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Deleuze: caos e pensamento

Luiz B. L. OrlandiResumo: H inmeros e competentes estudos dedicados a conexes entre idias deleuzeanas e problemas ditos educacionais. Ao dedicar-se ao tema "Deleuze: caos e pensamento", esta palestra, guisa de experimentao conceitual, pretende apenas contribuir para a expresso da complexidade da experincia do aprendizado. Para tanto, ela levar em conta trs passagens que Franois Zourabichvili destacou de obras de Gilles Deleuze em seu intuito de estabelecer traos em torno dos quais ele tematiza o que poderia ser uma teoria deleuzeana do ensino.

Estamos numa Faculdade de Educao. Por isso, considerando o ttulo desta palestra (Deleuze: caos e pensamento), talvez seja conveniente manter num horizonte simultaneamente prximo e longnquo a seguinte pergunta: o que algum, chamado educador ou professor etc., deveria fazer para pensar da maneira mais exigente possvel a experincia do aprendizado? Levando em conta alguns estudos deleleuzeanos, a resposta que me ocorre de imediato esta. Para pensar com radicalidade crescente a experincia do aprendizado, tal educador ou professor deveria consultar assiduamente pelo menos duas pores do caos: aquela poro com a qual ele no pra de se emaranhar, simplesmente por estar vivo e por ser portador do seu prprio crebro; e aquela grande poro do caos que ele encontra a cada passo, justamente por envolverse com o aprendizado dos outros, daqueles que outrora eram denominados discpulos, educandos, alunos etc. Por enquanto, peo que mantenhamos essa introduo como nuvens no horizonte, nuvens que so como signos que no sabemos ainda decifrar. Mas pressentimos, pelo menos, que elas acenam aos que se interessam por ensino, mesmo que no tenhamos desta palavra uma noo que nos satisfaa. Pois bem, h inmeros e competentes estudos dedicados a conexes entre idias deleuzeanas e problemas ditos educacionais 1. Mas o que pretendo fazer aqui no vai alm da introduo, uma breve experimentao conceitual, esperando que ela, mesmo em seu estado de esboo, venha a contribuir com aquilo que esses estudos incentivam. A meu ver, eles promovem o esforo destinado a pensar e a expressar a complexidade da experincia do aprendizado. Pois bem, tambm um esforo desse tipo que pretendo extrair de uma conferncia contempornea

Palestra na Faculdade de Educao da Unicamp durante o Simpsio: Conexes: Deleuze e imagem e pensamento. 14/05/09. Agradeo a Silvio Gallo pelo amvel convite para participar do evento.1

A possibilidade de haver um encontro como este que aqui nos rene uma prova disso, assim como a existncia de estudos j publicados; alis, numa brevssima consulta bibliogrfica na minha prpria mesa de trabalho, eis ou que acabo de encontrar: Slvio Gallo, Deleuze e a educao, Belo Horizonte: Ed. Autntica, 2005. Tomaz Tadeu, Sandra Corazza e Paola Zordan, Linhas de escrita, Belo Horizonte, Ed. Autntica, 2004. Sylvio de Sousa Gadelha, Subjetividade e menor-idade, So Paulo, Anablume, 1998 etc.

dos estudos referidos na nota 1: a conferncia feita por Franois Zourabichvili no Rio de Janeiro em 19 de novembro de 2004, pouco menos de dois anos antes do seu lamentvel suicdio, ocorrido em meados de 2006. tambm uma homenagem a esse extraordinrio estudioso que estou aqui prestando. primeira vista, o tema explcito dessa conferncia no parece corresponder ao intuito que acabo de declarar. Com efeito, a conferncia visa desenvolver a relao entre o pensamento deleuzeano e a questo da literalidade, questo que Deleuze no trata diretamente, mas que Zourabichvili desenvolve em vrios momentos de seus prprios escritos. Ao fazer isso, sua inteno manifesta era estabelecer essa questo como duplamente decisiva: de um lado, ele privilegia essa questo como decisiva para compreender Deleuze sem recorrer a um campo de compreenso ou de interpretao exterior a esse pensamento; por outro lado, essa questo afirmada por ele como decisiva para continuar a fazer filosofia hoje. Ento, se o problema que aqui me interessa o do esforo conceitual deleuzeano destinado a pensar e a expressar a complexidade da experincia do aprendizado, que sentido pode ter a tentativa de me apropriar de uma conferncia literalmente interessada na questo da literalidade? Penso ser possvel estabelecer um duplo sentido a esse respeito. De um lado, um sentido terico mediato. Isto quer dizer que essa questo da literalidade deve sofrer algumas reformas que procurarei estimular, embora no possa desenvolv-las aqui. Por outro lado, essa questo, tal como Zourabichvili a equaciona, propicia um sentido terico-operatrio imediatamente conectvel ao problema que me preocupa, o da experincia do aprendizado. Com efeito, ao equacionar sua questo, Zourabichvili lana mo daquilo que seria a teoria deleuzeana do ensino. Como base dessa teoria, ele destaca trs motivos pedaggicos manifestos, motivos que ele rene justamente, em torno de um mesmo problema, o da experincia, seja a experincia de ensinar, seja a experincia de aprender. Mas esses dois tipos de experincia, como reconhece Zourabichvili, encontram no prprio aprender, no prprio aprendizado, algo como um modelo de toda experincia. Antes de retomarmos essa expresso da experincia do aprendizado como modelo de toda experincia, convm indicar os trs motivos pedaggicos deleuzeanos valorizados por Zourabichvili como bsicos numa teoria deleuzeana do ensino. Eles so extrados de trs obras de Deleuze e apresentados numa ordem indiferente cronologia de suas publicaes: 1. A primeira passagem, retirada de uma entrevista dada por Deleuze em 1988, e intitulada Sobre a filosofia, esta: D-se um curso sobre aquilo que se busca e no sobre o que se sabe 2.

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Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 190. Conversaes, tr. br. de Peter Pl Pelbart, Rio de Janeiro, Es. 34, p. 173.

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2. A segunda passagem, retirada do segundo captulo da primeira parte de Proust e os signos, e j presente na primeira edio, a de 1964, esta: Quem sabe como um estudante devm repentinamente bom em latim, que signos (amorosos ou at mesmo inconfessveis ) lhe serviram de aprendizado? 3. 3. Finalmente, a terceira passagem, retirada do stimo postulado (A modalidade das solues) do decisivo cap. III (A imagem do pensamento) de Diferena e repetio, obra publicada em 1968, assim montada: Fazem-nos acreditar que a atividade de pensar, assim como o verdadeiro e o falso em relao a esta atividade, s comea com a procura de solues, s concerne s solues [...] Como se no continussemos escravos enquanto no dispusermos dos prprios problemas, de uma participao nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gesto dos problemas 4. Em vez de ligar esses trs pontos questo da literalidade, tal como faz Zourabichvili, minha inteno seme-los nas tenses entre caos e pensamento. Observemos que o primeiro desses pontos j provoca um abalo no hbito de pensar o professor como agente de um saber que ele domina. Sem dvida, ele foi iniciado em algum saber, mas o que est em pauta nesse ponto sua efetiva e atual participao na experincia do seu prprio aprendizado, enquanto busca de algo que o desafia, que ultrapassa sua compreenso imediata das implicaes do seu prprio saber, da situao em que ele atua e do campo problemtico que o envolve com os outros. Trata-se de um aprendizado, pois essa busca no depende simplesmente de uma boa vontade do professor. Uma pergunta de aluno pode faz-lo correr em busca de um desenvolvimento que a satisfaa. No aprendizado, portanto, a busca desencadeada por algo que intensifica a sensibilidade e fora todas as outras faculdades a irem alm de sua inrcia habitual ou da acumulao de um saber abstrato. Trata-se de uma tese j presente em Proust e os signos. Deleuze l Em busca do tempo perdido na perspectiva de um aprendizado temporal, aprendizado que se distingue do saber abstrato porque implica o encontro intensivo com os signos: aprender diz respeito essencialmente aos signos, signos com que nos deparamos em certos encontros e que nos coagem a pensar [PS, 4; 10]. O segundo ponto, por sua vez, indica a necessidade de levarmos em conta a fora de uma pluralidade de encontros como desencadeadores de disposies ou indisposies surpreendentes do ponto de vista do aprendizado. Isto torna evidente o quanto a experincia do aprender transborda no somente a estrutura organizatria do ensino como tambm a idia de tomar algum (seja professor, seja o pai) como exemplo a ser seguido. tambm em Proust e os signos, na mesma pgina escolhida por Zourabichvili, que lemos: nunca se aprende fazendo3

G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, P.U.F., 1976, p. 31. Proust e os signos, tr. br. de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1987, p. 22.4

G. Deleuze, Diffrence et rptition, Paris, Minuit, 1968 pp. 205-206. Diferena e repetio, tr. br. de Luiz Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro e So Paulo, Graal, 1 ed., 1988, p. 259; 2 Ed., p. 228.

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como algum, mas fazendo com algum, que no tem relao de semelhana com o que se aprende. Por que? Porque o signo, este objeto de uma aprendizado temporal, implica em si a heterogeneidade como relao [PS, 31-32; 22]. tese esta fundamental como crtica a toda e qualquer uniformizao dos corpos e das almas. Isto quer dizer que a diferena decisiva no aprendizado. Eis como Deleuze, em Diferena e repetio, retoma a frase recolhida por Zourabichvili de Proust e os signos: Nunca se sabe de antemo como algum vai aprender que amores tornam algum bom em Latim, por meio de que encontros se filsofo, em que dicionrios se aprende a pensar. Os limites das faculdades se encaixam uns nos outros sob a forma quebrada daquilo que traz e transmite a diferena. O aprendizado do pensar est imerso, portanto, numa catica de encontros que abalam inicialmente a sensibilidade. Deleuze pergunta: A partir de que signos da sensibilidade, por meio de que tesouros da memria, sob tores determinadas pelas singularidades de que Idia ser o pensamento suscitado? [DR, 215; 1 ed. 270 e 2 ed. 237]. O terceiro ponto radicaliza os dois primeiros em pelo menos trs aspectos: primeiro, a experincia do aprendizado, nesse ponto, no apenas vai alm da aquisio de saber, como avana na apreenso da complexa atividade de pensar; em segundo lugar, esse ponto deixa explcito que pensar no se reduz ao um modelo soluciontico do saber, mas diz respeito a uma atividade a que somos forados pela premncia de problemas, pela nossa insero em campos problemticos; em terceiro lugar, esse ponto politiza nossa prpria insero em campos problemticos ao estabelecer que continuamos escravos enquanto no dispusermos dos prprios problemas, de uma participao nos problemas, de um direito aos problemas, de uma gesto dos problemas. Gostaria de acrescentar algo mais a respeito desse terceiro ponto, algo que o conecte fortemente aos dois outros. Trata-se da relao entre os problemas e os signos. Para Deleuze, os signos do problema. Eles abrem nossa sensibilidade aos campos problemticos em que vivemos. Esses campos implicam distintos cruzamentos de linhas que no param de se esboar anarquicamente a cada pulsao do caos, isto , a cada pulsao das variabilidades infinitas cuja desapario e apario coincidem, posto que tomadas por velocidades infinitas [...] sem natureza nem pensamento, como dizem Deleuze e Guattari ao tratarem do caos ao crebro na concluso de O que a filosofia? [QPh?: 189; 259]. Pois bem, preciso pensar essas variabilidades do caos, essas variabilidades rebeldes ao dualismo natureza e pensamento, preciso pens-las como potencializadoras do prprio do signo, como algo que nele insufla aquela poro que nele insiste, embora no seja dada percepo imediata, justamente a poro que violenta a sensibilidade e desencadeia o acordo discordante das faculdades e, portanto, o ato de pensar no pensamento. A idia deleuzeana de aprendizado implica essa zona movedia entre o caos e o pensamento. Os leitores de O que a filosofia? lembram-se que as trs grandes frentes de

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combate entre o caos e o pensamento so, sem qualquer superioridade de uma em relao s outras, as seguintes: a filosofia, onde pensar pensar por conceitos cujos seres so variaes; a cincia, onde pensar pensar por funes cujos seres so variveis; e a arte, onde pensar pensar por sensaes cujos seres so variedades [QPh?: 166; 227]. Esses combates so permanentes, pois a catica das variabilidades inesgotvel. Mas o caos o inimigo aliado do pensamento que o enfrenta. Por qu? Porque os encontros intensivos entre ambos que restauram a possibilidade da criao, a possibilidade do novo em cada uma dessas frentes. Para Deleuze, essas trs frentes, esses trs pensamentos se cruzam, se entrelaam, mas sem sntese nem identificao. H pontos culminantes nesse cruzamento de pensamentos, de modo que pode haver conceito de funo ou de sensao, assim como pode haver funo de sensao ou de conceito e mesmo sensao de conceito ou de funo. Esses pontos culminantes dos cruzamentos permitem acolher a idia do pensamento como heterognese, dado que cada elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogneos, que restam por criar sobre outros planos. Contudo essa prpria fecundidade das ressonncias mtuas atestadas por esses pontos culminantes comporta dois perigos extremos, segundo os autores: ou reconduzir-nos opinio da qual queramos sair, ou nos precipitar no caos que queramos enfrentar [QPh?, 187-188; 255]. Poderamos, talvez abusivamente, acrescentar entre esses dois perigos um terceiro muito usual no prprio ensino: aquele que consiste em evitar o confronto com a variabilidade catica atravs da acomodao do corpo e/ou do esprito a modelos de vida, a modelos de conduta, a modelos conceituais, a modelos cientficos, a modelos estticos e assim por diante. Pois bem, o texto de Zourabichvili, que aqui estou homenageando, estaria sendo vtima desse perigo da modelagem ao projetar a experincia do aprendizado como modelo de toda experincia? notvel o emprego dessa palavra que nos arrepia: modelo. Tanto Zourabichvili quanto estudiosos dessa filosofia da diferena sabem que a mais exemplar rebeldia acaba por virar modelo de rebeldia disciplinada, como a que consiste em vestir camisetas com rostos de revolucionrios falecidos ou a que consiste em imitar os autores que nos incitam a pensar. claro que Deleuze e Guattari conhecem o quanto lamentvel a reduo de consistentes criaes a estado de modelos fixos: o pior, dizem eles em Mil plats, est na maneira como os prprios textos de Kleist, de Artaud, acabam eles mesmos transformados em monumento, e inspiram um modelo a ser recopiado [...], para todas as gagueiras artificiais e os inmeros decalques que pretendem equivaler-se a eles5. E desde o primeiro plat, eles alertam o leitor e dizem que um rizoma no pode ser justificado por modelo algum estrutural ou gerativo6. Ao5

Gilles Deleuze e Flix Guattari, Mille plateaux, Paris, Minuit, 1980, 469. Mil plats, Plat 12. Trad. br. De Peter Pl Pelbart, So Paulo, Ed. 34, Vol. IV, p. 48-49..6

G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux, ob. cit. p.. 19. Plat 1. Trad. br. de Aurlio Guerra Neto, Rio de Janeiro, 1995, p. 21.

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mesmo tempo, entretanto, a prpria palavra rizoma ligada palavra modelo nesse mesmo livro. Com efeito, como sabido, eles falam em modelo rizomtico que se ope sob todos os aspectos ao modelo ocidental da rvore?7. Mas preciso levar em conta o seguinte: embora empreguem exausto a palavra modelo colada palavra rizoma, os autores fazem uma distino que mostra no estarem ocupados em estabelecer uma oposio dualista entre dois modelos, o rizomtico, inspirador de uma cartografia capaz de dedicar-se a imanentes mapas movedios [MP, orig. 29; tr. br. 30], e o modelo arborescente, operador de decalques transcendentes. Como evitar permanecer numa oposio dualista? preciso distinguir de maneira movedia essa coisa: o que se tem, ao mesmo tempo, um modelo que no pra de se erigir e de se entranhar, e o processo que no pra de se alongar, de romper-se e de retomar. Eis como eles explicitam o uso que fazem de um dualismo que eles chamam de inimigo necessrio: servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa todo modelo. necessrio cada vez corretores cerebrais que desfaam os dualismos que no quisemos fazer e pelos quais passamos. Chegar frmula mgica que buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO, passando por todos os dualismos que constituem o inimigo necessrio, o mvel que no paramos de deslocar [MP, 31; 31-32]. A idia de processo, empregada nessa passagem para distinguir rizoma e modelo, parece operar, ao mesmo tempo, como ligao entre rizoma e o conceito de desejo como processo, conceito desenvolvido em O anti-dipo. Em que consiste, precisamente, esse processo? Ao destacarmos a resposta dos autores, veremos o quanto a noo de desejo como conectividade intempestiva, como potncia do meio, est a implicada: um rizoma, dizem Deleuze e Guattari, no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A rvore filiao, mas o rizoma aliana, unicamente aliana. A rvore impe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjuno e... e... e... H nesta conjuno fora suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Essa fora conectiva intensifica o prprio meio, de modo que este j no uma mdia, como dizem os autores, mas, ao contrrio, o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas no designa uma correlao localizvel que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direo perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem incio nem fim, que ri suas duas margens e adquire velocidade no meio [MP, 36; 37]. Como funcionaria esse idia de meio vibratrio entre caos e pensamento? Meu plano era encerrar esta palestra com essa pergunta, deixando claro que se trata de uma pesquisa em andamento interessada, por exemplo, nesta instigante afirmao dos autores: do caos nascem os Meios e os Ritmos [MP: 384; IV, 118]. Mas, abusando da pacincia de todos, essa mesma

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Deleuze e Guattari, Mille plateaux, ob. cit., p. 28. Plat 1, tr. br. cit., p. 29.

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pergunta obriga-me a concluir a palestra lendo para vocs uma passagem belssima de Mil plats, que uma lio de confronto enriquecedor com a variabilidade catica: I. Uma criana no escuro, tomada de medo, tranqiliza-se cantarolando. Ela anda, ela pra, ao sabor de sua cano. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua canozinha. Esta como o esboo de um centro estvel e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criana salte ao mesmo tempo em que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a prpria cano j um salto: a cano salta do caos a um comeo de ordem no caos, ela arrisca tambm deslocar-se a cada instante. H sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu. II. Agora, ao contrrio, estamos em casa. Mas o em-casa no preexiste: foi preciso traar um crculo em torno do centro frgil e incerto, organizar um espao limitado. Muitos componentes bem diversos intervm, referncias e marcas de toda espcie. Isso j era verdade no caso precedente. Mas agora so componentes para a organizao de um espao, e no mais para a determinao momentnea de um centro. Eis que as foras do caos so mantidas no exterior tanto quanto possvel, e o espao interior protege as foras germinativas de uma tarefa a ser cumprida, de uma obra a ser feita. H toda uma atividade de seleo a, de eliminao, de extrao, para que as foras ntimas terrestres, as foras interiores da terra, no sejam submersas, para que elas possam resistir, ou at tomar algo emprestado do caos atravs do filtro ou do crivo do espao traado. Ora, os componentes vocais, sonoros, so muito importantes: um muro do som, em todo caso um muro do qual alguns tijolos so sonoros. Uma criana cantarola para arregimentar em si as foras do trabalho escolar a ser feito. Uma dona de casa cantarola, ou liga o rdio, ao mesmo tempo que erige as foras anti-caos de seus afazeres. Os aparelhos de rdio ou de tev so como um muro sonoro para cada lar, e marcam territrios (o vizinho protesta quando est muito alto). Para obras sublimes como a fundao de uma cidade, ou a fabricao de um Golem, traa-se um crculo, mas sobretudo anda-se em torno do crculo, como numa roda de criana, e combina-se consoantes e vogais ritmadas que correspondem s foras interiores da criao como s partes diferenciadas de um organismo. Um erro de velocidade, de ritmo ou de harmonia seria catastrfico, pois destruiria o criador e a criao, trazendo de volta as foras do caos. III. Agora, enfim, entreabrimos o crculo, ns o abrimos, deixamos algum entrar, chamamos algum, ou ento ns mesmos vamos para fora, nos lanamos. No abrimos o crculo do lado onde vm acumular-se as antigas foras do caos, mas numa outra regio, criada pelo prprio crculo. Como se o prprio crculo tendesse a abrir-se para um futuro, em funo das foras em obra que ele abriga. E dessa vez para ir ao encontro de foras do futuro, foras csmicas. Lanamo-nos, arriscamos uma improvisao. Mas improvisar ir ao encontro do Mundo, ou confundir-se com ele. Samos de casa no fio de uma canozinha. Nas linhas

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motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criana, enxertam-se ou se pem a germinar "linhas de errncia", com volteios, ns, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes. [MP, 382-383; IV, 116-117] [Nota 1 dos autores:1

Cf. Fernand

Deligny, " Voix et voir", Cahiers de limmuable: a maneira pela qual uma "linha de errncia", nas crianas autistas, separa-se de um trajeto costumeiro, pe-se a "vibrar", "estremecer", "dar guinadas"...] Como concentrar essa passagem to bela em alguns poucos conceitos? Eis como nossos autores fazem isso:Ora se vai do caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do agenciamento territorial, em direo a outros agenciamentos, ou ainda a outro lugar: interagenciamento, componentes de passagem ou at de fuga. E os trs juntos. Foras do caos, foras terrestres, foras csmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo [MP, 384; IV, 118].

Eles tm o direito de praticar essa consistente conciso, claro. Mas, ns, o que perderamos se a transformssemos num modelo esquecido da criana que canta na passagem anterior?

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