantil ante o mundo dos adultos. Nos volumes seguintes — Magia, Papoula, Pão e Vinho, Nu — cantou o desespero das cidadezinhas e o vácuo da vida metropolitana, a tristeza do conforto, a inanidade da técnica e o horror da guerra. Atingiu o auge da arte em seus últimos poemas, escritos na agonia de uma moléstia terrível, e cujo único assunto são variações sôbre a morte.

Sua prosa, à qual só agora se começa a dar a devida atenção, tem como inspiradora principal o mesmo espanto ante a fuga do tempo, a mesma ânsia de vida, de aventuras, de sensações

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Original utilizado: Madelon, az Eb ("Madelon, a Cachorra'' — livro póstumo de contos), Budapest, Révai, 1947. 12. GELLÉRI (1908-1944)

André Gelléri (em húngaro Gelléri Andor Endre) teve uma mocidade difícil: foi carregador em uma empresa de mudanças, operário de uma tinturaria, oficial, serralheiro. Depois melhorou de vida e obteve emprego num escritório comercial, mas guardou sempre saudades da vida rude mas irresponsável dos pobres, da» alegrias baratas dos vagabundos, das reviravoltas aventurosas da sua mocidade.

Embora a atividade literária não lhe trouxesse resultados materiais, Gelléri deixou-se entusiasmar pelos elogios da crítica, a qual reconhecia nele, e com razão, um dos talentos mais fortes da nova geração. Em seus livros — Tinturaria Principal (romance), Aprendizes Sedentos, Rua da Lua e Porto — nota-se um vigor saboroso da linguagem, uma visão fresca e original do mundo, uma força personificadora que insufla vida e individualidade nos objetos inertes — traços que, aliás, aparecem mais nítidos noutros contos seus, por isso menos traduzíveis, e a que se junta a forte consciência social de suas raízes, às quais, em sua rápida ascensão, permanecia fiel.

Todos lhe prediziam um grande futuro, mas os nazistas assassinaram-no, como a tantos outros valores de sua geração, por ser judeu.

Original utilizado: Hold-utca ("Rua da Lua"), Debrecen, Nagy Károly és társai, 1934.

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LÉXICO DE NOMES PRÓPRIOS E OUTROS TÊRMOS HÚNGAROS

Entre parênteses, a pronúncia aproximada.

ADY (Ódi) — sobrenome. ANDOR (Ôndor) = André. ANTAL (Ôntol) = Antônio. ARANYSAS (Óronh'choche) = Águia de Ouro (nome de um

hotel de Budapeste) . EÁTKY (Bátqtü) — sobrenome CSERES (Tcheres) = Carvalhal (nome de lugar) DEZSÕ

(Déje; e = eu francês) = Desidério. DÉVAI (Dévoi) — sobrenome DULI (Dúli) — sobrenome EGER (Éguer) — cidade arquiepiscopal da Hungria Setentrional ENDRE = André ESZTERGOM (Éstergome) — cidade arquiepiscopal à margem do

Danúbio. FERENC (Férents) = Francisco. FILLER (Filer) — moeda divisionaria, centésima parte de um

perigo. FRANCIA UT (Frôntsio ut) = Avenida Francesa. FRIGYES

(Frídieche) = Frederico. GÁRDONYI (Gárdanhi) — sobrenome. GÁSPÁR (Gáchpar) = Gaspar. GELLÉRI (Guéleri) — sobrenome. GÉZA (Guéso) — nome de homem, sem tradução em português.

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INDICE

PREFACIO ................................................................................ 3 1. MIKSZÁTH, O ferreiro da catarata .......................................... 9

2. GÁRDONYI, Da cobra e outros horrores ................................ 17

3. SZOMORY, Na linguagem dos pássaros ................................ 22

4. HELTAI, Noite de Natal ..................................................... 26

5. KRUDY, Uma das historias do soldado raso Harras Rudolf .. 37

6. MOLNÁR, Conto de ninar ........................................................ 43

7. MÓRICZ, Tragédia ................................................................. 54

8. KOSZTOLÁNYI, Aventura búlgara ....................................... 63

9. KARINTHY, Prólogo .............................................................. 74

10. MARAI, O criminoso ............................................................. 82

11. SZERB, Madelon, a cachorra .................................................... 92

12. GELLÉRI, A casa do terreno baldio ....................................... 103

NOTAS BIOBIBLIOGRAFICAS .......................................... 119 LÉXICO DE NOMES PRÓPRIOS E OUTROS TÊRMOS HÚNGAROS ......................................................... 127

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DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL RIO DE JANEI RO — BRASIL — 1964

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