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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    ARRANJOS DE MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA E SUA INSERO NO REPERTRIO DE COROS AMADORES

    RENATE STEPHANES SOBOLL

    ORIENTADOR

    Prof. Dr. NGELO DE OLIVEIRA DIAS

    GOINIA 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    ARRANJOS DE MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA E SUA INSERO NO REPERTRIO DE COROS AMADORES

    RENATE STEPHANES SOBOLL

    Trabalho final (produo artstica e artigo) apresentado ao Curso de Mestrado em Msica da Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois, como requisito para a obteno do ttulo de Mestre em Msica. rea de concentrao: Msica, Criao e Expresso. Linha de Pesquisa: Performance Musical e suas Interfaces. Orientador: Prof. Dr. ngelo Dias.

    GOINIA 2007

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (GPT/BC/UFG)

    Soboll, Renate Stephanes . S677a Arranjos de msica regional do serto caipira e sua insero no repertrio de coros amadores / Re- nate Stephanes Soboll. Goinia, 2007. 124f. : il.

    Orientador: ngelo de Oliveira Dias.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Gois, Escola de Msica e Artes Cnicas, 2007.

    Bibliografia: f.87-90. Inclui anexos partituras.

    1. Msica sertaneja Arranjos (Msica) - Brasil 2. Canto coral Arranjos (Msica) 3. Coros ( Msi- ca) - Amadores I. Dias, ngelo de Oliveira II. Uni- versidade Federal de Gois, Escola de Msica e Ar- tes Cnicas III. Titulo.

    CDU: 78.088(81)

  • Quanto mais o homem voltar-se para as suas razes, mais seu canto torna-se- universal.

    Heitor Villa-Lobos

  • AGRADECIMENTOS

    Aos msicos Elen Lara e Almir Pessoa, que me proporcionaram a oportunidade de juntar no meu recital de mestrado, piano, viola caipira e coro, numa orquestrao indita, tanto ousada quanto bela.

    Ao meu marido, amigo e grande amor da minha vida, Fernando, que durante uma quixotesca cavalgada em uma madrugada orvalhada, confiou em minha competncia, e instigou-me (desafiou-me) a fazer arranjos. Minha ferramenta de trabalho utilizada na realizao deste artigo.

    Ao meu filho, Felipe, que sempre esteve presente em ensaios e apresentaes dos meus corais, antes mesmo de seu nascimento.

    Ao Coral da Petrobras da Refinaria de Paulnia, meu laboratrio de pesquisa na confeco de arranjos, que me ensinou e me inspirou na arte de arranjar.

    Aos coralistas do Coral da Petrobras, representados nas pessoas Dirce, Corona, Jersino, Chapu e Iracy, grandes amigos e cantores...que saudade!

    Aos amigos Guilherme Vaz, Chiquinho Costa e Ivan Vilela, msicos excepcionais, que, de diferentes formas, me ajudaram neste mestrado.

    Profa. Dra. Glacy Antunes de Oliveira e ao meu orientador Prof. Dr. ngelo Dias por terem dado a oportunidade de formar e reger o Coral Universitrio da UFG.

    A todos os meus alunos da disciplina de Ncleo Livre Coral Universitrio da UFG que colaboraram com o meu mestrado, dando sugestes e participando da performance dos arranjos que integram este artigo e, em especial, ao Leandro Caitano, o Baiano, pela Ema Regateira.

  • SUMRIO

    RESUMO.........................................................................................................ix ABSTRACT......................................................................................................x

    PARTE A: PRODUO ARTSTICA..........................................................1 1 RECITAL ODE CAIPIRA.......................................................2 2 PROGRAMA DO RECITAL........................................................3 3 NOTAS DE PROGRAMA.............................................................4 4 ROTEIRO DE APRESENTAO................................................6

    PARTE B: ARTIGO........................................................................................8

    INTRODUO................................................................................................9

    CAPTULO 1. O MOVIMENTO MUSICAL DO SERTO CAIPIRA...14 1.1 Os Sertes do Brasil e o Serto Caipira...............................14 1.1.1 O caipira, sua cultura e a sua msica como representantes do Serto...................................................................................................16 1.1.2 Msica rural folclrica e caipira no cancioneiro regional.......18 1.1.3 Tropas, boiadas e a msica caipira...........................................20 1.1.4 Sua excelncia, a moda de viola................................................22 1.2 Sculo XX: Msica Caipira Torna-se Msica Sertaneja...........23 1.2.1 Cornlio Pires: o grande divulgador da msica caipira.............24 1.2.2 Dcadas de 40 a 70: msica sertaneja se diversifica................26 1.2.3 Msica sertaneja romntica versus msica sertaneja raiz.......29 1.2.4 A nova gerao de compositores caipiras.................................30

    CAPTULO 2. MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA BRASILEIRO....................................................................................35 2.1 Aspectos Gerais: Estilo, Regionalismo e Lingstica..............35 2.1.1 A temtica e o universo da cano regionalista.......................36 2.1.2 Regionalismo na cano...........................................................38 2.1.3 O Dialeto caipira.......................................................................41

    CAPTULO 3. AS OBRAS E OS COMPOSITORES................................45 3.1 O Batuque da Ema Regateira (recolhida)......................................45 3.2 Romaria (Renato Teixeira)...........................................................46

  • 3.3 Violeiro Triste (Alvarenga e Ranchinho).....................................47 3.4 Cheiro de Relva (Dino Franco e Jos Fortuna)............................48 3.5. Tristezas do Jeca (Angelino de Oliveira).....................................49 3.6. Saudade Brejeira (Jos Eduardo Moraes e Nasr Chaul................50 3.7. Queimadas (Xavantinho)..............................................................51 3.8 Triste Berrante (Adauto Santos)...................................................52 3.9. Arrumao (Elomar Figueira Mello)............................................53

    CAPTULO 4. A MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA DOS GRUPOS VOCAIS BRASILEIROS...............................................56 4.1 Regionalismo, Coro e Pblico....................................................56 4.2. A Arte do Arranjo Coral.............................................................59 4.3 Procedimentos Composicionais dos Arranjos..............................65

    CONCLUSO................................................................................................83

    REFERNCIAS............................................................................................87 1. Referncias Bibliogrficas.............................................................87 2. Stios na Rede................................................................................89 3. Gravaes......................................................................................90

    ANEXOS PARTITURAS...........................................................................91 1. O BATUQUE DA EMA REGATEIRA..........................................92 2. ROMARIA......................................................................................94 3. VIOLEIRO TRISTE.......................................................................96 4. CHEIRO DE RELVA...................................................................101 5. TRISTEZAS DO JECA................................................................104 6. SAUDADE BREJEIRA................................................................107 7. QUEIMADAS...............................................................................110 8. TRISTE BERRANTE...................................................................115 9. ARRUMAO.............................................................................120

  • RESUMO

    O presente artigo prope reflexes sobre o processo de elaborao de arranjos vocais de msicas regionais brasileiras, em especial a caipira, destinados a coros amadores. As composies enfocadas neste artigo e os arranjos que delas resultaram revelam um universo temtico muito especfico, aquele da cano regionalista oriunda da cultura de apenas um dos diversos sertes do Brasil: o serto caipira. Este repertrio possui carter artstico e educativo, mostrando que, por meio do levantamento das canes originais, da preparao das edies e da performance dos arranjos, possvel, a um s tempo, musicalisar e preservar as tradies scio-culturais de uma regio ou comunidade. A aplicao de tcnicas composicionais aqui discutidas oferece alternativas para que, a despeito da aparente simplicidade do resultado musical no papel, regentes e seus grupos vocais leigos possam desfrutar de um repertrio atrativo e de fcil preparao, mas de grande efeito junto ao pblico.

    Palavras Chaves: arranjo coral, canto coral, coro amador, msica regional brasileira, serto caipira.

  • ABSTRACT

    This article proposes a reflection about the repertoire sung by amateur choirs, focusing on the process of elaboration of vocal arrangements based upon Brazilian regional music, especially country-hick songs (msica caipira). The songs discussed here and their arrangements unfold a very particular thematic world, that of the music from one of Brazils various country-side cultural/geographic areas: the serto caipira (hick country side). This repertoire becomes both artistic and educational, since through the investigation, edition and performance of the arrangements it is possible, at once, to make music and preserve the social and cultural traditions of a place or community. Through the application of the compositional techniques discussed here, conductors and their amateur vocal groups will be able to enjoy an attractive repertoire, easy to prepare and quite appreciated by the public, despite its apparent simplicity when still on the page.

    Keywords: choral arrangement, choral singing, amateur choir, Brazilian regional music, serto caipira.

  • 1

    PARTE A: PRODUO ARTSTICA

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS ESCOLA DE MSICA E ARTES CNICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM MSICA Auditrio Belkiss Carneiro de Mendona Campus II UFG

    04/DEZ/2006 16:00hs

    ODE CAIPIRAODE CAIPIRAODE CAIPIRAODE CAIPIRA

    RECITAL DE MESTRADO CORAL UNIVERSITRIO EMAC/UFG

    RENATE STEPHANES SOBOLL Arranjos para Coro e Regncia

    Participaes Especiais: Almir Pessoa, viola

    Elen Lara, piano Gustavo Rolim / Rafael Henrique de Souza - berrante

    Semio Carlos Batista, Getlio C. Chartier, Edimar P. da Silva, Gustavo Vale atores

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    PROGRAMA

    1. Estrada Xavantinho estrofe recitada por Getlio Chartier e berrantes 2. Triste Berrante Adauto Santos viola e coro 3. Tristezas do Jeca Angelino de Oliveira piano, viola e coro 4. Meu Cu Xavantinho estrofe recitada por Getulio Chartier 5. Queimadas Xavantinho coro a cappella 6. Lagoa das Piaparas Ranchinho causo interpretado por Edimar da Silva 7. Violeiro Triste Alvarenga e Ranchinho coro a cappella 8. Cheiro de Relva - Dino Franco / Jos Fortuna viola e coro 9. ta Caboclo Unha de Fome annimo causo interpretado por Gustavo Vale 10. Ema Regateira - recolhida em Correntina, BA coro a cappella 11. A Stima Viola Almir Pessoa solo de viola caipira 12. Romaria Renato Teixeira viola e coro 13. Arrumao Elomar Figueira Mello narrao (Semio Batista), viola e coro. 14. Saudade Brejeira Jos Eduardo/Nasr Chaul piano e coro

    Arranjos para coro e regncia: Renate Stephanes Soboll

    Recital apresentado por Renate Stephanes Soboll ao Mestrado em Msica - Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Msica. rea de concentrao: Msica, Criao e Expresso. Linha de Pesquisa: Performance Musical e suas Interfaces. Orientador: Prof. Dr. ngelo Dias.

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    NOTAS DE PROGRAMA

    Adauto Antonio dos Santos (1940-1999) foi cantor, compositor, violonista e violeiro, sendo considerado uma das vozes mais bonitas do Brasil. Em 1962, Adauto muda-se para So Paulo, e passa a cantar na noite. Ele foi o responsvel pela introduo do violo e da viola caipira nos bares de So Paulo. Triste Berrante foi a primeira composio a marcar sua carreira. A temtica gira em torno do boi e da boiada, temtica que comeara a ser incorporada na msica caipira a partir da dcada de 1950.

    Angelino de Oliveira (1988-1964). Poeta, melodista e grande instrumentista, teve o violo como instrumento preferido. A toada Tristezas do Jeca foi um dos grandes sucessos musicais da primeira metade do sculo XX, sendo considerada como uma das composies mais importantes da msica caipira, ajudando a formar a imagem do caipira paulista. Ela reflete toda a beleza, a simplicidade, a tristeza e a poesia do povo do campo, fazendo referncia serra de Botucatu, regio de Angelino.

    Ranulfo Ramiro da Silva (1942-1999), o Xavantinho, compositor mineiro de canes bem melodiosas, comps em torno de vinte e sete msicas. Junto com o seu irmo Ramiro Sobrinho (n.1939), formou a dupla Pena Branca e Xavantinho. Considerados como os verdadeiros caipiras da segunda metade do sculo XX, mantiveram viva a msica sertaneja raiz do incio do sculo, preservando as caractersticas estilsticas e as culturais. Queimadas uma toada-cano que tem como temtica a vida do nordestino face seca.

    Alvarenga e Ranchinho formaram nos idos de 1929, uma das mais importantes duplas da histria da msica caipira. O mineiro Murilo Alvarenga (1912-1978) e o paulista Disis dos Anjos Gaia (1913-1991), mantiveram-se fiis a um estilo que, em 1978, quando a dupla se desfez, j era considerado ultrapassado. A temtica de Violeiro Triste nos remete primeira fase da msica caipira, que a representao da natureza. Atravs dela, o caipira expressa o sentimento de saudade e tristeza numa forma potica e romntica.

    Osvaldo Franco e Jos Fortuna. Osvaldo (n. 1936) tornou-se conhecido pelo pseudnimo de Dino Franco a partir do ano de 1968. excelente compositor, tendo como gnero principal a Moda de Viola. Fez grande sucesso quando formou dupla com Bi e depois com Moura. Jos Fortuna (1923-1993) foi cantor, compositor, versionista e radialista, tendo o seu apogeu nos anos 50 com verses de guarnias paraguaias. considerado como um dos melhores letristas de msica popular do Brasil. Cheiro de Relva um tributo natureza.

    Ema Regateira uma toada regional em ritmo de chula baiana. De autoria desconhecida, recolhida no municpio de Correntina (BA) por Vagner Rosafa e a equipe do Sons do Cerrado (UCG), cantada por dona Maria de Lara. Esta toada descreve um costume comum nos sculos XIX e XX no norte de Minas Gerais e o oeste da Bahia, no qual o povo catava os ovos de ema pelo cerrado para criar e depois para vender os pintos.

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    Almir Pessoa Artista popular, instrumentista de viola de dez cordas, cantor e letrista. Subiu ao palco pela primeira vez em abril de 1998 e desde ento abraou a viola como fonte de inspirao e filosofia de vida. Realiza shows por vrios estados brasileiros, tocando em aberturas de rodeio (show viola na arena) e com a sua banda em eventos populares. Autodidata, teve influncia de artistas da msica de raiz. Atualmente cursa licenciatura em msica na EMAC/UFG.

    Renato Teixeira (n.1945). Apesar de possuir formao universitria, foi o msico que iniciou a nova gerao de compositores caipiras, com a sua toada Romaria. Composta em 1975, foi somente no ano de 1977, quando foi gravada pela primeira vez por Elis Regina, que esta cano ficou conhecida e tornou-se um clssico do repertrio caipira-popular. Com o seu refro, Romaria exps novamente a figura do caipira com a sua msica, que neste perodo j estava bastante esquecida. Ela tornou-se a msica-smbolo do caipira na cidade grande.

    Elomar Figueira Mello (n.1937). Compositor de Vitria da Conquista (BA), considerado um dos maiores referenciais da produo cultural nordestina. Suas canes so bastante influenciadas pelas tradies ibrica e rabe e so basicamente modais, tendo como base formas poticas arcaicas, em dialeto que ele chama sertanez. So comuns, em sua discografia e em seus concertos, textos explicativos e um vocabulrio dos termos. Arrumao descreve a sua regio, com o rio Gavio, mostrando a vida rdua do sertanejo.

    Jos Eduardo de Moraes e Nasr Chaul. Nascido em 1954, Jos Eduardo instrumentista, arranjador, produtor e compositor goiano, e faz parte do grupo de msicos urbanos, de formao universitria, que tm um p na msica sertaneja raiz, assim como o escritor, professor universitrio e letrista Nars Chaul (n.1957). Saudade Brejeira uma toada goiana com caractersticas de cano regional, na qual os versos nos remetem a cenas da vida cotidiana do serto goiano. Na ltima estrofe, o poeta afirma seu jeito de ser triste e apaixonado, caractersticas da cano sertaneja.

    Renate Stephanes Soboll Regente, pianista e arranjadora, bacharel em regncia pela UNICAMP. Sempre atuou de modo significativo como regente de coros amadores dentro dos mbitos municipal, universitrio e empresarial. Foi fundadora dos corais da Unilever no Estado de So Paulo e esteve frente do Coral da Petrobras da Refinaria de Paulnia por 10 anos. Atualmente regente do Coral Universitrio da UFG.

    Coral Universitrio da UFG foi fundado em agosto de 2005, pertence ao programa de Ncleo Livre oferecido comunidade universitria pela EMAC/UFG. composto por alunos pertencentes aos cursos de graduao da universidade e tem a durao de dois semestres.

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    ODE CAIPIRAODE CAIPIRAODE CAIPIRAODE CAIPIRA

    ROTEIRO DE APRESENTAO

    1. Estrofe da msica Estrada de Xavantinho recitado por Getlio Chartier

    Na invernada do pensamento Escuto o vento na imensido E o berrante tocando triste Nas agonias do peo

    Ouve-se dois berrantes Gustavo Rolim/Rafael Henrique Pinto de Souza

    2. Triste Berrante - Adauto Santos viola e coro

    3. Tristezas do Jeca Angelino de Oliveira piano, viola e coro

    4. Estrofe da msica Meu Cu (ltima msica composta por Xavantinho morto em 1999) recitado por Getulio Chartier

    Noite alta vou dormir, para acordar bem cedinho Pois no perco a alvorada, e o cantar dos passarinhos Pra me desejar bom dia e coroar o meu sossego Eu recebo a visita do cuitelinho azulego

    No o cu conforme aprendi Mas se Deus achar por bem, pode me deixar aqui

    5. Queimadas Xavantinho coro a cappella

    6. Causo Lagoa das Piaparas (Ranchinho) interpretado por Edimar da Silva causo extrado do livro Contando Causos de Rolando Boldrin

    7. Violeiro Triste Alvarenga e Ranchinho coro a cappella

    8. Cheiro de Relva Dino Franco e Jos Fortuna viola e coro

    9. Causo ta Cabloco Unha de Fome interpretado por Gustavo Vale

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    causo extrado do livro Contando Causos de Rolando Boldrin

    Ns vamos cantar aqui o Batuque da Ema, a Ema Regateira. Ela faz hum, hum, hum, hum. Antes dela nascer fmea, ela quer ser mui solteira. o batuque dela!

    10. Ema Regateira (msica recolhida - Correntina, BA) coro a cappella

    11. Pacto do Violeiro (Renate) Os violeiros tradicionais acreditam que a arte da viola um dom de Deus: quem no nasceu com ele nem adianta tentar, pois nunca ser um violeiro; a no ser que faa o Pacto com o diabo, ou a Simpatia da cobra coral, ou ainda a Simpatia do cemitrio.

    Violeiro Almir conta a Simpatia do Cemitrio

    12. A Stima Viola (Solo de viola)

    13. Romaria - Renato Teixeira viola e coro

    14. Narrao sobre o significado de arrumao narrada por Semio Batista com acompanhamento de viola

    Arrumao, palavra comum no Rio Gavio, tem esse sentido: dar proteo contra danos causados pela natureza e pelos animais e pelos homens, neste caso, os ciganos que, no Universo da Caatinga, obedecem a um cdigo prprio, onde a vida e morte, o sim e o no, entrelaam-se como mosaicos de uma realidade nica. Em arrumao, existe a juno de trs fatores capazes de modificar a vida do catingueiro, levando-o arrumao do seu pequeno mundo: afinal ele tem que estar preparado, pois sua sobrevivncia depende disso: - como primeiros acontecimentos, a natureza: o forro ramiado, o cu nublado e a chegada da chuva para ento futucar a tuia para o plantio do feijo e por ltimo a colheita do ai roxo, o alho roxo de lavoura tard, isto , demorada; - a segunda, a passagem da ona sussuarana e o perigo para o chiqueiro e os bodes, que resultou com a morte de Seda Branca, bode famoso do Rio Gavio foi um truvejo com uma zagaia s, uma luta difcil com a ona usando uma nica arma: os seus chifres; - a terceira, o flagelo, mais um no serto: a subida dos ciganos beirando o rio e a possibilidade do roubo de animais, lavoura e utenslios.

    15. Arrumao Elomar Figueira Mello viola e coro

    16. Saudade Brejeira J. Eduardo Moraes / Nasr Chaul coro e piano

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    PARTE B: ARTIGO

    ARRANJOS DE MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA E SUA INSERO NO REPERTRIO DE COROS AMADORES

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    INTRODUO

    O panorama do canto coral brasileiro mudou bastante nas ltimas dcadas. Houve um aumento exponencial do nmero de coros amadores no pas, tanto em mbito estatal quanto empresarial e acadmico. A maioria destes coros possui cantores que no lem msica, ou seja, so grupos vocais leigos e que, por isso, requerem especial ateno na escolha e aplicao de seu repertrio. E no que tange este repertrio, a performance de arranjos tem sido quantitativamente superior em comparao ao uso de composies originais para coro1. Por isso, fato comprovado que a escrita de arranjos se tornou uma prtica freqente e quase necessria para os regentes de coros amadores.

    H uma grande demanda de arranjos corais e grande produo nos mesmos , mas falta, tambm, um mtodo que proporcione resultados mais eficazes. Muitas vezes, encontra-se at certo descaso em relao escrita do arranjo vocal, em especial naqueles destinadas aos coros realmente iniciantes. O que existe, ainda, uma carncia na variao da produo de arranjos de msica brasileira e uma falta de eficincia no processo composicional na confeco destes arranjos. Pereira (2006) escreve:

    O que ocorre na maioria dos casos a necessidade de escrever um arranjo que se ajuste bem quele coral em particular, quer seja pela formao do grupo, por uma exigncia do repertrio ou mesmo por um desejo dos cantores. Se h falta de repertrio, falta tambm quem escreva arranjos de boa qualidade para diferentes formaes (para 3, 4 ou 5 vozes, coros femininos, masculinos, etc.), organizados em diferentes graus de dificuldade e que este repertrio esteja sendo constantemente renovado (p.2).

    Faz-se estratgia indispensvel, a criao de um paradigma eficiente e de qualidade na elaborao do repertrio coral para cantores no-msicos, pois os mesmos dependem fundamentalmente da memorizao meldica de suas partes individuais, j que no possuem a formao musical que lhes permitiria um aprendizado mais rpido e seguro. Segundo Schmeling (2003), um arranjo de msica para coro amador deve ser de fcil aprendizagem, com ritmo marcante, com texto de fcil apreenso e de rpida compreenso harmnica e meldica. J que a maioria absoluta dos cantores destes coros brasileiros no l msica, o aprendizado musical ocorre atravs da mmica meldica, com a reproduo,

    1 Estes dados puderam ser apurados ao longo dos anos de prtica no universo da msica coral brasileira, por

    meio da participao sistemtica em encontros de coros com grupos oriundos de todo o pas debates e colquios com colegas regentes e troca de material entre grupos, esta ltima uma constante em meio coral.

  • 10

    pelo regente ou ensaiador de naipes, das frases musicais de cada uma das vozes, no que so imitados pelos cantores.

    Freqentemente, durante seu trabalho quotidiano, o regente se depara com arranjos a cappella nos quais um dos naipes acaba sendo sacrificado, obrigando-o a executar uma linha meldica que, apesar de sua simplicidade e funcionalidade, pode ser pouco musical, um tapa-buraco que apenas secunda a melodia principal, quase sempre no soprano. Esta caracterstica pode tornar a parte desinteressante e, por isso, de difcil aprendizagem, numa aparente simplicidade pode estar, por exemplo, tanto no uso excessivo de notas curtas repetidas quanto no emprego excessivo daquelas de longa durao (pedais). Ao contrrio do que ocorre em circunstncias semelhantes na msica instrumental, este tipo de facilitao pode tornar-se muito difcil de ser cantada numa pea vocal. Da mesma forma, a ocorrncia de uma infinidade de fonemas como tum, tum, tum ou ba-da-u, quando usadas em excesso, tambm podem desmotivar o aprendizado da msica pelo corista. No naipe de baixos estas slabas neutras ainda podem vir associadas a melodias com difceis seqncias de intervalos meldicos baseados na simples seqncia de fundamentais da harmonizao escolhida, mas elaboradas sem uma coerncia musical que facilite o aprendizado e desperte no corista o interesse e o prazer ao cantar. Como conseqncia, o rendimento dos ensaios pode ser baixo, dificultando, assim, uma preparao mais rpida e eficiente do repertrio.

    Como, na maioria dos casos, a melodia principal est total ou preponderantemente concentrada em um nico naipe, em geral o soprano, preciso tentar ao confeccionar o arranjo, amenizar a frustrao dos naipes que no a carregam. Isto pode ser feito passando-se alternadamente a melodia pelas outras vozes, mas fundamental que, mesmo quando isso no seja possvel, ainda assim o cantor goste do que est cantando, independentemente de estar ou no com a melodia principal.

    Atualmente os grupos vocais amadores incluem, com freqncia, em seus repertrios, arranjos de msica brasileira. Incluem-se, dentre estes arranjos, a msica folclrica, a regional e a MPB. Esta unio entre o canto coral e a msica brasileira tem contribudo para o processo de construo da cultura e da identidade nacionais, tornando a atividade uma das manifestaes artsticas que mais favorecem a divulgao e a valorizao de uma arte scio-cultural, especialmente no que se refere msica regional.

  • 11

    As composies enfocadas neste artigo e os arranjos que delas resultaram revelam um universo cultural muito especfico, o da cano regionalista oriunda da cultura de um dos sertes brasileiros: o serto caipira. Estas canes possuem um carter educativo, mostrando que a aplicao deste tipo de repertrio, por meio da atividade do canto coral, pode ser usada como ferramenta para a educao musical e cultural. Na dissertao de Souza (2003), ela conclui:

    A atividade coral pode ser uma forma de realizar o processo em busca da humanizao, por ser uma atividade que possibilita aos cantores a criao, a construo de uma expressividade que no atenda aos critrios que o mundo massificado pretende impor. Ao entrar em contato com a msica nos ensaios, os participantes podem recriar o objeto artstico e, desta forma, apropriarem-se dele, estabelecendo uma identificao (p.38).

    Conhecida por poucos, a histria da msica regional e caipira no Brasil foi de grande relevncia na formao da nossa msica, tanto a erudita quanto popular e de seus respectivos compositores no emprego da temtica rural e na manipulao do discurso musical. Dentro do contexto da msica popular brasileira, a msica caipira teve a sua histria acontecendo paralelamente histria dos demais gneros, como, por exemplo, o samba. A partir da dcada de 1930, uma das mais ricas musicalmente dentro do cancioneiro popular, a msica brasileira de diversos gneros ganhou as programaes de rdio e disco. quela poca, o samba carioca, que mais tarde se imporia como smbolo da identidade musical do brasileiro, dividia espao com a msica regional e caipira. A cultura elitizada dos centros litorneos no se imps no serto. Nas rdios, tocavam-se valsas, modinhas, maxixes, alm de gneros estrangeiros, mas conjuntos de tradio sertaneja, com suas toadas, cocos, emboladas, caterets e modinhas conquistavam um pblico relativamente amplo (Alencar, 2004).

    Neste artigo sero analisados nove arranjos para coro, confeccionados pela pesquisadora, e extrados do repertrio que compe o universo musical do serto caipira, englobando os seguintes estados:

    So Paulo - Tristezas do Jeca, de Angelino de Oliveira; Cheiro de Relva, de Dino Franco e Jos Fortuna; Triste Berrante, de Adauto Santos; Romaria, de Renato Teixeira;

    Minas Gerais Queimadas, de Xavantinho; Violeiro Triste, de Alvarenga e Ranchinho; Gois - Saudade Brejeira, de Jos Eduardo Moraes / Nasr Chaul

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    Oeste da Bahia Arrumao, de Elomar Figueira Mello; O Batuque da Ema Regateira, recolhida em Correntina por Vagner Rosafa e a equipe do Sons do Cerrado (UCG).

    Os arranjos utilizados neste estudo foram confeccionados, direcionados e aplicados em coros amadores, formado em sua maioria por cantores leigos, ou seja, sem formao terico-musical. Estes arranjos, ainda, foram realizados com base na experincia e no trabalho de muitos anos da pesquisadora como regente de coros amadores.

    Entretanto, como resultado final deste estudo, foi utilizado o Coral Universitrio da UFG para interpretar todos os arranjos inseridos neste artigo. Este coral faz parte das disciplinas do programa do Ncleo Livre da Universidade Federal de Gois e formado por alunos dos cursos de graduao da universidade.

    O primeiro captulo deste estudo se dedica a estabelecer algumas balizas histricas e culturais necessrias compreenso do universo a ser enfocado, designado neste estudo por serto caipira e do qual provieram os originais dos arranjos corais de msica regional inseridos neste trabalho, fixando, assim um quzAadro de referncias para o objeto de pesquisa, enquanto recorte espacial. Em outras palavras, trata-se de definir o serto caipira, destacando as especificidades de sua formao ao longo da histria, e a sua influncia na construo da identidade brasileira e na produo das msicas relacionadas a este universo.

    O captulo indica, ainda, a construo da histria da msica caipira, tambm conhecida por sertaneja raiz, a qual est diretamente ligada ao mundo do serto e que to relegada, at mesmo esquecida no contexto histrico da msica popular no Brasil. O serto o locus de uma produo cultural significativa, que, sobretudo no sculo XX, acabou por conquistar espao prprio na histria da msica popular brasileira com o regionalismo. O tema do serto o leitmotiv que perpassa tudo (Alencar, 2004, p. 24).

    O segundo captulo apresenta as caractersticas musicais e morfolgicas que envolvem a msica regional, dando autenticidade e afirmao importncia da cano sertaneja. Este captulo aborda, ainda, a preocupao que os arranjadores e regentes devem ter em relao pesquisa deste repertrio.

    O terceiro captulo apresenta os aspectos gerais das obras e dos compositores das msicas trabalhadas neste artigo. feita uma anlise contextual, com comentrios sobre a msica, gnero, estilo, letra, temtica, perodo histrico da msica, gravaes e uma viso biogrfica panormica do compositor e do letrista (quando necessrio).

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    O quarto captulo discute a importncia da insero da msica regional no cnone dos corais amadores brasileiros, dedicando-se em seguida, anlise comentada dos arranjos selecionados. So abordados os procedimentos composicionais com a demonstrao do processo criativo de cada um, bem como as tcnicas neles aplicadas. feita uma breve discusso sobre a harmonia, conduo meldica e justificativa do ritmo empregado, tornando-o o mais prximo possvel da realidade e das caractersticas regionais que a cano original representa. Alm disso, feita uma demonstrao dos processos composicionais utilizados e a conduo das vozes que os caracterizam como arranjos ideais para coro leigo.

    O repertrio escolhido faz uma abordagem representativa de: temtica ligada diretamente ao serto (Queimadas, Arrumao); temtica ligada ao serto pastoril, contendo temas de boi e boiada (Triste Berrante); temticas das regies citadas (MG, BA, SP e GO); uma toada oriunda do centro irradiador da msica caipira e uma das primeiras composies de sucesso do incio do sculo XX (Tristezas do Jeca); uma toada da dcada de 1930, composta por uma das principais duplas representativas da msica caipira Alvarenga e Ranchinho; duas canes representantes da retomada da msica caipira e regional no cancioneiro popular brasileiro durante a dcada 1970 (Romaria e Arrumao); e uma msica regional baiana recolhida na cidade de Correntina (O Batuque da Ema Regateira).

    Na concluso, todos os dados referentes ao repertrio, confeco dos arranjos e sua aplicao nos coros sero cruzados e analisados em busca de paradigmas que auxiliem futuros arranjadores e regentes na tarefa de pesquisa e produo de um repertrio que busque a valorizao e preservao da msica regional brasileira e a integrao social por meio do canto coral.

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    CAPTULO 1 O MOVIMENTO MUSICAL DO SERTO CAIPIRA

    1.1 OS SERTES DO BRASIL E O SERTO CAIPIRA

    (...) de pomta a pomta he toda a praya parma mujto cha e mujto fremosa. Pelo sartao nos pareceu do mar mujto grande. (trecho da carta de Pero Vaz de Caminha 01/mai/1500)

    Serto: sendo to conhecido e enraizado dentro da nossa cultura, o termo est inserido e preservado no imaginrio e na vivncia concreta dos brasileiros. Submetendo-se aos mais diferentes significados, a palavra serto faz parte do vocabulrio das msicas rurais (regionais e sertaneja) e da literatura, servindo para designar as diversas reas geogrficas dos brasis, como o serto nordestino, o serto baiano, o serto das minas gerais, o serto caipira e assim por diante. O termo ainda usado para falar do homem sertanejo, com a sua prpria linguagem dialetal e com a sua prpria riqueza cultural. Destitudo de toda territorialidade e temporalidade, o serto se reproduz no imaginrio da comunidade nacional e na identidade individual e coletiva brasileira. Alencar (2004) escreve sobre a categoria serto:

    A categoria serto est profundamente arraigada na cultura brasileira, seja no senso comum, seja no pensamento social e na literatura ou ainda no imaginrio do povo. Ao mesmo tempo referncia espacial e mtica, serto tem se constitudo em categoria essencial para se pensar o Brasil-Nao (p.26).

    No Brasil, desde o perodo colonial, o termo serto tem sido empregado para fazer referncia s mais diversas reas. Segundo Alencar (2004), o enunciado do serto depende do locus de onde fala o enunciante. Assim, serto podia se referir, a partir deste perodo e at hoje, a reas to distintas e imprecisas como o interior de So Paulo, da Bahia, a regio amaznica, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, alm do serto nordestino, onde s vezes quase identificado com a noo de Nordeste.

    A gerao de 18702, da qual fizeram parte intelectuais como Silvio Romero, Euclides da Cunha, Jos de Alencar e Afonso Arinos, entre tantos outros, comearam neste

    2 A chamada gerao de 1870 representou uma mudana de orientao no Brasil, por ter sido a responsvel

    pela introduo dos debates sobre as novas questes sociais emergentes, como a Abolio e a Repblica. Foi ainda essa gerao a responsvel pela disseminao das idias positivistas e evolucionistas no Brasil,

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    perodo a re-significar a categoria serto como explicativa da nao em processo de constituio (Alencar, 2004). O pas, a partir de ento, assiste a dois movimentos concomitantes: a tentativa de elaborao de uma teoria sobre a sociedade brasileira e o processo de formao de uma intelligentsia3 nacional. Segundo Lima (1998), serto e litoral surgem no pensamento social brasileiro como imagens de grande fora simblica, que expressam os contrastes e, no limite, o antagonismo de distintas formas de organizao social e cultural. A oposio litoral-serto, dividindo em duas a nao brasileira, fez surgir ao longo dos sculos uma produo intelectual que, expressando a preocupao com a construo da nao unificada, procurava, por intermdio da re-significao do serto, superar esta dicotomia.

    Construir a nao brasileira significava, para autores como Euclides da Cunha, civilizar o serto, nacionalizar o litoral: Os Sertes, de 1902, considerado o marco inicial do pensamento social sobre os sertes brasileiros. Madeira e Veloso escrevem:

    Os Sertes, obra sociolgica e literria, uma das narrativas fundadoras mais fortes sobre o Brasil, uma das obras mais eruditas da literatura de lngua portuguesa, deixando-nos, desse momento da histria, imagens e alegorias que marcaram para sempre nossa memria e nossa cultura (p.87).

    A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o resultado de um desejo coletivo de tornar visveis as novas idias que inquietavam a intellingentsia brasileira, no qual os intelectuais propunham um programa ligando a modernidade construo da identidade nacional. Foram os musiclogos ligados ao movimento modernista, como Mrio de Andrade e Renato Almeida, que deram grande impulso busca do que consideravam as autnticas razes da msica nacional. Para eles, o nacional no se encontrava nas grandes cidades, mas no interior do pas, no mundo rural, no folclore, embora os ritmos urbanos no tenham sido completamente excludos do projeto modernista.

    Com base nesta viso, na dcada de 1930 a msica caipira representou o serto, reinventando assim a noo de ruralidade. neste momento que ela comea tambm a ser designada de msica sertaneja. Para Pimentel (1997), a msica caipira se destaca e se

    idias que forneceram a base para os debates intelectuais da poca, sobre raa e meio geogrfica. (Veloso e Madeira, 1999, p. 59). 3 Entende-se por intelligentsia como o grupo responsvel pela formulao de idias e representaes acerca da

    vida social. No Brasil, a formao de uma intelligentsia pautou-se por uma verdadeira obsesso com a idia de se pensar sobre a nao. Geraes de intelectuais, escritores e artistas empenharam-se na criao de narrativas e imagens que pudessem contribuir para delimitar uma fisionomia cultural singular, definidora de uma identidade nacional brasileira (Veloso e Madeira, 1999, p.47-48).

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    separa da msica popular brasileira para se constituir num movimento musical com caractersticas prprias:

    Criada a partir daquilo que um grupo de compositores e cantores (nativos das regies paulistas e mineiras comumente identificadas com a cultura caipira) considerava os critrios mais adequados para se marcar a autenticidade musical, as composies desse momento tero como referncia o ciclo do cotidiano do caipira, isto , sua vida domstica, sua pequena atividade produtiva voltada para a agricultura de subsistncia, suas prticas mgico-religiosas, seus ritmos e instrumentos musicais, etc (p.18-19).

    1.1.1 O caipira, sua cultura e a sua msica como representantes do Serto

    Desde os fins do sculo XVI, chama-se o mestio de branco com ndia de caboclo (ca-boc, em Tupi, procedente do mato, conhecido como caboclo). Somente no incio do sculo XX a palavra caipira foi totalmente incorporada, designando o caboclo. Tambm de origem Tupi, a palavra caipira surgiu durante o perodo colonial e foi o resultado da contrao de caa (mato) com pir (que corta), significando, no idioma portugus, cortador de mato (Nepomunceno, 1999). Esta denominao foi dada por conveno ao caboclo, que se concentrou nas regies centro-oeste, sudeste e sul do pas.

    No livro Parceiros do Rio Bonito, um clssico, de Antonio Candido (2001), considerado um trabalho pioneiro e de fundamental importncia para a compreenso do mundo caipira, o autor refere-se cultura rstica como um tipo social e cultural, indicando o que , no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo, sobretudo do ajustamento do colonizador portugus ao mundo novo e as modificaes de seus traos culturais em virtude do seu contato com o ndio. Sobre a compreenso da categoria caboclo e caipira, escreve:

    No caso brasileiro, rstico se traduz praticamente por caboclo no uso dos estudiosos, tendo provavelmente sido Emlio Willems o primeiro a utilizar de modo coerente a expresso cultura cabocla; e, com efeito aquele termo exprime as modalidades tnicas e culturais do referido contacto do portugus com o novo meio. Entretanto, no presente trabalho o termo caboclo utilizado apenas no primeiro sentido, designando mestio prximo ou remoto de branco com ndio, que em So Paulo forma talvez a maioria da populao tradicional. Para designar os aspectos culturais, usa-se aqui caipira, que tem a vantagem de no ser ambguo (exprimindo desde sempre um modo-de-ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial), e a desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso inveterado, rea de influncia histrica paulista. [...] Cornlio Pires descreve, em um dos seus livros, o caipira branco, o caipira caboclo, o caipira preto, o caipira mulato. a maneira justa de usar os termos, inclusive

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    porque sugere a acentuada incorporao dos diversos tipos tnicos ao universo da cultura rstica de So Paulo processo a que se poderia chamar acaipiramento, ou acaipirao, e que os integrou de fato num conjunto homogneo (p. 28).

    Apesar de Cndido se restringir, neste livro, ao estudo de um pequeno municpio do estado de So Paulo, podemos considerar que a rea que engloba a cultura caipira no se limita apenas ao territrio paulista, como j foi visto. Em seu livro, ele mostra, a partir dos processos histricos e sociais da colonizao do sudeste brasileiro, a formao de uma cultura caipira, fruto inicialmente da miscigenao do branco portugus com o indgena brasileiro. Esta cultura posteriormente incorporou alguns elementos da cultura africana presentes no centro-sul do pas.

    De forma geral, so designados de caipira os vrios ritmos e formas musicais tidos como puros, de origem rural, tocada com instrumentos acsticos, tendo como base a viola4 e geralmente marcados pelas vocalizaes em teras/sextas. A msica caipira versa sobre a vida no campo, histrias de bichos, fbulas, episdios, crenas e choques de culturas. Dentro deste universo musical caipira encontramos os caterets, as modas de violas, as toadas e a folia de reis, entre outros.

    Mrio de Andrade no Ensaio sobre a Msica Brasileira (2006, 4 ed.) menciona que a msica brasileira provm de fontes estranhas na sua formao: a amerndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem maior; a portuguesa em porcentagem vasta. Sobre esta grande influncia, Alvarenga (1950) escreve:

    Visto que foi pela colonizao portuguesa que o Brasil comeou a existir como nao e foi governado durante mais de trs sculos por Portugal; visto que as duas outras raas que mais concorreram para a formao do homem brasileiro sofreram o predomnio e a influncia do homem branco, natural que coubesse ao portugus a parte preponderante na constituio da nossa msica. De fato, no s herdamos formas e peculiaridades estruturais da msica portuguesa, cantos tradicionais de Portugal, textos poticos (principalmente a maioria das quadras, forma predominante da lrica brasileira), danas, danas dramticas integrais ou o ncleo de vrias delas, como atravs de Portugal recebemos da Europa a prpria base da nossa msica: o sistema harmnico-tonal, a melodia quadrada. E tambm todos os instrumentos produtores de som e no apenas de rudos ritmados, como os dos amerndios e do negro, entre os quais se salientam por mais constantes na nossa msica instrumental, acompanhante ou pura, o violo, a viola, os

    4 Vinda de Portugal, a viola foi usada pelos jesutas para a catequese dos ndios. Misturando melodias

    portuguesas com as dos ndios, crenas crists s danas pags, surgiram ritmos e gneros como o cururu e o cateret.

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    cavaquinhos, o violino, o violoncelo, a sanfona, a flauta, a clarineta, o oficleide, o piano (p. 25).

    Dentre os instrumentos musicais acima citados, alguns influenciaram a msica popular brasileira: a viola, o violo e a sanfona5. Estes trs foram a base da msica regional brasileira, tendo a viola como principal instrumento formador da msica caipira. A viola e a msica caipira se tornaram to associadas que impossvel se falar de uma sem falar da outra. Foi de suma importncia a participao desses instrumentos musicais portugueses na criao da msica rural brasileira.

    Para Vilela (2003), ainda sob um recorte musical, pode-se perceber a ausncia de sncopes nos ritmos caipiras. Quase todos eles so sempre subdivididos por dois tempos, no dando muita margem para deslocamentos do tempo forte; contrrio ao samba, ao batuque e outros ritmos que tiveram notadamente a forte presena da cultura africana. Por isso, para ele, a contribuio do negro para a formao de alguns gneros da msica caipira no foi to expressiva como a das duas outras etnias (portuguesa e indgena).

    1.1.2 Msica rural, folclrica e caipira no cancioneiro regional

    A msica rural no Brasil, seja na forma de rituais ou como msica folclrica e regional, muito vasta e rica, e abrange uma grande extenso territorial. Ela exerce diversos papis e , por vezes, um elemento amenizador nas relaes e aproximador das pessoas. Essa diversidade cultural d a cada regio do Brasil configuraes prprias, portando-se como elemento mediador nas relaes das comunidades rurais.

    At meados do sculo XIX, os cantos ou cantigas populares eram entendidos pelos estudiosos portugueses como gneros das populaes do campo (Tinhoro, 2001). Na realidade existiam dois tipos de msicas tpicas do povo (populares), por fora da dualidade de universos culturais: a da gente do mundo rural, constituindo-se em manifestaes coletivas, e a da cidade, exemplificada nas canes a solo (sujeitas s regras do individualismo burgus). Para Almeida (1958), o canto popular pode ser a pura criao coletiva do povo ou uma adaptao feita por elementos culturais e eruditos.

    5 A sanfona teve maior influncia e participao na msica sertaneja nordestina, enquanto a viola predominou

    nas regies Centro-Oeste, Sudeste e Sul do pas.

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    O termo folclore um tipo especfico de fato social e cultural (os aspectos sociais, econmicos, religiosos e ldicos se entrelaam nas manifestaes folclricas) que diz respeito s comunidades ou grupos de pequena extenso demogrfica. Em especial no Brasil, a msica folclrica est sempre sujeita a diferenas regionais. O fato folclrico traz algumas caractersticas importantes, entre elas a de reforar ou fortalecer a identidade e personalidade dos pequenos grupos. Ser tradicional um trao marcante do fato folclrico, compreendendo-se por tradio a transmisso oral ou atravs de exemplos, por longos espaos de tempo, de doutrinas, lendas e costumes (Vilela, 2003). O folclore no imvel. Ele pode existir de modo pequeno ou grande em diferentes momentos e situaes e com diferentes significados culturais.

    A musicalidade do caipira se faz presente em cantos de trabalho e no desenvolvimento de ritmos e danas, como cateret (catira), recortado e pagode6, sendo alguns deles de origem marcadamente indgena. Quando os portugueses e negros deram origem a outras manifestaes musicais oriundas de suas prprias culturas, j existiam por aqui gneros resultantes do cruzamento cultural portugus-ndio.

    O primeiro relato de uma manifestao artstica de cunho nacional e, por que no, nativista, data da chegada dos jesutas ao Brasil em meados do sculo XVI, que vieram com o real intuito de trazer a f crist ao povo nativo. Dentre os pioneiros, um em especial se destaca no processo da catequese, Padre Jos de Anchieta, que desembarcou na Bahia em 1553. Anchieta, percebendo que a msica representava, para o povo indgena, o principal veculo na relao com o sagrado, incorporou-a em seu esforo de catequiz-los. Anchieta apropriou-se de danas indgenas como o Cururu e o Caateret7, para tentar convert-los ao cristianismo.

    6 O termo pagode surgiu na dcada de 1950 para denominar simultaneamente, na msica popular urbana e

    rural, qualquer reunio festiva animada por msica e dana. Na dcada seguinte, o msico Tio Carreiro inventava o pagode caipira, caracterizado pela juno de dois estilos musicais: o ritmo do coco com o calango de roda. Pagode em Braslia, de Tio Carreiro e Pardinho, tornou-se um clssico de ento chamado pagode caipira. 7 At hoje, o cateret se mantm vivo em ritos e festividades religiosas como as da Santa Cruz e de Nossa

    Senhora, nas folias em devoo aos Reis Magos (Folia de Reis) e ao Esprito Santo (Folia do Divino), nas festas e danas para So Gonalo, nos ternos de Congo e em muitas outras tradies caipiras. Em So Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso, Par e Amazonas, o cateret tambm conhecido como catira, cujos elementos rtmicos nas viola, no sapateado e no palmeado foram-lhe anexados ao longo dos anos.

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    1.1.3 Tropas, boiadas e a msica caipira

    Cruzavam tropeiros da terra, gente s e escorreita, incitando aos estalos speros dos relhos e piras compridos de trana fina, o trote leve da burrada, que se detinha por momentos a retouar a babugem das margens guizalhentas as cabeadas com carregamento de cristal de rocha, surres preciosos do bom fumo goiano, ou malotes ajoujados de sola sertaneja, para as divisas estaduanas do grande rio. (Hugo de Carvalho Ramos)

    Em fins do sculo XVII e incio do XVIII, o movimento bandeirante marcou o incio da ocupao efetiva do territrio por colonizadores vindos de toda parte, inclusive da metrpole. Esta ocupao foi efetivada pelos bandeirantes, sendo resultante no apenas da descoberta de minas de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, Mato Grosso, Gois e oeste da Bahia8, mas tambm da expanso da pecuria, por parte dos tropeiros, para o oeste das capitanias de Pernambuco - que at 1817 inclua o territrio da comarca de Alagoas - e sul do Cear e Piau. O serto comeava a ser visto de dentro. Surgiam arraiais e vilas.

    Com o descobrimento do ouro mineiro em Cataguazes, no final do sc. XVII houve a expanso das rotas de bandeirantes e depois a dos tropeiros em direo ao serto. Nas minas de ouro sobrava metal, mas faltavam comida, gado e gente. Os tropeiros entraram em cena levando todos os tipos de vveres sobre o lombo de mulas. As comitivas de tropeiros saam do Rio Grande do Sul e seguiam em direo ao serto de Minas Gerais, Gois e Mato Grosso, passando por Santa Catarina, Paran e So Paulo. Neste perodo, a rota mais importante era de Viamo (Rio Grande do Sul) at Sorocaba, no interior do estado de So Paulo. A passagem dos arrieiros por So Paulo determinou traos culturais e econmicos de muitas cidades do interior paulista (Nepomuceno, 1999).

    Uma caracterstica que marcou este perodo de viagens dos tropeiros foi a msica rural que circulava entre eles. Os aboios9, entoados por vaqueiros, acompanhavam homens

    8 O oeste baiano foi tomado como parte integrante dos sertes mineiro e goiano.

    9 O aboio um canto solo, cantado livremente e essencialmente monofnico. Geralmente so cantos silbicos,

    sem letra, embora algumas vezes cheguem a formar uma quadra, que termina com o canto de uma slaba, longa e melanclica. As melodias do aboio so livres, lentas e improvisadas, conforme a fantasia do vaqueiro, e so desprovidas de uma medida rtmica determinada. interessante notar que essas melodias so constitudas, inclusive, de intervalos meldicos de de tom. O aboio utilizado pelos vaqueiros para guiar o gado para um determinado local, por estradas, durante as comitivas e para atrair a ateno de animais que estavam escondidos. Atualmente ainda muito utilizado na regio nordeste.

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    e boiadas pelos longos caminhos do serto. Os tropeiros, que cortavam vastas regies com seus animais, levavam mais do que encomendas e cargas: levavam tambm a msica aprendida de uma regio para outra. Para eles, cantar significava a sua nica diverso e, por meio da msica, choravam as saudades e narravam causos nas modas de viola e cururus compostos no lombo do animal ou ao p do fogo (Nepomuceno, 1999). A msica divulgada por estes artistas-trovadores ampliava o repertrio popular. A chegada de uma comitiva em qualquer canto era um acontecimento, pois fazia ligao entre um povoado e outro, como escreve ainda Nepomuceno (1999):

    Vilas nasceram s margens e se desenvolveram a partir dos arranchamentos dessa gente que vencia lguas pregadas na sela, sob sol e chuva, por dias e meses, acampando em clares no mato, enfrentando corredeiras e pirambeiras, dormindo com a carabina na mo e o olho aberto por medo de cobra e ona , atacados por carrapatos e piolhos. E nessa vida estradeira no podia faltar a violinha de arame, amarrada na sela, embrulhada num pedao de pano. Cantar era a nica diverso e o combustvel moral na caminhada, os cantadores divertindo os companheiros com versos improvisados, que ficavam conhecidos nos lugares por onde passavam (p. 80).

    medida que o pas se urbanizou, as estradas de ferro expandiram suas redes, facilitando o transporte de mercadorias. Com o surgimento das estradas rodovirias, os arrieiros saram de cena. Ficaram os boiadeiros, tocando gado, berrante e viola pelas fazendas de criao e invernagem, preservando os costumes herdados dos tropeiros. Muita msica deste perodo desapareceu e muitas modas de viola acabaram ficando annimas ou obtiveram falsas autorias com o passar dos anos.

    Se os tropeiros transportaram a msica e os costumes de um lado para o outro, os agricultores plantaram fundo as razes de sua cultura, se fortalecendo especialmente nas regies mais produtivas, como as fazendas de caf paulistas, mineiras e paranaenses. Estas eram regies privilegiadas, pela riqueza e diversidade humana, pois nelas se concentraram lavradores, tropeiros, boiadeiros, negros, violeiros, aventureiros, artesos, mdicos, imigrantes estrangeiros e biscateiros.

    Por volta de 1860, o caf subiu a serra e se adaptou ao clima de Botucatu. O interior paulista tornava-se o principal produtor e exportador. Onde tinha caf, tinha emprego e moda de viola. O tringulo Botucatu-Piracicaba-Sorocaba, abrangendo outras dezenas de municpios do chamado Mdio-Tiet, tornou-se o principal centro irradiador da

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    msica caipira. Muitos artistas saram de l: Tinoco, Raul Torres, Serrinha, Z da Estrada e Angelino de Oliveira.

    1.1.4 Sua excelncia, a moda de viola

    Os violeiros tradicionais acreditam que a arte da viola um dom de Deus: quem no nasceu com ele nem adianta tentar, pois nunca ser um violeiro; a no ser que faa o Pacto com o diabo, ou a Simpatia da cobra coral, ou ainda a Simpatia do cemitrio. (Roberto Correa)

    Dos mais antigos instrumentos do Brasil, a viola, geralmente com cinco pares de cordas, foi trazida por colonizadores provenientes de vrias regies de Portugal. No mundo colonial, ela distraiu colonizadores e auxiliou missionrios na catequese dos gentios. Inicialmente, predominou como instrumento popular, mas tambm foi encontrada em salas destinadas msica dita erudita. Desde os primeiros tempos, esteve sempre ligada ao verso e dana, acompanhando danas dramticas e romances populares cantados, surgindo, desses ltimos, a moda caipira ou moda de viola e a toada.

    A expresso musical mais tpica do caipira ficou conhecida como moda de viola, sendo considerado o gnero mais fiel msica raiz. Tem como caractersticas: andamento geralmente lento; melodias que se repetem com uma estrutura que permite solos de viola; longos versos, quase falados, intercalados por refres; letras quilomtricas, contando fatos histricos e acontecimentos marcantes do caipira; e canto em duo de vozes teradas. O principal instrumento usado na moda de viola a viola de dez cordas.

    As modas de viola levavam os fatos de um lugar para outro, informando as pessoas sobre o que acontecia. Teddy Vieira foi um dos compositores representantes de moda de viola. Atualmente, os mineiros Z Mulato e Cassiano esto entre os compositores e cantadores de modas de viola.

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    1.2 SCULO XX: MSICA CAIPIRA TORNA-SE MSICA SERTANEJA

    At o incio do sculo XX, cantores e instrumentistas caipiras que executavam a sua msica nas cidades eram oriundos do interior, e sua formao musical era simples e espontnea. A maioria dominava a tcnica dos seus instrumentos na prtica, sem nenhum conhecimento terico ou estudo especializado, sendo que o estilo de suas interpretaes vocais estava diretamente ligado tradio rural.

    Na dcada de 1920, a chegada das vitrolas eltricas10, do microfone e do alto-falante marcou uma nova fase na histria da gravao e da transmisso do rdio11 no Brasil. O advento de meios tcnicos de reproduo de formas de arte levou perda da aura de que se revestiam as manifestaes artsticas no passado (Alencar, 2004). Por outro lado, os aspectos formais e estilsticos caractersticos de determinadas formas musicais passaram a ser condicionados. Muitas msicas tradicionais do interior do Brasil tiveram que ser adaptadas ao gosto do pblico citadino. Segundo Vilela (2004-2005), a msica caipira, neste perodo, teve de se transformar para poder tornar-se mercadoria palatvel. Ela perde seu carter ritual, deixa de ser uma manifestao espontnea de pequenas comunidades caipiras. As msicas longas, como as modas de viola que narravam histrias, no caberiam em apenas uma face de um disco e tiveram que ser adaptadas e redimensionadas: o tempo mdio de uma faixa (face) era de trs minutos, muito curto para as longas canes do serto. Ao serem modificadas, muito se perdeu em seu contedo e forma. Porm, um trao da msica caipira continuou a se fazer sempre presente: o uso da viola.

    Da a distino que muitos autores como Martins (1975) e Caldas (1977) fazem, enquanto fenmenos sociolgicos, da msica caipira para a chamada msica sertaneja que, quando comea a ser gravada, converte-se em mercadoria, perdendo, assim, sua funo ritual, deixando de ser uma manifestao espontnea de pequenas comunidades caipiras. Ambos os autores procuram encontrar as diferenas a partir das condies sociais sob as quais so produzidas. Martins (1975), por exemplo, defende a idia de que a msica sertaneja

    10 Os primeiros fonogramas comearam a ser vendidos no Brasil em 1897. Em 1902 o tcheco Fred Figner

    lanava os primeiros cilindros gravados no Brasil, embora fossem ainda prensados na Alemanha. No ano de 1912, a Casa dison instalava no Brasil a fbrica de discos Odeon, primeira a prensar discos no pas. 11

    O rdio foi introduzido no Brasil em 1922. A partir da dcada de 30, o aumento da publicidade nos programas radiofnicos tambm favoreceu seu crescimento como veculo comercial. Nas dcadas seguintes (1940-50), o rdio foi o grande veculo da cultura de massa no Brasil.

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    no deve ser confundida com a msica caipira, j que, ainda que em composies distintas uma possa influenciar a outra, cada qual est inserida em sua prpria realidade social.

    Contudo, na anlise de Pimentel (1997), se a msica caipira e a msica sertaneja fossem enfocadas somente como fenmenos simblicos, seria possvel encontrar diferenas no campo da narrativa mtica do espao caipira e do espao sertanejo. Mas tanto para compositores quanto para intrpretes, ouvintes e divulgadores, a msica caipira e a msica sertaneja usam os dois significantes de modo indiferenciado ou sem as conotaes presentes nos estudos apontados. Pode-se afirmar, ento, que as duas modalidades so como partes integrantes de um mesmo gnero.

    Apesar desta aparente ambigidade na definio dos dois termos, podemos dizer que aquele mais usado para a msica rural, da roa, at o incio do sculo passado era msica caipira. Com o advento fonogrfico, especialmente a partir da dcada de 1930, o termo sertanejo foi empregado em substituio do caipira e serviu no s para designar este tipo de msica, como definio de gnero no urbano, como tambm serviu para designar a msica do serto norte e nordestino, que tinham em comum o uso da viola. Somente na dcada de 1950 que o termo msica sertaneja ficou exclusivamente destinado para a msica caipira. Entretanto, o termo msica caipira s voltou a ser empregado, com propriedade, pelos novos violeiros e compositores da gerao de 1990. Hoje em dia, tanto msica caipira como a chamada msica sertaneja raiz so definies de um mesmo gnero musical.

    1.2.1 Cornlio Pires: o grande divulgador da msica caipira

    A cultura caipira comeou a ser difundida pelo pas no incio do sculo passado atravs do jornalista e escritor Cornlio Pires (1884-1958). Natural de Tiet, ele foi tambm considerado o primeiro e o maior divulgador da msica caipira na primeira metade do sculo XX. Gravou discos, escreveu livros, fez palestras, montou shows com monlogos e anedotas (escritos por ele), comps msica e organizou caravanas de violeiros que se apresentavam por todo o interior de So Paulo. Sua atuao foi to relevante, que o universo da msica caipira dividiu-se em antes e depois de Cornlio (Nepomuceno, 1999).

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    Entre 1926 e 1928 surgiu a Turma Caipira Cornlio Pires, composta, na sua maioria, de msicos caipiras provenientes de Piracicaba (So Paulo). Eles se apresentavam pelo interior paulista fazendo shows em que combinavam a msica caipira com anedotas.

    Com a invaso musical nordestina neste perodo, Cornlio Pires achou que era hora de dar apoio aos artistas da roa, pois at ento suas msicas eram interpretadas somente por cantores urbanos, como Francisco Alves. Cornlio, empenhando-se em divulgar a msica caipira feita pelos caipiras, acabou por se tornar responsvel por um dos marcos da histria desta msica: a realizao das primeiras gravaes de modas de viola e de outros gneros caipiras por violeiros-cantadores do interior paulista, em 1929 na srie de discos produzida pela Columbia.

    Cornlio foi tambm o primeiro produtor independente de discos do pas, bancando a srie inaugural de modas de viola gravadas por autnticos caipiras. Dentre os primeiros intrpretes, pode-se citar Zico Dias e Ferrinho, Caula e Mariano (tio e pai de Caulinha), Arlindo Santana e Sebastiozinho. Foram seis discos com uma tiragem de cinco mil cada um, trazendo anedotas, desafios, declamaes, canas-verdes, caterets, e a primeira moda de viola gravada, Jorginho do Serto, recolhida por Cornlio e cantada por Caula e Mariano. Depois destes discos, foram mais cinqenta e oito gravaes at 1930. O sucesso da frmula levou outros grupos a repeti-la, com o envolvimento e interesse das gravadoras pelo gnero. A partir de ento, violeiros do interior chegavam cidade grande em busca de um espao na rdio e na indstria fonogrfica, embora as pequenas emissoras do interior tambm abrissem terreno para os talentos locais (Alencar, 2004).

    A dcada de 30 tornou-se muito rica musicalmente. O fluxo interior-capital intensificava-se e os cantores consagrados continuavam a incluir no repertrio msicas com temas rurais. Vieram os sucessos de Joo Pacfico12 (considerado o compositor referncia da msica que traduziu o Brasil rural, buclico, mtico, rude e romntico) com as msicas Cabocla Tereza (toada), Pingo dgua e Mouro da Porteira. Surgem Raul Torres, com a moda de viola Marvada Pinga13, Ariovaldo Pires, conhecido como Capito Furtado, e as duplas Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco, e Jararaca e Ratinho. O cantar em duo, uma tradio do mundo rural, possibilitou a formao de duplas que marcaram fortemente a

    12 Joo Pacfico tinha como padrinhos Mario de Andrade e Guilherme de Almeida.

    13 Esta genial moda de viola, um dos grandes sucessos de Raul Torres, que em princpio chamava-se Festana

    do Tiet, acabou por tornar-se num hino do humor caipira.

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    msica caipira. Com a grande divulgao dessa msica, muitos compositores de msica popular e at mesmo erudita usaram o tema rural em suas composies, dentre eles Ari Barroso (No Rancho Fundo), Noel Rosa (Minha Viola) e Villa-Lobos (Trenzinho do Caipira).

    A aceitao do gnero nos centros urbanos devia-se, em parte, a seu apelo regionalista e nacionalista que coadunava com as propostas das elites intelectuais modernistas, valorizando essas formas de manifestao musical em detrimento dos ritmos populares urbanos. Por outro lado, essas msicas traziam temas e formas meldicas que se identificavam com a experincia de vida de muitas pessoas de uma outra gerao e, por isso, as sensibilizava, explicando-se, ento o seu sucesso.

    1.2.2 Dcadas de 40 a 70: msica sertaneja se diversifica

    A msica e o bom humor caipiras conquistaram espaos. Alm das msicas compostas por eles, a msica annima do povo interiorano oferecia um banquete indstria fonogrfica. As gravadoras disputavam as descobertas e os grandes nomes: na roa estava a grande produo musical. Os caipiras se profissionalizavam e as duplas iam surgindo, sumindo e trocando de formao com incrvel facilidade, na maioria das vezes por causa de encrencas entre as partes (Nepomuceno, 1999).

    Os avanos tecnolgicos, incluindo-se o rdio e o cinema possibilitaram, a partir dos anos 40, a penetrao de ritmos latinos na msica caipira, como os mexicanos (corridos e rancheras) e paraguaios (guarnias e polcas), alm da influncia dos tangos, chamams, e das dezenas de verses de msicas paraguaias, mexicanas e espanholas. A introduo de novos instrumentos, como a harpa, o acordeon e o trompete (pisto) tambm foram de suma importncia nesta nova fase da msica sertaneja.

    Muitos artistas viajaram para o exterior. Raul Torres foi ao Paraguai em 1935 e influenciou a introduo dos rasqueados e das guarnias na msica sertaneja, sendo que tropeiros e boiadeiros j ouviam esses sons das fronteiras, incorporados h mais tempo na msica da roa, assim como os fandangos, trazidos do sul. Capito Furtado com Mario Zan seguiam a oeste, na direo de Gois, Mato Grosso e Paraguai. Aps uma viagem ao

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    Paraguai, Mario Zan reivindicou a introduo do rasqueado14 na msica brasileira. Nesta fase, a gravao de msicas caipiras tradicionais comeou a entrar em declnio, sendo substitudas pelas gravaes de boleros e guarnias.

    Na dcada de 1940 e, principalmente, a partir da dcada de 1950, a compreenso do signo serto, que antes era considerada uma regio afastada, vai sendo deslocado para a identificao do espao serto com a atividade econmica pastoril. Pimentel (1997) explica que:

    A reinveno do serto pastoril corresponde a um momento do fluxo semntico de reinterpretao em que tambm o espao se separou e se afastou das conotaes que o aproximavam da noo de espao estriado, como parece ser possvel pens-lo naquela primeira fase da msica caipira. Nesse momento, o lugar do serto ainda podia s vezes ser confundido com a morada do caipira e, portanto, como espao estriado do bairro rural. Mas medida que a noo do bom serto vai-se impondo atravs principalmente da msica sertaneja, vai havendo tambm um deslize semntico em virtude do qual a categoria serto vai sendo empurrada para dar conta da inveno do pastoril, ao mesmo tempo em que o vazio que deixa vai sendo ocupado por outros signos: bairro ou bairro rural (p. 28-29).

    No final dos anos 40 entrou em cena o campineiro Nelson Perez. Sob a influncia norte-americana do ps-guerra e dos filmes de caubis de Hollywood, Nelson Perez mudou de nome fazendo surgir o cowboy Bob Nelson, que cantava verses da msica country americana. Bob Nelson criou, na dcada de 1950, a ponte sertanejo-country. Seu estilo de composio, com letras divertidas e ritmo alegre marcaram a adolescncia de futuros personagens do rock brasileiro como Roberto Carlos e Erasmo Carlos (Nepomuceno, 1999). Comeava a separao entre os estilos caipira e country. A msica sertaneja comeava a se dividir.

    Em 1956, a re-interpretao do serto receber fortes contribuies tanto no campo erudito quanto no popular. No campo erudito com a obra Grande Serto: Veredas, no qual Guimares Rosa ampliou o significado da palavra serto em direo da universalidade, privilegiando o serto como signo constitutivo da identidade nacional, que se reconhece como universal mesmo nas suas manifestaes mais locais (Pimentel, 1997). No popular

    14 Rasqueado um jeito de tocar a viola trazida da polca paraguaia, que j era tocada nos estados do Mato

    Grosso e de So Paulo, prximo fronteira. A sua forma de tanger todas as cordas ao mesmo tempo, com as costas dos dedos, rasqueando, marcaria muitos sucessos de Nh Pai e Mario Zan nas dcadas de 40 e 50.

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    houve a diversificao da msica caipira, com o advento da msica sertaneja15 e o surgimento da Festa de Peo de Boiadeiro, na cidade de Barretos (SP). Esta ltima, como acontecimento novo originado no interior paulista, conciliou uma tradio caipira nacional com o country americano. Os padres importados foram reformulados para se ajustarem tradio local. A Festa de Peo de Boiadeiro, tendo como cenrio o mundo urbano, foi uma forma de introduzir o rural no urbano. Para Pimentel (1997), ela expressou a domesticao do serto.

    A transio para a dcada de 1960 foi um marco nas transformaes culturais da populao brasileira. A bossa-nova surge como um novo gnero da msica popular brasileira, atravs do lanamento, pela Odeon, do histrico 78 rpm de Joo Gilberto - Chega de Saudade, msica de Tom Jobim e Vincius de Moraes (Castro, 2006).

    Com a introduo de novos gneros da msica brasileira, como a bossa-nova, e da estrangeira, como o rock tambm com o nascimento do movimento musical Tropicalismo em 1967, os gneros sertanejo e caipira ficaram mais restritos ao interior. Contudo, a msica sertaneja ainda mantinha um grande pblico fiel, na sua maior parte de origem rural.

    Aps ter vivido o seu apogeu da dcada de 50, a msica sertaneja sofre uma mudana estrutural brusca, no fim dos anos 60, quando a dupla Lo Canhoto e Robertinho introduz a guitarra eltrica, o baixo e a bateria nas canes sertanejas instrumentao bsica do rock associando-se imagem do cowboy norte-americano e incluindo um ritmo jovem nas suas composies. Surge uma nova fase de transio da msica sertaneja para a chamada msica sertaneja romntica que se afirmar nos anos 80. Para Alencar (2004), a temtica cantada, nessa fase de transio, essencialmente urbana e individualista, predominando narrativas sobre o cotidiano de imigrantes nas grandes cidades. O enorme sucesso da frmula levou as gravadoras a lanar inmeras duplas com repertrio e imagem semelhantes. A cultura sertaneja chegou indstria cultural.

    15 Apesar do termo sertanejo j ser adotado como definio de gneros que no eram urbanos desde o comeo

    do sculo passado, com as primeiras gravaes de trovas sertanejas e modas caipiras, foi somente na dcada de 50 que ele foi incorporado definitivamente msica caipira, com a criao do selo Sertanejo, em 1959, pelo diretor artstico Palmeira, da gravadora Chantecler. Neste mesmo perodo, os gneros musicais vindos do N e NE, comearam a ser diferenciados e denominados como msica nordestina. Os termos msica caipira e msica rural s voltariam a serem usados pelos violeiros da gerao de 90.

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    Dentro deste novo contexto, o da indstria cultural, se destacou a atuao de Srgio Reis, que, na opinio de Roberto Zan (2003), foi um dos intrpretes responsveis pela inaugurao dessa fase. Em 1973, marginalizado no mercado devido ao fim da Jovem Guarda, da qual fazia parte, Srgio Reis teve a iniciativa de gravar uma composio do repertrio sertanejo, aps presenciar uma multido cantar a msica Menino da Porteira (Teddy Vieira e Luizinho), durante um show na praa de uma cidade do interior mineiro. De volta a So Paulo, entrou em contato com Tony Campelo, ento produtor da RCA, que lhe garantiu a gravao desta composio famosa de Teddy Vieira. Srgio Reis deu um novo tratamento msica, com arranjo mais moderno, incluindo instrumentos eletrnicos, economizando nos duetos e cantando com pronncia urbana. Esta nova interpretao da msica sertaneja deu a ele um sucesso enorme de vendagem.

    1.2.3 Msica sertaneja romntica versus msica sertaneja raiz16

    Com o surgimento dos rodeios na dcada de 1950 e com o avano da pecuria no Brasil (serto adentro), a figura do caipira associado ao tradicional cultivo agrcola de subsistncia foi substituda aos poucos pela figura do peo das fazendas de gado. Praticamente o mesmo aconteceu com a msica sertaneja. A partir do enfoque das Festas de Peo e a sua influncia na cultura brasileira, comeou um movimento de criao musical, tambm de cunho sertanejo, que procurava se diferenciar desta msica pela referncia no mais ao imaginrio caipira, mas ao do serto pastoril, como escreveu Pimentel (1997):

    ...a desqualificao leva completa invisibilidade do caipira de seu mundo. No nvel das representaes simblicas adotadas tanto na msica sertaneja quanto nas festas do peo de boiadeiro, o caipira um personagem completamente ausente. Em seu lugar surgem pees, vaqueiros, cawboys, ginetes, capatazes, sinoeiros, culateiros, fazendeiros, marchants, juzes de rodeio, etc. Nesse contexto, a invisibilidade do caipira amplia-se, cristalizando-se na agricultura em geral, fazendo com que a oposio alcance um nvel mais elevado que o da pecuria versus agricultura. (p. 28).

    A msica sertaneja comea a ter como referncia no mais a cultura caipira, mas sim a cultura pastoril. Muitas canes passam a ter como tema principal as grandes

    16 O uso do smbolo raiz faz remisso s idias de pureza, de autenticidade e de tradio. A simbologia

    constitutiva da rvore, alis, de uso generalizado e bastante recorrente quando se trata da remisso idia de tradio (Pimentel, 2006, p.12).

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    distncias, as grandes boiadas e a imensido do serto. H um enriquecimento na temtica da msica sertaneja e ao mesmo tempo uma maior referncia ao serto caipira.

    Dando espao idia do peo, somada influncia da indstria fonogrfica cultural, somadas influncia da cultura americana, aparece paralelamente o incio de uma variante da msica sertaneja, a formao da chamada msica sertaneja romntica.

    Surgem, ento, a partir da dcada de 1980, dois gneros diversos: msica sertaneja raiz versus msica sertaneja romntica. Dentro da msica sertaneja raiz, englobam-se as duas vertentes do imaginrio social sertanejo, ao qual a msica caipira e a msica sertaneja recorreram respectivamente: a do mundo caipira e a do serto pastoril. Portanto, esta outra variante da msica sertaneja, que comea a surgir paralelamente, refere-se ao mundo rural moderno, ou seja, ela abrange o mundo urbano, tendendo a ser instrumento que reflete a cultura de massa.

    1.2.4 A nova gerao de compositores caipiras

    Ser caipira ou um moderno sertanejo uma questo de destino, gosto, herana cultural, expectativas, escolha cada msico tem a sua definio. O artista do interior pode escolher entre manter a tradio, cantando para platias menores, ou trocar a viola por uma banda inteira e botar milhares de pessoas de braos para o ar, no ritmo de rodeios e rocks de salada pop-sertaneja. (Rosa Nepomuceno)

    Durante dcadas a msica caipira, desde a sua divulgao por Cornlio Pires no incio do sculo passado, sofreu transformaes e influncias externas. Chamada de msica sertaneja, a partir do seu envolvimento com o meio urbano e com a indstria fonogrfica, chegou a descaracterizar-se, transformando-se na dcada de 80, em um outro segmento to distante de sua origem que ficou conhecido como msica sertaneja romntica. Entretanto, alguns msicos como Tinoco e a dupla Pena Branca e Xavantinho relutaram contra esta transformao imposta pela indstria cultural e pela indstria fonogrfica no meio sertanejo, e mantiveram viva a msica sertaneja raiz do incio do sculo, tentando preservar as caractersticas estilsticas e a tradio da msica caipira. Assim conclui Catelan e Couto (2005):

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    Chegamos ao final dos anos 1980 com a msica caipira totalmente descaracterizada e praticamente excluda dos meios de comunicao. Apesar disso, essa msica resistiu, mesmo que silenciosamente, nos diferentes cantos e toques pelos recantos do Pas, especialmente nas regies Sudeste e Centro-Oeste. Isto porque, mesmo isoladamente, houve sempre movimentos de resistncia em favor da cultura caipira como fizeram os violeiros e cantadores Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Almir Sater e Adauto Santos. De fundamental importncia para esse resgate, foram tambm as duplas Pena Branca e Xavantinho e Z Mulato e Cassiano (p. 49).

    No meio de toda essa transformao ocorrida durante estas dcadas, uma outra fase da msica sertaneja comeou a surgir na dcada de 1970. Foi a chamada nova gerao de msicos caipiras, composta em sua maioria por compositores de origem urbana e universitria que foram em busca das razes da msica brasileira. Sobre estes novos caipiras, Nepomuceno (1999) escreve:

    A partir da dcada de 70, a viola conquistou a classe mdia urbana, de jovens sados das universidades, trazendo sangue novo velha cultura, retrabalhando seu acervo de melodias, seus temas, suas poesias. Ouviram mitos como Joo Pacfico, Tonico e Tinoco e grandes violeiros como Tio Carreiro. Os novos caipiras fizeram a viagem de volta, ou seja, do urbano para o rural. Conquistaram os palcos dos teatros de So Paulo e Belo Horizonte, conquistaram platias que at ento no tinham contato com este tipo de msica, criam selos, revistas, cursos, mtodos de ensino de viola (p. 34).

    O tema da viola e do violeiro sempre foi recorrente na msica regional do interior do pas. Redescobertos nos anos 70 por alguns compositores regionalistas, a viola e a maneira de viver do violeiro foram usadas por eles como fonte de produo musical. Alencar (2004) denomina este tipo de msica como cano regionalista, explicada por ela como a produo de compositores contemporneos caipiras ilustrados , que buscam no mundo rural sua fonte de inspirao, preservando elementos da cultura musical tradicional, mas, ao mesmo tempo, incorporando, na maioria das vezes, os novos paradigmas da MPB. Estes compositores regionalistas so caracterizados pela alta qualidade de suas composies, a ento chamada nova msica caipira. Alencar (2004) define cano regionalista:

    Podemos, ento, definir a cano regionalista como aquela que, ancorada em razes tradicionais, busca ser moderna, ou seja, dialogar com as correntes culturais de seu tempo, para tanto atualizando temticas e formas de criao e interpretao musicais. Tomadas aqui como documento, as canes so representaes reveladoras da poca em que so produzidas, possibilitando o

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    dilogo entre os signos musicais e as idias e sensibilidades do seu tempo (p. 12).

    Segundo Zan (2003), inicialmente importante lembrar que esse estilo de msica popular, identificado como sertanejo ou caipira, nos remete a um determinado modo de vida ou a um tipo de sociedade que, na atualidade, praticamente desapareceu. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, acompanhado pela industrializao e pela urbanizao da sociedade brasileira, especialmente ao longo do sculo XX, provocou o rompimento do equilbrio ecolgico e social do modo de vida dentro da cultura caipira. Mas, apesar da sua desintegrao, aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memria de boa parcela da populao brasileira.

    Estes novos caipiras, ou caipiras ilustrados, ou compositores pesquisadores como chamou Zan (2003), de formao universitria, se dedicam msica caipira, compondo no pela repetio das velhas formas, mas pelo potencial que esse universo cultural oferece, para que a msica brasileira avance em direo ao futuro, coerente com a evoluo, naturalmente moderna. Todos tm origem nas classes mdias e uma vivncia urbana, o que lhes possibilita o acesso cultura letrada e, portanto, s rpidas transformaes que atingiram, e atingem, o pas e o mundo. Mas, tambm, mantm um vnculo ainda forte com a cultura popular da sua regio, adquirida atravs de vivncias nas pequenas cidades do interior ou mesmo no mundo rural.

    O ponto de partida desta nova fase da msica caipira ocorreu em 1977 com dois momentos importantes: o lanamento do primeiro disco do violeiro Renato Andrade17 intitulado A Fantstica Viola de Renato Andrade, que incentivou outros msicos a se dedicarem viola, e a gravao de Romaria de Renato Teixeira18 em 1977, pela cantora Elis Regina, criando-se, a partir de ento, um espao para que a msica do interior paulista

    17 Renato Andrade (1932-2005) dedicou-se msica desde muito cedo. Estudou violino em Belo Horizonte

    por influncia da famlia. Anos mais tarde, de volta sua terra natal, a cidade de Abaet em Minas Gerais, tomou contato com a viola caipira, ficando fascinado pelo instrumento. Tempos depois abandonou o violino e dedicou-se exclusivamente ao estudo da viola. Tornou-se um dos grandes violeiros da msica brasileira, conciliando o erudito com o popular, ficando conhecido como o instrumentista que levou a viola para a sala de concertos. Aps o lanamento do seu primeiro disco em 1977, foi convidado a fazer uma sria de apresentaes nos Estados Unidos. Era a primeira vez que a viola caipira pisava terras estrangeiras. 18

    Renato Teixeira, santista, era compositor tpico da MPB universitria, tocava bossa-nova no violo. Com o sucesso de Romaria por Elis Regina, Renato Teixeira mudou de carreira, dedicando-se msica caipira.

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    invadisse o mercado. Sousa (2005) relata a importncia que Romaria representou no meio musical popular brasileiro:

    Romaria, gravada por Elis com o acompanhamento do grupo guia, de Teixeira, se tornou, enfim, o mais consagrado exemplar do namoro da msica caipira com a MPB. E auxiliaria, ainda, a desenfrear um movimento de renascimento do gnero caipira original, nas dcadas seguintes, a j com a ajuda do violeiro Almir Sater, discpulo direto de Tio Carreiro (p.162).

    Na dcada seguinte veio Almir Sater, sob influncia de Renato Andrade, mostrando que a viola poderia ser um instrumento nobre nas mos de um virtuoso de padro internacional. A partir da jovens violeiros surgiram por todos os cantos do serto Centro-Sul do Brasil.

    Estes novos msicos fizeram o mesmo caminho de Cornlio Pires, que em 1929 tornara-se o primeiro produtor independente de discos do pas. Eles fazem CDs com dinheiro prprio e se lanam em selos pequenos. Mostram que existe mercado para este tipo de msica caipira e regional, pois o que orienta as aes desses artistas e at mesmo a identificao do pblico com esse repertrio so as novas demandas por autenticidade e alteridade que se reforam frente padronizao global. Este novo movimento cresce a cada dia e se constitui numa fora paralela que atua fora do esquema das multinacionais do disco. Entre os msicos desta fase, podemos citar: Roberto Correa, Ivan Vilela, Chico Lobo, Pereira da Viola, Braz da Viola, Juraildes da Cruz, Renato Teixeira, Almir Sater, Adauto Santos, Passoca e Elomar Figueira Mello, entre outros.

    As composies destes novos caipiras no so totalmente idnticas s composies dos msicos caipiras do incio do sculo passado. Diferem um pouco, mas so verdadeiras, pois trazem em cada frase musical a trajetria de quem toca e canta: pessoas que tm em comum a histria familiar e afetiva profundamente ligada ao universo caipira, sendo munidas de um respeito imenso por esta msica e seus grandes intrpretes do passado. Outra caracterstica que o caipira atual no mais conserva, necessariamente, o cantar em dupla. Muitas interpretaes, tanto do repertrio antigo quanto do novo, so cantadas sem o acompanhamento vocal da segunda voz. Apesar da sua instrumentao mais sofisticada, com o uso de instrumentos eletrnicos, a nova msica caipira mantm as suas principais caractersticas, que so o uso da viola, os temas relacionados ao campo, elementos como o estilo da moda de viola e ritmos marcantes das cantigas e toadas. Alencar (2004) ressalta o hibridismo na msica popular:

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    No caso da msica popular contempornea, as influncias internas e externas cultura do pas indicam um hibridismo cada vez mais intenso, com a superao de dicotomias como erudito-popular, rural-urbano, arcaico-moderno, entre outras, o que no implica o desaparecimento das tradies, mas sua (re) atualizao peridica (p. 17).

    um renovar e um inovar na msica caipira, mantendo vnculos fortes com a tradio. o caminho criativo da hibridao. Entretanto, pode-se dizer que a tradio, segundo Zan (2003), no pode ser vista como algo esttico, naturalizado. Ela redefinida, construda, reconstruda permanentemente, no presente. Portanto a tradio uma inveno moderna. o homem do presente que olha para o passado e elege ou escolhe determinados aspectos que vo compor o que ele define ou reconhece como tradio.

    Indcios da tradio tambm surgem com os artistas que conseguem mesclar gneros rurais legtimos com arranjos modernos, como o caso de Srgio Reis, que fez a estratgia de unir seu canto solo, valorizando as razes, os compositores tradicionais, os temas, a viola e incorporando os arranjos de banda. J a dupla Rionegro e Solimes transita entre os dois gneros, pelas velhas modas de viola e pelo som pop dos sertanejos modernos.

    A partir da dcada de 1990, a msica sertaneja raiz tambm comeou a ser designada de msica de raiz e at mesmo com o seu nome original de msica caipira. Ela tornou-se um produto sofisticado de consumo da elite intelectual brasileira.

    A msica caipira desta nova gerao, de caractersticas regionais, no se constitui numa tradio inventada ou mesmo num lugar de memria, que implicam na morte (ou quase) de uma tradio. uma autenticidade aberta s mudanas, que tem encontrado caminhos para instituir o novo, o original, sem perder os vnculos com o passado e com a valorizao das tradies. A cano regionalista destes compositores que transitam entre a tradio e a modernidade a expresso de um momento de construo de uma das possveis identidades regionais, dialogando com o seu tempo, sem perder de vista as razes da cultura do serto caipira e regional.

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    CAPTULO 2 MSICA REGIONAL DO SERTO CAIPIRA BRASILEIRO

    A msica uma forma de discurso to antiga quanto a raa humana, um meio no qual as idias acerca de ns mesmos e dos outros so articuladas em formas sonoras. (Keith Swanwik)

    2.1 ASPECTOS GERAIS: ESTILO, REGIONALISMO E LINGSTICA

    Uma das caractersticas analisadas por Mrio de Andrade (2006) como sendo expressiva da musicalidade dentro do cancioneiro popular brasileiro a forma, referindo-se rica diversidade das formas estrficas, com ou sem refro, no populrio nacional. A forma estrfica A-B (A = estrofe; B = refro) se mantm na msica regionalista e folclrica, como parte dos esquemas repetitivos tpicos da msica popular. Nas canes estrficas, a msica repetida literalmente de estrofe para estrofe, s vezes com pequenas variaes. assim no que se refere a todas as canes escolhidas para este trabalho, com exceo de Queimadas.

    A maioria destas canes tambm caracterizada por ser toada, uma das principais manifestaes da msica caipira. Incluem-se nesta definio Tristezas do Jeca, Saudade Brejeira, Violeiro Triste, Cheiro de Relva e Romaria. Segundo Alvarenga (1950), a toada no tem um carter definido musicalmente. Segundo a Enciclopdia da Msica Popular Brasileira (1998), na definio de Renato Almeida, alm de ela ser designada como uma cano breve, na forma de refro e estrofe, ela tambm formada por quadras: estrofe composta de quatro versos.

    Com base nesta ltima descrio, pode-se esclarecer a confuso que h na letra do refro de Tristezas do Jeca. Na verso mais comum canta-se:

    Nesta viola eu canto e gemo de verdade. Cada toada representa uma saudade.

    Porm, segundo a interpretao de Inezita Barroso, uma das grandes estudiosas da msica folclrica e caipira, a letra do refro :

    Nesta estrada eu canto e gemo de verdade. Cada quadra representa uma saudade.

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    Angelino de Oliveira, autor da msica, alm de msico e compositor, era tambm um grande poeta. Por isso, existe mais lgica na verso de Inezita Barroso do que na verso comumente difundida. As estrofes de Tristezas do Jeca so compostas na forma de quadra. Dizer que cada quadra representa uma saudade muito mais lgico que dize