ortografia da língua portuguesa: algumas considerações

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IDIOMA 21 A reprodução deste artigo só está autorizada com a indicação completa da fonte: Idioma, 21. Rio de Janeiro: Centro Filológico Clóvis Monteiro – UERJ, 2001 (http://www.institutodeletras.uerj.br/revidioma/21/idioma21_a09.pdf), p. 64-74. ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Luiz Fernando Dias Pita 1 - INTRODUÇÃO Passada a fase mais conturbada que se deveu à iminência de acordo que visava unificar a ortografia das diversas nações de Língua Portuguesa, proponho-me a realizar uma (sucinta) investigação das questões pertinentes à nossa ortografia. A importância do tema se dá em virtude da função específica da ortografia dentro do conjunto de componentes de um idioma: regulamentar a grafia dos termos que a ele pertencem, fixando-lhes a forma e conferindo à língua suas características externas mais facilmente reconhecíveis; ainda pela fundamental importância que se lhe concede nas escolas, onde constitui o segundo passo a ser dado pelo aluno em direção ao conhecimento gramatical – sendo o primeiro a própria alfabetização –, e mesmo no plano político, uma vez que temos o domínio do idioma como instrumento e expressão de poder dentro de uma sociedade. No caso específico da Língua Portuguesa, a questão ortográfica se reveste de grave importância no momento em que se torna patente o fato de ser o português a única das grandes línguas de divulgação internacional (segundo dados recentes, o português ocupa o sétimo lugar entre as mais faladas do globo), a possuir dois sistemas ortográficos em vigor. Assim sendo cumpre traçar aqui a trajetória da ortografia a partir dos primeiros textos dedicados ao tema, obedecendo primeiramente aos critérios históricos, objetivando demonstrar o viés teórico no qual se basearam nossos gramáticos na elaboração das regras ortográficas em vigor. Objetivamos, também, enunciar as principais razões que originaram o surgimento de dois sistemas ortográficos em nossa língua. Além do que consideramos de extremo valor discutir as principais questões que se destacam no novo acordo ortográfico, mesmo admitindo a pouca probabilidade de que ainda entre em vigor. 2 – PANORAMA HISTÓRICO a) Ismael de Lima Coutinho e a Periodização da História Interna Dentre os diversos estudos já realizados para traçar a evolução histórica de nossa ortografia, aquele que tem sido mais amplamente aceito pela comunidade acadêmica nacional é o realizado por Ismael de Lima Coutinho. Entretanto, mesmo nesse estudo, alguns pontos não parecem ter sido suficientemente analisados, pois a obra apresenta definições que, à luz de análise que as submeta ao processo de transformações sociais ocorridos desde então, certamente não mais se mostrariam capazes de sustento. Aqui nosso propósito é demonstrar que sua divisão – embora correta quanto à periodização – deixa de lado o aspecto histórico-social, que muito tem hoje a nos oferecer, inclusive no tocante à análise das reais necessidades de quaisquer alterações que se façam na

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IDIOMA 21 A reprodução deste artigo só está autorizada com a indicação completa da fonte: Idioma, 21. Rio de Janeiro: Centro Filológico Clóvis Monteiro – UERJ, 2001 (http://www.institutodeletras.uerj.br/revidioma/21/idioma21_a09.pdf), p. 64-74.

ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Luiz Fernando Dias Pita

1 - INTRODUÇÃO

Passada a fase mais conturbada que se deveu à iminência de acordo que visava unificar a ortografia das diversas nações de Língua Portuguesa, proponho-me a realizar uma (sucinta) investigação das questões pertinentes à nossa ortografia.

A importância do tema se dá em virtude da função específica da ortografia dentro do conjunto de componentes de um idioma: regulamentar a grafia dos termos que a ele pertencem, fixando-lhes a forma e conferindo à língua suas características externas mais facilmente reconhecíveis; ainda pela fundamental importância que se lhe concede nas escolas, onde constitui o segundo passo a ser dado pelo aluno em direção ao conhecimento gramatical – sendo o primeiro a própria alfabetização –, e mesmo no plano político, uma vez que temos o domínio do idioma como instrumento e expressão de poder dentro de uma sociedade.

No caso específico da Língua Portuguesa, a questão ortográfica se reveste de grave importância no momento em que se torna patente o fato de ser o português a única das grandes línguas de divulgação internacional (segundo dados recentes, o português ocupa o sétimo lugar entre as mais faladas do globo), a possuir dois sistemas ortográficos em vigor.

Assim sendo cumpre traçar aqui a trajetória da ortografia a partir dos primeiros textos dedicados ao tema, obedecendo primeiramente aos critérios históricos, objetivando demonstrar o viés teórico no qual se basearam nossos gramáticos na elaboração das regras ortográficas em vigor.

Objetivamos, também, enunciar as principais razões que originaram o surgimento de dois sistemas ortográficos em nossa língua. Além do que consideramos de extremo valor discutir as principais questões que se destacam no novo acordo ortográfico, mesmo admitindo a pouca probabilidade de que ainda entre em vigor.

2 – PANORAMA HISTÓRICO

a) Ismael de Lima Coutinho e a Periodização da História Interna

Dentre os diversos estudos já realizados para traçar a evolução histórica de nossa ortografia, aquele que tem sido mais amplamente aceito pela comunidade acadêmica nacional é o realizado por Ismael de Lima Coutinho. Entretanto, mesmo nesse estudo, alguns pontos não parecem ter sido suficientemente analisados, pois a obra apresenta definições que, à luz de análise que as submeta ao processo de transformações sociais ocorridos desde então, certamente não mais se mostrariam capazes de sustento. Aqui nosso propósito é demonstrar que sua divisão – embora correta quanto à periodização – deixa de lado o aspecto histórico-social, que muito tem hoje a nos oferecer, inclusive no tocante à análise das reais necessidades de quaisquer alterações que se façam na

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ortografia do idioma.

Tal estudo define três períodos distintos dentro da trajetória da ortografia da língua portuguesa, conforme agora transcrevemos:

Divide-se assim a história da nossa ortografia em três períodos: o fonético, o pseudo-etimológico e o simplificado. PERÍODO FONÉTICO - Começa este período com os primeiros documentos redigidos em português e se estende até o século XVI. Apesar de certa flutuação que se observa na grafia das palavras, a preocupação fonética transparece a cada momento. A língua era escrita para o ouvido. PERÍODO PSEUDO-ETIMOLÓGICO - Inicia-se no século XVI e vai até o ano de 1904, em que aparece a Ortografia Nacional de Gonçalves Viana. O que caracteriza este período é o emprego de consoantes geminadas e insonoras, de grupos consonantais impropriamente chamados gregos, de letras como o y, k e w, sempre que ocorriam nas palavras originárias. PERÍODO SIMPLIFICADO - Principia com a publicação da Ortografia Nacional, de Gonçalves Viana, em 1904, e chega até os nossos dias. De conformidade com os princípios por ele estabelecidos, há dois sistemas simplificados: o português e o luso-brasileiro. (1976: 107)

b) A ortografia como demarcação de fronteiras: o período fonético

Analisando-se a periodização proposta por Ismael de Lima Coutinho, vemos a princípio que ela se constrói a partir de formulações que tomam por base apenas a história interna da língua, isolando as ortografias – não apenas, mas também o idioma num contexto mais amplo – dos panoramas de época nos quais vigoraram. Deste modo, ao chamar fonético o período que corresponde à Idade Média, o autor declara:

Coincide este período com a fase arcaica do idioma. O objetivo a que visavam os escritores ou copistas da época era facilitar a leitura, dando ao leitor uma impressão, tanto quanto possível exata, da língua falada. (...). Não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras. Às vezes, num documento, aparecem os mesmos vocábulos grafados de modo diferente. Para isso, concorriam as diferenças regionais que deram em resultado o sincretismo das formas, a influência embora pequena do latim, a negligência dos autores e copistas, e, em alguns casos, a grafia castelhana. O que porém, não se pode negar-se a tendência manifestamente fonética do sistema então em uso. Escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido. (idem: 170)

É sabido que os mosteiros eram praticamente os únicos centros de cultura medievais (cultura aí compreendida como a manutenção de uma tradição herdada). Logo, a citada “negligência” dos copistas em relação aos romances deve ser encarada como resultado da política eclesiástica que prescrevia o uso do latim eclesiástico como a koiné da cristandade.

Também o fato de haver existido durante toda a Idade Média – fora dos meios eclesiáticos – uma enormidade de analfabetos, compreendendo inclusive a classe nobre, parece não ter sido levado em consideração por Ismael. Parece-nos que, a rigor, mais correto seria falar de uma enorme massa de semi-alfabetizados em romance, ainda que alguns destes fossem plenos conhecedores do latim (em forma clássica ou eclesiástica).

Ismael alega ainda que as variações regionais de pronúncia concorriam para a variedade de formas gráficas existentes. Porém, em vista do que expusemos, somos levados a crer que tal situação é decorrente da soma de diversos interesses: a política de proscrição dos diversos falares romances, praticada ao longo de séculos pela Igreja – e esta, convém não esquecer, era a única instituição sólida durante a Idade Média. Também é de fundamental importância relativizar o isolamento de que nos fala Ismael, uma vez que o

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isolamento regional era elemento característico – porque constituinte – do sistema feudal. O sistema de organização social feudal privilegiava o isolamento, fazendo assim com que as variações fossem realçadas, mesmo porque, realçar as diferenças lingüísticas é tomar uma suposta posição de independência em relação a um poder central. Cite-se como exemplo disso a política cultural chilena de privilegiar a denominação “castelhano” para diminuir o peso da herança colonial espanhola. Sobre a questão da possível independência, vale ler o texto de Ángel López García:

Desde luego que durante la Edad Media en Francia no se hablaba francés, ni en Italia italiano. Estas lenguas son antiguas en sus respectivos territorios de origen - l’Île de France y Florencia -, pero modernas por relación a los estados a los que dan nombre: el francés es el idioma de la literatura y de la corte desde finales de la Edad Media, y el de la vida pública desde el siglo XVIII (...). (1992: 5)

Desta forma, nos parece clara a dissociação que passou a existir entre o galego e o português, quando da separação do Condado Portucalense do Reino de Castela, escrevia-se para “o ouvido”, como nos diz Ismael, porque se tentava delimitar quais ouvidos deveriam “ler” tais falares.

A questão da ortografia – e de todo o idioma, aliás – se atrela ao processo de constituição das nacionalidades e é a partir de fins do século XIV, quando o modelo feudal começa a dar sinais de esgotamento e a burguesia a delinear-se como classe social, que se inicia o processo de fortalecimento dos poderes centrais, baseados na figura do rei. No caso específico de Portugal, temos o rompimento definitivo com os laços com Castela – nesse tempo, é prematuro falar em Espanha, que só viria a formar-se em 1492 –, através da conhecida batalha de Aljubarrota, onde a dinastia portuguesa rompe com a nobreza pró-Castela e passa a ter como base de sustentação o apoio da burguesia comercial. Ora, se no plano político tal fato implicava tomar a maior distância possível de tudo que recordasse Castela, no lingüístico é evidente que se deveriam realçar as particularidades do falar ocidental da península.

A esse respeito é de interesse notar que, na página 197 de sua obra, Ismael cita Schuchardt, que explica as diferenças entre espanhol e português pela diferença das nacionalidades, o que corrobora nossa proposição. Por conseguinte, defendemos a idéia de que a fase arcaica da língua assim o era porque ainda não desvencilhada do romance ibérico, mas duvidamos do fato – alegado por Ismael – de que a ortografia vacilante era unicamente resultado de mera transcrição fonética. Cremos que as variações eram resultado da conjugação de interesses políticos de marcar posição de autonomia, aliado ao interesse da classe eclesiástica ilustrada em privilegiar o latim.

Se uma das características que marcam o fim da Idade Média é a anulação do sistema feudal e o surgimento das nações modernas, sabemos que Portugal levou a dianteira nesse processo e podemos deduzir que uma das necessidades políticas desses novos estados seria justamente demarcar seu território no plano cultural.

Assim, a escritura fonética sofre um processo de depuração que visa, antes de tudo, anular as diferenças existentes entre as diversas regiões de um mesmo país. Surgindo – ou ressuscitando-se dos romanos – o conceito de língua-padrão, tomando vulto a importância da existência de ao menos uma koiné para os territórios politicamente unidos.

É neste período que vemos, por exemplo, o desaparecimento de diversos dialetos dentro das regiões politicamente dominadas pelos reinos de Castela e pela França; por outro lado, nas regiões onde a estrutura feudal se manteve em maior grau, temos até hoje, uma enormidade de dialetos e falares, bastando citar a Itália como ilustração. Lembremos que o ano de 1492, já citado como o da unificação dos reinos de Castela e Aragão e da reconquista definitiva do último bastião árabe na Península Ibérica, é também o da edição da primeira Gramática Castellana, por Antonio de Nebrija.

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É a partir deste momento histórico que são demarcados os territórios nacionais, por meio dos laços da língua comum, que se patenteavam senão pela pronúncia – extremamente semelhante em vários casos – igualmente pela grafia, cada vez mais diferenciada da das línguas circundantes.

c) A ortografia como demarcação de classes: o período pseudo-etimológico

O século XVI é apontado pelos historiadores como o do “Renascimento” e é também responsável por inúmeras transformações em todos os idiomas europeus. Por essa razão, Ismael de Lima Coutinho faz do século XVI o ponto de divisão entre os períodos fonético e pseudo-etimológico, certo de que a influência renascentista teria provocado uma guinada na ortografia, levando à revalorização de elementos que há muito já se haviam abandonado na escrita.

Entretanto, se tal influência, com todo o aporte neoclássico que lhe era constituinte, é de fato inegável; tampouco podemos unicamente analisá-la segundo uma ótica simplista que tende a considerar todo o trabalho desenvolvido no sentido de uniformizar a língua escrita como mera cópia dos padrões greco-romanos. É suficiente, neste caso, recordar que também os historiadores consideram o século XVI como o do início da Era Moderna, a qual tendem hoje a caracterizar como uma fase de transição entre os sistemas de produção feudal, alicerçado na nobreza agrária e na fé católica, para o sistema capitalista, que se fundamenta na razão e no modo de produção industrial. É, por conseguinte, uma fase de conflitos em toda a Europa, e em sua decorrência ocorrem a Reforma Protestante, a Contra-Reforma, etc. Contudo, podemos crer que os sistemas de produção cultural encontravam-se, nessa época, alijados de todo o processo de transformações – a produção cultural renascentista era, ainda, quase toda patrocinada pela nobreza, sendo famosa a instituição do mecenato – e, portanto, refletiam a visão de mundo dessa mesma nobreza que, se por um lado começava já a sentir – nos países em princípios de industrialização – a concorrência da burguesia como nova classe social; por outro, também se revoltava com a ingerência da Igreja na vida social.

É por essas razões – e outras decerto – que vemos o grande fascínio que a cultura greco-romana passou a exercer. Sendo pagã, servia aos interesses da nobreza em desvincular-se do Catolicismo, já que a Reforma não foi senão outra tentativa de escape, pela via religiosa, mas também se prestava ao desenvolvimento técnico-científico “alavancado” pela burguesia, que descobrira a tecnologia como elemento determinante da forma de produção.

Assim, se a nobreza feudal concorria com a Igreja como classe produtora e consumidora de cultura, cumpria demonstrá-lo e, para tal, reveste-se de importância a referencialidade ao elemento greco-romano em todos os pontos da cultura leiga. Pode-se daí associar o “revestimento” greco-latino sofrido pelas línguas européias à política social da nobreza no período renascentista. Vale lembrar que a Espanha da Contra-Reforma e da Inquisição realizou uma reforma ortográfica varrendo de si quase todos os traços renascentistas. Assim, a visão de Ismael de Lima Coutinho, considerando o período meramente através da grafia, embora nos interesse mais de perto, peca por fornecer-lhe a carga pejorativa embutida na denominação “pseudo-etimológico”. Claro está, não era a nobreza – nem mesmo a intelectualidade patrocinada da época – suficientemente experiente para definir com exatidão, quais dos elementos greco-romanos seriam de fato úteis na linguagem cotidiana. Entretanto, parece-nos que a “carga” de etimologia imposta à ortografia vigente teria muito mais o sentido de – novamente – demarcar território. Desta vez, não o território nacional, porém a esfera das classes dominantes. Na obra de Ismael que vimos analisando há passagens onde transparece a intencionalidade do uso deste sistema ortográfico pelas elites:

Com a sua prática, fica vacilante a pronúncia, porque a presença das letras etimológicas deixa o leitor neófito quase sempre em dúvida sobre se deve ou não pronunciá-las. Não deixa isso de constituir um sério embaraço para quem deseja falar o português com correção, assim nacional como estrangeiro(...)

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Faz-se mister, portanto, democratizar a ortografia. Já vai longe o tempo em que ela era considerada alguma coisa misteriosa, cujos segredos só competiam aos sacerdotes e iniciados. – grifos nossos (Gonçalves Viana apud Coutinho, 1976: 109)

Deste modo, podemos crer que, se o interesse básico dos gramáticos/redatores de então era, de fato, pautar-se pelos modelos greco-latinos, tal interesse não se fazia sentir unicamente por razões lingüísticas, mas também por uma série de conveniências ligadas a uma idéia de preservação de identidade de classe, que se pode inferir na seguinte acusação, feita por Gonçalves Viana, à ortografia etimológica:

Estou de há muito convencido, e várias vezes o tenho dito pela imprensa, de que a denominada ortografia etimológica é uma superstição herdada, um erro científico, filho do pedantismo que na época da ressurreição dos estudos clássicos, a que se chamou Renascimento, assoberbou os deslumbrados adoradores da antigüidade clássica e das letras romanas e gregas, e pôde vingar, porque a leitura e a conseqüente instrução das classes pensadoras e dirigentes só eram possíveis a pequeno círculo de pessoas, cujos ditames se aceitavam quase sem protesto.

.Outro pequeno adendo que se pode fazer à visão de Ismael de Lima Coutinho é que ele não cita o processo pseudo-etimológico como fato existente em toda a Europa latina – com exceção talvez da Espanha, pelas razões já citadas. Porém, mesmo as línguas germânicas foram afetadas por esta “onda” greco-romana, uma vez que a vinculamos ao conjunto das reações da nobreza às estruturas de poder dominadas pela Igreja. Como exemplo, temos o caso do francês, onde os efeitos foram maiores, e ainda perduram, conforme se pode ver em Georgin:

Enfin, depuis le XVI siècle surtout, notre orthographie a pris une caractère essentiellement étymologique. De là vient la différence d’orthographe entre les mots de formation populaire comme or, oreille, et les mots de formation savante aurifère et auriculaire. Beaucoup des lettres qui ne s’entendent pas ont été reprises par les humanistes à l’orthographie latine: temps, corps, aspect (écrits autrefois tems, cors, aspet; représentent tempus, corpus, aspectus). (1952: 54)

Como se vê, a periodização formulada por Ismael de Lima Coutinho se prende inicialmente a fenômenos ocorridos em todas as línguas neolatinas, como é o caso dos dois períodos já analisados, e passa a considerar unicamente fatos internos da língua portuguesa (a publicação da obra do já citado Gonçalves Viana), ao tratar do período simplificado.

Se já vimos considerando aqui as razões histórico-sociais que cremos terem sido determinantes no desenvolvimento da língua, é perceptível que cremos ter sido a ortografia objeto de manipulação das elites culturais, pois seu uso correto serviria como traço distintivo das classes sociais. Já afirmamos que o período pseudo-etimológico é resultado de uma postura discricionista adotada pela elite cultural do Renascimento, que sabemos intimamente ligada à nobreza pela via do mecenato, em relação à burguesia ascendente. Dentro deste quadro, cabe a interrogação: O que teria feito com que as reformas ortográficas que engendraram o período simplificado fossem levadas a efeito? E de que maneira estas reformas se associariam com o conflito de classes que desde o Renascimento já se delineava?

d) A simplificação ortográfica como marca da ascensão da burguesia

A tais perguntas se pode responder através da análise do processo de desenvolvimento da classe burguesa, a qual apregoava uma maior simplificação em todo o processo de elaboração artístico – daí o surgimento do Romantismo, que vários autores interpretam como uma aplicação dos pressupostos da burguesia ao campo das Artes. Logo,

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considerando a hipótese de que se fazia necessária a simplificação da linguagem artística para um público que não compartilhava das mesmas esferas da cultura da elite (nobreza e clero), mas que era detentor dos meios de produção econômica, é evidente que os aspectos exteriores da linguagem sofreriam uma adaptação análoga. É dentro desse quadro que surgirão várias reformas ortográficas ao longo do século XIX, na ordem do estabelecimento da burguesia como classe dominante nos diversos países onde a Revolução Industrial se desenvolvia com maior impacto. A França realiza uma reforma ortográfica em 1835, por sinal a última lá realizada.

Nesse quadro, devido ao atraso socioeconômico de Portugal, o país só se veria diante da necessidade de uma reforma ortográfica que atendesse a uma maior democratização da língua perto da última década do século XIX, anos marcados na política portuguesa como os da agonia do sistema monárquico e pela crise de seu desenvolvimento colonial.

Assim, com a ascensão da burguesia portuguesa, os mesmos processos que envolvem o que chamaríamos de “luta de classes no campo da linguagem”, já vividos por outras nações, começam a delinear-se naquele país. Enfim, a publicação da obra Ortografia Nacional, em 1904, dá início ao processo de simplificação ortográfica, que até hoje, com várias marchas e contramarchas, atravessamos.

É dessa época que se originam as diferenças entre os padrões ortográficos brasileiro e português. Segundo nos relata Ismael de Lima Coutinho, já em 1911 – menos de um ano após a proclamação da República em Portugal – os princípios defendidos por Gonçalves Viana eram postos em prática. Infelizmente, apesar do apoio recebido no Brasil, a reforma ortográfica portuguesa não levava em consideração as reais necessidades lingüísticas dos falantes deste lado do Atlântico.

Em 1907 era aprovado na Academia Brasileira de Letras um projeto de simplificação ortográfica, que veio à luz em 1912, mas foi reformulado em 1915 para acompanhar o reforma portuguesa de 1911. Entretanto, em função das várias divergências entre os acadêmicos, foi totalmente revogado em 1919. A subseqüente reforma de 1929 não contou com qualquer apoio popular, e em função disso gramáticos brasileiros e portugueses reuniram-se para tratar de novo acordo, que definisse a questão ortográfica – que, nesse ínterim, já havia deixado de ser questão lingüística para tornar-se sumamente política: a Comissão formada por acadêmicos do Rio e de Lisboa celebrou acordos em 1931, 1938 e1943, nos quais grande parte das diferenças conseguiram ser sanadas. Entretanto, um último acordo, de 1945, foi recusado pelo Congresso Nacional brasileiro. Assim, os brasileiros nos pautamos pelo projeto de 1943, com as alterações realizadas em 1965 e 1971, enquanto os portugueses utilizam o acordo de 1945.

Uma tentativa de acordo ortográfico realizada em 1986 foi firmemente rechaçada em Portugal, praticamente trazendo a questão de volta à estaca zero. Nova tentativa de acordo, elaborada em 1991, foi aprovada em Lisboa, faltando contudo a aprovação do Congresso Brasileiro. Tal acordo, embora com boa aceitação pelas nações de língua portuguesa, é o que mais longe chegou no esforço de resolução do problema. Apesar disso, figura apenas como um item a mais nesta história de nossa ortografia, faltando-lhe a indispensável oficialização por parte dos países da comunidade lusofônica.

e) O desacordo ortográfico como tática de mercado

Resta analisar quais seriam as causas de tantas contramarchas na elaboração destes acordos ortográficos. E também a razão de tanto investimento realizado, ao longo das últimas três décadas, na busca de uma solução para este problema. Para tanto, é desejável prosseguirmos na trilha até aqui percorrida, analisando quais seriam as mudanças nas estruturas sociais de nossas nações que formulariam ambas os movimentos - centrífugo e centrípeto – da ortografia portuguesa neste século.

Se até agora temos demonstrado como determinados conflitos (de nação, classe etc.) têm servido para determinar os rumos da linguagem, resta agora pensar as discrepâncias surgidas no seio da língua portuguesa – principalmente no Brasil – em um momento

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histórico onde não parecem haver semelhantes conflitos e mesmo o desenvolvimento da classe operária não teve ainda grande repercussão no campo da linguagem. Assim, se pensarmos as atividades de produção de conhecimento como vinculadas ao sistema capitalista e, com isso, utilizando as mesmas técnicas de conquista, preservação e expansão de mercado, certamente teremos algumas respostas para a condução da política ortográfica da língua portuguesa no século XX.

É sabido que até meados dos anos 20, quase todos os livros utilizados no Brasil provinham da França e de Portugal, em razão da não existência de parques gráficos suficientemente desenvolvidos para que se pudesse aqui editar livros em quantidade necessária. Salvo as gráficas vinculadas a jornais, como é o caso de O Globo, nenhuma das outras podia fazer frente à concorrência estrangeira. A política editorial brasileira se projeta a partir do trabalho pioneiro de editores como Francisco Alves, da Companhia Editora Nacional e da Editora Globo, que iniciaram seu trabalho ao longo dos anos 20, vindo a substituir paulatinamente a importação de livros. Ora, a tática básica do capitalismo para conquistar o consumo de determinado produto em determinada região, é a prática do “mercado cativo”. Logo, se as diferentes ortografias eram “sério embaraço ao mercado do livro”, conforme nos diz Ismael de Lima Coutinho, por outro lado constituíam razão suficiente para que o parque gráfico nacional se desenvolvesse. Jorge Amado, em Farda, Fardão, Camisola de Dormir, deixa claras as vinculações existentes entre a Academia Brasileira e os editores – responsáveis em parte pela divulgação de membros da própria Academia.

Se as diferentes ortografias garantiram o desenvolvimento do mercado editorial brasileiro, a conjugação deste verdadeiro lobby à política nacionalista do Estado Novo garantiu a sua preservação e expansão, pois através da criação, em 1945, do Instituto Nacional do Livro formulou-se uma política de financiamento de edições, de concessão de bolsas de pesquisa para autores ditos “acadêmicos”, chegando-se inclusive à compra de edições inteiras para distribuição em escolas. Não por acaso foi escolhido, para primeiro presidente do INL, o escritor Mário de Andrade, célebre por suas discordâncias em relação à ortografia oficial e favorável à criação de uma “Língua Brasileira” e primeiro a manifestar-se a favor do rompimento do acordo ortográfico de 1945. Tal política garantiu a expansão do mercado consumidor de livros, garantindo o aumento do nosso parque gráfico e editorial.

Parece-nos clara, a partir destas considerações, a razão de existência de uma “força centrífuga”, em relação ao tema “unificação ortográfica”. Porém, o que explicaria o novo (apesar de infrutífero) empenho em unificar-se o idioma? O atual desenvolvimento do nosso parque gráfico e editorial, pode nos permitir a conquista de mercado externo e, então, a política de “reserva de mercado” praticada desde o início do século passa a constituir entrave na conquista do restante do mercado de língua portuguesa – que hoje em dia não se entende apenas como Portugal, mas também as nações africanas e asiáticas – ex-colônias.

Esta busca de transnacionalização do mercado editorial – e também de todas as áreas de conhecimento nas quais a palavra escrita tenha fundamental relevância, como imprensa, música, etc. – se coaduna com a tendência globalizante vivida no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. Contrastando com o que se fez na transição da Idade Média para a Moderna, agora cabe anular as diferenças para demarcar território.

Logo, segundo o raciocínio que vimos desenvolvendo, é necessário que se compreenda cada vez mais a estreita influência exercida pela história externa sobre a história interna do idioma. Aquela, se bem compreendida em todos os seus meandros, muito pode elucidar quanto à formulação de políticas para a língua nacional, e, dentro deste quadro, alterar significativamente a ortografia de uma língua. Conforme cremos haver demonstrado.

2 – O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO: UMA BREVE ANÁLISE

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Vejamos agora uma pequena avaliação daqueles pontos do novo acordo ortográfico cuja aprovação suscitaria(?) alterações na ortografia em vigor no Brasil. Para tanto nos valemos da Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, inclusa no texto oficial do Novo Acordo, conforme publicado no Diário Oficial da União em 21 de abril de 1995, também foi de extrema valia o estudo de Manoel Pinto Ribeiro intitulada Reforma Ortográfica, que aborda algumas questões que lhe pareceram dúbias dentro do texto oficial.

Os pontos por nós selecionados como merecedores de uma análise mais demorada seguem abaixo na mesma ordem em que se encontram nos textos acima citados, visando com isso proporcionar ao leitor uma maior facilidade ao cotejar os dois textos.

a) O Alfabeto:

Segundo o Novo Acordo, volta o alfabeto português em uso no Brasil a ter as letras k, w e y. Essa medida se justifica pelo fato de em Portugal tais letras constarem do alfabeto. Além disso, o uso consagrado de tais sinais na notação matemática, química e etc., já há muito impunha sua volta ao nosso alfabeto, sem contar a enormidade de palavras do léxico africano da língua que as utilizam. Como exemplo, basta citar o kwanza, unidade monetária angolana.

O texto preserva entretanto as regras restritivas impostas ao uso destas letras, visando evitar o surgimento de dupla grafia em nomes próprios, ou ainda, dificultar o empréstimo de vocábulos de origem estrangeira.

b) O Hífen:

O texto advoga ainda maior simplificação do uso do hífen, reduzindo seu uso. Entretanto seu desaparecimento em alguns casos acaba por criar algumas exceções antes inexistentes como é o caso do prefixo co-, que deixa de ser grafado com hífen ao ligar-se a um segundo elemento. Deixa o hífen também de ser utilizado nas locuções em geral (salvo cor-de-rosa) e nos casos em que um prefixo termine por vogal, quando estiver diante de palavra iniciadas por vogal diferente, -r ou -s.

Manoel Ribeiro advoga a idéia de que com o fim do hífen em palavras compostas por substantivos mais adjetivos ou verbos perde-se a noção de composição como processo de formação de palavras. Entretanto em grande quantidade de casos a idéia de composição continua manifesta através dos próprios elementos que compõem o novo termo, como é o caso de: mandachuva, pontapé, girassol. Alerta-nos ainda que há uma série de sufixos - os terminados em -b - dos quais o texto não trata.

c) A Acentuação Gráfica:

Eis o ponto de nossa ortografia em que mais se propõem alterações e justamente onde se apresentam os casos por nós considerados como mais polêmicos:

- A acentuação das proparoxítonas:

Mantém-se inalterada, preservando-se inclusive a obsoleta exceção dos latinismos habitat, deficit e alibi.

Destes três termos, observe-se que o uso já consagrou a acentuação em deficit, grafado déficit em vários órgão de imprensa, quando estes não adotam o neologismo défice – cujo único entrave na adoção generalizada se daria na criação de seus derivados: deficitário? O VOLP (desde 1981) já manda que se acentue álibi, e assim a regra representaria um retrocesso. Quanto ao termo habitat, cremos que o mais lógico seria propor-se o seu aportuguesamento pela forma que já se verifica em diversos trabalhos científicos.

- A acentuação das paroxítonas:

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Neste caso se propõem as alterações que merecem um estudo mais acurado, pois várias das propostas possibilitam delimitar o surgimento de nova orientação para a existência de acentos.

Na língua portuguesa até hoje se concebe o acento como indicador de timbre e de tonicidade. Entretanto, vemos que, desde as reformas ortográficas de 1945, 65, e 71, o acento de timbre tem tido seu papel diminuído dentro da convenção. Se os acordos anteriores eliminaram da ortografia a acentuação de diversos termos, o Novo Acordo prossegue nessa linha, eliminando alguns dos acentos que as reformas anteriores haviam preservado. Mas vai além, pois determina a acentuação “dupla” de determinados vocábulos, em razão de seu timbre oscilar de acordo coma região onde se o fale. Tal é caso de termos como gênio/génio, Antônio/António, etc. Desta forma se relega o timbre a um segundo patamar, além de dirimir-se um ponto de embate entre os diversos povos falantes do português, que seria indubitavelmente causado se se tentasse impor uma norma única.

Generaliza-se na Língua o uso já consagrado pelos portugueses de não acentuarem os ditongos abertos éi, éu e ói, além de tornar-se facultativo o uso do acento diferencial em verbos que assumam, na P4 do pretérito perfeito, forma igual à do presente do indicativo, ex.: cantamos (pres.) e cantámos (pret. perf.).

Também é digno de nota a extinção do acento em vocábulos como côo, vôo, enjôo, além das formas verbais dêem, lêem, crêem, vêem etc. De fato, tal acento exercia a função de indicar separação de sílaba, o que é um papel que não encontra mais sua razão de ser, já que se sabe que ditongos – cuja formação o acento deveria evitar – só são possíveis em Língua Portuguesa quando formados por semivogais, o que não é o caso dos exemplos acima.

- As vogais I e U:

No caso da acentuação das vogais I e U, preserva-se – e reforça-se – o princípio de não se permitir qualquer confusão entre ditongo ou hiato, devendo acentuar-se a sílaba tônica dos hiatos que apresentem tal construção. Logo, continuarão a ser acentuadas palavras como saúde, reúne, países, etc. Cremos que o único inconveniente desta regra é a manutenção – incompreensível para o grande público – das exceções que apregoa (o fato de não serem acentuadas as vogais em questão se seguidas de l, m, n, nh, r, etc.).

- O trema:

Eis aqui um ponto que nos parece polêmico, quando não um retrocesso, no caso do sistema adotado no Brasil, pois o Novo Acordo determina simplesmente a extinção do trema, permitindo-se seu uso apenas em palavras derivadas nomes próprios estrangeiros. O argumento utilizado para justificar sua extinção é o fato de tal acento já não existir em Portugal, além de não funcionar como acento de tonicidade, fator que, vimos, se deseja realçar na acentuação gráfica. É justamente tal regra a mais visada por elementos contrários ao Novo Acordo, já que, com isso, deixam-se de grafar com o trema inúmeras palavras onde já se observam vacilações na pronúncia usada pelas classes de menor nível escolar: adquirir, extinguir, etc. Cremos que, de todos os termos do Novo Acordo, a extinção do trema seja o único que mereça uma reavaliação.

- O acento grave indicativo de crase.

O Novo Acordo determina apenas que se use o acento grave nas contrações da preposição a com o artigo definido feminino singular a ou ainda com os pronomes demonstrativos, silenciando a respeito dos demais casos em que seu uso é recomendado pelas gramáticas. Parece-nos que se optou por consagrar as fórmulas consensuais do uso do acento grave, deixando para outros contextos as discussões as demais ocorrências.

3 – CONCLUSÃO: A LUSOFONIA COMO PROPOSTA POLÍTICA

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Conforme pudemos observar através da análise da trajetória seguida pela ortografia na língua portuguesa e do texto oficial do Novo Acordo Ortográfico, pode-se mais uma vez pensar nas estreitas ligações existentes entre a língua e o desenvolvimento político-social de seus falantes, coerentemente com o fato de a língua ser um instrumento de poder utilizado por aqueles que detêm sobre ela uma autoridade censória.

Pode-se concluir que a trajetória percorrida pela ortografia portuguesa foi sempre alvo de interesses demarcatórios, sejam de território nacional, como foi o caso na constituição do território português durante a Idade Média, sejam de áreas de influência de mercado, como parece ter sido uma das causas mais profundas – e obscuras – dos desacordos ortográficos ocorridos no século XX.

É interessante notar que, num momento histórico caracterizado pela globalização, tenta-se recuperar o “tempo perdido” de várias maneiras. Assim não nos causa espanto algum a criação, em 1996, da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), assunto pouco noticiado porém importante na esfera das Relações Exteriores do Brasil. Tal Comunidade, que visa constituir-se numa frente única de defesa dos interesses político-culturais dos países lusófonos, teve como teor de um de seus primeiros documentos a defesa da unificação “tanto mais rápida quanto possível” do idioma em todas as regiões onde é falado e não por acaso seu segundo documento foi a condenação formal da presença indonésia em Timor Leste e do fim da proibição do uso do português em tal região.

Da mesma maneira, o reconhecimento do idioma galego na Espanha tem sido alvo de diversas críticas de Madrid, que considera o sistema ortográfico adotado pela Academia Galega muito aproximado ao do português.

Pode-se deduzir, portanto, que a razão de ser das várias lacunas do texto oficial do Novo Acordo se deve ao fato de ele ter sido preparado com interesses mais políticos, vinculados à possível expansão de uma indústria cultural brasileira dentro dos demais territórios lusófonos, em virtude de possuirmos maior influência nesta área. Tiveram os elaboradores do Novo Acordo a diplomacia de deixar de fora os pontos mais polêmicos, e também a sabedoria de fazer concessões, em razão dos interesses maiores. Esta pode inclusive ser uma das principais razões de, hoje, podermos considerar que o Novo Acordo dificilmente tem condições de impor-se nos termos em que se construiu.

Entretanto, tais fatores não podem deixar que percamos de vista os inúmeros benefícios que possam advir da unificação e mesmo da expansão da idéia de “lusofonia”.

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