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ORGANIZAÇÃO DO CORPUS DIACRÔNICO DO PORTUGUÊS PAULISTA Coordenador: Marcelo Módolo (USP) [email protected] , [email protected] 9. SILVA, Camila Téo da. A Justiça dos Bohemios (Folhetim) de autoria de Ponson du Terrail. Distribuição feita por [email protected] , [email protected] 10. SOUSA, Cecília Farias de. Cartas particulares (Cartas de Alexandre de Gusmão, Cartas presentes em processo de esponsais do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo). Distribuição feita por [email protected] , [email protected] 11. SANTOS, Vinícius Gonçalves dos Santos. As Noivas. Peça de Paulo Gonçalves (1897-1927). Distribuição feita por [email protected] , [email protected] 9. A Justiça dos Bohemios (Folhetim) Autor: Ponson du Terrail Transcrição: Camila Téo da Silva (IC, Ensinar com Pesquisa, sob orientação de Marcelo Módolo) Edição 375 PONSON DU TERRAIL [espaço]1 A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS A ramilheteira Nichette I|| O 9 thermidor lavára em uma ultí -|ma onda de sangue as nodoas do Terror. || Derrubado o cadafalso, e com a desap-|parição dos tyranos populares, voltará|a esperança a todos os corações; e, si o| Directorio não era inda o governo so|nhado pela França massacrada, abatida,|ensanguentada, pelo menos era como | que uma transicção cheia de promessas entre os maus e os melhores dias. || Entretanto, Paris que tremera, Paris| que vira 1

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ORGANIZAÇÃO DO CORPUS DIACRÔNICO DO PORTUGUÊS PAULISTACoordenador: Marcelo Módolo (USP) [email protected], [email protected]

9. SILVA, Camila Téo da. A Justiça dos Bohemios (Folhetim) de autoria de Ponson du Terrail. Distribuição feita por [email protected], [email protected]

10. SOUSA, Cecília Farias de. Cartas particulares (Cartas de Alexandre de Gusmão, Cartas presentes em processo de esponsais do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo). Distribuição feita por [email protected], [email protected]

11. SANTOS, Vinícius Gonçalves dos Santos. As Noivas. Peça de Paulo

Gonçalves (1897-1927). Distribuição feita por [email protected], [email protected]

9. A Justiça dos Bohemios (Folhetim)Autor: Ponson du TerrailTranscrição: Camila Téo da Silva (IC, Ensinar com Pesquisa, sob orientação de Marcelo Módolo)

Edição 375PONSON DU TERRAIL [espaço]1

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

I|| O 9 thermidor lavára em uma ultí -|ma onda de sangue as nodoas do Terror. || Derrubado o cadafalso, e com a desap-|parição dos tyranos populares, voltará|a esperança a todos os corações; e, si o| Directorio não era inda o governo so|nhado pela França massacrada, abatida,|ensanguentada, pelo menos era como | que uma transicção cheia de promessas entre os maus e os melhores dias. || Entretanto, Paris que tremera, Paris| que vira assustada, passar as carretas | cheias de condemnados para a praça da| Revolução, Haris accordava de medonho | pesadello, e pediu luz, ar livre e ruídos alegres. ||Paris dançava! ||Dançava no salão de Marte, na barrei - | ra de Ménilmontant, nos jardins de Ida- |lia, em Tivoli, em toda a parte emfim. ||Mulheres semi-nuas erravam pelas ga- |lerias do bosque do Palais-Royal, joga- |dores tumultuavam nos alcouces da rua|Montansier, e os theatros davam peças | que nada tinham de Moraes e que nem | as thesouras da censura haviam soffrido. ||Apressavam-se todos a gosar, para es-| quecer as dores da véspera e desviar os | cuidados do dia seguinte. || Os emigrados entravam

incógnitos, os | montanhezes passavam por deante dos | thermidorianos, e o mysterioso baile que | recebera o singular nome de <baile das|

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victimas> abria as suas portas a quem |tivera tido um pae, uma mãe, irmã ou| próximo parente morto no cadafalso re- | volucionário. ||Chegada a noite, Paris tripudiava, vo -| zeava, embriagava-se no ruído de uma |orchestra gigantesca, e só adormecia aos| primeiros alvores matutinos, depois de| noite de orgia. Em Tivoli sobretudo, |nesses vastos jardins cobertos de arvores| seculares , é o que o phrenesi do prazer to- | cava o paroxismo.|| As maravilhosas, os incríveis, os leões| afluíam em ondas de luz ao meio desses| bosques verdes, que já |se esforçavam | por serem mysteriosos. || Cada noite as immediaçães do Tivoli| enchiam-se de carros e de uma das mais| bisarras e variadas multidões. | | Os incriveis, as maravilhosas, toda | essa população que desabrochara na ves-| pêra, corria aos jardins encantados, co- |mo bando de aves do paraíso de todas |as côres. || Quando davam dez horas, porém, uma | cousa extraoridinaria pelo menos, se pas- |sava. ||O silencio substituía o ruído, despo-|voavam-se de repente as immediações |das portas, e essa onda de curiosos com- |pactos, que era preciso calcar para en- |trar, alinhava-se em duas fileiras, como|um batalhão de soldados prussianos, para |deixar chegar uma equipagem inteira- |mente carnavalesca. || Um carro de rodas amarellas, de cai-| xa azul celeste, e de portinholas salien-| tes por uma inscripção vermelha; que |ninguem em Paris poderia decifrar, por- | que parecia pertencer a um alphabeto|oriental se aproximava então a grande| trote de quatro cavallos de posta. ||

Os postilhôes vestiam de amarello, de |vermelho e de azul .|| Dois lacaios com a mesma libré. pen - |durados das estribeiras, abriam respei|tosamente a portinhola e baixavam o es - |tribo.|| Um ente mais exquisito do que essa |equipagem de mau gosto sahia então do| carro.|| Era uma mulher baixa de trinta e cin - | co a quarenta annos, porque era impos- |sivel precisar-lhe a edade, com a pelle|como a de uma mulata, mal dissimulan- |do uma fórma contornada, embuçada em | toillete multiculor, com a cabeça cober- | ta de plumas, os dedos carregados de an- |neis, e com o pescoço rodeado de uma |triple fileira de perolas grossas como | ovos de pomba.|| Trazia ao collo um feiissimo cãosinho |da Havana, cor de café com leite, e na| mão levava um desses saccos castigados com o nome de ridículos.|| E a multidão em vez de assoviar, em | vez de vosear, ou de romper em estrepitosa gargalhada, comprimentava essa | mulher com respeito idiota, e quanto | Ella entrava no Tivoli| seguia-a a distancia com reserva e consideração, como | si essa mulher personificasse a belleza e o genio. || Havia quinze dias que durava isso. || Ora na tarde daquelle em que recome- | ça a nossa historia, a dama do carro | amarello e azul fazia como de costume | a sua entrada triumphal, quando um | homem baixo, um pouco obeso, le- | vemente barrigudo, vestido grosseira- | mente, trazendo um rabicho com laço | de taffetá verde, e cujo todo emfim pa- |recia annunciar um provinciano, apro - | ximou-se do casquilho que estava en-|

costado negligentemente ao seu poder executivo.|| O poder executivo era uma bengala | nodosa, que cada qual trazia noite e dia, | para se fazer respeitar naquela epoca, | em que a justiça dava a sva demissão e | em que a lei era impotente.|| Este casquilho, moço de vinte e sete | a vinte e oito annos, tinha o pescoço en- | terrado em vasta gravata, que lhe co- | bria a barba e as orelhas, enfeitadas com | largas argolas.|| Trazia casaca com grandes abas, col- | lete de flores, e calções [ilegível] eor de barriga | de corça, sob suas botas e borlas. || O homem de traje grosseiro aproxi- | mou-se delle comprimentu-o e disse: || - Queira perdoar, senhor... || Já ninguem dizia cidadão. || - Que quer, bom homem? Perguntou | o casquilho em tom protector.|| - Eu sou provinciano , senhor. || - Bem se vê, meu valente. || E o janota começou a rir. || - Eu nunca vim a Paris; é esta a pri- | Meira vez, continuou elle sem se per- | turbar. || - Ah! ah!|| - De fórma que tudo é novo e extra- | nho para mim. || - Realmente. || - Desejava saber quem era essa ele- | gante, que acaba de entrar. || - Ah! ah!|| - Affigura-se-me ser a cidadã Tallien, | ou qualquer outra mulher dos novos go- |vernadores, continuou o pobre diabo com | ar natural.| || O casquilho começou a rir e disse: || - Está enganado, meu bravo. || - Será então alguma princeza estran-| geira?|| Tão pouco. |

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Edição 376PONSON DU TERRAIL [espaço]2

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

I|| E o casquilho olhou attentamente para | o seu interlocutor || - Pois realmente sempre é da provin- | cia disse elle.|| - Sim, senhor.|| - Então não conhece ninguem em Pa- |ris. || - Ninguem absolutamente. || - E não estimaria que um homem, | iniciado nos prazeres e mysterios da ca- | pital, lhe desse alguns bons conselhos e | o guiasse segundo nece[s]sario fosse? ||- Ser-lhe-hei infinitamente agradeci- | do respondeu o provincial. || - Pois bem, disse o casquilho, dê-me | o braço, saiámos desta multidão para | fallarmos. Talvez que eu lhe possa pres- |tar os serviços de que necessita... | - O senhor? || - Que admiração?!|| E o casquilho, tomando o provinciano | á parte, disse: || - Queira perdoar, si eu em duas pala- | vras o vou interar da situação. Acabo | de sahir de uma espelunca, onde me de- | pennaram; não tenho de meu um escu- | do, não podendo portanto entrar no jar- | dim, nem refrescar-me. || - Não tem duvida, respondeu o provin- | ciano; eu pagarei toda a despesa.|| - Então vamos beber primeiramente, | disse o janota. || E arrastou o novo conhecimento para | uma loja de bebidas. || Entraram. O provinciano pediu cha- | rope de orehata e limonada. || O casquilho começou a beber, porque |

Verdadeiramente tinha sede ; em segui- | da pousando o copo, e pondo os cotovel- | los na mesa rompeu assim :|| - De fórma que o senhor pensou que | essa macaca era a cidadã Tallien, que é | a elegância e a belleza personificadas?|| - Confesso que sim , disse humildemen- | te o homem de traje grosseiro. || - Pois enganou-se. Sabe quem é? || - Não.|| - É uma bohemia. || - Ora essa! ||- Mas uma bohemia rica, millionaria. || - Como se chama ella? || - A cidadã Antonia. || - Exquisito nome, disse naturalmente |o homem de traje grosseiro. || - Quer que eu conte a historia della? || - Oh, si quero. || - Então peça outra garrafa de limo- | nada. Morro de sêde. || O provinciano chamou o rapaz, olhan- | do para o casquilho com a curiosidade | de um homem a quem prometteram uma | narração maravilhosa. || O casquilho prosseguiu: || - A cidadã Antonia é bohemia. Há | quatro annos que chegou a Paris, no | belo momento do terror, quando esse | pobre M. de Robespierre mandava cor- | tar cincoenta cabeças cada manhã, para | distrahir o povo de Paris que se enfa- | dava. || - Pois realmente, disse o homem de | vestidos grosseiros, ella sempre é assim | tão rica? || - Ainda mais. || - E não lhe cortaram a cabeça? || - Pelo contrario, como se vê. || - Mas na minha provincia dizia- se que | nesse tempo os que corriam mais risco eram... || - Os ricos? || - Sim. || - Mas a cidadã Antonia, continuou o | casquilho, teve uma boa idéia. |

- Qual? || - Fez-se amante do cidadão X..., um | representante na Convenção, amigo do |cidadão Robespierre ; e, como elle tinha | muitas dividas, Ella pagava-lh’as todas. ||- Então já comprehendo... ||- E isto fez com que a cidadã conser- | vasse a cabeça nos hombros. || - Mas quando veio o 9 thermidor?! || - Succedeu que o cidadão X... mudon | de opiniões, abandonou Robespierre, | apertou a mão a Tallien, e é hoje mais | poderoso do que nunca. Até dizem que des- | posará a cidadã Antônia. || - Está bom, disse o homem de traje | grosseiro, já vejo que está bem informa-do, meu rapaz. || - Eh! que é la isso? meu bom homem, | disse o casquilho como que magoado, a | limonada sobe-lhe a cabeça? || - Então porque? || - Porque me trata familiarmente de | mais ; e isso não é moda. || - Embora. Mas é cá por uma cousa. || - Qual? || - Conheço-te há muito tempo. || - Conhece-me a mim? || - E o peralvinho olhou para o seu inter- | locutor com ar perturbado. || - Ora adeus ! conheço, sim. Tu nem | sempre has de ser janota, meu caro Po- |lyte. || - Sabe meu antigo nome? || - E

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vejo que tu ainda não me reco- | nheceste. ||Mas Polyte, porque era elle, deu re- |pentinamente um grito, dizendo: || - Ah! mas sim... é elle.. e que ce-| gueira a minha em não reconhecer logo | o Sr. Bibi... || - Bibi, exactamente, disse o de traje | grosseiro.|| E Polyte, encartado em janota, lançou- | se ao pescoço do antigo agende de poli- |cia, e abraçou- [lhe] ternamente.|

Edição 377PONSON DU TERRAIL [espaço]3

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

II || Polyte conservava sempre entre as|suas as mãos de Bibi, e dizia-lhe com uma | volubilidade repassada de ternura: || - Mas então que é feito? de onde vol- | ta? e porque se divertiu assim commigo, | perguntando-me o que sabia melhor do | que ninguem? || - Meu jovem amigo, respondeu Bibi, quando dois amigos, que se tinham per- | dido de vista, se tornam a encontrar , e | têm de narrar as suas mutuas aventuras | é sempre o mais novo que principia. || - Ah! disse Polyte. || - Deixei-te gaiato de Paris, e encon- | tro te peralvilho ; explica-me pois pri- | meiramente a tua metamorphose. || - É bem simples, disse Polyte. || - Vejamos. || - Lembra-se do dia em que recondu- | zimos á barreira o capitão Dagoberto, a | menina Aurora e Benedicto? || - Perfeitamente. || - Entramos em Paris e fomos morar | para a rua de Clos-Gourgean, ao pé da | rua de S. Honorato. || - Tudo isso é perfeitamente exacto. || - Na manhã do dia seguinte sahiu ce- | do, dizendo-me que entraria ao meio dia. || - E não entrei nem ao meio dia, nem á noi- | te nem ao dia seguinte. | | - Nem nunca, proseguiu Polyte ; es- | perei oito dias, depois quinze; ninguem ! || Entao suppuz que teria morrido, ou | que a cidadã Antonia o teria mandado | prender. || Como levara comsigo o cinto em que | guardava o dinheiro, e vi que acabariam | os poucos escudos que em tinha, como | não queria ser ladrão, fiz uma noite este | galante raciocinio: || De combinação com o Sr. Bibi, deve- | mos tirar á cidadã Antonia o dinheiro | que ella roubou á menina Aurora e á sua | irmã; já que o Sr. Bibi partiu, e como | eu não sei onde elle pára, porque não| continuarei eu só a sua obra? || - Ah! disse Bibi, raciocinaste assim? || - E depois, proseguiu Polyte, aind[espaço]adis- | se commigo, si Antonia fez desapparecer | Bibi, eu o vingarei. || - Bom ! disse o homem da policia, com | um sorriso. || Polyte continuou: || - Eu já tinha penetrado em casa da | cidadã Antonia e sabia o que devia fazer. | Certa noite parti de Paris com uma faca | no bolso e um martello na mão. Bem sa- |be, papá, que quando se quer matar de | um golpe, um martello vale mais que | um punhal. || - É verdade, disse Bibi. ||- Eu conhecia, imagine, os costumes | da casa. Deitavam-se tarde em casa da | cidadã Antonia, porque o cidadão X... | vinha cear á meia noite e não sahia si- | não depois das duas horas da manhã. || Era meia noite quando eu cheguei. || Deitei-me no fosso e esperei, mas não | muito tempo. ||

Quando estava immovel, com os olhos | fixos nas janellas da casa, dois homens | passaram perto de mim, o jardineiro e o cocheiro. || o segundo dizia:|| << - O cidadão não vem esta noite. Deve | fallar amanhã na convenção e prepara o | seu discurso A cidadã vae deitar-se. | Então podemos ir á Palaiseau beber uma | garrafa. >> || << - Está dito, respondeu o cocheiro. >> || Passaram tão perto de mim que re- | ceiei bastante ser apercebido ; depois por | uma brecha do muro desceram de um | pulo e ganharam os campos. || Não hesitei mais e dirigi-me á casa | onde penetrei, como da primeira vez, | pela janella da cosinha. || Cheguei á ante-camara. || A criada correu ao barulho que eu fiz. || Estendi-a em terra com uma mar- | tellada, e ela cahiu no vestibulo sem dar | um grito. || Em seguida, como eu sabia o caminho, | subi ao quarto da cidadã Antônia. || Atravessei o salão, o

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gabinete, indo | em bicos de pés, e assim cheguei á porta | do quarto de dormir. || A cidadã Antonia estava sentada e lia. || A chave estava na fechadura ; voltei-a | e abri. || Julgou que era a criada e não ergueu | logo a cabeça. || Mas eu dei um passo, e ella vendo-me, | deixou escapar um grito de espanto. Eu | tinha as minhas razões para não a ma- | tar logo ; queria conversar um bocadi- | nho com ella. || - Eh! cidadã, disse eu comprimen- |

tando-a, não tenha medo. Si fôr rasoa- | vel, eu não lhe farei mal algum. || É corajosa essa mulher ; nos mo- | mentos mais criticos tem um sangue frio | que desbanca. || - Meu rapaz, disse ella, já que aqui | estas é porque provavelmente mataste | os meus criados. || - Nem todos, assassinei só a criada. | - Ah! e os outros? || - Os outros foram ao Palaiseau beber | um trago. | - De maneira que estou só aqui? | - Completamente só. || - Em teu poder ? || - Esta visto ! || - Pois bem! meu rapaz, continuou ella | com o socego ordinario, sei o que devo | fazer. Tu vens roubar-me... || - Isso conforme. || - Além de que, como queres vingar-| te de mim , vaes assassinar-me. || - Talvez. || - Só se morre uma vez, replicou An- | tonia. Fere-me e rouba-me-has depois ; | mas olha que não acharás grande cousa. || - Ora! disse eu com um ar incredulo. || - Deves imaginar, continou ella sem- | pre sorrindo, não tenho em França a | minha fortuna, com este tempo da gui- | lhotina. Mandam-me dinheiro todos os | mezes, mas a burra esta em outra parte. || - Alguma cousinha se ha de achar, | resmunguei eu, escarnecendo. || - Sim, um cento de luizes, alguns dia- | mantes, algumas pratas. | - É bastante. || E avancei para ella um passo. |

Edição 378PONSON DU TERRAIL [espaço]4

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

II|| Nem um só musculo do seu rosto se | contrahiu. || - Meu rapaz, disse’ella, melhor farias, | si conversasses um pouco commigo e | mettesses o punhal ao bolso. Posso dar- | te mais dinheiro que o que tu encon- | trarias depois da minha morte. || - E, si não for dinheiro o que eu que- | ro? || - Então queres vingar-te? || - Primeiramente. || Ella começou a rir. || - Mas nós estamos aqui para nos en- | tendermos, disse ella ; e, si ficarmos ini- | migos, a culpa não será minha. || - Ah! julga-o? || - Sem duvida, já que te namoricaste | dessa rapariga que eu detestava. || - E não a detesta já? || - Agora menos. || - E porque? lhe perguntei eu, olhan- | do para ella fixamente. || - Olha, disse ella, fecha a porta com a | chave, para que, si voltapem os meus | criados, tu teres tempo de me matares, | antes que elles me soccorram. Quando | tomares todas as precauções talvez me |ouças com paciencia. || - V-a lá! disse eu, a pressa não é mui- | ta. || Ella continuou? || - Aposto em que como te contaram a mi- | nha história. Eu sou uma antiga criada |

grave da condessa de Mazures, e roubei |um cofre que continha um a fortuna im- |mensa. || - Sei isso. || - Naturalmente, si eu queria fazer | guilhotinhar Aurora, é porque queria ter | a certeza de não me reclaramrem nunca esta fertuna. || - Era logico. || - Sim, mas o que é logico nem sempre | é verdadeiro, e vou dizer agora porque | queria mandar guilhotinhar Aurora. Só | provarei primeiramente que nada re- | ceava pelo meu dinheiro. || - Sim, vae dizer-me que elle está na | Allemanha. || - Em em segurança, como vaes ver. Eu | sou bohemia. Pertenço a uma seita pó- | derosissima que tem ramificações mys- | teriosas em todas as classes da socieda- | de allemã, húngara e bohemia. || Temos correligionarios pobres que | mendigam o

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pão quotidiano, temol-os ri- | cós e poderosos que privam com o impe- | rador. || Todos obedecemos a um chefe occulto, | e esse chefe esta em mais subida posição | que os imperadores. Colloquei-me sob a | sua protecção. Confiei-lhe o meu dinhei- | ro, que usufruirei toda a vida, voltando | á nossa seita depois da minha morte. || - Ah! ella disse-te isso? interrompeu | Bibi, encrespando as sombrancelhas. || - Disse, e fallava com tal accento de | franqueza que não me deixou duvida al- | guma. || Um sorriso passou pelos lados de Bibi. || - És creança ! disse elle. || - Bem vês, me disse então Antonia, | que estou socegada em quanto ao meu | dinheiro. || - Mas então porque aborrece mortal-|mente Aurora?||

- Porque sou ciumenta. || - Della? || - Sim. || - Por causa da sua belleza? || - Por causa do amor que ella tem ao | soldado Dagoberto, que era um pobre | ferreiro, quando eu era criada e amava , |como sabem amar as mulheres do meu sangue. || Ao fallar assim, tinha um olhar de|odio feroz. || - Ora aqui esta, continuou ella, por- | que eu aborrecia Aurora. || - E já não aborrece? || - Agora menos. || - Porque? || - Porque já não amo Dagoberto. || - Ah ! || - Quando soube que elle desposara Au- | rora, alguma cousa se quebrou no meu | coração. E tu, proseguiu ella, tu, filho | de Paris, o gaiato destemido, tu nascido | no vicio, tens tido uma hora de virtude, | amas ainda? || - Sempre. || - Mas renunciaste a ella? || Baixei a cabeça e murmurei: || - Assim é preciso. || Então ela, anrindo um riso mau e | cruel, disse: || - És um pateta! || - Não, respondi eu ; mas estou muito | longe della. || - Não ha distancia invencivel, quando |se ama. Suppõe que vindo aqui para me | assassinares, saes rico, e que atirando | pela janella fóra a blusa e o bonet encar- | nado, te vestes como um beija-flôr. || Suppõe que, mal sabendo ler, começas |a instruir-te, e que um bello dia, | passados dois ou tres annos, em vez de | seres o ferreiro Polyte, és o cidadão Hyp- |polito, empregado no ministério da guer- |ra ou da marinha. És um rapaz bonito. | intelligente como um filho de Paris. | Quem sabe? Talvez possas por ahi se- | guir um bom camimho. || Enebriaram-me estas palavras tenta- | doras. || - Diabo ! exclamei eu, cala-se ! || - Bah ! replicou ella, já te morde o | coração, e tens o pé no primeiro degrau | da escada da ambição. || - Mas ella não me ama ! exclamei eu. || - Amar-tehá talvez metamorphosea- | da. || - Mas ella é mulher do Dagoberto? || - Ah ! disse ella, rindo sempre ; mas | Dagoberto póde ser morto, e alguma cou- | as me diz que o será. E então... || Uma nuvem perspassou pelos meus | olhos. Cresci para ella com o punhal le- | vantado. Ella porém teve um accesso de | riso. || - Espera ainda um minuto, disse ella. | Tu vaes matar-me ; sairás daqui com o | meu pouco outro, mas serás apenas um | maroto vulgar, e Aurora munca te amará. || Cahiu-me o punhal das mãos.|| - Como? bradou Bibi, podias matal-a, | e não o fizeste ? ! || - Não ; estava louco. ||- Afinal de contas, disse philosophica- | mente o homem da policia, parece que o | amor é loucura como qualquer outra, | peior ainda talvez, mas... || Polyte suspirou. || - Continúa, meu rapaz, continúa. Inte- | ressam-me enormemente as tuas pala- | vras. || E Bibi pediu terceira garrafa de limo- | nada, em quanto o janota de fresca data | limpava o suor que lhe escorria da cara.||

Edição 379PONSON DU TERRAIL [espaço]5

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

III || - Ainda não viu rir essa mulher? pro- | seguiu Polyte.|| Si ella se encolerisasse, matal-a-hia ; | mas ella ria, e o punhal cahiu-me das | mãos, || - Vamos, [borrado] tu queres que Aurora te | ame. Isto é claro, meu rapaz. || Já não era uma mulher, era um demo- | nio. || De repente atravessou-me o espirito a | sua lembrança, e peguei outra vez do | punhal. || - Ah ! disse ella, sem se agutar, então | que é isso ainda? || - Quero saber o que fez do meu ami- go. || - Que amigo? || - - Bibi. || - És curioso, meu rapaz, disse ella. || - Quero sabel-o, repeti eu,

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porque há | quinze dias que elle desappareceu ; si | elle morreu, quero vingal-o. || - Então mette o punhal no bolso, por- | que te posso afirmar que elle está bem. || - E não o fez guilhotinar? || - Imbecil ! || E ella ria sempre. || - Mas quero sabel-o, bradei eu. || - Nesse caso, ouve, que tudo saberás. || Seu socego e vynismo desarmavam-me || de novo. || - Falla, lhe disse eu contemplando- a. || - Bibi fez mal em ficar em Paris. Elle|

tinha um passaporte e deveria aprovei- | tal-o, passando-se ao estrangeiro. || - Então succedeu-lhe alguma desgra- | ça ? perguntei eu com um frémito na | voz. || - Sim e não. Está preso, mas não mor- | to. || - Ainda não, ao menos. || - Nem morrerá ; prometto-te eu. || - Então foste tu que o mandaste pren- | der? || - Fui. || - Porque? || - Porque me prejudicava, e eu não | gosto que ninguem me contrarie. Mas, | repito-te que não morrerá. Não está em Conciergerie nem na Abbadia, nem em | nenhuma das prisões que mandam os | seus presos á guilhotina. || - Então onde elle está? || - Em Charenton, encerrado como doi- | do. || - Ora foi essa a primeira vez, inter- | rompeu Bibi, que essa desgraçada fal- | lou verdade. || - Ah ! || - Effectivamente ella fez-me prender | e encerrar como doido, e eu fiquei seis | mezes em Charenton. || - Então bem fiz eu em acreditar, dis- | se Polyte, porque estava escripto que eu | não a assassinaria. || Que se passou desde então entre nós? | recordo-me confusamente ; mas o demo- | nio continuou a sua obra de tentação e | uma hora depois eu estava completamen- | te louco. || Amava Aurora mais que nunca, e que- | ria tornar-me digno della. || Antonia deu-me um rolo de ouro. || - Vae a Paris, me disse ella, veste-te | convenientemente, freqüenta os cafés|

os espectaculos, diverte-te ; quando não | tiveres mais dinheiro, eu t’o darei. || E eu parti. A contar desse dia come- | çou para mim uma nova vida. || Depressa se habitua uma pessoa a gas- | tar dinheiro ; de fórma que ao fim de | oito dias eu imaginava que sempre fora | rico. || E comtudo assaltou-me o medo quan- | do o dinheiro me foi acabando. || Eu não voltarei certamente á casa da | cidadã Antonia, disse eu de mim para | mim; Ella vingar-se-hia e far-me-hia | prender. || Tinha alguns luizes. || Uma noite fui á Opera. A cidadã esta- | va lá. Viu-me, saudou-me com a mão, e | com um gesto convidou-me a ir ao seu | camarote. || Alli não temia eu nada e arriscava- | me. || - Tens dinheiro ainda ? me disse ella. || - Nem muito, disse eu ingenuamente. || - Porque não foste procurar-me ? ||Tive um olhar cheio de eloquencia. || Ella começou a rir. || - - Mas, prosseguiu ella, ha m[u]Ito tem- | pó que te perdoei. Além de que, não és | tu o futuro instrumento da minha vin- | gança? || - Como assim? disse eu naturalmen- | te. || - Porque Aurora amar-te-ha cedo ou | tarde. || Senti o meu coração pulsar precipita- | damente. || - Sabes que és verdadeiramente um | galante rapaz ? disse ella. || E metteu-me na mão um novo rolo de | dinheiro accrescentando : | | - Espero que quando se te acabe, não | te faças creança e vás ver-me. Que te|

direi eu ? continuou Polyte depois de | breve pausa, fiz-me janota e muita vez | | fui á casa da cidadã Antonia, sem que | me succedesse peior aventura do que | voltar com os bolsos recheiados. || Uma noite encontrei-a deitando as | cartas. O cidadão X... estava ao pé della. || Estava inquieta e encrespava as so- |brancelhas. || De repente voltou-se para o cidadão | X... e disse-lhe: || - Ainda estás ligado ao cidadão Robes- | pierre ? || - Ainda. || - Fazes mal, disse ella ; é preciso des- | fazeres-te delle. || - Então porque? perguntou o repre- | sentante. || - Porque vejo a queda delle nas mi- | nhar cartas. || Tres dias depois, effectivamente, che- | gou o 9 thermidor. Mas o cidadão X... | tivera tempo de virar a casaca ; torna- | Ra-se thermidoriano e amigo de Tallien. || - Depois ? disse Bibi. || - Ora ! depois... adivinhe ? a cidadã | Antonia e o cidadão X... são mais podero- | sos que nunca. || - E ficaste seu amigo? || - Não, mas seu pensionista. || - E eis –te janota? || - É o meio de ser amigo de Aurora. || Bibi alteou os hombros. || - Eu estive em Charenton, disse elle, | mas creio que quem endoudeceu foste tu. || - Palavra de honra ! disse Polyte, | acreditei nas cartas da cidadã Antonia. || - E

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que te disseram ellas ? || - Uma noite, ha oito dias, a cidadã An-| tonia deitou-as deante de mim.||

Edição 380PONSON DU TERRAIL [espaço]6

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

III || - Meu filho, me disse ella, vejo Auro- | ra toda vestida de luto. O coronel Dago- | berto..., porque esse ferreiro é coronel | agora o coronel Dagoberto morreu. || - Palavra ? || - Aurora chora, mas consolar-se-ha. | Está próxima a tua hora. || - Ah ! ella disse-te isso ? interrompeu | Bibi. || - Disse, papá. || - E acreditaste-a ? || - Firmemente. || - E é por isso que tu és amigo de An- | tonia ? || - Mas... || - E, si necessário fôr, servil-a-has | contra nós ? || - Isso não , disse Polyte, e , si eu tives- | se a certeza de obter o dinheiro das duas | meninas... || - Para isso vim a Paris. || - Sahindo de Charenton? || - Não. Ha mais de um anno que me | evadi ; estive na Allemanha, e sei agora | onde pára o dinheiro do cofre, disse Bi- | bi. || - Nas mãos dos bohemios? ||- Sim mas ha um meio de lh’o tirar. || - Será possível ? || - Mas eu tinha contado comtigo e ago- | ra... || - Agora, disse Polyte, a quem o re- | morso de sua passada conducta começa- | va a assaltar, agora juro-lhe papá que | não conhecerei outro amo e que farei | tudo o que me ordenar. || - Então deves principiar por não pen- | sar em Aurora. || Polyte suspirou. || - Admittindo mesmo que Dagoberto | fosse morto e que ella esteja viuva, ella, | nunca será para ti. ||

- Tem razão, murmurou Polyte ; eu | estava doido. || - Ah, mas explica-me, interrompeu | Bibi, a razão porque, podendo enterrar | em cheio as mãos na bolsa de Antonia, | tu estás esta noite sem um soldo. || - Já disse que sahi de uma espelunca | onde perdi tudo. || - E porque não procuraste logo a ci- | dada Antonia? || - Ia fazel-o, quando fallamos ; e de- | pois, como vi Nichette? || - Quem é essa Nichette? || - A vendedeira de ramilhetes que está | á porta do jardim, uma linda rapariga. || - Ora essa ? disse Bibi, pois tu ainda | olhas para as mulheres? || -Oh ! disse, Polyte, um verdadeiro | amor não impede que um homem tenha | outros caprichos. || - E sentes esse capricho para com Ni- | chette?|| - Palavra que sim. || - Permitto- t’o, disse o homem da po- | licia em tom paternal. ||Chamou o criado, encartado em rapaz | como no tempo da tyrannia, pagou e dis- | se : |- Vamos ! ||-Aonde? || - Ao jardim. Irás comprimentar a | cidadã Antonia.. || - E espera aqui por mim? || - Não. Apresentas-me (a ella[)] como | um burguez da provincia. || - Mas ella conhece-o. || - E então tu reconheceste-me ? || - É justo, disse Polyte, vamos ! || Depois, olhando para Bibi : || - O caso é que está galantemente me- | tamorphoseado disse elle. || - Ora adeus ! replicou Bibi com um | sorriso. recordamo-nos sempre um pou-| co das profissões antigas. || E, tomando o braço do casquilho, as- | Hiram da loja de bebidas. || Já não era a cidadã Antonia, com a | sua toilette opulenta e de mal gosto, | que provocava a attenção publica nesse | momento, porque sempre havia muita | gente á porta dos jardins do Tivoli. ||

Não, Antonia entrar e perdera-se | nas sombras iluminadas a giorno. || Nichette tinha, porém, um circulo de | curiosos e admiradores em roda do seu | taboleiro. || - Olá ! disse Bibi olhando para a ra- | milheteira, palavra que tens bom gosto, | meu rapaz ! || E effectivamente essa Nichette era | uma linda rapariga. || Alta, delgada, pouco pallida, ella ti- | nha grandes olhos brilhantes, labios ver- | melhos como cerejas e uma farta cabel- | leira negra, em tranças confusas e luxu- | riosas. Bibi examinou-a attentamente. || Recordação súbita lhe perturbou o es- | pirito. ||-Oh ! é exacto ! disse elle. || - Que é ? perguntou Polyte admirado. || Bibi, porém, puxou-o á parte e respon- | deu : || - Ouve bem, que te vou contar a his- | toria de

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um vaso de flôres. || - Mas... || - Ouve, e verás... || - Vejamos ! disse Polyte cada vez mais | admirado. || - Ha vinte annos tinha eu na minha | janella um vaso com uma roseira. Esta | roseira estava apanhada, rachitica, es- | tiolada. Só via sol meia hora por dia. || Certa manhã tive eu a idéa de a levar | ao campo para a casa de um amigo. || Transplantaram-n’a para a terra larga ; | teve ar e luz e no anno seguinte estava | ella enorme e coberta de rosas. || - Explique-se papá ! || - Nichette fez o mesmo ; vive em ple- | no ar. || - Nichette ? || - Sim reconheci-a. O pequenino mons- | trinho tornou-se essa linda rapariga. || - Então conheceu-a ? || - E tu também a conheces. || - Eu? || - Sim. Não te lembras do avorto ex- | quisito e feio que ha tres annos estava em | casa da engommadeira da rua do Petit- | Carreau ? || - Zoé ? || - Sim.||

- Então ? || - Então Zoé é Nichette, a vendedeira | de violetas. || - Ah ! o papá treslê. || - Pois bem ! disse Bibi com accento de | convicção profunda, cortem-me a cabe- | ça si eu me engano. || E empurrando Polyte para diante del- | le fel-o entrar no jardim. ||[espaço] IV [espaço] || A cidadã Antonia dera volta aos jar- | dins, parando ora onde se dançava, ora | sentando-se em um massiço de verdura, | comprazendo-se em ouvir as conversas | amorosas dos peralvilhos e das moder- | mas hectaires, que passeiavam seus hom- | bros nús, sob os candelabros e lanternas | venezianas ; e os que outr’ora haviam | conhecido a bohemia Toinon, a criada | grave da condessa de Mazures, não co- | nheceriam certamente esse ser grotes- | co, coberto de pedrarias e encaixado em | ridícula toillete. || - Entretanto a cidadã Antonia, em | vez de piedade, inspirava respeito e sur- | das invejas. || Primeiramente sabiam que era fabu- | losamente rica. || Depois ninguem ignorava que as suas | relações com o cidadão X... a tornavam | muito poderosa. || Finalmente em pontos de amor, diziam | que era caprichosa, e certa historia cor- | rera em Paris a seu respeito. || Antonia gostava de homens bonitos. | Diziam que uma noite estando ella na Ope- | ra, reparara em um cantor chamado | Bartholomeu ; era italiano como o indi- | cava seu nome. Quase sempre os tenores | são pouco escrupulosos ; Bartholomeu | não o era nada. || Em um entre-acto recebeu elle o se- | guinte bilhete: ||<<Uma mulher fabulosamente rica, | morre de amores por vós. Convida-vos | para cear. Qual é o preço ?>> || Isto era crú de mais. Bartholomeu, | porém, não se importou e escreveu em | baixo, no mesmo bilhete: ||<<Dez mil libras>>||

Edição 381PONSON DU TERRAIL [espaço]7

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

IV ||O bilhete voltou á que tinha escrip-| to, isto é, á cidadã Antonia, que nessa | mesma noite pagou por dez mil libras o | prazer de uma entrevista com o cantor | italiano. || Este gloriava-se, e a historia chegara | aos jardins de Idalie. || Por isso a cidadã era cercada da mul- | tidão de rapazes, os quaes todos se jul- | gavam mais felizes que o tenor Bartho- | lomeu, e tinham mais ou menos necessi- | dade de dez mil libras. || Essa noite, porém Antonia não pare- | cia preocupada por nenhuma phantasia | amorosa. || Encrespava suas espessas sobrance- | lhas, e os olhos brilhavam-lhe com som- | bria chamma. || Sem duvida um pensamento mais sé- | rio, uma inquietação talvez, ou a a amea- | ça de um perigo, a perseguira nesse | mesmo logar de louco deboche, onde tam- | bem se esqueciam as desgraças da ves- | pêra e os cuidados do dia seguinte. || Dir-se-hia que algumas vezes ella pro- | curava alguem que desesperava de en- | contrar. || Ia de grupo a grupo, de quadrilha a | quadrilha, passando indifferente pelos | homens que se esforçavam por se fazer | notar daquella que só mirava as mulhe- | res com singular tenacidade. || Em certo sitio ella estremeceu e pa- | rou de repente. || Passava ao pé della uma joven. || Ia só e parecia que não poderá encon- | trar cavalheiro algum no baile. ||

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Mas Antonia contemplou-a alltenta- | mente e achou-a bella. || Era uma rapariga alta, esbelta, de ca- |

bellos loiros, olhos negros, typo de rara | belleza, e que de resto tinha nos labios | um vago sorriso de melancolia. || Era sem duvida o genero de belleza | que Antonia procurava, porque a bohe- | mia pousou-lhe a mão no hombro e fel-a | parar. || - Perdão, bella menina, disse ella. || A linda loura olhou admirada para | Antonia e disse : || - Que me quer, cidadã: || - Puf ! ahi esta uma palavra que já ninguem usa, disse Antonia. Chame me | antes por senhora, minha pequena. || - Então que me quer, senhora? per- | guntou a pobre rapariga, sem se enfas- | tiar com o apostrophe. || - Não me conhece ? || - Não, senhora ! || - Não vem aqui muita vez ? || - Foi esta noite a primeira. || - É talvez da provi[n]cia ? || - Não senhora, sou de Paris. Mas o | meu bairro não é este. || - E depois talvez que não vá muitas | vezes ao baile ? || - Todas as noites. Mas ordinariamen- | te vou ao salão de Marte. || - Ah ! || - E não voltarei mais aqui porque | não conheço ninguem. || - Depressa se trava conhecimento com | uma rapariga assim linda, proseguiu An- | tonia em tom acariciador, e não lhe fal- | tarão cavalheiros para a proxima qua- | drilha. || - Eu nunca danso, senhora. || - O que ? disse Antonia . || - Nunca danso, repetiu a joven, com | singular accentuação. || - Então porque vem ao baile ? || - Isso é segredo meu. || - E, quando dizia isto, um falso refle- | xô escapou de seus olhos negros. || Antonia não se sensibilisou : pelo con- | trario, fugitiva alegria brilhou no seu | rosto. ||Dir-se-hia que esperava ter finalmen- | te encontrado a mulher que procurava. ||

- Como se chama ? disse ella, tambem | é segredo ? || - Não, senhora, chamo-me Germana. || - E não me conhece? || - Não ; é a primeira vez que a vejo. || - Chamo-me Antonia, disse a bohemia. || - Ah ! || - E sou a mulher mais rica de Paris. || - Parabens, disse a joven com indif-|ferença. || - Desgraçadamente sou só ; não tenho | filhos nem parentes. || - Realmente. || - E aborreço-me. || - E, para se distrahir é que vem aqui? || - Primeiro para isso, minha filha. E... | depois... || - Depois ? disse a joven. || - Procurar alguém || - Que não encontra? || - Que julgo ter encontrado. || Fallando assim, Antonia sentara-se no | banco, e fizera sentar a loira ao pé del- |la. || Esta obedecera com indiferença e olhou para Antonia continuou : || - E esse alguem é a menina. || - Eu ! ? || - Sim. || Um sorriso assomou aos labios da jo- | vem loira. || - Mas a senhora conhece-me tanto co- | mo eu a conheço. || - É verdade ; mas ha sympathias mys-| teriosas e instantaneas. || - Não comprehendo, senhora. || - Vou explicar-me. Eu procuro uma | mulher. || - Bom ! || - Joven e bonita como a menina, e da | qual eu possa fazer minha amiga. || E com quem partilharei a minha for- | tuna. || Amargo sorriso reappareceu nos la- | bios da joven. || - Senhora, disse ella, eu não posso ser | amiga de ninguem. || - Nem de mim ? || - Nem da senhora.||

- Mas eu sou rica, disse Antonia. || - Já m’o disse. || - E adoptal-a hei. || - Obrigada. || - Crear-lhe-hei uma vida de luxo e | prazer. || A joven loira levantou-se. || - Senhora, eu venho ao baile todas as | noites, mas não é para me divertir. || - Então para que? || - Para me recordar. Desculpe, si não | a posso ouvir por mais tempo. || E Antonia estremeceu, quando a jovem | abriu o manteo que lhe cobria os hom- | bros. || A jovem tinha ao pescoço um fio de se- | da encarnada, á maneira de collar ; mas | esse fio era tão delgado que parecia o | sulco sanguinolento que a faca da gui- | lhotina deixa, ao passar. || A jovem loira estava filiada no baile das victimas. || - Ah ! meu Deus ! murmurou Antonia | estupefacta, que bem me dirigia eu, real- | mente ! ella é uma aristocrata. || - Talvez... || E a loira com um sorriso amargo sau- | dou Antonia e partiu. || Reappareceu a ruga que Antonia ti- | nha na fronte, e que por momentos se | apagara. || - Vamos, murmurou ella, toca a re- | começar ; mas aquella tinha a belleza mysteriosa e fatal de que eu precisava | para realisar os meus projectos. Procu- | remos ainda. || Antonia deixou o banco onde estava, | e continuou o passeio através do baile|| De repente achou-se de face de dois | homens que caminhavam em sentido in- |

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verso. || Um era Polyte, o outro era Bibi. || - Ah ! até que afinal, disse ella, vem- | do o casquilho. || - É verdade, disse Polyte. || E beijou galantemente a mão cheia de | anneis da temivel bohemia. || Antonia olhou para Bibi. ||

Edição 382PONSON DU TERRAIL [espaço]8

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

IV ||Bibi estava tão metamorphoseado, da- | va-se tão bem a figura e ar de um pro- | vinciano, recentemente desembarcado e | embasbacado por tudo o que vê, que An- | tonia não o reconheceu. || - Porque não vieste comprimentar- | me mais cedo, meu galante ? perguntou | Antonia. || - É preciso confessal-o ? disse Polyte, | sorrindo. || Mas sem duvida. || - Chego agora mesmo. || - E são duas horas da manhã? || - É verdade meu Deus. || - Então passaste a noite em algum lo-| gar mau? disse Antonia. || - É verdade isso. || - Jogaste e perdeste? || - Exactamente! || - Mau foi isso ! disse Antonia, sorrin- | do. || Dep[o]is, em tom de indulgencia : || - Perdeste muito. || - Tudo o que tinha. || Depois, piscando o olho Polyte ac- | crescentou : || Felizmente encontrei este á | porta. || - Quem é ? perguntou desdenhosamen- | te Antonia. || - Um provinciano, respondeu Polyte |

baixando a voz, e que vos imaginava a | madama Tallien. || Antonia começou a rir. || - Offereci-me para o guiar, e elle pa- | gou-me a entrada, porque eu não tinha | nem um triste soldo. || Antonia metteu-lhe um luiz na mão. || - Vae procurar-me um bouquet, dis- | se ella ; desfaz-te do teu provinciano e | volta. Preciso de fallar comtigo. || Polyte comprimentou Antonia, deu o | braço a Bibi e arrastou o para a porta do jardim, onde esperava encontrar Ni- | chette. || - Ella não me reconhece ! disse Bibi. ||[espaço] V [espaço] || Mal Polyte e Bibi deixaram Antonia, | quando se encontraram com um perso- | nagem de não menos singular aspecto | que a bohemia. || Como homem, era o que Antonia era | como mulher. || De figura pardacenta, olhos negros, | cabello encrespado, typo bohemio ; e, | estranha, cousa, feio em vez de bonito, | porque essa raça maldita é ordinária- | mente dotada de belleza rara e fatal. || O mesmo indicio de mau gosto no seu | todo ; e de resto a mesma profusão de | anneis nos dedos e de diamante na ca-| misa. || Não estava á vontade no seu traje de | peralvilho, e parecia procurar alguém | através dos jardins, onde sem duvida | vinha pela primeira vez. || Polyte parou e começou a rir. || - Ora aqui está, disse elle, o homem | feito de propósito para Antonia. || - É verdade, disse Bibi, que pareceu | presa de leve commoção. ||

O bohemio parecia bastante preoccu- | pado, para reparar nos que olhavam | para elle. || Passou por ao pé de Bibi e de Polyte | sem ao menos lhes conceder um olhar. || - Aposto em como procura Antonia, | disse Polyte. || - É provavel, respondeu Bibi. || - Ah ! julga-o ? ||- Talvez. || - Mas, continuou Polyte, dir-se-hia | que o papá o conhece. || - E conheço effectivamente. || - Ora essa ! ||- E por causa delle é que eu vim a ||Paris. || - Ah ! disse Polyte redobrando de cu- | riosidade. || Já não era Polyte, era Bibi que apres[sa]-| damente fazia descer aquelle para a por- | ta do jardim. || - Que mosca o pica, papá ? perguntou | Polyte que sabia que Bibi era presa de | certa emoção. || A’ esquerda da porta, á entrada, ha- | via um pequeno massiço de verdura, | completamente deserto. || Bibi levou para ahi Polyte, fel-o sen- |tar em um banco junto delle, e disse-lhe: || - Conversemos depressa, e com pro- | veito. || - Falle papá. || - Não me mentiste tu, ha pouco ? || - Como assim ? || - Quando me disseste que estavas sem- | pre prompto a servir-me, e, por conse- | quencia a ajudar-me a rehaver a fortu- | na das duas meninas? || - Papá, respondeu gravemente Poly- |

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te, repito que póde contar commigo para | a vida e para a morte || - Bem. Então posso fallar. || Bibi ordinariamente impassível, pa- | recia muito agitado nesse momento. || - Levarás um bouquet a Antonia | quando eu partir, prossegui o homem | da policia. || - Pois vaes deixar-me ? || - Vou porque tenho bastante que fa- |zer esta noite. Não me disseste há pou- | co que a bohemia te revelára ter con- | fiado o dinheiro ao chefe da seita? || - Pelo menos ella assim o affirmou. || - E disse a verdade. || - Assim o creio. || - Pois esse chefe é o homem que aca- || bamos de encontrar. || Polyte estremeceu e olhou para Bibi | com mais attenção. ||Bibi continuou : || - Elle vem a Paris procurar Antonia, | e vão encontrar-se agora. || - Bom ! || - Ora, já que estás nas boas graças da |bohemia, fácil te é fazer-me um pequeno | favor. || - Qual ? || - Vigial-os, saber si elles vão ambos, | e vir dizer-m’o á minha casa, na rua dos | Bons-Enfants, numero 1. || - Amanhã ? || - Amanhã ou esta noite, pouco impor- | ta ! esperar-te-hei. || - Mas... || - Mais tarde saberás o resto, disse | Bibi ! Adeus ! || Apertou a mão a Polyte e deixou pre- | cipitadamente o baile.||

Edição 383PONSON DU TERRAIL [espaço]9

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

V || - Palavra de honra ! murmurou então | Polyte, esta é a noite das aventuras ! | E com os olhos seguiu o homem da po- |licia, seu antigo amigo, subiu para um | dos carros que estacionavam na praça, | e desceu a rua do Monte Branco. || Só quando o carro desappareceu é que | Polyte se lembrou do bouquete de Anto- | nia. || Então dirigiu-se á praça onde ordina- | riamente estava a ramilheteira Nichet- | te. || A praça porém era deserta. || Uma mulher que estava á porta adivi- |nhou o que Polyte procurava. || - A ramilheteira entrou no jardim, | disse ella. || Polyte voltou atraz ; e, por mais que | procurou Nichette, não a encontrou. || Foi no sitio onde deixara Antonia ; mas | Antonia não estava alli. || E, quando Polyte recomeçava as suas | peregrinações , avistou o estranho per- | sonagem, cuja apparição subita occasio- | Nara tão viva emoção a Bibi. || O bohemio estava sentado a uma pe- | quena mesa, onde um dos criados do es- | tabelecimento lhe tinha servido um sor- | vete. || Atirando á volta de si um olhar negro | e profundo, esse homem examinava tudo | através dos pares dançantes que passavam | em turbilhão, e parecia embeber-se na um- | sica e enebriar-se com o ruido e com a | luz. ||

- Creio que Bibi se enganou, pensou | Polyte. Este homem vem aqui como cu- | rioso, e, de fórma alguma, para procu- | rar Antônia. || E Polyte continuou a passear pelo jar- | dim. || De repente, porém, parou. || - Que diabo ! murmurou elle, ora isto | é que é exquisito ! || Tinha visto a um canto Antonia con- | versar com uma joven, cujas mãos tinha | entre as della, e que parecia contem- | plal-a com amor. || Essa jovem era a ramilheteira Nichet- | te. || Antonia fallava com animação, e a Jô- | vem ouvia-a tão attentamente que NE- | nhuma dellas viu Polyte, que então dis- | se de si para si: || - Gostava de saber o que se passa en- | ter ellas. || Antonia e Nichette estavam encosta- | das a um massiço de verdura ; e Polyte, | dando alguns passos para traz, desviou | o massiço e veio quase para junto dellas, | por-se á escuta. ||[espaço com 15 pontos finais]||Eis o que tinha succedido. || Antonia esperara por Polyte a quem | tinha mandado buscar um bouquet. Mas, | como Polyte não se apressasse a vir, e , | como Antonia lhe tivesse dado tal mis- | são só pra se ver livre delle, posera-se | a caminho olhando todas as mulhe- | res, não encontrando em parte alguma | a quem procurava ; e isto conhecia-se por | que um gesto de despeito e desespero | lhe escapava ás vezes. || Nichette

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porém apresentara-lhe um | bouquet de violetas. || Antonia sentiu repentina commoção | electrica ; e comtudo não era a primeira | vez que via Nichette. || Ela estava sempre á porta dos jardins |

do Tivoli e Antonia ia alli todas as noi- | tes. || Mas Antonia passava sem reparar ; e | sem duvida nunca encontrou o olhar ne- | gro e profundo da ramilheteira. Desta | vez, sim que estremeceu dos pés até a | cabeça. || - Como te chamas tu, minha bella me- | nina? disse ella. || - Nichette, senhora. || - E és ramilheteira. ? || - Como se vê. || - Vendes muito ? || - Alguma cousa. || - E esta noite ? || - Só tenho tres bouquets. || - Eu fico com elles, disse Antonia. || E collocou uma moeda de ouro no ta- | boleiro. ||Nichete levantou-se e ia retirar-se ; | Antonia porém reteve-a. || - Como vendeste os bouquets não tens | que fazer agora ; não é assim? || - Sim senhora . || - Queres conversar um bocadilho | commigo ? || Nichette atirou á bohemia um olhar |de admiração. || - Olha que não te arrependes, disse | Antonia. Conheces-me ! ? || - Todo mundo a conhece. Não se | chama a cidadã Antonia ? || - Precisamente ; então sabes que sou | rica ? || - Sim senhora. || - Rica a ponto de fazer chover ouro, | si quizer, das minhas janellas. || - É bem feliz, minha senhora. || - Pois eu tambem te posso fazer feliz | e rica, disse Antonia. || - A mim ? || - A ti, sim. || Nichette olhou para Antonia com um | ar que queria dizer :||

- Porque caçoa commigo? || Mas de repente estremeceu, como si | longínqua recordação lhe atravessasse o | pensamento. || - Oh ! murmurou ella, parece-me que... || - Que te parece, pequena? || - Que já a vi, minha senhora. || - Eu venho aqui todas as noites. || - Sim, sim ; ; mas não foi aqui que eu | a vi. || - Então aonde?! || - Não sei,.. sei, sei ; mas... não... | não é possivel , balbuciava Nichet[t]e|| Antonia pegou-lhe no braço e levou-a | para o banco junto do mássico de verdu- | ra, por traz do qual Polyte estava es- | condido. || - Então, explica-te, disse ella. || [espaço] VI [espaço] || A’ medida que Nichette contemplava | attentamente a cidadã Antonia, parecia | desfazer-se um véu que pesava na sua | memória. Emfim ella exclamou : || - Oh! não me engano, era a senhora. || Antonia tinha menos memoria que Ni- | chette, e perguntava a si mesma si a ra- | milheteira não estaria enganada por | uma falsa semelhança. Mas Nichette dis- |se-lhe : || -A senhora não quis mandar guilhoti- | mar duas meninas? || Antoni[a]o estremeceu. || - Ha tres annos ; eram duas irmãs ; | uma chamava-se Aurora e a outra Joan- | na... || - Como sabes isso? || - Um dia a senhora foi á rua do Petit- | Carreau, vestida de mendiga. || - É verdade. || - E fallou commigo. || - Comtigo? || - Sim, senhora. ||

Edição 384PONSON DU TERRAIL [espaço]10

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VI || De repente Antonia deu um passo para | traz. || - Ah ! já me lembro ; creio que me re- | cordo... mas era uma rapariga tão pe- |quena ... magra, pallida, rachitica... || - Era eu, disse a ramilheteira. || - É possivel ? || - Era eu, disse a ramilheteira com | uma accentuação, de cuja sinceridade | ninguem podia duvidar. || - Então tu chamas-te Zoé ? || - É o meu verdadeiro nome. || Antonia olhava sempre para a rami- | lheteira. || - Mas é que tu és linda de uma vez ! | disse ella. || - Oh ! minha senhora, respondeu | modestamente Nichette. || - Mas conta-me lá a tua história, mi- | nha querida ? || - Oh ! disse Nichette, e não é com- | plicada. A minha ama , a mãe Simão, poz- | me á porta, quando as duas meninas | foram salvas. || - E depois ? || - Ora, depois ! depois corri as ruas | da cidade. || Primeiramente mendiguei, e depois | encontrei um cidadão velhote que me | deu vestidos e moveis. Eu mal tinha qua- |

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torze annos, mas o maroto do velhinho | gostava de fructa verde. || - E depois ? || - Era um homem poderoso, emprega- | do da communa. No fim de um mez já | eu fazia delle o que queria. Então instei | para que ele mandasse prender o mari- | do da minha ama, esse Simão que me |

tinha expulsado, dando-me um pontapé || - E elle concordou? || - Sim, senhora. || - Prenderam Simão? || - Prenderam, mas não o guilhotina- |RAM ; mandaram- n’o para as galés com | os ladrões ; eu antes quis assim. || - Então tu ainda és má? || Nichette teve um sorriso infernal e | disse : || - Vingo-me. || - Mas que tinhas feito as duas meni- | nas? || - Eu tinha inveja de que ellas fossem | mais lindas que eu. || - E ainda as detestas ? || - Sempre, posto não saiba onde ellas | param. || - E far-lhes-hia mal, si as encontras-|sés? ||- O mais que podesse. || - És uma rapariga amável, disse An- | Tônia, depondo um beijo na fronte da ra- | milheteira. || E depois com a sua voz acariciadora : || Mas continua : conta-me a tua his- | toria. || - Como todo gosto senhora. || E Nichette proseguiu : || - Ia-me enfadando o velho do cidadão. | Lançava-me sempre em rosto o ter-me | arrancado da rua. E então, por uma | bella manhã, desembaracei-me delle. || - E como ? || - Elle dizia-me patriota, cantava o Ça tra e a Marselheza , patriota,Ni- | | chette, e era amador assíduo da praça | da Revolução, no fundo, porém , era | aristocrata, occultava o seu verdadeiro | nome e emretinha uma corresponden- | cia com os realistas, aos quaes servia de | espião. || - Ah ! Ah ! || - Então roubei-lhe as cartas e man- | dei-as á policia. Prenderam-n’o e elle | ficou arranjadinho. || - Guilhotinaram-n’o?||

- Sim, senhora. || - Encantadora rapariga ! murmurou | Antonia. E depois ? || - Depois, como eu amei um rapaz que | me espancava, e depois um outro que | me batia também, e em seguida mais ou- | tros ainda, resolvi fazer-me ramilhetei- | ra, porque os homens pouco valem. || - Então já não amas ninguem ? || - E farte-hias amar, si necessario fos- | se ? || Nichette teve um olhar e um sorriso | que queriam dizer : << Eu sei o que se | deve fazer para isso. >> || - Eu procurava ha pouco uma mu- | lher que fizesse perder a cabeça a um | homem, replicou Antonia. Quem sabe? | talvez que eu a encontrasse agora. || - Talvez ! é possivel, disse modesta- | mente a ramilheteira ; principalmente, | si eu me der a isso. || Antonia pegou-lhe o braço e disse : || - Vem commigo. || - Aonde vamos, senhora ? || - A ‘ minha casa. || - Fazer o que ? || - Quero que ceies com o homem que | deve amar-te. || - Ah ! disse Nichette. || - E depois de certo silencio, proseguiu : || - E é bem rico esse homem? || - Que te importa ! si eu o sou... e te | pertence o que eu possuo. || - Ah ! minha senhora, não zombe de | mim. || - Juro-te que não zombo, minha filha. || - Palavra ? || - És bonita, viciosa, má, vingativa, e | aborresces ainda essas duas mulheres, | que tinham a audacia de ser mais for- | mosas que tu.|| E aborrecerei sempre ! disse Nichet- |te. || - Realisas pois o ideal que eu procu- | rava. Vem ! adopto-te. || - E Antonia arrastou a ramilheteira. ||

Então Polyte sahiu do esconderijo e | limpou a fronte banhada de suor ; de- | pois, vendo-as seguir, disse : || - Bibi tinha razão. A ramilheteira | Nichette e a pequena Zoé são uma só. | E eu que estava amoroso de semelhante | monstro ! || E Polyte teve um gesto de horros, fa- | zendo depois a seguinte pergunta : || - É verdade. A que homem destinará | Antonia a sua Nichette? || E resolveu seguil-as de certa distan- [cia]||[espaço com 15 pontos] || Antonia e a ramilheteira dirigiram-se | para a porta ; e Polyte seguiu-as sem- | pré de longe || Subitamente Antonia parou. || - Que ha, senhora ? perguntou Nichet- | te. || - Olha ! || E Antonia apontou para o exquisito | personagem que Bibi e Polyte já tinham encontrado. || Esse homem estava sentado a uma | mesa, sob um caramanchel de clémati- | tes, e bebia a pequenas golos, uma gar- | rafa de tokay, que já tinha pago com | um luiz de ouro. || Parecia tão absorto nessa occupação, | que nem voltou a cabeça e não viu as | duas mulheres, que o examinavam. || Antonia tinha-se escondido por traz | de uma arvore. || - Vês esse homem ? disse ella baixi- | nho. || - Sim senhora. É bem feio. || - É rico e poderoso || - Ah ! || - Tão rico

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como eu, e tem tanto ou | mais poder na Allemanha, como eu aqui. || - E então ? || - Então é elle. || - O homem por quem me devo fazer amar? || - Sim. ||

Edição 385PONSON DU TERRAIL [espaço]11

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VI || Nichette primeiro fez uma visagem de| despeito ; depois um sorriso cynico lhe |assomou aos labios. || - Emfim, disse ella, já que elle é ri- |co... || - Vem ! não quero que elle te veja | aqui. || - Então porque ? senhora. || - Eu t’o explicarei logo. || - E Antonia continuou a arrastar a ra- | milheteira. || O carro multicolor da bohemia estava | ainda á porta. || Antonia fez subir a ramilheteira, com | grande espanto dos curiosos e ociosos | que occupavam as aproximações dos jar- | dins. || Uns diziam : - Essa mulher é mais ori- | ginal que uma ingleza. Outros inveja- | vam a boa fortuna de Nichette. || Um homem exclamou : || - Que quererá fazer daquella deslei- | xada? || - Uma princeza, respondeu outro, |rindo. || O carro desappareceu em nuvens de | pó. || Então Antonia disse a Nichette : || - Esse que viste é o chefe da raça a | que pertenço. || - E que raça é essa ? senhora. || - Eu sou bohemia. || - E então esse homem é bohemio? || - É nosso rei. ||

- Bravo ! então serei eu rainha. || - Si quizeres e souberes seduzil-o. || - Hi ! hi ! será ratão, disse a rami- | lheteira, ser rainha em Paris durante | | a republica. || Antonia proseguiu : || - Esse homem veio a Paris para res- | tituir uma somma importante. || - A quem ? || - A quem ella foi roubada. || - Então elle esta de posse dessa som- | ma ? || - Sim. || Os olhos de Nichette relampaguearam || - Trata-se, continuou Antonia, de lhe | fazer perder a cabeça e impedir essa res- | tituição. || - E eu terei esse dinheiro ? || - Ao menos uma boa parte. || - Bem. Faça-me encontrar com elle | e deixe-o cá a minha conta. || - Para isso é que eu te levo á minha | casa. || - Então porque não quis que eu o vis- | se ha pouco ? || - Porque quero enfeitar-te como um | ídolo. É preciso que fiques bella como | uma deusa. || - Já entendo, senhora. || E Nichette confiou-se então cegamen- | te a cidadã Antônia. ||[espaço com 15 pontos finais]||Durante este tempo, Polyte vigiava o | extranho personagem, que bebia deva- | garinho a garraga de tokay. || Emfim o chefe dos bohemios, como lhe | chamava Antonia, levantou-se e deixou | os jardins da Idalie. || Polyte seguiu-o. || Estava á porta uma citadine, carrua- | gem moderna então. O chefe dos bohe- | mios subiu para ella. || - Para onde vae, meu burguez ? per- | guntou o cocheiro. ||

- Para a casa da cidadã Antonia, res- | pondeu elle com uma forte accentuação | germanica. || - Prompto ! disse o cocheiro, sacudin- | do o chicote sobre os cavalos. || A citadine partiu, e Polyte que ouvi- | ra a ordem dada ao cocheiro, disse : || - Bibi mandou-me procural-o em sua | casa, na rua dos Bons-Infants, a qual - | quer hora do dia ou da noite, logo que | o bohemio partisse com Antonia. || Não partiram ambos, mas é a mesma | cousa. Já que elle vae á casa della : além | de que, Nichette é delles, cousa de que | Bibi não duvida. || E Polyte deitou a correr na direcção | da rua dos Bons-Infants. Bibi espera- | va-o. || O casquilho encontrou o homem de po- | licia sentado a uma mesa, desdobrando | uma volumosa correspondencia || - Então ? disse Bibi levantando a ca- | beça. || Em poucas palavras fez Polyte a sua | narração. || Bibi encrespoua as sombrancelhas. || - Quando de uma natureza má, como | a da pequena Zoné, SAE tão má filha como | Nichette, devemos esperar até o fim. | Felizmente que a conheci. || Depois, olhando para Polyte, Bibi ac- | crescentou : || - Mas tu não podes comprehender-me | Para isso seria preciso contar-te o que, | alguns mezes ha, se passou na Allema- | nha. || - Pois bem, papá, queira contar, que | eu o ouço. ||Ora é exactamente a

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narrativa que | Bibi faz dos acontecimentos de que a Al- | lemanha foi theatro, que nós vamos pôr | em acção para maior intelligencia da | nossa obra. ||

Edição 386PONSON DU TERRAIL [espaço]12

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VII || Por uma tarde de Novembro do anno | de 1794, dois viajantes, um homem e uma | mulher caminhavam fatigados pelas | margens do Rheno, dirigindo-se a Co- | blentz. || O homem já era velho. Seus cabellos, | de um negro de ébano, eram feridos por | alguns fios de prata, e sua fronte sul- | cada de profundas rugas, tinha os vesti- | gios de uma vida longa e agitada. || Era joven a mulher que os acompanha- | va. Teria dezoito ou dezeseis annos ? nin- | guem o poderia dizer, porque, como o | seu companheiro, pertencia a esta raça | nomade, que vem, não se sabe de onde, | que atravessa o mundo sem quase nun- | ca parar, e que se chama a grande fami- | lia dos bohemios. || Qual é a sua origem ? que terra foi o | seu primeiro berço ? || Mysterio impenetravel. || Segundo uns, vêm do extremo orien- | te, e por muito tempo viveram no Egyp- | to. Segundo outros, foi a Bohemia a sua | primeira patria. || Mas ninguem sabe mais nada, e elles | muito menos. || Ora estes dois personagens caminha- | vam ao lado de um outro, por essa es- | trada desegual, lamacenta, fendida pelas | ultimas chuvas, e de onde as carretas da | artilheria tinham aberto poças profun- | das. Não era noite ainda ; mas não se | podia considerar como luz do dia a espe- | cie de crepúsculo ennegrecido, que per- | mittia ver ainda confusamente o campo | deserto, assolado pela guerra, os velhos |

burgos sem telhado que dominam o Rhe- | no, e ao longue a flecha ponteaguda de | um campanario. || Foi esse o ultimo objecto que attrahiu | a attenção da joven, que disse ao seu | companheiro, apontando para o campa- | nario : || - Ó pae, aquilllo não é a cathedral de | Coblentz? || - Não ; tu bem sabes que ha uma hora | perguntamos que distancia estávamos | ainda da cidade, e que o aldeão nos res- | pondeu : <Cinco leguas> || - Pois bem ! pae, então ainda ha uma | hora de caminho? || - Quase. || - Temos caminhado tanto. || - Pobre criança ! disse o velho bohe- | mio ; e lançou á filha um olhar cheio de | compaixão e ternura. || - A jovem suspirou. || - Principio a estar bem cançada, pae. || - Queres que te leve ao collo, minha | filha?|| - Oh ! não, meu pobre pae ; tambem | hás de estar bem cançado, não estas? || - Si ha tanto tempo que nós caminha- | mos... || - É verdade, trinta e tantas leguas, | pelo menos, disse a joven. || E depois, olhando de revez para o pae: || - E caminharemos ainda muito ? disse | ella. || - Não, respondeu o bohemio, estamos | no termo da nossa viagem. || - Ah ! e não vamos mais longe do que |a Coblentz ? || - Não. É ahi que nós ficaremos quin- | Zé dias talvez. || - E... depois ? || - Depois voltaremos ás nossas flores- | tas e ás nossas montanhas, não mancha- | das ainda pelas hordas estrangeiras, dis- | se o bohemio em tom feroz. || - E iremos pelo mesmo caminho ? || - Com pequena differença.||

E, como a jovem soltasse um gesto de | espanto, o bohemio sorriu dizendo : || - Socega, Móina, nós viemos a pé, mas |prometto-te que voltaremos de carrua- | gem. || - Ella olhou para elle com um olhar ao | mesmo tempo triste, desvairado e cu- | rioso que poderia traduzir-se assim : || - Eu respeito os seus segredos, por- | que é meu pae, mas juro que todos | esses mysterios me magoam bastante. || O bohemio, adivinhando aquelle olhar, | disse a sua filha: || - Ouve Móina [mancha] quando souberes de | que missão estou encarregado, perdoar- | me-has todas as fadigas que te faço pa- | decer. || - E é bem importante essa missão? | disse ella. || - É, minha filha. || - Móina suspirou uma vez ainda e es- | perou ; mas

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seu pae não parecia dispôs- | to a satisfazer de prompto a sua curio- | sidade. || - Quando estivermos em Coblentz sa-| berás tudo, disse elle ; antes não. || - Móina ficou um pouco amuada. || - Vamos minha filha, disse ainda o | bohemio, animo ! Estamos no fim do nos- | so ultimo dia de fadiga ; juro-t’o e tu as- | bes que Munito nunca mentiu. || - É verdade, disse ella, um pouco en- |vergonhada do seu arrufo. || E a bella menina lançou os braços ao | pescoço do bohemio e abraçou-o terna- | mente. || O crepusculo fugia pouco e pouco, o | campanario aproximava-se, ou para me- | lhor dizer, os dois viajantes contavam | pouco a pouco a distancia que os sepa- | rava delles. || Não era o campanario de Coblentz ; | porque Coblentz é uma grande cidade, e | não tem só uma torre, mas dez ou quin- | ze .|| Ora aquele campanario estava apenas|

rodeado de algumas pobres casas, que | mal constituiam um pouco de cem fogos. || - Dormiremos ali, porque bem vejo | que não poderemos chegar esta tarde a | Coblentz. || - Então porque? pae. || - Porque é quase noite, os caminhos | estão cada vez peiores, e tu vaes muito | cançada. || - É verdade, respondeu ella. Mas já | que estamos no termo da nossa viagem... || - Sem duvida, minha filha, mas Co- | blentz já não é agora uma cidade allemã. || - Ah ! || - Esta em poder dos francezes. || - Mas então esses homens estão senho- | res de tudo ? disse ingenuamente a joven. || - De tudo, murmurou o bohemio com | voz surda, em quanto que s[u]as negras | pestanas deixavam sahir um relâmpago | de odio. || Pois bem ! disse ainda Móina, e que | temos nós com isso ? importam-nos AL- | guima cousa [mancha] elles ? || - Não, mas... || - Mas que ? disse ella com impaciem- | cia. ||- Como todas as cidades estão occu- | padas militarmente, fecham-se as portas | ao escurecer. || - E ninguem mais entra ? || - Ninguem. Bem vês que devemos | dormir naquelle povo. || - Assim é preciso, murmurou a joven | resignada. || Caminharam um momento silenciosa- | mente ; depois Móina continuou : | - Ó pae tu dizes que voltaremos de | carruagem? || - Sim, filha. || - Então teremos dinheiro em Coblen- |tz? || - Sim, Móina, disse o bohenio sorrin- | do. E é tempo de chegarmos, porque eu | estou com os meus ultimos thalers da | Prussia. ||

Edição 387PONSON DU TERRAIL [espaço]13

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VII || Móina não respondeu nada ; tornara- | se seismadora. Appareceram-lhe final- | mente as primeiras casas do povo. || Então a criança cançada recuperou | um resto de força e ageitou as correias | de um sacco de viagem que trazia ás cos- | tas. || O pae, que levava egual, imitou-a ; e | elles deram mais galhardamente os ul- | timos passos. || Á esquerda, na margem da estrada, | havia uma casa edificada de tijolos ver- | melhos ; e por cima da porta, o tradi- | cional ramo de azevinho que indicava | uma estalagem. || Finalmente por baixo a palavra alle- | mã : || [espaço] GASTHAUS [espaço] || Um rapaz de doze a quinze annos es- | tava á porta sentado em um banco ; e | ao ver chegar os dois viajantes, mirou- | os curiosamente. || O bohemio saudou-o dizendo : || - Bons dias, pequeno, és da casa ? || - O estalajadeiro é meu pae. || - Elle dá-nos hospedagem ? || -Não [mancha] sei, respondeu o rapaz, que | olhando para Móina ficou como que des- | lumbrado da belleza della. || - Então esta casa é uma estalagem? | disse o bohemio. || - É ; mas os francezes passaram aqui | esta manhã || - E dahi? || - Roubaram-nos tudo. || Um homem sahiu neste momento do | interior da casa e disse, olhando descon- | fiado para Munito e sua filha : ||

- Que é? que é lá? que quer essa gen- | te ? || Era um homem alto, de perto de qua- | renta annos, alto e magro, cabellos ama-| rellos, olhos azues sem brilho e um gran- | de aspecto de

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tristeza. || Munito disse-lhe: || - Somos uns pobres viajantes cança- |dos e cheios de fome e sede. || O allemão respondeu : || - Esta manhã ainda eu era estalaja- | deiro, agora porem já não o sou, minha | boa gente. || - Então porque? perguntou Munito. || - Vieram os francezes. || - E dahi? || - Esvasiaram-me a adega e acaba- | ram-me as provisões. || - Sem pagar? || - Sem pagar. Fizeram mais, levaram- | me o pouco dinheiro que eu possuía. || O bohemio cerrou as mãos e olhou | para o céu com tal expressão de dor e | odio, que o allemão estendeu-lhe os bra- | ços dizendo: || - Bem vejo que é pae. || - Depois, tomando a mão da joven, | ajuntou : || - Mas entrem. Repartiremos o resto | de toucinho e choucrute ; passam a noi- | te aqui, e amanhã podem pôr-se a cami- | nho. || E installou-os junto do fraco fogo que | havia na primeira sala da hospedaria. || - Com se chama este povo ? pergun- |tou o bohemio. || - Folsbach, respondeu o estalajadeiro. || - Os francezes ocuparam-n’o ? || - Durante tres dias ; o bastante para | nos arruinar para todo o anno. Houve | uma batalha há quinze dias, e não nos | resta de pé nenhuma planta de trigo ; | os cavallos esmagaram tudo. || Móina a pequena bohemia, sentára-se em um banco junto a chaminé, e che- | gava ao fogo as suas mãos azuladas pelo | frio. ||Munito olhava em redor, como si pro- | curasse alguem. || O estalajadeiro comprehendeu esse | olhar. || - Ah ! talvez se admire de que não| haja aqui uma mulher ? || - É verdade. || - Minha pobre mulher morreu há | quinze dias, disse lamentosamente o al- | lemão, enxugando uma lagrima, em- | quanto que o rapaz, á lembrança da mãe, | começava a chorar. || A dor daquela pobre gente commoveu | o bohemio e a filha, fazendo-lhes esque- | cer as fadigas. || O allemão desdobrou a mesa e pôz so- | bre ellas um bocado de toucinho, rodea- | do de choucrute, metade de um pão e | uma garrafa de cerveja. || - É tudo o que me deixaram. || Munito tirou da algibeira uma bolsa | de couro, que ainda tinha tres thalers ; | pegou em um e deu-o ao rapaz. || - Não ha aqui um padeiro? || - Ha, disse o estalajadeiro. || - Então vae comprar pão. || O rapaz pegou no thaler e partiu. || Tres minutos depois voltou a correr, | dando todos os siguaes de violento es- | panto. || - Pae ! pae ! disse ella, tenho medo ! ... || - Que ha de novo ? ! perguntou o al- | lemão. || - Os francezes ! || - Como ? || - Voltam. A estrada está cheia del- | lês... Ouça.... não ouve os passos dos ca- | vallos ? || - É verdade. || Depois o allemão accrescentou com | sorriso triste: || - E dahi que queres tu que nos levem, | si já nos levaram tudo? || Mas Munito olhava para a filha com | inquietação, e sua mão apertou convul-| sivamente o cabo da faca, de lamina trian- | gular, com que elle comia. || Móina estava tão bella. ||

Edição 388PONSON DU TERRAIL [espaço]14

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VIII || Fallára verdade o rapaz, os francezes | avançaram. || Um corpo do exercito que na vespera | passára pelo povo , vindo de Mayence, | deixára atraz alguns desertores, malva [-] | dos, soldados maus e cobardes que pre- | feriram o roubo á batalha. ||Eram trinta, que o filho do estalaja- | deirou vira na praça da villa. || Era uma amostra de todas as armas, |artilheiros, infantes, sargentos, um of- | ficial e soldados. || O official era um hussard ; e comman- | dava essa tropa sem nome que pelas es- | tradas se agrupára pouco e pouco a vol- | ta delle. || Quando estavam reunidos no largo em | frente da igreja, o official disse : || - Camaradas, daqui a Coblenz ainda | é longe, e eu convido- os todos a fazerem | como eu : deitar aqui. Tendes sabres e | pistolas ; é a melhor moeda para pagar | ceia e cama. || Então dividiram-se aos grupos de dois | e tres, e cada um desses grupos esco- | lheu o [a] casa onde havia de ficar. || Ora mal voltou o filho estalajadei- |ro, correndo o caminho, bateram rude- | mente á

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porta. || O estalajadeiro tremulo foi abrir. || Apresentaram-se-lhe tres homens : o | official de hussards e dois cabos de in- | fantaria. || Á primeira vista, com as insignias do | seu posto em uniforme de farrapois, de- | veria socegar os seus hospedeiros; olhan- | do-o porém de frente, experimentava-se | súbito sentimento opposto, uma especie | de terror e de desgosto. ||

Esse homem a quem chamavam o te- | nente Dachin, era um dos ultimos alis- | tados em 1792. || Filho de Paris do arrabalde de S. | Marçal, massacrador de Setembro, en-| controu-se soldado no dia seguinte. || Feroz sem bravura, aborrecido dos | soldados, despresado de seus eguaes e | dos chefes, o tenente Dachin evitava cui-| dadosamente os campos de batalha ; ia | sempre com os que ficavam atraz. || Era baixo, secco, má construcção, ca- | bellos de um vermelho ardente, olhos de um azul sombrio e de extrema mobili- | dade. || O nariz grande, os beiços delgados e | como que rasgados a faca, os dentes ama- | rellos e anavalhados indicavam esse ho- | Mem de paixões ferozes e bestiaes. || E, como as bestas-feras attrahem, os | dois cabos que o seguiam não tinham | melhor cara. || Certamente esses tres homens eram | os mais ferozes daquelle bando de milha- | fres que de soldado francez só tinham | o nome. | - Olá ! disse o tentem em mau alle- | mão, não é aqui uma estalagem ? || - Sim, senhor, respondeu, tremendo, | o pobre allemão. || - Então dá-nos de ceiar. || - Ah, senhor, respondeu o desgraçado, | não tenho nada ; tão certo com eu cha- | mar-me Frantz Leiderick. || Os soldados que passaram hontem aqui | levaram-me tudo. || - Mentes ! || - O que vê na mesa é o que temos. || - Vamos lá comendo isso, disse o te- | nente. || E poz-se á mesa. || Depois olhando para Móina, proseguiu: || - Oh ! oh ! em quanto a bonita, é o | que meus olhos tem visto. ||Móina baixou os olhos e o pae encres- | pou as sobrancelhas. || - É tua filha, meu velho avarento? |

disse ainda o tenente dirigindo-se a Frantz| Leiderick. || - Não, meu official. || É minha, disse o bohemio, e olhou | com tão estranho modo, que o militar | teve medo. || O tenente continuou : || - Então não queres dar-nos de comer | nem de beber. || - Eu dou o que tenho, senhor. || - Vamos ver isso, disse o tenente. || E fez aos dous cabos um gesto que el- | lês comprehenderam. || Chamava-se um Roberto Maubert e o | outro Jeronymo Paulo. Eram também | dois bandidos, dois filhos de Paris, que | tinham dansado a carmanhola mais vê- | zem em volta da guilhotina, de que ar- | rostado o fogo dos batalhões inimigos. || - Sim, repetiu o tenente Dachin, va- | mos ver si não tens mais nada. || Então os tres bandidos começaram a | revistar os armarios, a adega, e todos | os quartos da estalagem. || Os armarios não tinham nada ; as ade- | gas só tinham pipas vasias e os quartos | só moveis quebrados. || O estalajadeiro fallou verdade; tinham- | lhe levado tudo ; mas o tenente revis- | tou-o a elle e ao filho. || O pae nem um obulo possuia e o filho | tinha o thaler que o bohemio lhe dera | para ir buscar pão. || Munito puxou d[a] bolsa que continha | os dois thalers e atirou- a aos pés do of- | ficial, dizendo : || - Ahi está o que eu e minha filha pos- | suimos. || Tres thalers equivaliam a onze fran- | cós de moeda franceza. || -Vamos ! disse alegremente o tenen- | te Dachin, já temos com que ceiar. Vae | procurar toucinho, choucrute e cerveja, | depressa. || E deu os dois thalers ao pequenito al- |lemão que sahiu enxugando uma grossa | lagrima que deslisava pelas faces. ||

O bohemio guardava silencio, e de | tempos em tempos olhava para a filha com | vago espanto. || O tenente Dachin dirigiu-lhe a pala- | vra : || - Quem és tu ? || - Chamo-me Munito, meu official. || - És allemão ! || - Sim e não. || - Como assim ? || - Sou bohemio. || - E esta linda pe[qu]ena ? || - É minha filha. || - Ah ! ah ! queres dar-m’a em casa- | mento. || E o tenente abriu um riso cynico. || - Meu official, respondeu Munito com | socego apparente, minha filha é como | eu ; somos gente pobre, que ganhamos a | vida como podemos ; e, si o senhor fosse | generoso, não zombaria assim della e de | mim. || - Não zombo, acho realmente bonita | a tua filha. || Munito estava pallido de colera, mas | a prudencia impediu-o de romper. || Quando eu disse casamento, voltou o | tenente, foi um modo de fallar ; mas

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eu | não tenho mulher agora, e faria tua fi- | lha muito feliz. || Minha filha é honrada, disse Munito. || - Pois sim, disse o tenente, mais eu | desposaria-á a moda dos bohemios, que- | brando uma bilha deante della. Por vem- | tura, vós outros, não fazeis assim, cães | de saltimbancos? || - Não, senhor, disse o bohemio. ||- Não ?! ora essa ! || - Nossas filhas casam-se como as ou- |trás, indo perante um magistrado e um | padre. || - Ah ! ah ! ah ! exclamou o cynico te- | nente. Realmente ! e eu que não gosto | dos padres e que zombo dos magistrados !|| Munito olhava sempre para a grande | faca de lamina triangular que tinha á | sua frente. ||

Edição 389PONSON DU TERRAIL [espaço]15

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

VIII || Si o official que lançava olhares ar- | dentes á joven bohemia se atrevesse pa- | ra elle, Munito ter-lha-hia embebido no | ventre. O official porém não se mexeu, | porque nesse momento voltava o pobre | estalajadeiro, trazendo a cerveja e as | provisões. || O tenente e os dois cabos cahiram nos | viveres coma soffreguidão de dois esto- | magos esfaimados ; mas mesmo comen- | do e bebendo, pregavam na jovem olhos | ardentes de cynismo e concupiscencia. | E o pobre pae dizia: || - Tenho a certeza de matar um ; mas | os outros... oh ! meu Deus ! como salva- | rei minha filha? || O allemão e elle trocaram um olhar. || Os desgraçados sentem que são irmãos, | e procuram auxiliar-se. || - Protegei minha filha, parecia dizer | o bohemio. || - Farei o que poder, respondia o al - | lemão com olhar expressivo[[vo]]. || Depois deitava para a porta uns olhos | que queriam dizer. ||

- Não deve passar aqui a noite, é pre- | ciso partir. || Munito e sua filha comprehenderam | tão bem esse olhar que Munito, depois | de comer, levantou-se e disse : || - Vamos minha filha, ainda temos de | andar muito ; e agora que matamos a | fome e já descançamos é bom partir. || - Prompto, meu paie, respondeu Mói- | na. || É servido ? disse o tenente Dachin. || - Obrigado, meu official, disse o bohe- | mio com doçura, temos pressa. || - Para onde vão ? || - Para Coblentz. || - Mas esta noite não podem entrar ; | as portas estão fechadas. || - Mas, como as abrem ao alvorecer, | esperamos nos fossos. || - Nada ! não farás isso ! disse o tenen [-] | te. || - Porque, senhor ? || - Porque os caminhos estão maus e | cheios de malvados ; e eu não quero que | aconteça nada a uma rapariga tão linda. || - O senhor é bom, murmurou o bohe- | mio que olhava sempre para a faca. || - Partiremos todos juntos amanhã ao | alvorecer ; e nós vos acompanharemos... || - Mas, senhor... || - Ah ! meu bravo, disse o tenente, cu- | jos olhos brilharam de colera, ha de ser | assim porque eu o quero. || Foi fechar a porta e accrescentou : ||

- Enterro o sabre na barriga de quem | tentar sahir ! || O allemão olhava para Munito com | um olhar que queria dizer : || - Finja ceder, que eu lhe darei meios | de fugir. || Munito disse então : || - Já que assim o quer, senhor, fica- | remos ; mas ao menos permitta que nos | vamos deitar. || - Certamente, respondeu o tenente. || - Venha dahi, disse Frantz Leiderich. | vou leval-o a um quarto, onde ha duas | camas. || Accendeu uma luz e abriu uma porta | que dava para a escada || - Venha, disse elle. || O bohemio e sua filha seguiram-no ; e | na sala baixa da estalagem os tres mili- | tares ficaram só com o pequeno allemão | que se sentára ao lado do fogo e olhava | com espanto para esses homens. || Então o tenente Dachin disse a um dos | companheiros : || - Espera um bocado que eu já venho. || E sahiu, deixando os outros a cear. | Cinco minutos depois voltou, dizendo : || - Rodeei a casa ; tem só uma porta ; | não ha por onde elles se nos escapem, a | menos que não saltem pela janella. || - De que fallas tu,

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tenente ? || - Do bohemio e as sua filha. || - Ah ! gostas da pequena ? || - E ha de ser minha, com mil bom- | bas ! ||

- E minha ! || - O quê ? ! - E também minha ! disse o outro ca- | bo. || - Caçoaes, rapazes ! disse o tenente. | Ignoraes que sou official e que me deveis | obedecer ? || - Ora vae dormir ! nós não estamos | arregimentados. || - Ah ! sim ? pois bem ; veremos. || E o tenente tirou do sabre. || Um dos cabos porém começou a rir e | disse: || - Sempre somos bem brutos ! || - Porque ? disse o outro. || - Gostamos da pequena ... ? || - Todos tres. || - Pois tiremol-a á sorte. || - Não, disse o tenente, eu quero-a ! || - Joguemol-a, então. || - A que ? || - A primeira parada. ||Os dois cabos pareciam resolvidos, e o | tenente bem sabia que dois homens va- | lem mais que um só || - Tendes razão. Quem tem cartas ? || - Deve havel-as aqui. || E como o estalajadeiro entrasse na | sala : || - Tens cartas ? perguntou o tenente. || - Tenho, meu official. || - Dá cá. || O allemão não disse nada ; mas um | raio de mysteriosa satisfação lhe brilhou | no rosto. ||

Edição 390PONSON DU TERRAIL [espaço]15 [erro]

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

IX || O allemão, o bom estalajadeiro Frantz | Leiderick conduzira o bohemio e a filha | ao primeiro andar. || Móina tremia, encostada ao braço do | pae. || Munito, ao deixar a meza, metteu ao | bolso a faca, tão destramente, que nem o | tenente nem os cabos deram por isso. || O allemão foi o primeiro que subiu [a] | escada ; e quando abriu a porta, pôz um | dedo na bocca para recommendar silen- | cio aos hospedes. Depois, collando a boc- | ca ao ouvido de Munito, disse-lhe : || - Si ficar aqui esta noite, sua filha se- | rá deshonrada. || - Sei isso, disse Munito com socego | aterrador, antes porém matal a hei, e | elles só a possuirão morta. || - É preciso fugir, disse o allemão. || - Como ? por onde ? || - A casa só tem uma porta, replicou | Frantz Leiderick, que, como deve sup- | pôr, será guardada por elles. Mas veja| esta janella... Está a seis pés do solo. | Quando eu sahir, abra-a devagarinho, ate os lençóes e deixe-se escorregar sem rui- | do até a rua. || Munito agradeceu ao estalajadeiro | com um olhar. || - Vá, disse este, os pobres devem aju- | dar-se uns aos outros. Animo ! || E desceu. || Foi então que lhe pediram as cartas. || É facil de comprehender a satisfação | que tal pedido fez experimentar a Frantz | Leiderick, que dizia de si para si: || - Elles vão jogar. Entretanto o bohe- |

mio e a filha salvar-se hão, e terão tem- | pó de adiantar caminho. || E appressou-se a pôr ana meza uma | baeta sebenta e um baralho de cartas já | quase safadas, tão velhas eram. || Mas o tenente Dachin nem reparou | nisso : pegou nas cartas e baralhou- as. || - Como jogamos nós ? perguntou um | dos cabos. || - Jogamos o écarté em sete pontos | O primeiro de nós que sahir, terá a pe- | quena. || - Está dito, volveram os outros dois. || O tenente tinha confiança na sua es- | trella, mas enganava-se. || Á primeira parada, o cabo Thévenin | fez tres pontos. || Aquelles homens eram bandidos. O te- | nente e outro cabo trocaram um olhar | que queria dizer : || - Ganha lá meu tolo. Nós veremos | depois. || Em duas outras mão Thévenin ga- | nhou. || É minha a pequena ! disse elle. || - Ainda não ! zombeteou o tenente. || - Mas eu ganhei ! || - E a desforra ? || - Não há desforra ! || - Verás si ha ou não, disse o tenente, | puxando do sabre o e cahindo sobre Thé- | venin. || Thévenin tirou do seu e disse: || - Não me mettes medo, vá ! || - Nem tud, disse o tenente Dachin. || O outro cabo que se chamava Thiago | Lapapud, não interveio : era astuto e di- | zia comsigo : || - Vão matar-se, melhor ! Eu depois me | arranjarei com outro. || O tenente Dachin tinha uma superio- |

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ridade incontestavel sobre Thevenin, por | causa do sabre que tinha outro tanto | comprimento do do seu collega. || Entretanto o cabo defendia-se com vi- | gor. ||

O allemão e o filho r[e]fugiaram-se ter- | mulhos a um canto da sala. || A luta foi longa, encarniçada ; Théve- | nin defendia-se como um leão ; e já ti- | nha ferido o tenente no braço e no hom- | bro, quando este, com um bote, embe- | beu o sabre inteiro no peito do adver- | sario. ||Thévenin deu um grito e cahiu, vo- | mitando ondas de sangue. || - Já não tem jogo ! disse o tenente com | um riso grosso. || Effectivamente o pobre diabo torceu- |se um momento nas convulsões da agonia | e ficou depois immovel com os olhos fe- | chados. Tinha morrido. || - Vamos ! disse o tenente, é minha a | pequena ! e quis dar uma passo para a es- | cada. || Mas o outro cabo Thiago Lapapud | poz-se deante delle, e disse por sua vez : || - Ainda não ! meu tenente. || - An ! também queres ? || - Quero ! respondeu Thiago Lapapud, | que já tinha o sabre na mão. || - Pois bem ! peior para ti ! || E Dachin cahiu sobre elle. || O pobre allemão exclamou : || - Os bohemios deixaram o quarto ha | muito tempo ; fugiram. || O tenente e Thiago Lapapud tinham | travado a luta, e os sabres faiscavam | como pederneiras. Mas Thiago compre [-] |hendeu logo que seria inferior em força | e em habilidade ao seu adversário , e o | medo assaltou- o || - Um momento ! disse elle, dando um | salto para traz. || - Que [mancha] ha de novo ? disse Dachin, | ebrio de furor. || Thiago Lapapud refugiara-se atraz da | meza, fazendo della uma trincheira pro- | visória. || - É tolice, disse elle, matarmo-nos | por uma mulher, quando nós podemos | interder perfeitamente. || - Concordo, disse o tenente com cy-|

nismo ; com tanto que a rapariga seja | para mim. || -Será para ti. || - Renuncias a ella? || - De todo, não. || - Então, em guarda ! || - É inútil. Tu és tenente, és meu su- | perior, e por tanto cedo-te o passo. || - Ah ! ah ! || - Depois de ti, eu , disse rindo Thiago | Lapapud. || - Lá isso, sim, disse o tenente. || Metteu o sabre na bainha, enxugou | com o lenço o sangue que lhe corria das | feridas e disse : ||- Vamos lá ! || E dirigiu-se para a escada, sem que | desta vez o cabo pensasse em obstruir- | lhe a passagem. || O rapaz tremia de medo. || O estalajadeiro, convencido de que os | bohemios tiveram tempo de fugir, nem | se buliu, olhando com tristeza para o ca- | daver de Thévenin, estendido em mar | de sangue. || O tenente Dachin tinha subido ; e o | seu passo, depois de retumbar nas esca- |das fazia-se ouvir no corredor que con- | dúzia ao quarto dos bohemios. || Bateu. Não lhe responderam. Bateu | mais forte, e , como não recebeu respos- | ta, fez voar a porta em estilhas, com um | encontrão. || Então Frantz Leiderich sentiu erris- | sarem-se-lhe os cabellos, ao ouvir um | grito de mulher e o rumor de uma luta. || Os bohemios não teriam partido? ||[espaço com 15 pontos finais]||Munito e sua filha estavam ainda effec- | tivamente no quarto, não porque tives-|sem despresado o conselho do estalaja- | deiro, mas porque não tiveram tempo de | o aproveitar. || Uma circumstancia imprevista, inde- | pendente da vontade do allemão e da | própria vontade delles se lhes tinha | apresentado. ||

Munito tinha-se aproximado da já- | nella. || Quando porém ia abril-a, em quanto | que a filha, sem perda de tempo, atava | uns aos outros os lençóes da cama, vira | dois soldados francezes que tinham vin-| do sentar-se por baixo da janella. || Era noite, mas fazia luar. ||Munito achava-se, por entre dois pe- | rigos, porque incontestavelmente os dois | soldados, vendo gente a fugir por uma | janella correriam a prende-a. || Então Munito esperára que os dois | soldados fossem embora. || Enganou-se || Accenderam os cachimbos, e posto o | frio fosse vivo, ficaram alli, como si es- | [ti]vessem ao pé de um bom fogo. || O bohemio tinha fechado a porta ; e, | com a faca na mão estava prompto para | o que sucedesse|| - Pae, disse Móina, eu não quero [sa]-|hir viva nas mãoes desses miseraveis. || - Matar-te-hei. Disse Munito com ac- | cento feroz, caminhando da porta para | a janella, e brandindo semprea faca. || Os risos cynicos do tenente e dos com- | panheiros subiram até elle ; depois os | gritos

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cederam logar ás injurias; e Mu- |nito ainda teve uma nova lembrança. || - Elles disputam, disse baixinho a | Móina, vão bater-se. || Effectivamente ouviram o ruido da lu- | ta travada entre Thévenin e o tenente | depois ouviram a quéda de um corpo, e | depois o ruido de uma nova luta. || E Munito dizia baixinho á filha : || Estarei socegado, quando só tiver um nos braços. || O tenente subiu finalmente. || Munitou julgou que elle mataria o se- | gundo adversario. || Collocou-se pro traz da porta e es- | perou.||

Edição 391PONSON DU TERRAIL [espaço]16

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

IX || Forçada a porta, o tenente precipi- | tou-se no quarto. || Então Móina deu um grito de espanto. || Mas Munito lançara-se ao tenente an- | tes delle ter tempo de puxar, do sabre, e | enlaçou-se nelle [mancha] como uma serpente. || O tenente era mais robusto que o bo [-] | hemio, mas este tinha por seu lado a | destreza e a flexibilidade. || Além disto, estava armado com a faca, | e escolhendo geito, enterrou-a até ao | cabo no peito do adversario. || Este cahiu como uma massa inerte. || Munito tomou então nos braços a filha | semimorta de susto, e , brandindo a faca, | dirigiu-se para a escada. || Chegando á sala baixa, encontrou-se | cara a cara com Thiago Lapapud, que | tinha o sabre na mão e lhe disse: || - Não vás mais longe, camarada ! || - Logar ! urrou o bohemio. || Poz a filha em terra e cahiu sobre o | cabo. || Este estendeu o braço ; e a ponta do | sabre, mais comprido que a faca, fez pa- | rar o desditoso pae. || E o pobre bohemio, apesar da energia | que lhe dava o desespero, teria succum [-] | bido certamente naquella luta desegual, | si não lhe viesse de repente um auxi- | li[a]r || Era o allemão, que agarrando em um | tição, o atirou á cabeça do cabo. || Este deu um rugido de dor, e deixou cahir o sabre. || Então o bohemio, rastejando como um | reptil para elle, embebeu-lhe a faca no | baixo ventre. ||

O cabo cahiu. || Munito retomou nos braços a filha des- | maiada e sahiu da estalagem, confiando | só na Providencia, que ajuda os que co- | meçaram por se ajudar a si mesmos. ||[espaço com 15 pontos finais]|| X || O frio da noite que gelava os cami- | nhos era de rachar pedras, como vul- | garmente se diz. || Por isso estava límpido o céu, e a lua | ostentava-se em todo o seu brilho. || Munito corria sempre, levando nos | braços a filha desmaiada. Tinha evita- |do a estrada real, deixara a villa atraz | delle, e internou-se nos campos. || - Meu Deus ! murmurou elle, paran- | do para tomar respiração, fazei com que | eu chegue a Coblentz e minha filha será | salva. || Algumas vezes, parando ainda, pres- | tava ouvidos a ver si era perseguido. || Era silenciosa a noite e o campo es- | tava deserto. || Então Munito punha-se a caminho, | não obstante o seu fardo e o seu cansaço. || Felizmente o ar da noite reanimou | Móina. || Munito sentiu que ella se lhe agitava | nos hombros, e depois ouviu um suspiro. | Então parou de novo. || - Onde estou eu ? quem me leva as- | sim ? murmurou a joven com uma voz enfra [-] | quecida. – Sou eu, respondeu Munito. || - Pae, pae és tu ? falla-me ! || - Sim, sou eu, minha filha... || - E o bohemio poz docemente a filha em | terra. || Móina deitou um olhar á volta della. || - Onde estamos nós ? || - Ao abrigo de todo o perigo. || - Os soldados... || - Matei dois. || - E.. os outros ?...|| - Não nos perseguem, ou , si o fazem, | perderam-nos de vista. Bem vês que es- | tamos sós. ||

- Ah ! Deus é bom ! murmurou Móina. || Depois poz-se de pé accrescentando : || - Já não preciso que tu me leves, eu | caminharei. || - Poderás tu ? || - Posso, pae. || - Ha mais de uma hora que eu corro, | disse o bohemio. Devemos estar perto | de Coblentz. || Caminhando sempre pelos campos, não | perdera de vista a estrada ral, que lhe | ficava a direita. || Munito

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disse de si para si que esse ca-| minho não offerecia perigo algum, e que | era inutil augmentar o cansaço da filha | fazendo-lhe dar voltas pelos regos gela- | dos ainda com um resto de neve. || E galgou para a estrada, amparando | Móina que trepidava ao caminhar. || Marcharam uma hora ainda. ||Então appareceu-lhes ao longe, aos | raios da lua, uma cidade assente no flan- | co de uma collina, e banhando os pés no | Rheno. || - Deve ser Coblentz, disse Munito. || Estas palavras deram força a Móina | que andou mais depressa. || E Coblentz não distava mais de | meia hora, apparecia-lhes distincta- |mente. || - Mas, meu pae, disse a bohemia, não | te disseram que não se entrava de noite | na cidade ? || - É verdade ; mas há arrabaldes, onde nós encontraremos pousada. – Quem nos receberá, si nós não te- | mos dinheiro? || Um sorriso assomou aos lábios de Um- | nito, que disse: || - Nós o teremos em Coblentz. || -Então tens amigos na cidade ? || - Tenho um, judeu, chamado Samuel | Job. || - E esse judeu ?.. || - E esse judeu dá-nos o dinheiro de | que precisarmos. || Móina soltou um suspiro de satisfação. ||

Edição 392PONSON DU TERRAIL [espaço]17

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

X || Continuando a caminhar, ouviram re- | pentinamente um ruido atraz delles. || Munito prestou ouvidos, e parou logo. || O ruído augmentava. || Então o bohemio deitou-se e collou os ouvidos á terra. || Reconheceu distinctamente que o rui- |do provinha do galopar de alguns ca- | vallos. || Era elle a quem os cavalleiros Perse- | guiam. || A cautela, Munito arrastou a filha | para o fosso da estrada, deitou se e fez | deitar a filha ao lado delle. || - Não te mexas ! disse elle. || Os cavalleiros chegavam a todo o ga- | lope. || Por traz das sebes. Munito levantou | um pouco a cabeça, e reconheceu uni- | formes francezes. || Era bem uma duzia de homens a ca- | vallo. || Munito retinha a respiração, e tirou | de novo a faca, prompot a defender a | filha, e a matal-a, para a salvar da des- | honra. || Mas os cavalleiros passaram, sem pa- | rar, muito perto dos dois bohemios, dei- |

tados no fosso ; um cão que corria adean- | te não os descobriu. || Quando o bando estava longe, Munito | levantou-se. || - Vamos, disse elle a caminho. || - Pae, disse Móina, tenho muito medo. || - Felizmente que não nos viram, res- | pondeu o bohemio. || - Oh ! si tu soubesses como o coração | me batia, disse ainda a joven. || - E, quem sabe, continuou Munito, | si elles nos fariam mal? nem todos os | soldados francezes são bandidos. || - Acreditas isso ? disse ingenuamente | a joven. || - Os que encontramos na aldeia, são | uns maus soldados que ficam atraz, mi- | seraveis que roubam, em vez de comba- | [ba]ter. ||- É o emsmo, disse Móina, si tu me | acreditasses... || - Então ? || - Esperariamos aqui até amanhecer. || - Mas, minha filha, disse o bohemio, | faz tanto frio. ||- Que importa ? || - E, si nós adormecêssemos, estava- | mos perdido. || - Oh ! pae, é que eu tenho muito me- |do. || - Medo de que? || - De que esses homens venham per- | seguir-nos. || - É impossivel ? || - E prendem-nos, quando chegarmos a Coblentz? || Munito encolheu os hombros e disse | com voz doce : ||

- Não receies nada ; nós não iremos | até as portas da cidade. || - Então onde paramos ? ||- Na primeira casa que encontrar- | mos. || Móina consentiu em continuar a ca- | minhar. || - Dás-me a tua palavra ? || - Prometto t’o. || De tempos a tempos o bohemio olha- | va para o oriente, esperando sempre vêr | apparecer essa luz esbranquiçada que | annuncia o dia proximo. || Mas a lua estava sempre no zenith e | a faxa branca não apparecia. || Finalmente Coblentz encontrou-se | deante delles. || Então a bohemia viu com espanto que | não havia

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arrabaldes, pelo menos da- | quelle lado. || Um largo fosso, um baluarte e uma | porta – eis tudo o que se offerecia aos | olhos dos viajantes extenuados. || - Pae, disse Móina, bem vês que não | ha casas. É preciso ficar aqui... || - Não, não, di[espaço]sse Munito, caminhe- | mos ainda. || - E, como Móina trepidasse de susto | e de cansaço, tomou-a nos braços. || Nesse momento uma sentinella appa- | receu no forte e gritou : || - Quem vive ? || - Jão não podemos recuar, disse Muni- | to. Avancemos. E respondeu á senti- | nella em lingua allemã : || - Somos uns pobres viajantes exte- | nuados de frio e de fome. || A sentinella gritou-lhes: ||

- Avançai. Talvez que o official que | commanda a porta vos deixe passar. || - Pae, pae, fujamos ! repetiu Móina. || Porém Munito respondeu lhe : || - Batamos pelo contrario, estamos no | termo de nossos soffrimentos. || A porta não estava fechada, como se | pósde imaginar ; a mesma ponte levadi- |ça estava lançada sobre o o fosso. Sómen- | te aos dois lados havia dois soldados em | observação. || Estes dois soldados tinham ouvido a | sentinella do forte, e gritaram aos dois | viajantes. || - Avançai ! || Munito e Móina tremula metteram-se |á ponte levadiça. || - Quem sois vós ? disse uma das sen- | tinellas. || - Somos allemães. || - Soldados ? || - Não, disse Munito, somos uns po- | bres bohemios, que ganhamos a vida a | fazer parte nas feiras e praças. || - Ah ! ah ! quereis entrar na cidade ? || - Queremos, e passar a noite em al- | guma estalagem. || - Este dialogo fez vir á porta um official e dois outros soldados. || O official perguntou com voz roufenha: || - Que é lá isso ? || - São bohemios saltimbancos, disse a | sentinella. ||- Entrem, disse o official. || Esta voz, posto que rude, não era des- | tituida de franqueza. ||

Edição 393PONSON DU TERRAIL [espaço]18

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

X || Munito sentiu algum animo no cora- | cão e entrou com a filha no corpo da | guarda. || Então o official contemplou-os atten- | tamente, e disse : || - Têm papeis ? || - Temos, respondeu Munito. || E tirou da cinta uma caixa de folha | como as que trazem os militares com | caixa, e entregou a ao official. || - Que vem a ser esta garatuja? disse | elle. || - É hungaro, respondeu Munito. || - Quem e que sabe hungaro aqui ? per- | guntou o official. || Nenhum dos soldados respondeu. || Mas de repente o official estremeceu e | franziu o sobreolho e disse : || - Hé ! que é lá isso ? || Tinha visto manchas de sangue na | roupa de Munito e no vestido de Móina. || O bohemio empallideceu. || - De que é esse sangue ? repitiu se- | veramente o official. || - Este sangue é o de dois miseráveis | que quizeram assassinar minha filha. || - Oh ! oh ! || - Eh lá ! meu capitão, disse um solda- | do, é sem duvida o homem que assassinou | o tenente Dachin, sabe que o destaca- | mento entrado a pouco nos contou a | coisa. || Móina deu um grito de horror. || - Revistem esse homem ! gritou o offi- | cial. || Apalparam Munito e acharam-lhe a faca ensanguentada : || - É elle ! repitiu o soldado. || - Sou eu, sim, disse Munito altiva- |

mente, e os senhores teriam feito outro | tanto. || É possivel , meu bom homem, disse o | official ; mas receio bem que sejas fuzila- | do amanhã. || XI || O official que commandava a guarda | era um homem de perto de vinte e cin- | co annos. Alto, um pouco forte e louro | como um allemão. || Sua figura, bastante marcial, tinha | o cunho da bondade e da aspereza ao | mesmo tempo. || Era com razão o que se chamava vul- | garmente um bravo. Um olhar lhe bas- | tava para adivinhar a verdade inteira. || Móina tinha essa belleza refeita, pro- | vocadora, irresistível, que irrita os tem- | peramento ardentes e os appetites nos | homens

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sensuaes. || Além disso, o official, que era um capi- |tão da infanteria, conhecera o capitão | Dachin, e sabia o que elle valia. Não ti- |nha, pois necessidade de provas em quan- | to á sinceridade do bohemio. || O tenente quizera violentar a joven, e | o bohemio matara-o. || Era simplesmente natural. || Mas desgraçadamente o homem que | commandava Mayence era o que se cha- | ma um homem duro, e espalhava o terr- |ror por onde passava. || Era incontestável que Munito assassi- | Nara um official francez; que-o exercitos | da republica, tão mal acolhidos nas mar- | gens allemãs usavam de terríveis repre- | salias, o que o desgraçado estava irre- | mediavelmente perdido. || O capitão Bernin, tal era o nome do | official, comprehendeu tudo isso. || Tambem não lhe foi difficil ver que os | seus soldados devoravam a joven com os | olhos, e imaginou que fazel-a passar a | noite no corpo da guarda, era expol-a a | terrível perigo. || De fôma que, sem perder nada da sua | voz rude e quase brutal, disse a Mu- | nito : ||

- Tens a tua conta, meu pobre diabo, | e não dou nada pela tua pele. Mas emfim | só amanhã á tarde srás fuzilado. || A estas ultimas palavras, o sombrio | rosto de Munito | illuminou-se de esperan- |cãs mysteriosas. || O capitão Bernin continuou: || - É antes de morreres tens tempo de | pôr tua filha em segurança. || Um clarão de alegria brilhou nos | olhos do bohemio. || - És de Coblentz ? || - Não, capitão. || - Vens aqui pela primeira vez ? || - Venho. || - Então não conhece aqui ninguem ? ||- Oh ! conheço disse Munito. Tenho | um amigo. || - Como se chama ? || - É um judeu, chamado Samuel Job. || - Onde mora ? || O bohemio procurou entre os papeis | da caixa de folha, e respondeu, pegando | em um delles : || - Samuel Job é adelo de profissão, e | mora em Lange strasse, 125. || - Isso quer dizer: 125, rua Grande, não | é assim? interpellou o capitão. || - Sim, senhor. || - Está bom ! disse um soldado francez | que devorava com os olhos Móina desfal- | lecida, então não se fuzila já esse homem | que assassinou um official francez ? || O capitão olhou-o de soslaio e disse: || - Só se fuzilam os que são comdemna- | dos por conselho de guerra. || - Nem um pio, multidão de canalha ! | disse o capitão encolerisado e batendo | com o pé. || Os soldados calaram-se. || O capitão proseguiu: || - Está bom ! uma boa escolta vae con- | duzir-te a ti e a tua filha á casa de Sa- | muel Job. Tu confias-lhe a tua filha, e | depois trazem-te aqui, onde ficarás meu | prisioneiro até amanhã. || O bohemio chorava de alegria ; pegou |

nas mãos do official e levou as aos la- | bios. || Os soldados já não ousavam murmurar | mas olhavam-se com furor, cheios de | despeito, e pareciam achar que o capitão | ultrapassava singularmente o seu dever, | tomando sob sua protecção a filha do bo- | hemio. || Só um soldado não murmurava, e pa- | recia approvar tacitamente a conducta | do capitão. || Era um velho sargento de bigode grisalho. || O capitão disse-lhe : || - Hé ! Lafolie ? || - Prompto ! disse o sargento. || -Leva dois homens comtigo.|| - Sim, meu capitão. || - E conduz este homem e esta mulher | á casa do adelo Samuel Job. || - Também dá dinheiro sobre penhores | disse o sargento ; empenhei lá o meu re- | lógio por seis florins. || - Então sabes onde é ? ||- Sei, meu capitão. || - O sargento adivinhára as intenções do | seu chefe : fez signal a dois soldados, dois | recrutas, da obediencia dos quaes estava | certo, e disse-lhes : || - Acompanhem-me || O capitão disse ainda : || - Esta este homem fallar com o ju- | deu, si elle quiser recommendar-lhe a | filha, e depois torna a trazer-m’o. || - Sim, meu capitão. || Depois, voltando-se para Móina e para | o bohemio, o sargento disse em voz me- | nos rude que á do official : || - Vamos ! vagabundos, a caminho ! || Móina chorava. || O pae pegou-lhe do braço e disse-lhe | em bohemio : || - Não chores, não tenhas medo, elles | não me mataram ainda, e Samuel me | salvará. || - Como poderá salvar-te esse pobre | judeu ? || - Verás ! ... ||

E Munito caminhou resolutamente. || Esta confiança invadiu pouco e pouco | Móina. || Lange strasse, isto é, a rua Grande, | era logo a deixar a porta do forte, e o n umero|125 não era longe. || Eram 5 horas da manhã ; a cidade es- | tava silenciosa. e as lojas e casas esta- | vam

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fechadas. Só de tempos a tempos se | ouvia o passo lento e regular da patru- | lha, e ao longe o grito das sentinellas | que velavam nos fortes. || Móina caminhava pelo braço do pae, e | era tão grande a sua emoção que nem fa- | diga sentia. || Chegaram á casa do judeu. || Era uma casa baixa, com duas janel- |las, torta, triste, de má apparencia. || Havia uma loja ao réz do chão, na | deanteira da qual uma lanterna deixava | ler o seguinte : | << Samuel Job, adelo vende, e compra |toda a qualidade de mercadorias, e dá | dinheiro sobre penhores. >>|| O sargento bateu á porta com a coro- |nha da arma. A principal ninguem res- | pondeu. || Depois, como o sargento continuasse a | bater, abriu-se uma janella por cima da | porta e uma cabeça negra e cabelluda | appareceu. || - Quem bate assim a semelhante hora ? || - Você é Samuel Job ? disse o sargento. || - Sou, Que quer? || - Trazemos aqui um seu amigo. || Então o bohemio pronunciou algumas | palavras em lingua zingara. || Samuel Job pronunciou uma exclama- | cão de alegria e admiração. || - Esperem, disse elle, eu vou abrir. || Com effeito desceu precipitadamente, | e os dois bohemios ouviram o ruido das | fechaduras e fechos que o adelo abria suc- | cessivamente. || Samuel Job não resumia ao certo o | typo legendari[o] do judeu mercador de | baixellas e jóias. ||

Edição 394PONSON DU TERRAIL [espaço]19

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XI || Não era como se poderia imaginar, | um velhinho debil, embrulhado em gi- | não de pelles, com bonet exquisito, com- | prida barba branca e de sapatos de ou- | relo. || Samuel Job era alto e vigoroso, de | quarenta annos, olhos negros perfil | atravido e cruel, e que havia herdado | toda a belleza hebraica, esse typo tão | puro, que se perde nos homens e se con- | serva nas mulheres. || Havia alguma cousa de socegado e bom | na attitude que trahia a sua força. Sem- | pré senhor de si, este homem jamais de- | via ter medo. ||Emprestava dinheiro sobre penhores, | mas também podia sustentar o arnez do | soldado. || Quando os francezes tomara a cida- | de, dois soldados quizeram saquer-lhe | a casa ; Samuel, porém, dotado de força | hercúlea, pegou nelles por um braço e | atirou-os pela janella fora. || Os que a força respeita mais é a força. || Desde esse dia nenhum francez pensa- | ra mais em inquietar o adelo. || Samuel Job desceu precipitadamente, | ao ouvir as palavras que Munito pro- | nunciara em lingua zingara. || Abriu a até com certa pressa que se po- |deria tomar por alegria. || Mas, ao ver os dois bohemios acom- | panhados de soldados deu um passo para | traz. || Depois reconheceu o sargento que lhe | viera empenhar o relógio. ||

- Ah ! disse elle, você ? || Ao mesmo tempo olhava para Munito | que olhava para elle absolutamente do | mesmo modo. || As pessoas mais intelligentes que os | soldados adivinhariam logo que esses | dois homens não se tinham visto nunca. || Munito apressou-se então a fallar na- | quella lingua que os soldados não com- | prehendiam. ||- Não vos foi annunciada a minha Che- | gada ? disse elle. || - Eu esperava-vos de uma dia para ou- |ter. || - Eis-me finalmente. || - Mas que vem a ser esses soldados | que vos acompanham ? || - Sou prisioneiro delles. || - Desde quando ? || - Ha uma hora. || - Ah ! bem sei, disse Samuel Job sor- |rindo, esses tratantes francezes estão | sempre a pedir papeis a todo o mundo. | Prenderam-vos e trazem-vos aqui para | que eu respnda por vós ? || Munito agitou a cabeça e disse : || - Ah ! oxalá que assim fosse ! mas... || - Mas que ? || - Eu sou prisioneiro e tudo o que pu- | de obter foi que elles me conduzissem | aqui para que eu podesse confiar-vos a | minha filha. || Então Samuel Job olhou para Móina, | que continuava a tremer, tendo o rosto | banhado em lagrimas. ||- Mas que vos succedeu então ? ex- |clamou o judeu, que comprehendeu fi- |nalmente que os dois bohemios eram | victimas de alguma catastrophe. ||

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- Paramos hontem em uma aldeia, e | um official quis deshonrar minha filha. || - E então ? || - Então, disse friamente Munito, ma- | tei-o com uma facada. || - Deus de Israel ! murmurou Samuel|

Job, em cujo rosto se pintava verdadei- | ro espanto, si fizeste isso, estaes irre- | mediavelmente perdido ! || - Talvez .. disse Munito. || - E de nada vos serve ser rico como | um rei ; o vosso ouro e os vossos dia- | mantes não vos salvarão. || O adelo fallava em língua bohemia, e | si os soldados entendessem o que elle di- | zia, admirar-se hiam de ouvir chamar | ricos aos dois vagabundos, coberts de | farrapos, que viajavam quase com os pés | nus e que tinham dado o ultimo thaler | para a ceia do tenente Dachin e dos dois | miseráveis que o acompanhavam. || XII || O sargento Lafolie era bravo, mas não | era paciente. || De modo, que disse em lingua allemã, | que fallava bem, por que era de origem | alsaciana. ||- Então, não acabaes lá com essa al- | garavia ? || Samuel respondeu : || - Desculpe-nos si nós cedemos ao ha- | bito de fallarmos a lingua materna, mas | nós nada dissemos que deixasse de com- | prehender. || - Esta bom, disse o sargento, mas não | sabe o que viemos fazer ? || - Sei e não sei. || Trazemos essa menina para ver si | quer tomar conta della. || - Si quero ? disse Samuel Job já com vi- | vo accento de commoção. || - E nós tornamos a levar o pae. || - Para onde ? || - Para a cadeia. || - Sargento, disse Samuel Job, de for- | ma alguma me opporei a que cumpra o | seu dever ; mas olhe para estes desgra- |çados, elles estão extenuados e prova- |velmente morrem de fome e sêde. || - É verdade, disse Munito que deixou |

cahir sobre sua filha um olhar de ter [-] | nura desesperada. || - Permitta, pois, disse o judeu, que | eu os deixe entrar em minha casa e lhes |dê de beber e de comer. || - Isso leva muito tempo ? perguntou | o sargento que se esforçava por ter uma | voz brutal. || -Tenha paciencia, que em quanto es- | pêra beberá um copo, disse o adelo. Ora | o soldado francez jamais recusou um | copo de vinho. || Os tres soldados entraram com os dois bohemios. || O judeu abriu uma pequena porta, pa- | ra a alameda humida e sombria, tendo | cuidado de fechar a rua. || Munito e sua filha acharam-se em | uma penquena sala cheia de toda a espe- | cie de mercadorias. Era o armazém do | revendão. || Mas no fundo desta sala levantava-se | um velho panno de velludo de Utrecht | e os dois bohemios viram outra sala | mais pequena, e que pelo seu arranjo e | aceio contrastava com a confusão da pri- | meira. || Tinha moveis de nogueira, velhos ba- | hús de talha e uma mesa que sustenta- |va uma baixela luzidia e bem disposta. || O judeu abriu um desses bahus, tirou | uma garrafa de vinho e copos, e levou | tudo aos soldados que tinham ficado na | primeira sala. Depois voltou onde tinha | introduzido o bohemio e a filha e dis- | se lhes : || - Creio que não devemos perder tem- | po ; dizei-me depresa o que posso fazer | para vos salvar. || O panno tornara a cerrar-se : mas como os soldados ouviam falar Munito e | o hospedeiro, não se importavam com o | preso. || Munito respondeu ao judeu em lingua | bohemia. ||

- Deve haver em Coblentz um gene- | ral francez que me salvará. || - Conheceil-o? ||- Não, mas trago uma mensagem para | elle. || - Ah ! || E o judeu contemplava com um espan- | to cheio de commiseração o vestido mi- | seravel do pae e da filha. || Munito adivinhou indubitavelmente o | pensamento secreto de Samuel Job, por- | que lhe disse : || - Creio que desconfiaes de mim... || - Então porque ? || -Vós só me conheceis de nome, e pos- | to que nos correspondemos ha dez annos re- | gularmente nunca nos vimos. || - Como quase sempre succede entre | negociantes que commerceiam em pai- | zes differentes, disse Samuel Job. || - E vós pensaes talvez neste momen- | to, continuou Munito, que aqui está um | pobre diabo, que julga talvez livrar-se | tomando o nome de Munito, o rei dos | bohemios da Austria, e o guarda do the- | souro de seus irmãos. || O judeu era franco. || - Effectivamente confesso que fiz se- | melhante reflexão. || -Ah ! ah! então que disse eu ? ! || - Porque me parecia impossível que | Munito, o home que possue os mais | bellos diamantes da Europa... || - Viaje

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a pé como um vagabundo, e | se faça prender por soldados francezes, | não é assim ? || O judeu ficou silencioso. || - Ouvi, replicou o bohemio, minha | filha e eu fomos roubados em Francfort | pelos prussianos, que só nos deixaram | alguns thalers. Desde Francfort fizemos | a jornada a pé. || - Ah ! disse Samuel || -Mas os bandidos não pensaram em | metter as mãos aos meus cabellos. ||

Edição 395PONSON DU TERRAIL [espaço]20

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira NichetteXII || Munito possuía effectivamente uma | grande cabelleira encaracollada, que se | lhe aprumava na testa magra e brônzea- | da, como immenso ninho de pássaro. | - E si elles vos pozessem as mãos nos | cabellos ? disse Samuel admirado. || - Teriam encontrado isto. || E Munito, passando a mão pela cabel- | leira, tirou um diamante grande como | um ovo de pomba, e apresentou- a Sa- |muel Job. || O judeu fez um gesto de sorpresa. || - Ah ! disse elle, desculpae-me. Sois | effectivamente Munito, porque só vós | podeis ter esse diamante, que, pelo me- | nos vale oito mil thalhers. || - Bem podeis imaginar, concluiu Mu- | nito, que no caminho corri o grande | risco de mostrar essa pedra a outrem | que não a vós. Tinha certeza de que, | chegando aqui, vós me darieis todo o di- | nheiro de que eu precisasse. || - Tendes a minha caixa á vossa dis- | posição, como vós me porieis a vossa si | eu fosse a Pesth. Mas, accrescentou Sa- | muel Job, que não é verdadeiramente disso | que se trata. || - Ah ! sim, disse Munito com um sor- | riso, pensaes que vou ser fuzilado ama- | nhã... || - Os francezes são agora nossos amos e | senhores. || - Sei. || -E repito que nem todo o vosso ouro | vos salvará. || Munito nada perdeu de sua serenida- | de. || Pegou de uma faca, que o judeu col- |

locara sobre a mesa com alguns alimen- | tos e começou a descozer rapidamento o | forro do gibão. || - Foi um milagre, disse elle, não me | encontrarem isto lá em baixo, quando | me revistaram. || Do forro descosido tirou elle uma car- | ta cujo subscripto era em allemão. || Depois entregou- a ao judeu, dizendo : || - Nada de perder tempo, meu amigo. | O general Pichegru deve receber esta | carta o mais breve possivel. O general | esta em Coblentz, não é assim ? || - Pelo menos ainda estava hontem. || - Pois bem ! que esta carta lhe che- | gue as mãos e eu ficarei salvo. Em quan[-] | to a minha filha... || - Oh ! disse Samuel Job, a vossa filha | está aqui em segurança. A minha cabe- | ça responde por ella. || Um sorriso veio então aos lábios de | Munito, que disse, olhando com ternura | para Móina : || - Enxuga as lagrimas, minha filha, que teu pae ainda pertence a este mun- | do e não está prestes a deixal-o. || Esta confiança do bohemio, confiança | que acabára por ganhar a sua filha, fa- | zia admirar cada vez mais o judeu As- | muel Job. || - Meu amigo, disse Munito, vós de- | veis ficar allemão de coração. || - De alma e coração aborreço a Fran- | ça, disse Samuel Job. || - Póde então confiar-se-vos um se- | gredo ? || - Sem duvida. Além de que as nossas | relações commerciaes, continuou As- | muel, respondem pela minha probidade | e descripção. || - Como vedes, disse Munito, esto in- | vestido de poderes de um embaixador. || - Ah ! disse o judeu. || - Sabeis que contam comnosco na | Austria, e o imperador não hesitou em | conceder-me uma audiência quando lh’a | pedi. |

- Muito bem, disse Samuel Job. || -Sabeis que represento, proseguiu | Munito, uma associação de banqueiros | mysteriosos, que faz emprestimos con- | sideraveis ao exercito de Condé e ao | partido realista francez. || - Sim, sei isso. || - Á frente do exercito republicano | do Rheno está um homem, o general Pi- |chegru, que, estamos convencidos disto, | só procura trahir a republica, passar á | causa realista com armas e bagagens | e marchar sobre

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Paris. Eu venho tra- |tar com o general. || - Vós ! || - E trago-lhe uma carta do impera- | dor. || Si o general recer essa carta eu | não serei fuzilado. || Os soldados não comprehenderam uma | palavra dessa conversa em lingua hun- | gara. || Tinham, porém esvasiado já a garrafa, | e o sargento, abrindo a porta, disse as- | peramente : || -Então, acabaram de comer e de be- | ber ? || - Acabamos, disse Munito. || -Então a caminho. || - Estou prompto a seguir-vos. || Móina lançou-se ao pescoço de seu pae | e sossobrou de novo em magoado pran- | to. || - Mas não receies nada, disse o bohe- | mio ; repito-te que não me fuzilarão. || E , dirigindo-se a Samuel Job, que es- | condeu a carta e o diamante sob a rou- | pa. ||- Tratae della, e que a minha carta | chegue ao general. || - Recebel-a-ha dentro de uma hora, | respondeu Samuel. || - Vamos, vamos, despachar ! dizia o | sargento Lafolie, que a furto enxugou | uma lagrima, e que tomou um ar rude | para dissimular a sua emoção, abraça a |

tua filha pela ultima vez, meu velho, e | partamos ! || Munito estreitou Móina contra o co- | ração, e, desviando-a depois, seguiu os | soldados. || O judeu acompanhol-os até a porta ; | depois fechando-a voltou para o pé de |Móina que chorava ainda. || Um relógio collocado a um canto da | sala marcava cinco horas. || - Minha filha, disse o judeu, não te | afflijas ; logo que for dia eu mesmo irei | ao quartel general ; tem a mesma espe- | rança que eu tenho. || Effectivamente, quando os primeiros | clarões da madrugada miravam atravez | das vidraças da casa, Samuel conduziu | a joven a um quarto e disse-lhe : || - A fadiga opprime-te, trata de dor- | mir algumas horas, que, quando acorda- |res, ser-te-ha restituido o teu pae ! .. || XIII ||Quando o judeu ia a sahir de casa, de-| pois de ter recommendado a Móina que não abrisse a ninguem que viesse bater | á porta, ouviu duas pancadas discretas | na janella da loja. || Samuel abriu e achou-se em frente | de um mancebo vestido com uniforme | francez. || Era um tenente que o judeu conhecia, | por ter lhe emprestado dinheiro sobre | penhores. || - Bons dias, pae Samuel, disse elle : | vi luz atravez das vidraças e pensei que | já estaveis a pé. || - Bem vedes que estou, cidadão te- |nente. || - E desconfiaes que preciso de vós, | não é assim? disse o official sorrindo. || Samuel ficou impassível. || O tenente tirou o relógio do bolso, e | mostrando-o ao judeu : || - Quanto vale isto ? disse elle. || - Para vender, ou para empenhar ? || - Isso pouco importa ! preciso de di- | [n]heiro hoje mesmo, antes do meio dia. ||

O relógio para mim vale quarenta | thalers, meu tenente. || - É pouco... não chega para o que eu |preciso. || Samuel Job fez com a cabeça e com os | hombros um movimento significativo, | que queria dizer : || - É quanto posso dar ? || Mas o tenente proseguiu : || - Passei a noite em casa do General Dagoberto, que tem uma linda mulher | da qual estamos todos namorados e que | nos faz perder um pouco a cabeça. jo- | guei ; perdi não só todo o dinheiro que | tinha mas também uma somma de cin- | coenta thalers, que hoje mesmo hei de | entregar ao general || - E vós não sabeis como encontral-os? | disse Samuel. || - Ora proseguiu o tenente, vós sabeis | que as dividas de jogo se pagam dentro | de vinte e quatro horas ? || Tudo que tenho a dizer-vos é que o | vosso relógio para mim não vale mais | do que quarenta thalers. || - Meu bom Samuel, juro-vos... || - Oh ! disse o judeu, bem sei que ides | jurar- me que sois um homem honrado | e que me restituireis fielmente essa | somma || - Podeis ter a certeza disso, atalhou o official. || O judeu afinal era um bom diabo. || - Mas emfim, disse elle, supponho que | não tender necessidade desse dinheiro | antes do meio dia ! || O official pensou que tinha enterneci- | do o adello. || - Seguramente que não, disse elle ; si | eu tivesse a certeza de que ao meio dia. || - Isso depende de vós. || - Como ? || - Eu também preciso que vós me fa- |cães um pequeno serviço. || - Fallae, estou á vossa disposição. || - Contarei isso pelo caminho, disse o | judeu. Vinde, preciso de saihir.||

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Edição 396PONSON DU TERRAIL [espaço]21

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XIII || O official tinha ficado na rua, e esta conversa tivera logar no umbral da por- |ta. || Samuel sahiu, e o tenente e elle ca- | minharam lado a lado. || Então o adelo disse ao tenente : || - Não poderá fallar facilmente ao ge- |neral um pobre judeu como eu? || - Isso conforme... A que general que- |reis fallar ? || - Ao general Pichegru. || - Ao commandante em chefe? || - Sim. Tenho absoluta necessidade de | lhe fallar. || - Quando ? || - Esta manhã mesmo. || - Isso é que e inteiramente impossi- | vel, disse o tenente. || - Porque ? perguntou o judeu empal- | lidecendo. || O general sahiu hontem á tarde de | Coblentz. || - Será possivel ? || - Vae caminho de Mayence, e como | sahiu ao escurecer, entre elle e Coblentz | já deve haver umas vinte leguas || - Oh ! meu Deus ! disse Samuel com |um accento de dór que fez estremecer o | tenente. || - Mas que vos succedeu ? perguntou| elle. ||- Uma grande desgraça, que só o Ge [-] | neral Pichegru póde remediar. || - Mas que foi ? disse ainda o official. || - Um amigo meu deve ser fuzilado | hoje, e eu queria pedir o seu perdão ao |

general, a quem, disse o judeu ao acaso, | fiz outrora alguns pequenos favores. || - Te[n]des um amigo que deve ser fuzi- | lado hoje? || - Tenho um pobre diabo bohemio... || - Mas o que fez elle ? || - Matou um official francez. || - Sim ? e aonde ? não ouvi fallar nada | a respeito disso. || - Foi esta noite mesmo, disse o judeu; | e contou simplesmente ao officia a des- | graçada aventura de Munito. || O tenente ouvia Samuel com certa | emoção, e quando o judeu terminou, dis- | se, olhando para elle: || - O negócio é mau. Nos temos as mais | severas ordens, e é quase certo que o | general Pichegru recusará o perdão des- | se pobre diabo, por mais favores que vós | lhe possais fazer. || Samuel Job não podia revelar ao te- | nente qual era a importancia do perso- | nagem que iam fuzilar. Entretanto re- | plicou: |||| - Juro-vos que, si eu podesse ver o | general, obteria pelo menos uma com- | mutação de pena. || - Mas eu já vos disse que o general | partiu. || - E não haverá meio de o encontrar? || - O general foi a Mayence, onde fica- | rá dois ou tres dias. || - Ah ! || - Ha pois meio de lhe falar . Mas não | será já tarde? E depois, continuou o of- | cial, creio que seria uma viagem inu- | til. || Samuel tinha um ar tão consternado, | que o tenente commoveu-se. || - Ah ! disse elle, veio-me uma insp- | ração. || Samuel Job olhou para elle. || - Não me disseste que o bohemio ti- |nha uma filha? || - Tem. || - Que elle vos confiou? ||

- Sim, tenente. || - E é nova? || - Nova e bonita. || Ouvi, replicou o official, na ausência | do general em chefe Pichegru, o gene- | ral Dagoberto é quem commanda a praça | de Coblentz. || - E que tem isso ? disse o judeu. || - Já vos disse qua a mulher delle é | nova e bonita. || - Ah ! || - E que nós estamos todos namorados | della. || - E depois ? || - É uma aristocrata, uma ex-fidalga, | que amava o general havia muito tem- | pó ; porque é preciso que saibais que o | general é filho do povo ; | outr’ora elle | era uma cousa como serralheiro ou fer- | reiro, estou bem certo. || - E depois, depois ? disse o judeu. || - Parece até, continuou o tenente, | que a mulher do general, quando apenas | eram noivos, foi condemnada á morte | como aristocrata. || - E quem a salvou ? || - O marido, indo pedir o perdão della | á

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Convenção que lh’o concedeu. || - E ... essa mulher ? || - É tão bonita, como de bom coração. || - E julgaes que ella se interessarria | pelo nosso pobre Munito? || - Ao menos pela filha interessar-se- | ha. || - Mas quem lh’a ha de apresentar ? || O jovem official coçou a orelha a prin- | cipio, e depois corou levemente. || - Ah ! disse elle, si não fosse essa mal- | dita noite os cincoenta thalers que | perdi... || - Que farieis ? || - Iria mesmo falar com o general. || - Pois então não hã dúvida ! disse o | judeu, e tomando o caminho da casa, | disse : || - Vinde ... não são cincoenta nem cem |

são mil thalers que eu ponho á vossa | disposição. || Um sorriso assomou aos labios do te- |nente, que disse : || - Pae Samuel, enganae-vos ; eu sou | official do exercito francez ; e o exerci- | to francez é sempre o mesmo, quer a | França seja republica ou monarchia. | Pedi-vos cincoenta thalers pelo meu re- | logio, porque precisava dessa somma. | Pegae no relogio e dae-me cincoenta tha-|lers, que eu não quero nem mais um. || - Senhor, respondeu Samue Job, eu | também sou cavalheiro. || - Senha, meu amigo. || - E naõ preciso de penhor. Guardae o | vosso relogio. Eu vos enprestar-vos, | sob palavra, o dinheiro que necessi- | taes. || Dizendo isto, Samuel metteu a chave | na fechadura da porta, e entrou tão do- | cemente que Móina, que estava no pri- | meiro andar, não o ouviu. || A pobre creança dormia. O judeu abriu | a burra, pegou em um punhado de tha- | lers e deu-os ao tenente. || - Bom, disse elle ; a generala, como | foi educada na provincia, é madrugado- |ra, e antes de uma hora hei de vêl-a. || - E pensaes que daqui... lá?... disse As- | muel com voz enternecida. || - Fuzilarão o bohêmio ? || - Sim. || - Não receies nada, disse o tenente ; | só o fuzilarão depois de julgado. || - E quando se reúne o conselho ? || - Provavelmente ás dez horas da ma- | nhã. || - E então ao meio dia... || - Não penseis nisso, e tende confiança | em mim. || Durante este curto colloquio fizera-se | dia, e um pallido raio da aurora reflec- | tia nos telhados. || - Vamos ! a generala talvez já esteja | a pé. ||

- Ides a casa della? || - No mesmo instante. || - Onde vos tornarei a ver ? || - Esperae aqui. || O tenente partiu, e o judeu pôs-se a | escutar o ruído daquelles passos preci- | pitados até que extinguiu completamen- | te.|| Então subiu ao quarto de Móina, pé | ante pé, e olhou pelo buraco da fecha- | dura. A pobre menina, vestida, estava | estendida no leito, e adormecera, pedin- | do indubitavelmente ao Deus dos bohe- | mios, que se apiedasse de seu pae|| [espaço] XIV [espaço] || Era rigorosamente verdade tudo quan- | to o jovem tenente dissera a Samuel. || O general Dagoberto era quem, na | ausencia do general Pichegru, comman- |dava a praça de Coblentz ; porque Da- | goberto, o nosso antigo amigo, ex fer- | reiro da Abbadia da Côrte de Deus, o | bravo Dagoberto, a quem a Convenção | concedera a vida e a liberdade de sua | noiva, era agora chefe de brigada. || Tres annos passaram e já Dagoberto era o feliz esposo da condessa Aurora. || Aurora, como facilmente se imagina, | não desposara a causa da revolução. Mas | ella era franceza ; e, tornando-se espo- | as de Dagoberto, acceitara a republica, | ficando no fundo de seu coração fiel aos | principios legitimos. Seu primo, o conde | Luciano de Mazures, casara com Joanna. || Ambos se tinham retirado para a Aus- | tria, e o conde pozera se mesmo ao ser- | viço dos exercitos imperiaes. || As duas irmãs porém tinham ficado li- | gadas pela mais estreita amizade. Cor- | respondiam-se e visitavam-se todos os | annos. Duas vezes Joanna viera a Pa- | ris ; duas vezes também a condessa Au- | rora fizera a viagem de Vienna apesar | da guerra encaraiçada que havia entre | a França republicana e o resto da Euro- | pa. ||

Edição 397PONSON DU TERRAIL [espaço]21

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

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XIV || A belleza, a graça de Aurora e a sua | romanesca historia tinham-lhe grangea- | do todos os corações. || Aurora era o idolo do corpo de exer- | cito que operava no Rheno. || E, como tinha ficado uma perfeita se- | nhora, porque as tempestades da vida | passada não lhe haviam escurecido o ca- | racter, e, como além disso, o amor mu- |da a desgraça em felicidade, e a tristeza | em alegria, a cidadã Dagoberto amava | os prazeres e as festas. ||Todas as noites, desde que os France-| zes occupavam Coblentz, de onde re- | pelliram do exército de Condé, Aurora | recebia em sua casa os officiaes que ti- | nham alguma educação. || Dansava-se, jogava-se até uma certa | hora da noite; e ora bem verdade que o |tenente tinha perdido cincoenta thalers | contra o general. || Ora o jovem o official, a quem Samuel | acabava de emprestar a somma de que | elle precisava, tomara o caminho da casa | do general Dagoberto. || Aurora já estava a pé. || Apenas tinha dormido algumas horas ; | e, si não fosse uma circumstancia im- | prevista, talvez que o tenente passeasse | muito tempo por baixo das janellas, sem |que alguma dellas se abrisse. ||Eis o que se tinha passado. || No momento em que a jovem esposa | dormia o mais profundo somno, accor- | dou sobressaltada ao toque da campainha | da porta de entrada. || O general, que acabava de se deitar, |

levantou-se á pressa, perguntando o que | havia de novo. || O capitão Bernin que commandava | aquella porta da cidade, onde o desgra- |çado bohemio tinha ido bater, um pouco | antes de romper o dia, trazia uma men- | sagem a Dagoberto. || Esta mensagem relatava ao mesmo | tempo o assassinato do tenente Dachin e | a prisão do bohemio. || Aurora vestiu um robe de chambre, e | desceu á sala de espera. Ella nunca as | mettia nos negocios do serviço ; nesse | dia, prém, obedecendo sem duvida, e | um pressentimento, quiz saber o que se | passava. || Dagoberto encrespando as sobrance- | lhas, lia a parte do capitão. ||Vendo entrar sua mulher esforçou-se | por sorrir : mas ella percebeu logo que | se tratava de grave [mancha] negócio que affligia | profundamente o bom Dagoberto. || Elle, sem dizer uma palavra, esten- |deu-lhe a parte do capitão Bernin. || Aurora leu e empallideceu. || - Bem vês, minha querida amiga, dis- | se Dagoberto que é preciso fazer justiça. || - Que queres dizer com isso? pergun- | tou Aurora tremula de emoção. || - O desgraçado, de que me fallam, as- | sassinou um official francez. || - Que lhe queria deshonrar a filha. || - Talvez ; mas tenho as mais formaes | e severas ordens de Pichegru. Um dia, | mataram-nos um soldado com um tiro ; no | dia seguinte é um official que cahe ás | facadas de um allem[ão]. São necessários || exemplos severos, sem o que morrere- |mos aqui todos, um a um || - Mas esse tenente Dachin era um mi- | seravel, disse Aurora. || - Eu não affirmo o contrario. || - E esse homem não fez nada mais que de- | fender-se || - Ah ! bem o sei. || - Portanto não se deve punir como | um verdadeiro assassino. ||

- Mas é necessário, disse Dagoberto | com tristeza ; si eu perdoasse a esse | homem todo o exercito murmuraria. || E, em quanto que Aurora pedia ao | bom Dagoberto, o qual, a seu pezar, se | conservava inflexível, chegou o tenente | com os cincoenta thalers. || O jovem official estava addido a Dago- | Berto, como ajudante de campo. || Por esta circumstancia era um dos fa- | miliares da casa, e , pela sua boa educa- | cão, Aurora dispensava-lhe muita ami- | zade. || - Ah ! disse Dagoberto, chega a pro- | posito, tenente. || - Realmente, meu general ? || - Estamos a braços com um máu ne- | gocio. || - Ah ! || - Um negócio que é preciso concluir | o mais breve possivel. || - Então do que se trata meu general? || - Do assassinato de um official. || - Ah ! eu sei disso. || E o tenente lançou a Aurora um olhar | que queria dizer ; Vós advogaes a causa | da humanidade, creio, e eu vou juntar- | me comvosco. || - O tenente vae levar uma ordem para | que se reuna o conselho de guerra, dis- | se ainda Dagoberto. || - Meu bom amigo, disse Aurora, não | podes esperar algumas horas ? || - Para que? || - Ah ! meu general, disse o tenente, | si soubesses como é interessantes esse | pobre homem ? ! |

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não digo que não. || - E sua filha... || - É verdade, interrompeu Aurora, |elle tem uma filha. || - Nova e bonita, minha senhora, e as | lagrimas dellas talvez a enterneceriam. || - E a pobre criança está talvez presa ? |interrogou ainda Aurora. || - Não senhora ; recolheu-a um judeu | chamado Samuel Job. ||

- Ah ! || - E esse judeu, que é amigo do bohe- | mio, diz que é grande infelicidade que o | general partisse para Mayence. || - Porque? perguntou Dagoberto. || - Porque lhe teria pedido o perdão do | seu amigo. || Dagoberto agitou os hombros e disse : || - Pichegru seria insensivel, como eu | vou ter a dor de o ser. || - Mas, meu amigo, disse Aurora, não | ha necessidade nenhuma de julgar este | homem hoje mesmo. || - Hoje mesmo ou amanhã, que impor- |ta isso ? elle será comdemnado... || - E, si Pichegru lhe perdoar? || - É impossivel. || - Emfim, disse Aurora, não me recu- | saras um favor, tu que me amas, não é | assim ? || Aurora fallava com voz quase suppli- | cante. || - Pois bem ! falla, disse Dagoberto | com certa severidade que mal dissimu- | lava a sua emoção. || - Desejava que o conselho de guerra | não se reunisse antes do meio dia. || - Bom ! e depois ? || - E que me fosse permittido vêr a | filha desse desgraçado. || - Aurora, Aurora, murmurou Dago- |berto, esqueces que eu sou aqui com- |mandante em chefe, e que assumo por | isso grave responsabilidade. || - Bem sei, disse Aurora, mas não re- | ceies nada, meu amigo ; eu jámais farei | com que faltes aos teus deveres. || Depois, como Dagoberto parecia con- | sentir, ella disse ao tenente : || - Então a filha do bohemio está em | casa do judeu Samuel Job ? || - Sim, senhora. || - Quero vêl-a. || - Eu vou buscal-a, disse o tenente. || - Não, respondeu Aurora, irei a casa | do judeu. Espere por mim tenente. || Aurora subiu ao seu quarto, deitou |

um chaile aos hombros, e descendo dis - |se ao jovem official : || - Dê-me o seu braço. || - Mas então onde vae , senhora ? disse | Dagoberto. || - A casa do judeu. || - Que loucura ! || - Ingrato ! disse Aurora, então não | queres que eu seja sempre boa ? || E com um sorriso venceu o marido. || O tenente collocara discretamente os | cincoenta thalers sobre um movel. || Foi uma diversão para Dagoberto. || - Ah ! é justo, disse elle, disfarçando | um pouco, sou vosso credor. || - Meu general, disse o tenente, as di- | vidas do jogo, pagam-se dentro de vinte | e quatro horas. || - Pois, sim, mas ainda havia tempo até a noite|| - Assim como tu, meu amigo, para | fuzilares este pobre bohemio, disse Au- | rora. || E, tomando o braço do joven official, | accrescentou : || - Vamos. Vamos depressa, senhor. || [espaço] XV [espaço] ||Dissemos que Samuel Job subiu ao | quarto de Móina e a encontrou a dor- | mir. || A pobre criança, morrendo de fadiga, | fechara os olhos e dormia agora um | somno pesado e firme. || - Como é bella ! murmurava o judeu, |contemplando a alguns minutos. E di- | zer, continuava elle, que a vida está por | um fio, que talvez quebre. || Samuel desceu á loja, e para enganar | a anciedade, porque contava os minutos | desde que o tenente partira, começou a | pôr em ordem os objectos de toda a es- | pecie, que atulhavam o rez do chão da | casa. ||

Edição 398PONSON DU TERRAIL [espaço]12 [22]

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XV || Quando o tenente e a condessa Auro- | ra chegaram, Samuel teve um palpite. || Essa mulher tão joven e formosa não | lhe traria uma palavra de clemencia em | favor do prisioneiro? || - Seis Samuel Job ? disse Aurora. || - Sim, minha senhora. || - E amigo do bohemio que vão fuzilar ? || - Ah ! exclamou o judeu, a senhora | não o permittirá não ? || - Ah ! meu bom amigo, eu não sou o | general, e nenhuma influencia tenho no | conselho de guerra ; mas... || - Mas ? ... disse Samuel que suspendeu | a sua alma dos labios da joven

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senhora. || - O bohemio tem uma filha ? || - Sim, senhora. || - E está aqui ? || - Sim, disse o judeu com um movi- | mento de cabeça. || - Desejava vê-a, disse Aurora. || Samuel Job dirigiu-se para a escada e | subiu correndo ao quarto de Móina. || Ao ruido que fez, abrindo a porta, Mói- | na despertou. || - Ah ! disse ella sorrindo, tive uma | louca esperança : julguei que era meu | pae. || - Não é, disse Samuel : mas venho | buscar-te. || - Para ir ter com meu pae ? || - Não, mas para te apresentar á um- | lher do general. || - Do general Pichegru? ||

- Não, do general Dagoberto, do qual | depende a sorte do teu pae. || E tomou Móina pela mão e arrastou-a. || As mulheres verdadeiramente bellas | admiram a belleza das outras mulheres. || Aurora deu um grito de admiração ao | ver a jovem bohemioa. || Móina estava pallida ; seus grandes | olhos pisados pela fadiga, onde havia | ainda vestígio de lagrimas, tinham o | olhar espantadiço e doce de gazella do | deserto. || -Minha menina és tu que tens teu | pae preso ? lhe disse Aurora || - Sim, minha senhora, respondeu Mói- | na, que queria por-se de joelhos deante | de Aurora. || A condessa porém levantou-a e pegou- | lhe na não. || - Não chore, minha filha, disse ella. | Tenha esperança. || - Ah ! a senhora há de salval-o, não | é assim ? disse Móina, erguendo suppli- | ces mãos. || - Farei o que poder, respondeu Auro- | ra, mas deixe-me fazer-lhe uma pergun- | ta. De onde vinha com seu pae ? || - Oh ! bem de longe, senhora, de Vien- | na d’Austria. || - De Vienna ? || - Sim, senhora. || Aurora estremeceu. Era em Vienna | que estava a sua irmã Joanna, a condes- | as de Mazures. || - E para onde iam ? || - Vinhamos para aqui, quando nos | succedeu aquella desgraça. || E Móina contou com animação e ener- | gia a scena sanguinolenta, de que fôra | theatro a estalagem da Villa, e que ti- | nha precedido as grosseiras tentativas do | tenente Dachin e dos dois cabos. || Aurora ouvia indignada. || - Desgraçadamente, disse ella emfim, | esse homem era um official, e já não é |

o primeiro que ha um mez têm assass[i]- | nado. O general Pichegru, quando par- | tiú de Coblentz... || - ó meu Deus ! disse Móina, então o | general partiu ? || - Sim, minha filha. || - Ah ! então está meu pae perdido ! || - Ainda não, disse a condessa. || - E, dirigindo-se a Samuel Job, disse, | designando o tenente : || - Não disse a este senhor, que, si fal- | lasse com o general Pichegru, se com- | promettia a salvar o bohemio ? || - é verdade, minha senhora. || - Quantas horas lhe são precisas para ir | a Mayence. || - Cinco ou seis horas, com um bom | Cavallo. || - Então poderá estar de volta á tarde, | ou pelo menos á noite ? || - Oh ! com certeza. || - Bom ! disse Aurora, eu não sei qual | é o valor da sua esperança ; mas de al- | gum modo me posso associar a ella ; fa- | rei com que o general Dagoberto lhe dê | um passaporte para Mayence. || - E depois ? disse Samuel. || - Esperarão que volte, para julgarem | o pae desta menina. || - Mas, continuou a condessa, o meu | amigo não se illude ? || - Com que ? senhora. || - Com a clemência do general Piche- | gru. || - Senhora, respondeu affoutamente | Samuel Job, fiz tal favor ao general, | que elle não pode recusar-me nada. || Samuel mentia ; mas poderia dizer que | era portador de cartas dos inimigos da | França para o general Pichegru? || - Bem ! disse Aurora, tentemos en- | tão. || Vem acompanhar esta menina, que | encontrará em minha casa um asilo até |a sua volta. ||

O tenente olhou então para Móina com | um olhar que queria dizer : || - Não receie nada, seu pae será salvo. || - Apresse os preparativos de viagem. |meu amigo, emquanto eu vou fazer com | que o general assigne um passaporte | para si. || E Aurora depoz um beijo em Móina. || - Espere, minha filha, disse ella. || E tomando o braço do tenente, voltou | á casa a toda pressa. || Dagoberto passeava na sala que lhe | servia de gabinete, onde recebia todas | as manhas os officiaes ás suas ordens. || Ainda estava só quando Aurora voltou. || - Minha querida amiga, estou como | tu, commovido, ao pensar que esse des[-] | graçado não fez mais que defender a fi [-] | lha ; nãs Pichegru deixou-me ordens | tão claras, tão terminantes... tão for- | maes... || - Meu bom amigo, disse Aurora, só | tenho a pedir-te um favor. || - Qual ? || - Esse judeu chamado Samuel Job, e | que recolheu a filha do bohemio, pre- | tende obter a

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vida do desgraçado, uma | vez que tu lhe concedao tempo necessario | para ir a Mayence. || Dagoberto enconlheu os hombros, e | disse : | - Eu conheço Pichegru, é um home | que não se enternece facilmente. || - Samuel compromette-se a obter tu- | do delle. || - Está bom, disse o general, o conse- | lho de guerra só se reunirá ao meio dia. || - E porque não se ha de reunir só | amanhã, quando voltar Samuel ? disse a | condessa. || - Porque o exercito, replicou Dago- | Berto, murmuraria altamente todo o dia, | e tu, minha boa amiga, bem deves saber | que o exercito está descontente, e só es- | pêra um pretexto para se revoltar. ||

Pois não sabes que a republica nos de- | vê um consideravel atraso de soldo? || - Ah ! é justo, disse Aurora. || - Quando o soldado não tem dinheiro, | continuou Dagoberto, só espera o mo- | mento favorável de fazer mal. || - Mas, si Pichegru, perdoasse ? || - Pichegru tem uma autoridade que | eu não tenho. E portanto o homeio ha | de ser julgado hoje. || - E si elle fôr condemnado ? || - Será. Tenho a certeza disso. || - Mas então fuzilaram-n’o ? || - Não ; será executado amanhã de | manhã, e entretanto Samuel Job terá tempo de voltar. || Quando Dagoberto dizia isto, entra- | vam o judeu e a joven bohemia. || Dagoberto, sensibilisado, como sua mu- |lher, pela belleza da joven, sentiu aug- | mentar a sua compaixão. E olhando pa- | ra o judeu :| - Estás seguro do bom resultado da | tua missão ? || - Estou, meu general, disse Samuel. || - Julgas que Pichegru te concederá o | perdão do bohemio ? || - Tenho a convicção disso. Dê-me | vinte e quatro horas, e eu respondo por | todo. || Dagoberto entregou um passaporte ao | judeu, porque sem isso, ninguem viaja- | va em territorio occupado pelo exercito | francez. || Depois disse ao tenente, que, como se | sabe também era seu ajudante de or- | dens : || - Mande dar um cavallo a esse ho- | Mem, para que elle parta immediata- | mente. || Um quarto de hora depois, Samuel Job | galopava para Mayence, emquanto a con- | dessa Aurora installava Móina no seu | próprio quarto. ||[espaço com 15 pontos finais]||

Edição 399PONSON DU TERRAIL [espaço] 23

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XVI ||Ora quando Samuel Job deixava Co- | blentz, um homem entrava na praça. Era já velho, abrigava a vista cança- | da, debaixo de umas lunetas, e apresen- | tou-se á porta, que era guardada pelo | capitão Bernin. || Perguntarem-lhe pelo passaporte. || - Não tenho, respondeu elle, mas em | Coblentz ha um homem que responderá | por mim, como por elle mesmo. || - E que homem é esse ? perguntou o | capitão. || - É o general Dagoberto. || - Está bem “ disse o capitão. vão le- | val-o á casa do general. || E mandou ao sargento Lafolie que | acompanhasse o viajante. || Chegado á porta do general, o home | de lunetas disse ao sargento : || - Mande prevenir o general já, por- | que tenho muita pressa de o vêr. || - Como se chama ? perguntou o sar- | gento. || - Chamo-me Bibi. || - Exquisito nome ! || E o sargento levantou o cão da porta, | que se abriu logo. || Um soldado veio ao encontro do sar- | gento, e olhou para o homem de lune- |tas. || Nesse momento, porém uma outra |porta se abriu, e Dagoberto atravessava | o vestíbulo. || - Meu general, disse então o homem | de lunetas não é o senhor que respon- | de por mim ? || - Bibi ! exclamou Dagoberto. ||

E veio para o homem da policia, com | as duas mãoes abertas, e, com um gesto | imperioso. despediu o sargento Lafolie ! || Dagoberto pronunciou o nome de Bibi com voz tão alegre e retumbante, que a | generala que entrava no quarto ouviu-o. || Aurora desceu a toda a pressa e, como | seu marido, estendeu as duas mãos ao | homem da policia, repetindo : || - Finalmente que chegou. || - Sim, senhora, disse Bibi. || - Mas de onde vem ? || - Oh ! de

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muito longe. || - De Paris ? || - De Paris primeiramente, mas como | lá não me corria bem, puz-me ao fresco. | Si não fosse o 9 thermidor, estava arran- | jado. || - Pobre amigo, disse Aurora, que se | tornou melacolica, lembrando-se do | Terror. || Bibi continuou: || - Bem sabem que lhes fiz um jura- | mento, quando os deixei a ambos : - |<< Restituir-lhes-hei a fortuna roubada | por Antonia, disse eu. >> || - Meu pobre amigo, disse o general | com um sorriso, si a trouxesses, olha | que seria alegremente recebida, eu t’o | juro. || - Ah ! || - A republica deve-nos seis mezes de | soldo, e si não estivessemos em paiz con- |quistado, não sei como viveriamos. || - Ah ! disse Bibi, ainda não posso cum- | prir o meu juramento, mas cumpril-o- | hei. || - Como ? disse Dagoberto em ar de du- | vida. | - Dizem que Antonia está mais pode- | rosa que nunca disse Aurora. || - Não importa ! disse Bibi ; já sei os | vestígios do dinheiro. || - Ora ! como ella o tem, ella lá o as- | berá guardar. || - Si ella o tivesse em seu poder já ha |

muito que eu lh’o teria filado, por mais | poderosa que fosse. || Dagoberto e Aurora olharam para | Bibi com admiração. || O homem da policia continuou : || - Venho de Vienna d’Austria. || -Bom || - E trago-lhe cartas da sua irmã. || - Ah ! dê cá depressa, disse Aurora, | que já não pensou mais no seu dinheiro. || Bibi tirou do bolso uma carteira es- | farrapada, e da carteira uma ca[r]ta que | entregou a Aurora. || E em quanto a condessa lhe quebra- | va o fecho com anciedade, Bibi prose- | guiu, dirigindo-se a Dagoberto : || - Antonia, a Toinon de outr’ora ?... || - Sim, interrompeu Dagoberto, a ci- | gana, que ha seis annos me predisse que | eu traria um dia vestidos dourados. || - Já sabe então o que eu ia dizer-lhe ! || Antonia é bohemia. || - Muito bem. || - Os bohemios formam na Allemanha | uma tribu numerosa e potente. || - Com effeito ! || - Aos pobres que lêm a buenadicha | pelas ruas, dansan na corda ou repre- | sentam em theatros ambulantes : mas | também os ha ricos que são banqueiros, | usurários e adelos. E ha outros que até | ocupam elevados cargos. || - E esses creio que não têm relações | nenhumas com os outros. || - Pelo contrario, ricos e pobres, to- | dos se dão, têm costumes mysteriosos | senhas e signaes de convenção, praticas, | religiosas singulares, e um chefes occul- | to que os governas na sombra. || - Realmente ! disse Aurora que aca- | bava de lêr a carta da sua irmã, á con- | dessa Joanna de Mazures. || - Até têm um thesouro commum, dis- | se Bibi. || - Ora essa ! disse Dagoberto. || - Esse thesouro accumularam n’o |

pouco e pouco, atravez dos seculos, e é | para elles como que uma caixa de soc- |corros. Ora quer saber o que fez Anto[-] |nia? lançou nessa caixa commum a som- | ma enorme que roubou á senhora e á | sua irmã, com a condição de a usufruir, ficando depois da sua morte, para o the- | souro commum. || - Estão, pois, perdidas todas as nossas | esperanças, disse Dagoberto. || - Ainda não. || - Os ciganos não restituem nada. || - Talvez.. || - Oh ! és ingenuo de mais, disse Da- | goberto. || - Meu general, os bohemios são hon- | rados Quando souberam que esse di- | nheiro foi roubado... || - Mas como ! exclamou Aurora, en- | tão elles não o sabem ? || - Não, porque Antonia lhes fez crêr | que essa fortuna lhe fôra dada pela prin- | ceza Helena, que se queria vingar da | infidelidade do conde de Mazures, seu | tio. Provou-lh’o com peças falsas e car- |tas escriptas expressamente. || - E então julga, meu caro Bibi, que | os ciganos restituiriam o dinheiro, si ti- | vessem a prova de que foi roubado? || Julgo, senhora. || - Mas, disse Aurora suspirando, onde | encontrar essa prova ? a condessa de Ma- | zures morreu ; Gretchen, nossa mãe | morreu ; meu pae ... || - Seu pae não morreu, disse Bibi. || - Meu pae não morreu ? || - Não, senhora. || - Ah ! exclamou Aurora commovida, | mas onde está então ? || - Ah ! senhora, disse Bibi, ainda não | chegou a hora de lhe fazer tão dolorosa | confidencia. Não me interrogue hoje... || - Mas ... || - Basta que saiba que seu pae vive, | que se arrepende do passado, e que a | ama. ||

- Continue, meu amigo, disse Aurora, | conseguindo dominar a sua emoção. || - Senhora, prosseguiu Bibi, deve ima- | ginar que com bastante custo pude as- | ber o que Antonia fez do dinheiro. || O thesouro dos bohemios está escon- | dido. || -Em que sitio ? || - Ninguem o

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sabe ao certo, a não ser | esse, o rei desse povo mysterioso, que | põe á sua disposição sommas immensas.||- Empresta aos banqueiros e aos reis. || Muitas vezes tem recorrido a elle o | imperador da Austra ; e a senhora sabe | que o seu primo, conde de Mazures, hoje | marido da sua irmã, é ajudante de ordens | de Sua Magestade. || - E dahi ? || - O imperador póde restituir-lhe a | sua fortuna. || - O rei dos bohemios acreditar-lhe-ha | então na palavra? || - Não. Mas uma simples carta que | provasse que a princeza Helena amava | o conde de Mazures, seu tio, seria | suficiente para edificar o imperador e | destruir a abominável versão de Anto- | [[to]]nia. || - Ah ! disse Aurora, mas eu não te- | nho nenhuma carta desse genero. || - Levei dois mezes, continuou Bibi, | a procurar esse rei dos bohemios. || - Ah ! disse Dagoberto. || - É um personagem invisível Ora | está no fundo da Humgria, ora desce o | Danuvio, ora percorre o norte ou o sul |da Hungria, porque a parte a sua rea- | lesa, ele tem uma profissão. || - Qual é? || - Negociante de pedras preciosas, e | passa por ter os mais bellos diamantes | do mundo. || - Então, disse Dagoberto, o rei não é | esse pobre diabo que eu receio bem que | será fuzilado amanhã? || Bibi estremeceu. ||

Edição 400PONSON DU TERRAIL [espaço] 24

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XVI || - Que quer dizer, meu general ? per- | guntou elle. || - Ah ! interrompeu Aurora, é uma | historia lamentavel, meu amigo. || - Mas qual? || - Por toda a parte há bohemios, re- | plicou Aurora. || - Sem duvida, senhora, mas o que é? || - Um pobre diabo que pretende per- | tencer a essa raça, viajava a noite pas- | sada, em companhia de sua filha, pela | estrada de Mayence a Coblentz. || - Bem ! || - Era bonita a filha ; elles iam cança- | dos, cheios de fome ; entraram em uma | hospedaria da villa, onde os açoitam por | caridade, quando chegam uns soldados | com um official. Esse official é um mi- | serável que quer deshonrar a pequena | bohemia ; o pae toma uma faca e mata-o. | - E depois? disse Bibi. || - Depois pega na filha nos braços, foge | e chega a Coblentz, onde é preso. || - E vão fuzilal-o ? || - Assim o receio, disse Dagoberto. || - Mas isso depende do general. || - De mim não, mas de Pichegru, que | esta em Mayence, para onde eu mandei | um judeu chamado Samuel Job. || - E esse judeu ?... || - Esse judeu diz que fez um grande | favor a Pichegru. || - Ah ! || - E partiu convencido de obter o per- | dão de Munito. || - Munito ! exclamou Bibi. || - Sim, é o nome delle. || - Mas também é o nome desse rei dos |

bohemios que eu ha tanto tempo procu- | ro inutilmente. || Dagoberto começou a rir, e disse : ||- Meu amigo, este é um pobre diabo | que não tem thesouros nem diamante || - Esta coberto de farrapos, dise Au- | rora. || - É o mesmo, disse Bibi. desejava |vêl-o [.] É possivel, meu general ? ||- Com certeza. || - E póde tambem vêr a filha, disse | Aurora. || - Onde esta ella ? || - Aqui mesmo. || - Aqui ! || - Sim, disse Aurora, recolhi-a ; e, | succeda o que succeder, espero obter o | perdão de seu pae || E a condessa Aurora fallando assim, | dirigiu-se ao seu quarto, dizendo : || - Móina ! Móina ! vêm, minha filha ! || A pequena bohemia correu, e Bibi não | pode reprimir um gesto de admiração ao | vêl-a, tão formosa era ella ! ... || [espaço] XVII [espaço]|| Bibi, vendo Móina, pôde deixar de ex- | perimentar a impressão de duvida que |tinha experimentado Dagoberto e Au- | rora. ||Effectivamente a pobre menina esta- |va vestida tão pobremente que era im- | possível admitir que ela fosse a filha | de um homem que possuia milhões. Com [-]|tudo. Bibi disse-lhe : || - Como se chama ? minha filha. || - Móina, respondeu ella. || - E seu pae? || - Chama-se Munito. || - De que terra é ? || - Da Hungria, senhor. || Bibi olhou para ella mais attentamen- |te ainda. || - E seu pae não é

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negociante de dia- | mantes ? || Móina estremeceu ; mas era descon- |fiada por instincto e pensou que por | uma palavra imprudente poderia acabar | de perder seu pae. ||

- Não, senhor, disse ella. || - Então seu pae não é o rei dos bohe- | mios? || Ella começou a rir, e disse: || - Si meu pae fosse rei, então eu seria | princeza, e as princezas não andam des- | calças. || - Minha filha, disse Aurora, creia que | é para interesse de seu pae que lhe fa- | zem essas perguntas. || Móina, porém, continuava a descon- | fiar de Bibi, que não pensava no grande |olhar investigador que tinha conserva- |do, desde a sua antiga profissão de ho-|mem da policia. || Móina, pois, conservou-se em pruden- | te silencio, ignorando que a salvação de | seu pae dependia talvez da franqueza de | suas confissões. || Bibi comtudo notára-lhe um leve es- | tremecimento. || - Ella não falla verdade ! pensou elle. || Quis ficar só com Dagoberto e deixou a | condessa levar Móina. || Depois disse ao general : || - Eu desejava ver o prisioneiro. || - Para que ? disse Dagoberto. || - Para me certificar si elle é o ver- | dadeiro Munito. || doberto começou a rir, e disse : || - Pois ainda não estás convencido ? || - Ainda não meu general. || - Mas tu ouviste a filha ... || - A filha mente. || - Que idea ! || - É como tenho a honra de lh’o dizer. | Acredite-me : eu não pertenci vinte an- | nos a policia, sem conhecer bem meu | officio. Leio no fundo das almas. || - E cuidas que, si essa criança sou- | besse que era rico e tinha o poder de | que ha pouco fallaste, não o diria logo, | com a esperança de o poder salvar? || - Não. || - Mas eu penso o contrario. || - Engana-se general, ou antes, não | conhece o caracter bohemio, que é es- | sencialmente mysterioso. O que um bo- |

hemio rico esconde mais cuidadosamen- | te é a sua fortuna. || - Ora essa ! || - Juro lhe que tenho agora a convic- | cão de que Munito é quem eu procuro. || - Pódes certificar-te d’isso. || - Como ? || - Indo vêl-o || O general puxou do relogio. || - São nove horas da manhã apenas, | disse elle ; só ao meio dia comparecerá | elle no conselho de guerra. || - E poderei entrar na prisão. || - Sem duvida, com uma ordem minha. || O general chamou o joven tenente, seu | ajudante de ordens, e disse-lhe algumas | palavras. || - Venha commigo, disse este ao pae | Bibi. || Bibi pôz as lunetas e seguiu o official. || A cadeira era um antigo convento, si- | tuado na margem do Rheno, e que os | francezes tinham apressadamente posto | em estado de receber presos. || Tinham lançado para alli confusamen- |te prisioneiros de guerra, espiões sur- | prehendidos em flagrante delicto e al- | guns soldados condemnados a penas dis- | ciplinares. || Mas, como prenderam mUnito, antes | de ser dia, metteram-n’o em um quar- | to. ||Bibi ahi o encontrou sentado ao pé da | janella, guarnecida de grossos varões de | ferro. || O homem da policia pediu ao joven of- | ficial que o deixasse sósinho com o bo- | hemio. || Munito olhou para aquelle homem que | assim entrava na sua prisão e que elle | via pela primeira vez. || Suppoz até que era algum juiz encar- | regado de o interrogar. || Bibi, porém fez um signal mysterioso | e Munito estremeceu. || Como homem da policia Bibi sabia | de tudo. ||

Enquanto estivera em Vienna fizera- | se filiar nos francos-mações. || Ora muitos bohemios são franco-ma-|coes, e , si Munito era realmente quem | Bibi procurava, devia fazer parte da- | quella seita, || Munito respondeu com signal idêntico. || Então Bibi disse : || - Vejo que somos irmãos. || - É verdade, disse o bohemio. || - Alem d’isso sou teu amigo. || - Ah ! || - E, si eu venho aqui, é para te sal- | var. || Munito abriu um sorriso triste e de | esperança ao mesmo tempo. || - Não tenho medo da morte, disse elle. || - E verdade, mas farás todo o possi- | vel para viveres. Primeira mente por | causa da tua filha, que eu acabo agora | mesmo de deixar. || - Viste minha filha ! disse elle. || - Sem duvida. || -Então vindes da casa de Samuel Job? ||- Não porque Samuel Job saiu de Co- | blentz. || - Saiu ! Samuel ! exclamou o bohemio. || - Saiu. || - E minha filha ! minha filha ? que é | feito d’ella ? || - Descança; confiou-a a uma nobre e | bella senhora, a mulher do general Da- | goberto, que cuidará

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d’ella, como si fos- | se sua filha. || - É ao menos verdade o que me dizes? |disse o pobre pai tremendo todo. ||-Juro-t’o em nome da associação de | que fazemos parte e que nos faz irmãos. || - Mas porque partiu Samuel ? |- Foi a Mayence por tua causa. || - Por minha causa? ||- Sim, porque o general Pichegru, a | quem elle vae pedir o teu perdão, não | está em Coblentz. || Livida pallidez se espelhou no rosto | de Munito ||

Edição 401PONSON DU TERRAIL [espaço] 25

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira NichetteXVII ||- Ah ! disse elle, cobrindo a fronte, | com as duas mãos, si o general partiu, | estou perdido. || - Ainda não, disse Bibi, porque ha ou- |tro general que se interessa por ti. || Munito olhou para Bibi com ar de du- | vida. || - É aquelle cuja mulher recolheu tua | filha. || - E que poderá esse homem fazer por | mim ? || - Elle é quem commanda na ausência | do general Pichegru. || - E perdoar me –ha ? ||- Não, mas faz suspeder a tua exe- | cução até que Samuel Job volte de |Mayence, nde espera encontrar Piche- | gru. || - Ah ! isso é differente, disse Munito. || E pareceu-lhe voltar-lhe a esperança. |que o tinha abandonado.|| - Então, disse elle, esse general é quem | te manda aqui ? || - Sim e não. || Munito pareceu não comprehender. ||- Obtive delle a paermissão de te vis- | tar, prosseguiu Bibi ; eu é que precisava | de te ver. || - Vós ? || - Sim, eu, Ha muito tempo que te | procuro. || Munito fez um novo gesto de espanto. || - Ha dois mezes que te procuro, re- | plicou Bibi. || - Mas eu não vos conheço. || -Tu chamas-te Munito. || - É verdade. || - E és o rei dos bohemios. ||

Munito sorriu. || - Porque caçoaes commigo? disse elle. || Bibi não desanimou. || - Ouve-me. Tu contas com o teu per- |dão, e talvez que tenhas razão, porque | parece que Samuel tem grande influen- | cia em Pichegru ; mas talvez que tu pos- |sãs enganar-te. || - Oh ! disse o bohemio, com um sor- | riso. || - E então só ha um homem que te póde | salvar. || - E esse... homem? || - Sou eu. || - Vós ! || - Acredita em mim, si és sincero, con- | Fe-as-me que tu és effectivamente Muni- |to o rei dos bohemios, o negociante de | diamantes e pedras preciosas, o guarda | de um thesouro mysterioso, e a minha | cabeça responderá pela tua vida. || Mas Munito não cedeu. || - E, si eu fosse o homem que vós di- | zeis. que interesse teríeis em me salvar? || - Queres sabel-o ? ||- Quero. || Bibi aproximou-se da janella e atra- | vez das grades de ferro olhou para o Rhe- | no que ruidosamente corria junto da cadeia. || - Que fazeis ? perguntou Munito. || - Vou vêr si poderei cumprir a mi- | nha promessa. || - Ah ! ||- E agora ouve-me. || - Fallae, dis[s]e Munito. || E o bohemio atirou a Bibi um olhar | mais curioso que inquieto. ||[espaço]XVIII[espaço]|| Bibi fallava allemão, uma lingua que | os soldados francezes não entendiam na- | na. || Comtudo podia bem ser que alguem | espreitasse á porta da prisão. || O homem da policia fez primeiramen- | te esta reflexão ; depois fez uma outra |

ainda, e era que só servindo-se do pro- | prio idioma é que podia ganhar a con- | fiança do bohemio. || Este ficou admiradissimo de ouvir o | pae Bibi, esse homem tão desconhecido | para elle, dirigir-lhe a palavra em hun- |garo. || Bibi disse : || - Supponhamos, pois, que és o rei dos | bohemios. || - Muito bem, disse Munito. || - És o guarda de um thesouro que | pertence em commum a todas as pessoas | da tua tribu. ||- O thesouro existe effectivamente, | respondeu Munito. || - Esse thesouro augmentou por uma | fortuna consideravel que te confiou uma | mulher. || - Ah ! tu sabes isso ? disse Munito, | que repentinamento sahiu da sua extre- | ma reserva. || - Sei isto e outras cousas mais. || - E depois ? || - Tornaste-te depositario dessa som- | ma, sob a condição de servires fielmente | os interesses dessa mulher, durante a | sua vida. Depois da sua morte, perten- |

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cer-vos-ha o capital. || - Isso é poerfeitamente verdadeiro. | Pois bem, é essa mulher que te envia | aqui? || - Não. || - Então porque te interessas por mim ? || - Porque me interesso por esse di- | nheiro. || - Sim ? || - Sabes que foi roubado esse dinheiro | que recebeste ? || - Enganas-te, meu paesinho, disse o | bohemio, servindo-se de uma pharase tão | familiar aos da sua raça ; si esse dinhei- | ro fosse roubado, nós não o teriamos ac- | ceitado. || - Ah ! realmente ? || - Tu não conheces os bohemios. Elles | abominam o roubo. ||

- Nem todos, porque essa mulher é | uma bohemia. || - Sem duvida. || - Chama-se Antonia. || - É esse o nome della. || - E ella roubou esse dinheiro. || Munito abanou a cabeça com um ar incrédulo. || - Meu paseinho, disse elle, tenho a | vida na mesma conta em que a têm todos | os homens, e Mao minha filha Móina o | mais possível. Si eu morrer, minha fi- | lha ficará só no mundo. Pois bem, ouve- |me agora tu : Si julgas que Munito pa- |ra salvar a vida, se separaria de um di- | nheiro que lhe confiaram, enganas-te. | Manda vir os meus juizes, chama os | meus carrascos, que eu estou prompto. || Bibi não perdeu o sangue frio. || - Paesinho, disse elle também, ouve- | me. Si eu te provar que Antonia rou- | bou esse dinheiro, restituil-o-has? || - Com certeza. ||- Pois bem ! provar-t’o-hei. || - Realmente ? || - Vamos começar por te salvar. || - Slava-me, si quiseres, mas na cer- | teza de que só terás o dinheiro, quando | eu tiver na mão a prova de que me fal- | las. || - Nem de outro modo o quero. || E Bibi aproximou-se novamente da | janella. || Os varões eram contornados e formavam uma especie de barriga para fóra ; | e esta disposição particular permittia | olhar verticalmente para o rio. || Bibi media a distancia, que não era | de mais de cem pés. || Depois voltou a Munito. || - Ouve-me ainda ; juras-me, sob tua |palavra, que me darás o dinheiro, si eu | te apresentar a prova de que fallei ver- | dade ? || - Juro, disse o bohemio. || - Então fallemos da tua salvação.||

- Já t’o dissipaesinho, que Pichegru | me perdoará. || - E, si elle recusar o perdão ! || - Não recusa. || - Emfim, disse Bibi, é preciso prever |tudo. Pichegru já não esta talvez em | Coblentz. || - Munito estremeceu. || - Então não sei como poderá salvar- | me. || Bibi rio e disse: || - Imagina que tens amigos em Co- | blentz. || - Bom ! ||- Que te dão [mancha] a lima para limares os | ferros da tua prisão. || - E depois ? ||- Que te provam uma esada de | corda e que com ella desces ao Rheno. || - Onde me afogo porque eu não sei | nadar, disse Munito. || - Imagina também que tens amigos | que te procuram um barco. || - Ah ! isso é diferente. || - E que te esperam em baixo. ||- Imaginas muitas, cousas, disse o bo- | hemio, com um sorriso triste. || - Tenho cá minhas razões para isso. || - E, fallando assim, Bibi tirou do bol- | so uma pequena lima, que entregou ao | bohemio admirado. || - Vae escondendo isso no teu gibão | disse elle, e lembra-te de uma proverbio | que diz : <<Ajuda-te que Deus te ajuda- |rá. >> || - Mas si me surprehendem a limar os | ferros... ? ||- Aconselho-te que não pricipies a | limal-os antes de anoitecer. || - Primeramente hão de vir buscar [dobra] |para ires ao conselho de guerra. || - E serei condemnado ? || - E’s mas ainda assim não serás fu- | zilado antes da madrugada de amanhã. || - Mas a corda ? || - Descança, eu virei esta noite. ||

Edição 402PONSON DU TERRAIL [espaço] 26

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XVIII || E Bibi deixou o prisioneiro, indo á | casa do general Dagoberto. || - Então ? lhe perguntou o general. || - Nada feito ! respondeu Bibi não pu- | de obter nada delle. || - Não é o rei dos bohemios ? || - Não sei ; mas sabel-o hei esta noite. || - Como ? || - Meu general, disse Bibi, que tinha | as suas razões para não se abrir com | Dagoberto, não póde recusar-me

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nada, | não é assim ? || - Nada no limite da minha conscien- | cia e dos meus deveres, respondeu Da- | goberto. || - Também não lhe pedirei nada que | vá de encontro ao seus deveres e me per- | turbe a sua consciencia, meu general. || - Então falle. || - Succeda o que succeder, não fuzila- | rão o bohemio antes de amanhã pela ma- | nhã, não é assim ? || - Dei a minha palavra a Samuel Job, | disse Dagoberto, e é preciso esperar que | elle venha. || - Muito bem, meu general. Não per- | mitte ir outra vez vêr o bohemio esta | noite ? ||- Não vejo nisso inconveniente algum. || - É tudo o que eu lhe queria pedir. || - E Bibi subiu aos aposentos de Aurora. || A condessa procurara a Móina vesti- | dos convenientes, e era tão affectuosa | para ella, que a pobre criança começa- | va a ter esperança da boa sorte de seu | pae. || Entretanto ao ver entrar Bibi, olhou-o | com anciedade. Bibi sorria. ||

- Não esteja triste, menina, disse elle, | seu pae viverá. || - Oh ! falla a verdade senhor ? disse | ella juntando as mãos. || - Não prometto nunca sem cumprir. || E Bibi olhou para Aurora, que lhe dis- | se : || - Está certo de que Pichegru lhe per- | doará ? || - Não, senhora. || - Então conseguiu vencer o meu ma- | rido ? || - Tambem não. ||E Bibi dando estas respostas descon- | soladoras, não perdia nada do seu soce- |GO. || - Mas então ? ... disse a condessa in- | quieta. || - Senhora, disse Bibi, jura-me uma | cousa. || - Falle... || - Jura – me não pedir o perdão do bo- | hemio ao general ? || - Mas porque ? || - A salvação delle depende disso. || - Seja, disse Aurora que confiava no | espírito engenhoso de Bibi. || Depois accrescentou : || - Eu não estou no serviço da republi- | ca franceza, e não me propuz abandonar | os que ella persegue. || Bibi fallava agora em francez, uma | língua que Móina não comprhendia, de | fórma que ella não entendia o que dizia | a condessa e o homem da policia. || - Senhora, replicou Bibi, quando fui | á cadeia vêr esse pobre diabo... || - É o rei dos bohemios ? ... || - Não, disse Bibi. || - Continue, disse Aurora. || - Dizia eu que quando gha pouco fui | á cadeia, dei uma volta com o tenente | ajudante de ordens do general. || - Um gentil moço, disse ella. || - E elle deu-me algumas informações | sobre o modo como a senhora passa o | tempo em Coblentz. || - Ah ! ah ! disse Aurora, sorrindo.

- Parece que a senhora adora os pas- | seios pelo rio. || - É verdade, e todas as tardes, depois | do jantar, a menos que o tempo não es- | teja frio, vamos navegar uma ou duas | léguas, pelo luar, respondeu a condessa. || - Fez-me um juramento ha pouco, | senhora ; quer agora fazer-me um pe- | queno favor? || - Com todo o gosto, meu caro Bibi. || - Tenho de dar um passeio esta noite. || - Pelo Rheno ? || - Sim, senhora. Quero visitar um | meu amigo que mora na margem direi- | ta, defronte da cidade. || - Eu mesmo o levarei lá, disse Aurora. || - Eu não ousava pedir-lh’o, mas ac- | ceito, respondeu Bibi. || E deu um passo para se retirar || -Agora, concluiu elle, vou dar um | giro pela cidade. || E sahiu. ||[espaço] XIX [espaço] || Bibi dirigia voluntariamente monolo- | gos a si mesmo. || Era um costume que elle, contrahira, | em viver spo a maior parte do tempo. || Ora, quando Bibi sahiu da casa de Da- | goberto, disse de si para si: || - A condesa não suspeita que eu a vá | fazer cúmplice da evasão do bohemio, e | estimo que só o saiba no ultimo momen- | to. Essas pessoas são tão honestas que | se interessariam menos por Munito, | quando soubessem que elle tem uma du- | zia de milhões a dar-lhes. || Além de que Munito conta sempre | com Pichegru e eu não. || Porque? || Ninguem o adivinharia, mas o pa Bi- | bi bem sabe o que ha de fazer. || Bibi fez uma pausa. Depois, conti- | nuando a caminhar dirigiu-se a uma | hospedaria, a uma gastauss, como di- | zem na Allemanha. || Desde que chegara ainda não tinha co- | mido nem bebido. Mandou servir-se de | almoço, pediu um quarto, barbeou-se, |

mudou de roupa branca e abriu a car- | teira. || - Passaram-me a letra sobre um ban- | queiro de Coblentz, disse elle. Vejamos. || E tirando a letra que era de duzentos | thalers, deu um grito de sorpresa. || A letra era pagável em casa do judeu | Samuel Job. || - Que diabo ! disse elle, pois eu não | reparei neste nome ? || Samuel Job estava em Mayence, se- | gundo lhe disseram de manhã em casa | do general Dagoberto. || Bibi, porém, pensou que o judeu te- |

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ria alguém em casa delle, um emprega- |do, um caixeiro, talvez uma mulher, que | na sua ausência fizesse as honras da ca- |as ; perguntou pela morada de Samuel | Job e foi lá. || A casa estava fechada. || Quando batia pela terceira vez, abriu- | se uma janella da casa visinha, e uma | velha disse-lhe em allemão : || - Samuel não esta lá. || - E não esta ninguem em casa ? || - Nada, elle não tem mulher nem fi- | lhos. || - Ah ! disse Bibi, que se lembrou de- | sapontado que só possuia alguns thalers. | Esperarei até amanha, disse elle pen- | sando que Dagoberto afinal estava promp- | to para tudo . || De manhã tinham visto Bibi, a pas- | sear por Coblentz com o ajudante do ge- | neral ; e supposto a cara delle não in- | culcasse, espalhara-se que era pessoa de | importância. || Encontrouo capitão Bernin que de manhã o mandara prender e conduzir | por um soldado á casa do general. || O capitão ccomprimentou-o e Bibi cor- respondeu com amenidade. || Depois o bom do homem continuou a caminhar e entrou em caa de um cor- | doeiro. || Comprou uma corda de comprimento | de 73 pés, a maior que pôde achar. || - Bah ! disse elle, si a corta é curta, |

o nosso homem dará um banho no Rhe- | no ; nós o pescaremos. || E levou a corda á hospedaria. || Ahi fechou-se no quarto, despiu-se e | envolveu a corda á cinta. || - Isto vale mais que Pichegru. ||Depois esperou a noite com impacien- | cia. Durante este tempo Munito tinha | comparecido diante de seus juizes, e fôra | condemnado á morte, por unanimidade. || Bibi que tinha uma ordem escripta | por Dagoberto, foi á cadeia, e obteve | como de manhã, o favor de conferenciar | com o prisioneiro. || - Paesinho, lhe disse elle, precisas | de tres horas para limares os teus fer- | ros. || - Trazes-me a corda? ||- Trago. || - Bibi tirou o gibão e o collete, desem- | baraçou-se da corda e metteu-a debaixo | da cama do prisioneiro. || - Agora mãos á obra, e nada de per- |der tempo. || - E quando os varões estiverem lima- |dos ?... || Amarras a corda e esperas que te chege aos ouvidos o barulho dos remos, Fe- | rindo a agua. || - E então ? || - Então estás com o ouvido alerta ; e, | si ouvires um assovio, deixas- te escor- |regar pela corda; eu não sei si ella será | comprida, mas deixas-te cahir, quando | chegares á extremidade. Nada receies ;; | nós te agarraremos ; tudo está combina- | do e prompto. || - Mas, si Pichegru me perdoar ? || Bibi agitou os hombros. || - Ouve, disse elle, eu sei tudo ; ou an- | tes adivinhei tudo. Si tu tivesses vindo | a Coblentz para negócios teus, viajarias | com as commodidades e o apparato de um | homem da tua fortuna ? || - Ah ! disse o bohemio olhando pene- | trantemente para Bibi. ||

Edição 403PONSON DU TERRAIL [espaço] 27

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XIX || - Estou certo de que eras portador de | uma carta para o general Pichegru. || - Acreditas? || - Tinhas esperanças nessa carta, que | encarregaste a Samuel Job de levar. || - Depois ? disse o bohemio que não | negou inteiramente. || - Pichegru é um grande homem no | campo de batalha; mas fóra dahi é in- |constante. Hoje serve a republica, ama- | nhã pensa em trahil-a. || - Então ? || - Então ! supponhamos que Samuel | Job o acha fiel a republica. || - Oh ! disse Munito com ar de duvida. || - Responderá mandando fuzilar-te, | depois de anniquilar a carta que tu lhe | trazias. || -É verdade mas, si elle acceita o | que eu lhe proponho?! ||- Mada fuzilar-te do mesmo modo. || - Porqe? || - Porque tem uma testemulha de me- | nos da sua traição. || - És judicioso, paesinho ; e póde mui- |to bem ser que tenhas razão. ||- Por tanto, lima os teus ferros e tra- | ta de te salvares tu. || - Mas... minha filha... || - Ora, a tua filha encontral-a-has no | barco. || - Adeus ! || - E Bibi sahiu apressadamente, por não | querer despertar suspeitas. Eram sete horas da noite. || Tinha só duas horas portanto, para ir | ter com a condessa Aurora e metter-se |

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com ella no barco, que devia salvar o | bohemio. || Bibi, tomando a rua principal, diri- | giu-se para a porta de Mayence. || Queria dar uma volta para fora da ci- | dade, e tomar disposições relativas ao | plano de evasão. || Deixaram-n’o sahir. || Na estrada ouviu elle ao longe o ga- |lope de um cavallo. || - Oh ! oh ! será já Samuel que volta? || disse elle. || E foi ao encontro desse cavalleiro que | ainda não avistava. || Um pouco antes da porta da cidade | havia um casa isolada, á beira da es- | trada. Tinha ella sido o theatro de um | recente combate, e estava abandonada. || Bibi escondeu-se na porta ; o cavallei- | ro chegava a toda a brida. ||Quando só estava a vinte passos de | distancia, Bibi gritou-lhe: ||- Alto ! || - Que quer ? perguntou o cavalleiro, | parando de subito. || - Sois Samuel Job? || - Sou. || - Então, disse Bibi atravessando-se | resolutamente no caminho, não passareis | sem me fallar. ||- Quem sois? disse o judeu. || - Um homem que traz contra vós uma | letra de duzentos thalers. || - Vinde amanhã, que eu pagarei ; ho- | jê levo muita pressa. || Bibi, porém deitou-lhe a mão á redea | do cavallo. || - Ouvir-me heis hoje, disse elle, por- | que se trata da vida do bohemio Munito. || - Quem falla ahi de Munito ? interpel- | lou Samuel. || - Eu. || - Conheceil-o pois ? || - Sou seu amigo e quero salval-o. || Havia tal autoridade na voz de Bibi | que Samuel não pôde passar adiante. || - Então quem sois vós? ||

- Um homem que sabe o que continha | á mensagem que vós levaste a Pichegru. || -Ah ! sabeis isso?... || - Sei. Trazeis o perdão de Munito ? || - Assim o creio. || - Como ! não tendes a certeza? || - Trago uma mensagem fechada para | o general Dagoberto. || - Pois bem ! disse friamente Bibi, | aposto a minha cabeça contra os duzen- | tos thalers que me deveis, em como nes- |as mensagem vem a ordem pura e sim- | ples de mandar fuzilar Munito. || - É impossivel ! exclamou o judeu. ||- Juro-o. || - Ah ! || E o judeu tirou a mensagem do bolso. || Bibi deitou-lhe as mãos. || - Que fazeis ? disse Samuel. || - Assegurar-me da verdade de minhas | palavras. || Já dissemos que fazia um luar claro | como o dia || - Mas desgraçado, disse Samuel, isso | é uma mensagem fechada. || - Não importa ! abra-se. || - E diante de Samuel Job quebrou o sel- | lo da mensagem. || Continha ella estas duas linhas ape- |nas. ||<<Meu caro general. ||<< Quando receber esta, mande fuzilar, | mesmo de noite, o homem que assassi- | nou o tenente Dachin||[espaço] PICHEGRU.>> || - Então ? que vos dizia eu ? || Samuel sentiu arrepiarem-se-lhe os cabellos. ||[espaço] XX [espaço] || Samuel olhava para Bibi com uma es- | pecie de stupor. || - Mas quem sois vós, que adivinhaes | assim as cousas ? disse ele emfim. || - Chamo-me Bibi, respondeu o homem | da policia ; sou francez, e interesso-me | tant e mais que vós talvez por Munito, | rei dos bohemios. ||

Samuel recuou ainda. || - Agora, proseguiu Bibi, conversemos | bem e depresa, porque não temos tem- | po a perder. || Samuel Job estava aterrado. || - Supponhamos, continuou Bibi, que | eu não vos tinha encontrado. ||- E dahi ? || - Entraveis na cidade e ieis a toda | a pressa á casa do general Dagoberto. || - Isso é verdade. || - Entregaveis-lhe a mensagem de Pi- | chegru ; persuadido de que continha o | perdão de Munito, e o general, forçado | a obedecer, nem mesmo esperava para | amanhã de manhã o fuzilamento do po- | bre diabo no pateo da prisão. || - Ai ! murmurou o judeu, algumas | horas mais cedo ou mais tarde !... || - Dentro de algumas horas Munito | será salvo ! || - Hein ? que dizeis ? || - A verdade, meu caro s enhor Samuel. || - Oh ! disse o judeu olhando anciosa- | mente para Bibi. || - Mas para isso, disse Bibi, é preciso | que vós não entrei em Coblentz. O ge- | neral ordenou que vos levassem á pré- | sença dele, logo que transpaeosseis as |portas da cidade.|| - Passarei antes a noite no fosso da |fortaleza, disse Samuel. || - Não ; é reciso ajudar-me a salvar | Munito. || - Mas então como esperaes vós sal- | Val-o! || - Recebendo-o em um barco. || - Então elle está livre ? ||- Não, está na cadeia. Mas metteram- | n’o em um quarto que dá para o Rheno. || - Ah ! || - E o general permittiu-me chegar | junto delle. || - E depois ? || - Entreguei-lhe uma

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lima e uma cor- | da. A esta hora já ele está a limar os | varões da prisão ; e graças á corda, dei- |

xar-se-ha escorregar até o Rheno, e nós | o recolheremos em um barco. || Samuel Job sacudia a cabeça. || - Ah ! o vosso plano, tão simples na | apparencia, é impossível de realisar. || - Porque ? || - Porque, desde que os francezes estão | senhores da cidade, prohibiram toda a | navegação de noite pelo Rheno. || O barco que ousasse passar ao alcance | dos canhões dos fortes seria abysmado | immediatamente. || - Enganae-vos, disse BIBI SORRINDO. || - Ah ! não. || - Ha um barco que passa ao alcance | dos canhões dos fortes, todas as noites, | tão livremente, como nós passeamos por | esta estrada. || - Sim, ha um, disse Samuel. || - Então já vedes. ||- Mas é o da condessa Aurora. || - Exactamente, e com esse barco é | que nós salvaremos Munito. || Samuel teve um gesto de que queria di- | zer : || - Ora isso é que eu naõ comprehendo. || - Mas Bibi continuando a sorrir, disse : || -Sabieis que a generala se interessa | por Munito ? || -Sem duvida, mas ella não forçará o | marido... || - O general não sabe nada. || - Esta bom ! || - E ella também não. || - Então, como quereis vós... ? || Bibi tirou o relógio do bolso. || - Seis horas dadas. Meu caro Samuel | não tenho verdadeiramente o tempo ne- | cessario para dar explicações. || - Quando estivermos no barco... || - Então eu devo ir convosco ? || - Sem duvida. | - Mas então é preciso que eu entre na cidade. || - Agora. ||

Edição 404PONSON DU TERRAIL [espaço] 28

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XX || E Bibi estendeu a mão para a margem | direita do rio. || - Vedes aquella casa lá no alto ? || - Vejo, é uma residencia de estio, des- | habitada no inverno. || - Pouco importa. Descei o rio e to- |mai-a como ponto de espera, collocan- |do-vos defronte. || - Muito bem. || - Quando o barco subir o rio, levan- | tai-vos nos bicos dos pés, para que nós | vos vejamos, que la iremos buscar-vos. || - E daqui ha quantas horas vireis? || - Entre as onze e a meia noite. || - Sabeis nadar ? || - Sei. ||- Sabeis guiar um barco ? || - Fui remador na minha mocidade. || - Então tudo é por nós. || - Mas, disse ainda Samuel, o general | tem dois allemães ao seu serviço, que | guiam o barco. || - Tem ; mas os allemães voltarão a | Coblentz, emquanto que vós partireis | com Munito e com a filha para a Hollan- |da. || - Ah ! a filha tambem estará no bar- |co ? || - Também. Adeus. || E Bibi apertou a mão a Samuel ; quan-| do o ia deixar, disse-lhe : || - Dae-me o despaço de Pichegru. || - Para que ? || - Vereis... depressa ! || E Bibi voltou á cidade, e as portas | abriram-se-lhe logo, porque Coblentz | conhecia-o agora como um antigo ami- | go do general Dagoberto. ||

Metteu o despacho ao bolso e foi a ca- | as do general. || Dagoberto estava no quarto, e traba- | lhava, quando Bibi chegou. || - Olá, disse elle, viste esse pobre dia- | bo ? || - Vi, meu general. || E Bibi accrescentou com indifferença : || - Illudi-me. || - Como assim ? || - Elle é bohemio, e chama-se Muni- | to... || - Mas não tem relação alguma com o | rei dos bohemios ? || - Nenhuma, desgraçadamente para | elle, e felizmente para o general. || - Hum, espero ainda que Pichegru lhe | perdoe. || - Tambem eu, disse Bibi; mas não nos | devemos fiar nisso. || - Pobre diabo ! || - Ora adeus, meu general, eu também | sou sensível ; mas emfim, logo que esse | não é o homem de que nós suppunha- |mos, devemos resignar-nos a uma des- |graça, caso ella succeda. || - A filha, é que me interessa, disse Da- | goberto ; si eu fôr obrigado a fuzilar o | pae, quero que minha mulher a adopte. || - Mas a proposito de minha mulher, | que singular Idea tem ella ! tu queres | ir passear pelo Rheno ? || - Quero,

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meu general. || - Esta noite ? || - Já. || - Com este frio ? || Bibi fez um signal affirmativo com a |cabeça. || - E queres que minha mulher te | acompanhe?|| - Quero. || - Porque ? ||Bibi tomou um ar mysterioso. || - Não lhe disse já esta manhã que | protestei fazer dançar Antonia ? || - Sim, mas que relação... ? || - Espere general, e siga o meu ra- | ciocinio. ||

- Falla. || - Do outro lado do Rheno ha uma es- | pecie de mansarda. || - Bom ! || - Mora ahi uma velha, segundo as in- |formações que hoje mesmo me deram em | Coblentz. || - E essa mulher ? ... || - Conheceu Antonia. || - Ah ! || - E também conheceu Gretchen, a | mãe de Aurora ; póde, pois, dar-nos in- | formações de summa importância. || - Está bom, disse Dagoberto, mas fa [-] | rias melhor si fosses lá antes amanhã de | manhã, do que esta noite. || - Amanhã será tarde. || - Porque? || - Porque espero sair de Coblentz ao | amanhecer || - E onde vaes tu ? ||- Tratar dos seus negócios, general. || - És singular, Bibi. || - Serei, disse Bibi ; e convenho que | outr’ora não prestava para nada; | agora, porém, arrependi-me, e trato de | fazer tanto bem, como outr’ora pratica- | va ardentemente o mal. || - Bom ; vae procurar a condessa e faz | o que quizeres. || - Ah general, é provável que não vos | torne a ver. || - Como ? pois partes sem me dizeres | adeus ? || - Isso depende do que me diser a vê- | lha. || - Mas tornamo-nos a ver... || - Em breve assim o espero. Adeus | general. || Dagoberto apertou as mãos de Bibi, e , | emquanto que este subia aos quartos da | condessa Aurora, o general inclinou-se | outra vez sobre um mappa das margens | do Rheno, no qual pregava successiva- | mente alfinetes de cabeça preta, verde | ou vermelha. || Bibi dizia comsigo, ao entrar no quar- | to da condessa: ||

- Acabo de pregar pêta sobre peta a | esse pobre general. Si eu, porém, lhe | dissesse a verdade elle julgaria de sua | honra vigiar-me, mudar Munito de pri- | são, e fuzilar-me o mais depressa possi- | vel. Na vida pratica, os caracteres ca- | valheirescos, são as vezes bem exquisi- | tos... || E Bibi subiu nos aposentos de Aurora, | que conservava ao seu lado Móina, a | filha do bohemio || [espaço] XXI [espaço] || Aurora nada recusava a Bibi, ao ho- | mem que lhe fizera tantos serviços. || Entretanto, quando Bibi partiu, ella | também reflectiu, como Dagoberto, que | elle podia adiar para o dia seguinte a | visita que queria fazer a um amigo, na | outra margem do Rheno. || Dilla ella ao vêl-o entrar : ||- Espero que refletisse, meu amigo. || - Em que ? || - Em que faz frio, e que portanto me | vem dar as boas noites antes de se dei- | tar porque supponho que lhe deram um | quarto cá em casa. || - Mas, senhora, eu de fórma alguma | renunciei á nossa excursão. || - Que exquisitice ! || - Não gracejo nunca, senhora, e para | prova, vou repetir-lhe o que ha um mi- | nuto disse ao general. || - Vejamos ! disse Aurora admirada. ||- Jurei entregar-lhe a sua fortuna ; |espero cumprir a minha promessa. Mas | é preciso que a senhora me ajude. || Aurora olhou com espanto para Bibi. || -Deciddidamente, meu amigo, não o | comprehendo. || - Porque? senhora. || - Que relação ha entre o amigo que | quer visitar em plenta noite nas mar- | gens do Rheno, e a fortuna que me rou- | baram ? || - Confia em mim ? senhora condessa. || - Absolutamente, meu amigo. || - Si eu lhe jurar que esse passeio tem |

relação com os meus projectos, acredi- |ta-me? || - Acredito. || - E que é preciso que venha commi- | go ? || - Irei. || Aurora olhou ternamente para Móina | e disse: || - D=a-me tempo de eu levar esta meni- | na ao seu quarto, que venho já ? || - Senhora, vou pedir-lhe outro favor, | que ha de achar exquisito || - Qual é? || - Leve comsigo a pequena bohemia. || - O enigma complica-se cada vez mais | disse Aurora. || - Basta que a senhora saiva, que | obrando assim, mysteriosamente, me oc- | cupo dos seus negocios. || Aurora não insistiu. || -Farei como quizer, disse ella. || Depois dirigiu-se a Móina, em lingua | allemã. || - Queres acompanhar-me, minha fi- | lha ? || - Oh ! irei com a senhora até o fim | do mundo, porque tenho fé em si, que | salvará meu pae. || - Ah ! jã não ouso esperar tal, mur- | murou a condessa com súbita emoção. || Bibi levantou os olhos para o ceu, | como um homem que já não conserva | grande esperança. || Depois para derrubar Aurura, disse- | lhe em francez : ||

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- Ha mais de doze horas que Samuel | partiu ; já estaria de volta, si trouxesse | uma boa noticia. || Moina não comprehendia e continua- | va a olhar para a condessa, em quem | parecia ver um anjo tutelar. || A casa que Dagoberto habitava em Co- | blentz era pegada a um jardim que des- | cia em declive até o rio. || No fim havia uma porta que dava para | a ribanceira, e o barco da generala es- | tava atracado alli. ||

Edição 405PONSON DU TERRAIL [espaço] 29

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXI || A condessa deitou um manto pelos | hombros, agasalhou-se e depois de dar | uma roupa bastante quente a Móina, dis- | se a Bibi : || - Vamos ! || Desceu então ao jardim, chamou os |dois allemães que serviam de remado- | res e estavam nas cosinhas, e Bibi | e Móina acompanharam-na || Aberta a pequena porta do jardim, to- | dos cinco se acharam na ribanceira, e | embarcaram logo. || Corria vento oeste ; levantaram a | vela. || Bibi ordenou aos remadores que su- | bissem o rio, mettendo a prôa para a | casa branca, que elle, pouco havia, in- | dicára a Samuel Job, como ponto de es- | pêra. || Aurora estava cada vez mais admira- |da ; ella, porém promettera a Bibi que | não o interrogaria, e resignou-se e to- | dos aquelles mysterios. || Q[u]ando, passada meia hora, o barco es- | tava defronte da casa branca, Bibi levan- | tou-se e olhou para a terra. || - Que faz ? disse Aurora. || - Estou vendo si está no seu ponto o | homem que eu mandei vir aqui. || - Mandou vir aqui alguem? || - Sim, senhora. Espere, la está. || Bibi mostrava o contorno de um ho- | mem que se destacava, em negro, no céu | resplandece com os raios da lua. || A um signal os remadores atracaram | o barco. || O homem aproximou-se então, e a con- | dessa e Móina soltaram um grito de sor- |presa. ||

- Samuel Job ! disse Aurora. || - Sim, senhora, respondeu o judeu, | grave e triste. || - Valtaes de Mayence ? || - Sim, senhora. || - Meu Deus ! que nova fatal me tra- | zeis pois ? || - Elle o dirá, quando estivermos ao | largo, disse Bibi. || Samuel embarcou, e o barco voltou | ao meio do rio. || Móina tremia, como folha sacudida | por ventos outomnaes. || Bibi fez um signal a Samuel. || Esse signal queria dizer : || - Deixa-me fallar. || E, dirigido-se á condessa : || - Ha uma hora que passeava eu na | estrada, no luar, quando encontrei As- | muel Job, que chegava a toda a brida. || - Mas não que diz, cortou a condessa, | si o general Pichegru... || - Espere, senhora, disse Bibi, soce- | gadamente. Samuel Job trazia ao gene- | ral Dagoberto uma mensagem de Piche- | gru. || - E essa mensagem... || - Abri-a, senhora, pensando que o | general m’o perdoaria. || - Depois, depois ? disse a condessa an- | ciosa. || - Aqui tem a mensagem. ||Bibi tirou o despacho do bolso, e en- | tregou-o á condessa. || Graças ao luar, via-se como de dia. || Aurora deu um grito. || - Meu Deus ! meu Deus ! então que | vamos nós fazer? || E ella lançou a pequena bohemia um | olhar consternado. || - Vamos salvar Munito, disse fria- | mente Bibi || - Salval-o? || - Sim, senhora. || - É pois possivel ? ||- Si a senhora o quizer. || - Si eu quizer ! ah ! duvida? ||E depois, agitando a cabeça : ||

- Mas, meu amigo, não conhece Da- | goberto. É um homem inflexivel e por | nada do mundo faltará ao seu dever. || - Nós não precisamos do general. || - Que diz ?! || - A verdade senhora. ||- Mas... como... meu Deus ! isso faz- | me enlouquecer. || - Senhora, disse friamente Bibi, des- | cançe e ouça-me o mais socegadamente | possível. || - Falle, meu amigo. || - O seu barco é conhecido no rio Rhe- | no ? || - Sem duvida. || - E passa livremente ao alcance dos | canhões do forte ? || - Os remadores dizem o meu nome e | a ponte de barcas abre-se lhes sempre. || - Bem ! senhora, vamos desembarcar | em breve, e Samuel e

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eu guardaremos | o barco. || - Mas que vae fazer ? || - Vae ver. || O barco descia agora a corrente do rio com rapidez vertiginosa, e chegou | aos muros da prisão. || - Stop ! alto ! disse Bibi. || Os remadores amainaram logo a vela | Samuel Job, sentando a ré, pegava na ca- | na de leme. || - Governa direito para debaixo das | janellas, gritou Bibi. || Depois, pondo os dedos na bocca deu | um assovio. || De repente a condessa ouviu um es- | talido ; levantou a cabeça e viu um ho- | Mem que acabava de quebrar os ferros | que só estavam presos por um pouco. || Uma coroda pendeu no espaço ; e um | homem desceu por ella. || Móina deu um grito. || - Silencio ! disse Bibi, ponde-lhe a | mão na bocca. || - Ah ! comprehendo agora ! disse a | condessa, é um homem de genio, Bibi. || - Quero dar-lhe a sua fortuna, disse o | homem da policia. ||

- Como... Munito... || - Munito é o rei dos bohemios, senho- | ra. || E Munito chegara á extremidade da | corda e suspendia-se ainda a vinte pas- | sos do rio. || - Larga tudo, disse Bibi em lingua | húngara. || O bohemio largou a corda, cahiu no | rio e dessapareceu. || Samuel, porém, já se tinha lançado ao | rio ; mergulhou, e, agarrando o velho | bohemio pela enorme cabelleira, trou- | Xe-o acima, e, com braço vigoroso ati- | rou-o aturdido ao barco. Tudo isto se | fizera em um minuto. || - Agora, senhora, disse Bibi, vamol-a | pôr em terra e mais aos dois remadores. || Salvou o bohemio e elle não a esquece- |rá. || Munito deitava á condessa um olhar | cheio de reconhecimento, em quanto a | filha lhe lançava os dois braços á volta do | pescoço. ||[espaço com 15 pontos finais]||Um quarto de hora depois, o barco | alijado da condessa e dos dois allemães, | habilmente guiado por Samuel Job, che- | gava a ponte das barcas. || - Quem vive ? gritou a sentinella. || - A cidadã Dagoberto! respondeu Bibi. || Havia no barco uma mulher, e sobre | os hombros dessa mulher, Aurora tinha | deitado o seu chaile de cachemira bran- | ca. ||Abriu-se a ponte, e o barco desceu ra- | pidamente o Rheno, levando Samuel Job, | Móina e Munito ao qual dizia Bibi : || - Paesinho, provar-te-ei que Antonia | roubou o dinheiro que te confiou. Sabes |tu a quem ella o roubou ? || - Não. || - A mulher a quem tu deves a vida, | concluiu o homem da policia. ||[espaço] XXII [espaço] ||Tal tinha sido a narrativa de Bibi. || Polyte escutara com attenção avida| e disse: ||

- Quando concluiu a salvação de Um- | nito, que fez ? onde foi depois ? || - Descemos o Rheno até Dusseldorf ; e | alli eu disse ao bohemio : || - Paesinho, já não precisas agora de | mim ? || - Certamente que não ; nem eu tão | pouco, disse Samuel Job. || Dusseldorf pertencial aos prussianos e | nós estavamos em terra allemã. || - Agora, disse eu ainda a Munito, | vaes até Hamburgo e de Hamburgo pó- | des tomar a estrada de Vienna. || - Tens perfeitamente razão, meu pae-| sinhô, disse Munito. Espero que nos tor- | naremos a vêr. || - Certamente ; já que te prometti pro- | var que acceitaste a guarda de um rou- | bo. || - Desejo tanto ter essa prova, como | tu tens em m’a dar. Onde nos encontra- | remos? || - Onde quizeres. || - Em Vienna então. || - Quando ? || - Daqui a um mez. || Samuel tinha correspndentes em to- | da a parte onde havia judeus. || O adelo foi a casa de um collega de | Dusseldorf e pediu mil thalers, que en- | tregou a Munito. || Munito olhou para a filha sorrindo. || - Iremos de carro e não magoarás os | pés. || Depois olhou para mim e disse : ||- Paesinho deixa-me fallar um pouco | comtigo. || - Falla... || Chamou-me para o lado, a fim de que | Samuel não ouvisse a nossa conversa e | disse : || - Tu interessas te por mim, só porque | eu sou o rei dos bohemios ? || - Sem duvida. || - E esperas? dar-me a prova de que | Antonia roubou o dinheiro que eu tenho | della. || - Terás essa prova. ||

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Edição 406PONSON DU TERRAIL [espaço] 30

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXII || - Não é essa a questão, paesinho, e | não me comprehendes. || - Explica-te ! || - Si tenss essa prova, é bem simples | que eu te dê o dinheiro. || - Bom ! || - Si tu não podes dar-m’a, eu guar- | do-o ; e isto ainda é mais simples. || - Onde queres chegar tu ? || - A isto : que tu me salva-te a vida e | que, em troca, eu devo ser-te obrigado. || - Oh ! respondi eu, isso não tem im- | portancia nenhuma. || - Enganaste ; e provar-te-hei o meu | reconhecimento. || Elle não quis explicar-se mais e limi- | tou-se a perguntar-me para que sitio | me poderia escrever. || - Conto voltar a Vienna, disse eu, | daqui a oito dias, pelo caminho mais | curto. || - Para onde vaes morar ? || - Para Bischofgasse, prasa de S. Es- | tevão numero 17, respondi eu. || - Bem ; para lá mandarei noticias. || Separamo-nos | Munito contratara com o patrão de um | grande barco, que devia leval-o a Ham- | burgo. || Samuel Job e eu subimos destemida- | mente para o barco do general Dagober-| to, e depois de um dia e uma noite de | viagem, chegamos a Coblentz. || Durante ela, Samuel Job mais de uma | vez testemunhara os seus temores rela- | tiva [mancha] e ao general|| Debalde nos cobriremos com a protec- | cão da condessa Aurora, o general deve- | ria enfurecer-se. ||

Debalde o procurava socegar, Samuel | inquietava-se cada vez mais, á medida | que nos aproximava-mos de Coblentz. || Effenctivamente o general levaria | aquilo a mal, si não fosse um inopinando | acontecimento. || O governo francez chamára repenti- | na mente o general Pichegru. || Porque ? em voz alta diziam na cidade | e nas fileiras do exercito francez. || Pichegru era um traidor, e pensava | em passar-se ao inimigo. || Ora na ante-vespera quase á hora em | que nós levávamos o prisioneiro, tinha | chegado um estafeto de Paris, confe- | rindo o commando em chefe da divisão | ao general Dagoberto. || Este achava-se, pois investido do | commando supremo, não dependia já de | Pichegru, e podia perdoar ao bohemio. || A condessa Aurora, que nós tinhamos | desembarcado deante da porta de seu | jardim, entrar em casa sem ruido, re- | commendando silencio aos dois allemães. || O general Dagoberto, occupado toda a | sua noite em fazer reconhecer a sua auto- | ridade, em enviar ordens aos differen- | tes corpos de tropas, disseminados pelos | arredores da cidade, não se tinha occu- | pado do prisioneiro. || Só de manhã os carcereiros reconhe- | ceram a evação. || Dagoberto sorriu, quando a mulher | lhe contou a verdade. || - Estimo isso, disse elle ; mas já não | havia nada a temer, porque eu já não | obedeço ao general Pichegru. Eu per- | doava-lhe. || Quando eu, voltando de Dusseldorf, | me apresentei em casa do general, elle | estendeu-me a mão. || - Meu finorio, disse elle, caçoaste | commigo. || - Ora ! não foi nada ! disse eu sorrin- |do. || - Como ? não foi nada ! pois não me | disseste que ias tratar da fortuna de mi- | nha mulher ? ||

- Disse a verdade, general. || - Ora essa ! || - Salvando Munito, condemnava-o ao | reconhecimento. || - Mas como é isso ? || - Munito e o rei dos bohemios são a |mesma pessoa. || - Mas tu disseste-me o contrario. || - É um facto. || - Então porque me mentiste a mim e | a Aurora ? || - Meu caro, general, eu conheço o | seu caráter cavalheiresco. Quando Mu- |nito fosse o homem que nós procurava- | mos e de que tínhamos necessidade, o | general mostrar-se-hia inflexivel, por | um excesso de delicadeza. || Dagoberto agitou os hombros, mas não | respondeu ; e não dirigiu nenhuma ex- | provação a Samuel Job. || Demorei-me vinte e e quatro horas em | Coblentz ; depois, munido de um salvo | conducto,

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tomeio o caminho de Vienna. || -Chegou la antes de Munito ? ||- Naturalmente, mas o bohemio apres- | sara-se. || - Ah ! || - Oito dias depois da minha chegada | recebi uma carta delle, no meu hotel, | praça de S. Estevão. Escrevia o bohe- | mio: || << Paesinho : ||<< Atravesso Vienna sem parar ; mas | serei fiel ao ponto de reunião que dei, | para o dia 17 do corrente ; pódes espe- | rar-me precisamente ás oito horas da | noite, que lá me verás. || - Minha filha Móina incumbe-se de | te testemunhar todo o seu reconheci- | mento, e pede que acceites a pequena | lembrança que inclusa remetto. || MUNITO. >>|| Essa lembrança pequena era um co- | frezinho de esmeralda verde que encer- | rava cem mil francos de perolas finas. || - Que brincadeira ! interrompeu Po- | lyte, arranja bem as cousas esse bohe- | mio. E o papá que fez das perolas? ||

- Essa é boa ! vendi-as, accrescentou | ingenuamente Bibi, eu não sou virtuoso, | sinão o que é preciso ser. Sabe que já | gastei as minhas economias, desde que | emprehendi fazer dançar Antonia? ||- Então tem cem mil francos? || - Em bons fundos vienenses, meu fi[-] |lho. || - O bohemio foi exacto ao rendez-| cous ? perguntou ainda Polyte. || - Exacto. Preveni o conde Luciano | de Mazures, que se achou em minha ca [-]| as, quando o bohemio chegou. || - Vejamos, nos disse elle, eu também | quero restituir o dinheiro que Antonia | me confiou ; faltam-me, porém as pro [-] |vas de que foi roubado esse dinheiro. || O conde Luciano contou então toda a | história da bohemia Teinon, criada gra- | vê de sua mãe. || Fallava com accento de franqueza, | que impressionou vivamente o bohemio. || - Desejava acredital-o, disse elle em- | fim. || - Então não nos acredita ? paesinho. || - Não. Porque? || - Porque sou depositário de um tes- |tamento da princeza Helena. || - E então ? || - De um testamento que institue sua |legatária universal a bohemia Toinon || Ao mesmo tempo Munito abriu o gi- |bão e tirou do seio um pergaminho que | poz sob os nossos olhos. || Era um testamento alographo, assig- |nado pela princeza Helena. || - Esse testamento é falso ! exclamou | Luciano. || - É o que falta provar, disse Munito. || - Mas como ? exclamou o conde. || Subita lembrança me perpassou pelo | espírito. || - Ah ! disse eu, provar-t’o hei, mas | não aqui. || - Então aonde ? || - Em Paris. || - E como m’o provarás tu? paesinho||

- Pondo-te deante do que fabricou, | e mostrando-te as verdadeiras cartas da | princeza Helena. || - Si tal fizeres, o dinheiro é teu. || Esta bom ! repliquei eu, pódes voltar | a Paris ? || - Sem duvida. || - Quando ? || - Quando quizeres. || - Esta bom ! dentro de quinze dias lá | estarei. || - La estarei, disse o bohemio. || E separamo-nos ; mas deviamos ver- | nos na mesma noite. || - Ah ! disse Polyte. || - E tu vaes vêr si é preciso ou não | jogar forte com uma mulher como a ci-| dada Antonia, accrescentou o pae Bibi, | que parou um momento para tomar fo- |lego... || Perdão papá, disse Polyte. || - Que é ? || - Antes de continuar, permitta-me | que lhe faça uma pergunta. || - Falla. || - Como soube que Antonia confiara o | dinheiro ao bohemio ? || - É isso precisamente o que eu vou | contar-te. || - Ah ! || - Vaes vêr... || - Ouvirei, disse Polyte, que o se tornou| cada vez mais attento ||[espaço] XXIII [espaço] || Bibi replicou pouco depois : ||- Disse-te que estava hospedado na | praça de S. Estevam, em Vienna, numero 17, | em uma hospedaria que tinha esta ta- | boleta : Reunião dos Cavalleiros Hun- |garos. ||Era uma das hospedarias mais fre- | quentadas, e havia alli um vae-vem | considerável de viajantes. || Vinham uns do fundo da Allemanha | no Norte, outros emigrados francezes, | e outros desembarcavam dos barcos que |subiam o Danubio. ||

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Edição 407PONSON DU TERRAIL [espaço] 31

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXIII || Tres mezes antes tinha eu travado um | conhecimento bizarro com um francez | na hospedaria dos Cavalleiros Hunga- | ros. || - Era emigrado ? || - Acreditei-o a principio, supposto | seja difficil enganarem-me. Sempre adop- |tei os usos do paiz que habito, prosseguiu | Bibi. || Em Vienna janta-se ás duas horas, e | ceia-se as oito. Havia quatro ou cinco|dias que eu, á mesa, ou ao meu lado, en- | contrava um joven de maneiras distinc- |tas, com parte de gentil homem francez, |antes da republica. || Em Vienna falla-se um bocado francez || por toda a parte || A mesa fallava-se geralmente francez || O jovem e eu fallavamos. || Eu dava-lhe o tratamento de cavalhei- | ro e senhor, e fiquei convencido de que | elle era emigrado. || Enganava-me. || Alguma indecisão no seu olhar, algum | embaraço em algumas das suas respos- | tas, despertaram depressa o meu espiri- | to. || - Eh ! eh ! disse eu de mim para mim , | este sugeito bem póde ser um espião de | policia franceza. | | Ora eu conhecida todo o pessoal da rua | de Jerusalém, e era pouco provavel que | depois da minah partida a republica re- | novasse uma parte dos seus agentes. || Comecei portanto a vigiar o meu ho- |mem. || Elle era muito assiduo á chegada de | todos os barcos, e parecia que procura- | va sempre um viajante desconhecido. ||

Cada manhã examinava todos os que | desciam dos conheces que chegavam da | Allemanha do norte e da Bohemia, e que | paravam na praça de S. Estevão. || Uma noite finalmente elle ficou só á | mesa e fez algumas notas em uma car- |teira. || Eu conservava o meu passaporte, vi- |sado por Robespierre, e a minha nomea- | cão de agente da policia franceza. || Como parecia que elle não reparava |em mim, aproximei-me delle e toquei- | lhe no hombro || Elle voltou-se um pouco admirado. || - Meu caro cavalheiro, lhe disse eu, | entre confrades não há mysterios. ||- Que quer dizer com isso ? voltou | elle. || Eu mostrei-lhe o meu passaporte. || - E que tem isso ? continuou elle, ca- | da vez mais admirado. Exhibi a minha carta de policia. || - Porque me mostra isso ? volveu elle | ainda. || - Como ? repliquei eu admirado então; | pois não comprehende ? || - Certamente que não. || - Entretanto temos o mesmo officio. || - Isso mais devagar. || - Ora vamos ! confesse que está aqui | para conhecer os emigrados. || - Juro-lhe o contrario. || - Então explique-me o que vae fazer | á chegada de cada barco. || Um sorriso lhe assomou aos labios. || - Eu não sou espião, sou um mandata- | rio. || - Ah ! || - Venho todos os mezes a Vienna. || - Fazer o que ? || - Receber cem mil libras, para levar | para Paris. || Depois accrescentou sorrindo : || - E creia que não é por conta do go- | verno francez, ou de qualquer outro. || - Entretanto, repliquei eu, não ha | particulares tão ricos que tenham mil e | duzentas libras de rendimento.||

- Pois conheço-as eu. || - Ora !... || - É testemunha a pessoa eu me en- | via aqui. De cada viagem recebo cem | luizes pelo meu trabalho e para as mi- | nhas despesas. || Elle fallava com inteira franqueza, e | eu de nada podia desconfiar. Aquelle ho- | Mem fallava verdade. || - Porém desta vez, disse elle, é preci- |so que a cidadã Antonia me indemnise | um pouco mais. || - A cidadã Antonia ! exclamei eu. || - Sim. Conhece-a ? || - Ora essa ! Já me fez dancar um pou- | co. Não é essa a amante do cidadão X... ? || - Justamente. || - O qual era amigo desse pobre fal- | lecido Robespierre ? fiz-lhe alguns pe- | quenos serviços. || - Toque la, disse elle, vejo que estou | com a minha gente. || - Exactamente || - Porque é preciso que eu lhe diga, | que estou contra minha vontade á me- | sa. || - Porque ? || - Ha alli uma roda de nobres que me | chamavam cavalheiro e me tomam por | um dos seus. || - E isso contraria-o ? || - Em commoda-me. Eu chamo-me | Agostinho Valmel; sou um antigo semi- | narista, a

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quem a revolução fez um gran- | de serviço, permittindo-lhe deitar a so- | taina para traz das costas, porque eu | não tinha grande vocação para aquillo. | E assim fica explicada a minha educa- | cão. || - Perfeitamente. || - E eu não ouso ligar-me o ninguem. | Aborreço-me horrivelmente e não sei | com certeza, quanto tempo ainda estarei | aqui. || - Bem ! disse eu, quer beber commi- | go um copo de tokay ? procuremos dis- | trahir-nos um ao outro. || - Com todo o gosto, disse elle. ||

Pedi tokay, e passados alguns minutos | estávamos na mais perfeita intimidade. || - Dizia-lhe eu, rompeu elle, qu esta- | va ao serviço da cidadã Antonia. || - Bom || - E que vinha todos os mezes aqui re- | ceber as minhas rendas. || Pisquei o olho. || - Ouça, lhe disse eu, eu já sei o que | isso é. ||- Sabe ? ! || - A thesouraria do imperador é que | paga tudo isso. || - Engana-se ||- Juro, repliquei eu baixando a voz, | que a cidadã Antonia esta adida á poli- | cia imperial, e confesso-lhe que não vim | aqui senão para me certificar disso. || Elle teve um gesto de espanto e quase | de medo. || - Tallien foi quem me mandou aqui. || - Pois bem, disse elle, Talliem enga- | na-se. || - Assim o desejo, para melhor sorte | de Antonia || -Pois posso provar isso. || A estas palavras deitei-lhe mais de be- | ber. || Si ha vinho que torne o homem ex- |pansivo, é seguramente o de tokay. || - Antonia é pessoalmente muito rica, | disse elle. || Pelo menos em Paris, passa por o | ser. || - E entretanto não lhe cortaram o | pescoço, o que, segundo me disse ella, é | uma bella prova de que o seu dinheiro | não estava em Paris. || - Isso é verdade. O dinheiro della está | aqui. || - Está. | | Em casa de algum banqueiro? || - Não, em casa de um bohemio. || - Ora !... || Elle contou-me então tudo o que tu | já sabes agora, tudo o que eu ignorava | então, isto é, que existia uma tribu mys- |

teriosa e potente, de que ella fazia par- | te, e que tinha um thesouro commum. || Cada mez elle ia receber as rendas da | cidadã Antonia. || - Mas porque receia, lhe disse eu, de- |morar-se desta vez mais tempo em Vien- | na ? || - Porque Munito está ausente. || - Ah ! elle chama-se Munito ? || - Chama. || - E onde esta? || - Não sei. Viaja por causa dos seus | negócios, porque negoceia em diaman- | tes, e nunca diz para onde vae, o que | faz com que eu me veja obrigado talvez | a esperar quinze dias ainda, e confesso- |te que começam a faltar-me recursos. ||- Imaginas bem, replicou Bibi que | se interrompeu um momento para res- | pirar, que eu tinha todo o empenho pa- |ra não largar o meu homem. || Emprestei-lhe, pois, cem escudos. || Durante oito dia, viram-nos sempre | nas ruas de Vienna. Iamos ao especta- | culo juntos, corrempos os bailes e outros | lugares de prazeres em que abunda | Vienna. || Munito não voltava. || Finalmente uma tarde recebi uma pa- | lavra do conde de Mazures que, como | deves imaginar, ia vêr algumas vezes. || O conde queria dar-me em pessoa uma | boa noticia. || O chefe de brigada de Dagoberto tinha | sido promovido ao posto de general de | divisão, e fazia parte do corpo de exer- | cito do general Pichegru. || - Mas, senhor conde, lhe disse eu, | sorrindo, que tem o senhor com isso ? | pois não é inimigo irreconciliável da re- | publica franceza? || - É verdade, disse elle. || - Então que lhe importa o que o gene- | ral Dagoberto sirva ás ordens de Piche- | gru, ou de outro ?|| - Dirt’o-lhei amanhã, por que hoje é | um segredo de estado. ||

Edição 408PONSON DU TERRAIL [espaço] 32

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXIII || Quando eu chegava á hospedaria dos| Cavalleiros da Humgria jaó não encon- |trei o meu joven companheiro, Agostinho | Valmel. || Disseram-me que tinha saido. || Procurei-o nas ruas, no theatro, em | toda a parte. Entrei no hotel e encon- | trei-o fazendo a malla. || -

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Parto, disse elle. || - Partes ? || - Parto, Munito voltou. || - Quando ? || - Esta noite. Recebi os cem mil fran- | cos. Aqui estão os teus cem escudos. Si | precisares dos meus serviços, não me |poupes. || - Eu não preciso de dinheiro, mas sou | curioso. || - Ah ! || - E desejava ver esse Munito. Não | posso conceber que haja um bohemio que | possua milhões. || - Pois ha. || - Queria satisfazer a minha curiosida- | de. É possível ? ||- Nada mais fácil. || - Como ? || - Ele mora a dois passos daqui, na | rua de Santa Isabel numero 8. Vae la ama- | nhã. || - Sobre que pretexto ? || - Sobre o primeiro que occorrer ; por | exemplo ; vender-lhe eu comprar-lhe| um diamante. || - Obrigado, irei. || Não dormiu aquella noite. || Ao amanhecer, Agostinho Valmel dei- | xou Vienna. ||

Eu esperei uma hora conveniente, e | depois fui bater á porta do bohemio Mu- |nito, o rico negociante de diamantes || [ espaço] XXIV [espaço] ||Bibi fez nova pausa. || Depois de um momento de silencio, | continuou : || - A rua de Santa Isabel é apenas uma |viella|| Era de Fraca apparencia a casa que Mu- | nito habitava. || Grosso, varões de ferro guarneciam | as janellas, e quando eu bati, abriu-se |na porta um postigo semelhante aos dos | das cadeias. || Atravez das grades appareceu uma | velha, que me disse : || - Quem procura ? || - Queria vêr o Sr. Munito. || - Está fora da terra. || - Nada, respondi eu, eu sei que elle | chegou hontem. || - É verdade, mas tornou a partir. || -Que me diz ?! ||- A pura verdade : e por signal que | até levou a filha. || - E aonde foi? ||- Não sei. || - Mas... || - Elle nunca diz para onde vae. || E a esta resposta, a velha fechou o | postigo. || Emfim, eu já sabia alguma cousa: Mu- |nito tinha uma filha. || - Bem ! disse eu de mim para mim, | virá talvez esta noite ou amanhã. || Durante oito dias, de manhã e á noite | fui sempre bater á casa da viella de San- | ta Isabel. || Todas as vezes a velha me dava a | mesma resposta, e fechava o postigo. || Finalmente no nono dia fui ver o con- | de de Mazures. || Fallou- me de Pichegru. || - Não sabes, me dise elle, porque es- | tou contente por vÊr o general Dagober- | to e portanto minha prima Aurora, fa- |

zer parte do corpo de exercito que Pi- | chegru commanda? || - Não. || -Porque Pichegrui está prestes a | abandonar a causa da republica. || -Ah ! || - E a passar para os principes com | armas e bagagens. || Estamos em contrato com elle. || - Realmente ? || - E mandamos-lhe um enviado, em | quem o imperador tem plena confiaça, | supposto não seja homem de representa- | cão. || - E... esse homem ? || - É o mais rico negociante de dia- | mantes de toda a Allemanha. || Estremeci. Elle notou-o || - Senhor conde, lhe disse eu, esse ho- |mem foi ter com o general Pichegru? || - Ha oito dias. || - E chama-se Munito ? || - Como sabes tu isso? || - Pouco importa. Chama-se elle ou | não Munito? || - Chama. || - Pois bem ; diga á senhora condessa | de Mazures que , si quer escrever a sua | irmã Aurora, eu me encarregarei de lhe | levar a carta. || - Então partes? ||- Parto ; vou juntar-me ao corpo de | exercito do general Pichegru. || - Para que? || - Vou á procura de sua fortuna, que | Antonia lhe roubou... || E, sem querer explicar-me mais, | deixei Vienna em uma mesma noite. || Agora sabes o resto. || - Não ; ainda não sei tudo, disse Po- | lyte || - Ah ! é justo, disse Bibi, ainda te não | contei como depois de ter deixado Mu- | nito e de lhe dar Paris como ponto da | nossa reunião, eu o tornei a ver nessa | mesma noite. ||

- É isso mesmo o que eu não compre- | hendo. || - Imagina, pois proseguiu Bibi, que | nessa mesma noite chegou Munito re- |pentinamente e me disse : || - Receiava que tivesses partido já, | paesinho. || - Porque queria participar-te uma | visita que tive. || - Q[u]em foi ? || - O mancebo de Paris que veio rece- | ber os cem mil francos. || - E pagaste ? || - Não, recusei. || - Porque, paesinho? || - Porque começo a acreditar agora | no que tume disseste... O dinheiro não | é de Antonia. ||- Pois fizeste mal em não pagar. || - Achas? || - Vaes despertar as suspeitas de An- | tonia. || - Já se dispertaram. ||- Como assim? || - Quando o rapaz viu que eu não pa- | gava, disse-me assim: << o Sr. encontrou| um homem chamado Bibi, um agente de | policia, um miserável que também rou- | bou Antonia, e que lhe contou essa his- | tória.

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>> || - Ah ! elle disse-te isso, paesinho? || - E acreditaste-o ? || - Não : mas comprehendi que ele ti- | nha contado a Antoia o que se tinha | passado entre elle e tu. || - Assim deve ser. De fórma que An- | tonia acautela-se ; mas pouco importa ! | isso não impedirá de teres a prova que | te prometti. || - Pois, si tu me déres essa prova, te- | ras... || E um clarão appareceu nos olhos do | bohemio. || - Ainda não me conheces, paesinho, | disse elle, e também não conheces as | pessoas que me chamam rei. ||

Neste momento, esse homem era bello | e a sua fronte resplandecia de magesta- |de. || - Olha, paesinho, me disse elle, os bo- | hemios, como filhos de Israel, estão dis- | persos por toda a superfície do globo : ||mas em toda a parte são irmãos solida- |rios uns dos outros, e a honra de um só | é a honra de todos. || Aqui, nesta grande cidade, eu sou | um pobre homem, um vendedor de diaman- | tes ; lá em baixo, accrescentou elle es- | tendendo a mão para o horisonte, além | daquellas montanhas, nos vallos selva- | gens do Bohemia, eu sou verdadeira- | mente um rei ! || Alli todos curvam a sua vontade á | minha, e são fielmente executadas as | minhas ordens. Si Antonia, que era nos- | sa irmã por nascimento, se tornou in- | digna de fazer parte da nossa família, |será castigada sem piedade. A fé de Mu- | nito, que podes contar co a justiça dos | bohemios... || Adeus, paesinho ; ou antes, até a vista; | dentrou de quinze dias estarei em Paris. || - Agora já não tenho mais nada a dizer- | te, meu caro amigo, concluiu Bibi. || - Perdão, papá. || - Que queres ainda? || - Só tenho cá uma cousa. || - Falla. || - Há pouco encontramos Munito nos | jardins do Tivoli. || - Sim. || - Passamos e repassamos por elle. || - Sim. || - Olhou para nós. || - Muitas vezes, com perfeita indiffe- | rença. || - Não o reconheceu então elle ? || - Reconheceu. Mas há uma conven- | cão entre nós. || - Ah ! isso é differente... O papá é sem- | pré um grande homem. ||

Edição 409PONSON DU TERRAIL [espaço] 32

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXIV || - Mas emfim, disse Polyte que queria | saber tudo, Antonia sabia da chegada do | bohemio? || -Naturalmente. || - Por quem? || - Por elle. || - E vae ceiar com ella esta noite? || - Assim o creio. || - E ella provar-lhe-ha claro como o | dia... || - Provar-lhe-ha o que quizer, mas eu | também tenho as minhas provas de re- | serva|| E Bibi accrescentou, com um sorriso : || - Agora já sabes o bastante, ao me- | nos por hoje meu pimpão. || - Acha ? || - Trata-se de me servir, ou antes de | servir Antonia. || - Todo o meu sangue lhe pertence | disse Polyte, com um arrojo de enthu- | siasmo. || - E por conseguinte, de fazer o que | eu mandar. || - Estou prompto. || - Vaes a casa de Antonia. || - Muito bem. || - Tratarás de ceiar com ella e com o | bohemio. || - E depois ? || - Ora essa ! depois vens dizer-me logo |o que se passou entre elles. || - E Nichette ? || - Ah ! éssa é que é preciso espiar. || - É o genio do mal, essa pequena. ||

- Mas que? || - Si tu lh’a fizesses perder a ella? || - A Nichette ? || - E então? || Polyte contorceu-se e disse: || - Depois de eu saber que Ninchette e | Zoé são a mesma pessoa... || - Então já não amas Nichette ? || - Quer dizer, já não concebo o menor |capricho por ella. || - Pois bem ! disse friamente Bibi, é | preciso ter um capricho por amor da | condessa Aurora. || - Vae, meu filho. || E o pae Bibi despediu Polyte ||[espaço com 15 pontos finais]|| Quando o peralvilho partiu, o agente | de policia murmurou : || - Ha uma cousa que eu não disse | Polyte ; é que é falso o testamento que | a cidadã Antonia deu ao bohemio, pode- | ria ser obra do cavalheiro de Mazures, | pae de Aurora, hoje meu amigo, o ex- | chefe da policia secreta, o cidadão Pau- | lo... || E Bibi cahiu em profunda meditação || [espaço] XXV [espaço]

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|| Sigamos agora a cidadã Antonia e Ni- | chette, que perdemos de vista durante a | longa narração de Bibi. || A bohemia subiu para a carruagem. | com a que outr’ora se chamava a peque- | na Zoé. || Ficou admirada a multidão que cobria | as immediações do Tivoli. || Mas nessa cidade de Paris, sempre ex- | centrica e sempre nova, nascida do ter- | ror de hontem e da esperança de ama- | ha, eram bem recebidas todas as origi- | nalidades. Era da moda essa creatura | disforme que semeava o ouro ás man- |cheias, o que tinha os mais extravagan- |tes fatos, e as equipagens do mais bri- |lhante mau gosto. || A multidão applaudia-a, quando ella | apparecia no theatro. || Nos bailes, as lindas donzellas, todas | á uma, lhe mendigavam um sorriso ; e |

já dissemos que mais de um homem en- | vejava a sorte do afortunad X... || Ora a multidão estupefacta e encanta-| da ao mesmo tempo, batera palmas, ao |ver a linda ramilheteira subir para o | carro de Antonia. || - Para opalacio ! gritou ella ao co- | cheiro. || Antonia estava radiante, a despeito de | uma preocupação que a importunava | desde algum tempo. || Entrara pensativa no Tivoli, e sahira | com uma sombra de alegria no coração. || De onde provinha essa alegria ? || De ter encontrado Nichette ; dessa | que fora outr’ora Zoé. || E, em um relancear de olhos, Antonia | lembrou-se do papel horrivel que a pe- | quena engommadeira tinha representa- | do na vida de Aurora e de Joanna. || - Evidentemente, semelhante rapari- |ga devia tornar-se uma mulher comple- |ta para o mal. || Os bons fazem-se de maus algumas vezes; | mas é preciso que os philosophos e phi- | lantrophos saibam que os maus nunca se | tornam bons. || Ora desde que ella fizera assassinar a | condessa de Mazures, desde que vira to- | dos os monstros que o terror esmagou, | Antonia, ainda assim, não tinha encon- | trado o que os poetas chamariam uma | alma, irmã de sua alma. || O proprio X... a pesar da sua baixeza, | parecia-lhe indigno das suas expansões | e das suas confidencias. || Antonia, desde a morte da sua boa | ama, pensava em uma mulher, que re- | presentasse junto de si o papel que ella | tinha havia annos, representado ao pé | da condessa de Mazures, esse outro ge- | nio do mal. || Queria uma mulher intelligente,per- | versa até a perfeição, feroz de ódio e de | amor por necessidade, uma mulher, em-| fim, da qual ella podese dizer ; é minha | discípula. || Em vão tinha ela procurado essa | creatura quase ideal. ||

Eis que de repente encontrava a ra- | milheteira Nichette, a nova encarnação | da engommadeira Zoé, esse pequeno | monstro que tão complacentemente sor- | ria á guilhotina. || Para cumulo da desgraça Nichette | era bella. || Tinha essa belleza audaz e fatal, que | tão viva impressão faz em certos ho- | emns, naquelles principalmente que mais | necesidade têm de se dominar. || Uma horas antes, Antonia ainda era | scismadora. Munito, o rei dos bohemios, | preveniu-a da sua visita por uma carta, | que ella tinha recebido naquela mesma | manhã. Que vinha elle fazer a Paris? ||Antonia desconfiava; tinha visto amon-| toar-se ao longe a tempestade, e trata- | va de lhe fazer frente. || Agora achava Zoé, sentia-se forte, a | como as alampadas de da entrada do jar- | dim allumiassem a satânica cabeça da | ramilheteira, Antonia murmurou : || - Duas mulheres como nós não devem | ter medo de nada. Ambas juntas, sere- | mos uma força invencível. || A cidadã Antonia tinha deixado, ha- | via muito tempo, a sua casa de campo | em Palaiseau. || Esta habitação era boa, em occasiões | de effervescencia popular, quando rei- | nava o terror, e quando se podia ir pa- | rar á guilhotina de um momento para | outro. || Presentemente, porém, Paris estava | socegado, e Antonia voltava para alli. || Tinha elle alugado, na rua dos Bons- | Enfants, um belo palacete, entre um | pateo e um jardim, commetêra loucu- | ras em o mobilar, e dava allie festas ex- | plendidas, onde fazia as honras o cida- | dão X... mais poderoso que nunca. Foi, | pois à rua dos Bons Enfants que a bo- | hemia conduziu Nichette. || No caminho já ellas tinha conversa- | do um pouco. ||- De fórma que, dizia Nichete, quer | que eu me faça amar por esse homem| temível? ||

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- Quero, pequena. ||- E elle darme-ha muito ouro ? || - Isso depende da intensidade da pai- | xão que tu lhe inspirares. || - Ah ! disse Nichette, quando eu prin- | cipiar, descance, que darei conta do re- | cado. || - És um amor, disse Antonia. || E abraçou-a com ternura. || - Senhora, replicou Nichette, per- | doar-me-ha de eu ser curiosa, não é as- | sim ? || -Diz minha perola. || - Porque dá de cear a este mono, e | evitou ha pouco de fallar-se e ser vista | por elle? || - Filha, replicou Antonia, vou expli- |car-te em duas palavras. || - Ah ! || - Esse homem chama-se Munito. || - Muito bem. || - Esta manhã recebi delle uma carta, | em que me annunciava a sua chegada a | Paris. Ora não me convinha receber a | sua visita no dia marcado. || Dir-te-hei já porque. Recebendo a | carta, deixei Paris e aproveitando um | bello dia da de sol, fui ver a minha casa de | Palaiseau. Antes de partir, deixei dito | onde me deviam procurar, e convidei-o | para cear ás tres horas da manhã. || Comprehendo, disse Nichette. Mas en- | tão não ficou de se encontrar com elle| no Tivoli? ||Não. E admiro me de encontrar alli. ||- Porque? || - Porque ha de saber que vou lá mui- | tas vezes. || - Então elle procurava-a ? || - Provavelmente. Mas evitei a sua | presença, porque precisava de fallar | comtigo antes. || Taes tinhas sido as palavras trocadas| entre Antonia e Nichette, emquanto a | carroça rodava ruidosamente da porta | do Tivoli, para a rua dos Bons-Enfants. ||

Edição 410PONSON DU TERRAIL [espaço] 33

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXV || A porta da cocheira abriu-se de par | em par, e o carro entrou. || Nichette estava deslumbrada. || Creados agaloados, como os cochei- | ros, tumultuavam no pateo. || No vestibulo havia lacaios com tochas | e caixas cheias de flores raras, como | Nichette nunca as tinha vendido. || A casa de Antonia era um palacio ha- | bitado por um exercito de creados. || A bohemia tomou Nichette pela mão, | fez-lhe subir os degraus de uma larga | escada ; e , chegando ao primeiro andar, | a ramilheteira viu abrir-se uma enfia- | da de salões ricamente mobiliados, com |ricos tapetes espessos, e onde reinava | também o luxo de mau gosto que tanto | parecia agradar a cidadã Antonia. || - Anda, disse ella, vou conduzir-lhe ao | teu quarto. || - Como ? disse Nichette admirada, pois | já tenho um quarto em sua casa ? || - Tens, pequena. || -Mas... || - Ha quinze dias que está preparado. || Nichette julgou que a bohemia zomba- | va della. || Mas Antonia dizia a verdade. || Havia quinze dias que havia sido avi- |

sada da proxima viagem de Munito a | Paris, e desde então que ella procurava | uma mulher que pudesse seduzir o bo- | hemio. || Ora, na esperança de encontrar a ave | rara, Antonia tinha-lhe preparado a | gaiola, o ninho. ||Um gabinete, um quarto de dormir, | uma sala de toilette, e duas creadas gra- | vês esperavam a amante, ainda desco- | nhecida, do bohemio Munito. || Na extremidade do terceiro salão. An- |tonia empurrou uma porta, e Nichette | viu-se na entrada de seu gabinete. ||Havia grande differença entre esse | gabinete e o sótão que a pequena Zoé | occupava em casa da pobre mãe Barge- | vin, na rua do Petit-Carreau. || Mas Zoé já se tinha adiantado desde | então, e Nichette não se assombrou. || - Aqui está o teu quarto, disse Anto- | [[to]] nia. || E ao mesmo tempo agitou o cordão de | seda de uma campainha. || Então duas lindas crescas, atrevidas, | insolentes entraram, e não poderam dei- | xar de olhar um pouco desdenhosamen- | te para a ramilheteira. || - Meninas, disse Antonia que as ful- | minou com um olhar, aqui tê a sua | ama ; desde hoje em diante obedeçam- | lhe como a mim mesmo. || Depois deu um beijo em Nichette. || - Vae vestir-te e preparar-te, minha | pequena, disse ella ; quando estiveres | prompta, vem ter commigo. || Antonia sahiu então e deixou Nichette| | entregue as duas criadas graves. ||

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Depois de uma hora já não havia nada | da antiga ramilheteira. || Lavada, perfumada, com os bellos ca- | bellos em bandós caprichosos, vestido de | seda preta, corpete de velludo preto, | decotada como costumavam as maravi- |lhosas de então, Nichette mirou-se a | um grande espelho e achou-se divina- | mente bella e disse : || - Eu bem sabia que cedo ou tarde fa- | ria fortuna. || E disse as creadas, que se tinham tor- | nado de perfeita humildade, que a con- | duzissem para o pé da cidadã Antonia. ||[espaço] XXVI [espaço] || Antonia fez um gesto de admiração | ao ver entrar Nichette. || A jovem estava transformada. || - Como és bella ! disse ella. || Nichette era parisiense e, como todas | as parisienses tinha esse gosto instincti- | vo da elegancia que faz o desespero das | outras mulheres. ||Escolhera a sua toilette dentre as que | as creadas lhe tinham mostrado, harmo- | nisando as côres com o instinto maravi- | lhoso. || A filha das ruas tornara-se um mu- | lher elegante, revelando inteiramente | esse bom gosto que faltava a Antonia. | E a bohemia contemplou por um momen- |tou a sua obra, como Pigmalião devia ter | contemplado a sua estatua, antes de se | namorar della. || - Ah ! concluia a cigana, és perfeita- | mente a mulher que eu procurava. || Tomou lhe o braço e fel-a sentar junto | della continuando : || - Porque tu és minha filha adoptiva, |és a carne da minha carne, e eu não | quero ter segredos para ti. || E continuou depois de a abraçar ain- | da : || - Devemos amarmo-nos nós que tam- | bem sabemos aborrecer. || - É verdade senhora, replicou Ni- | chette. || - Ainda odeia as duas irmãs? || - Sempre, respondeu ella, com os | olhos em chammas ; mas o meu odio | mudou de alimento. || -Que queres dizer com isso? ||- Quand eu era pequena, magra, es- | bambeada, negra como uma ameixa e | coberta de farrapos, quando me chama- | vam Zoé, eu trahia Aurora e Joanna por | que ellas eram bonitas. || - E agora ? || - Agora odeio-as, porque não ellas | grandes fidalgas, porque o rei voltará | talvez, e porque haverão gentis homens | e belas senhoras, e então enxotam-nos | a nós ás filhas do povo, e castigam-nos | por termos gritado : viva a republica ! | e por termos applaudido o cidadão Brou- | to e a guilhotina. ||- Ainda não voltou esse tempo, disse | Antonia. || - Mas póde voltar... || - Talvez. || - E então nós as veremos ambas, es- | sãs pretendidas sobrinhas de mãe Simão | patentear vestidos riquissimos em car- | ros dourados, e cobrirem-nos com o seu | desprezo. ||

Edição 411PONSON DU TERRAIL [espaço] 34

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXVI || Nichette fallava com tal accento de | ódio, que a cidadã Antonia não hesitou | mais. || - Sim ! repito-te que não quero ter | segredos para ti. || Nichette deitou-lhe um olhar que | queria dizer: << Eu sou tão perversa co- | mo tu, tão corrupta como tu, e qualquer | que seja o crime que me vaes confiar, | conta desde já que o approvo.>> || Antonia sabia ser breve e prolixa | quando era preciso. || - Sim, disse ella, o rei póde voltar, e | ellas também ; e então serão senhoras | aristocratas. Tens razão, mas faltar- | lhe-ha uma cousa. || - Qual ? perguntou Nichette. || - Dinheiro. Ellas são pobres... || - Tanto melhor ! disse a vingativa | rapariga. || - E pobres por minha causa. || - Ah ! ah ! disse Nichette, arrui- | nou-as ? || - Não, roubei-as. || - Antonia pronunciou estas palavras | com um cynismo que encantou Nichet- | te. || A ramilheteira lançou-es-lhe ao pesco- | co. || - Ah ! és adorável. || - Vês que sou rica, proseguiu Anto- | nia. || - Oh ! muito rica, ninguem o póde | duvidar. || - Pois bem ! a minha fortuna perten- | cia-lhes. || - Sim senhora. || - Mas essa fortuna, continuou Anto- |

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nia, essa fortuna que hei de repartir | comtigo, querem tomar-m’a. || - E quem? disse Nichete que poz as | mãos na cinta, como si estivesse para | sustentar uma luta com todos os inimi- | gos de sua nova amiga. || - Umas pessoas que lh’a querem dar. || - Oh ! mas eu estou aqui, disse Ni- | chette. || - Lembras-te de um homem que mo- | rava outr’ora na tua casa e que se cha- | mava Bibi ? || - Si me lembro ! esse velho misera- | vel enganou-me bem. || - Então também o odeias ? || - Quase como as duas irmãs. || - Pois elle, disse Antonia, é que quer | fazer nos dizer de facto e de direito. || - Que patife ! || Já dissemos que Antonia não queria | ter segredos para Nichette. || Contou-lhe então como, depois de se | ter apoderado da fortuna das duas me- | inas, fortuna que estava em um cofre, | ella o tinha confiado ao rei dos bohe- | mios. || - Mas, disse Nichette, é esse homem | que espera para cear? || - Exactamente. || - E eu devo fazer-me amar por elle ? || - Comprehendes então agora ? || - Sim e não, senhora. || - Explica-te, pequena. || - Si esse homem a vem ver e cear | comsigo é porque é seu amigo. || - Pelo menos era-o. || - E então não tem interesse nenhum | em dar esse dinheiro sinão a si. || - Enganas-te || - Ah ! || - Nem todos os bohemios são isemptos | de escrúpulo, como eu, continuou Anto- |nia. || - Ah ! são todos muito honrados, dis- | se Nichette, escarnecendo. || - Ao menos Munito tem essa preten- | cão. ||

- Ora ! então quando elle recebeu o | dinheiro não sabia que era roubado? || - Não. || - E que lhe disse a senhora para ex- | plicar tal acquisição ? || - Mostrei-lhe um testamento que a | tia das duas raparigas fizera em meu fa- | vor, porque essa fortuna proveio de uma | princeza allemã, tia dellas por afinida- | de. || - Então essa fortuna é sua ? disse in- | genuamente Nichette. || - Não. || - Como assim ? || - O testamento é falso. || - Ah ! comprehendo. || - E o pae Bibi comprehendeu provar- |lh’o. || - E si elle o consegue ? || - Munito restituirá o dinheiro. || - Sim, disse Nichette, mas si Munito | me amar, eu far-lhe-hei perder de tal | forma a cabeça, que confundirá alhos | com bugalhos. || - E depois, disse Antonia encantada | com tal resposta, eu não sei como Bibi | poderá provar que o testamento é falso. || - Ah ! || - Morreu quem o fez. || ´E a letra da princeza está perfeita- | mente imitada? || - Como a princeza morreu e como | não se encontrará letra della... a menos | que não vão revistar a minha secreta- | ria. || - Ah ! tem carta della ? || - Algumas. || - É preciso queimal-as, disse Nichet- | te. || - Hei de fazer isso ; mas antes é pré- | ciso que Munito se convença de que Bibi | é um intriguista. || - Mas, disse ainda Nichette, como sa- |be a senhora os projectos desse homem. || - Todos os mezes mando a Vienna um | homem de minha confiança. || - Muito bem. ||

- Esse homem, apresenta-se a Munito, | que lhe conta cem mil libras para mim. || Ora, continuou Antonia, ha trez me | zes que esse homem trava conhecimento | com Bibi, e entregou-se-lhe imprudente- | mente. || - Ah ! ah ! || - Bibi começou então a procurar o rei | dos bohemios ; encontrou-o provavelmente- |te ; e não sei o que se passaria entre | elles. || Quando ha quinze dias, o meu manda- | tario foi a Vienna, Munito recusou pa- | gar-lhe. || - Ah ! esse Bibi ! disse Nichette enco- |lerisada. || Antonia continou: || - Alguns dias depois recebi uma car- | ta do rei dos bohemios. || - Que dizia elle? || - Que lhe affirmavam que eu tinha | roubado o dinheiro de que elle era depo- | sitario . e que, posto elle se recusasse a | crêr em tal, toda vida não podia pagar | mais, sem primeiramente apurar a ver- | dade. Annunciava-me o resto que vi- | nha a Paris vêr-me, e que me preveni- | ria de sua chegada. || Imagina agora como eu estarei in- | quieta. || - Effectivamente, disse Nichette. || - Ora, como já não sou nova nem for- | Mosa, imaginei que si encontrasse uma | mulher como tu, enebriaria de amor | Munito e far-lhe hia tolher assim a ac-|cão desse demonio de Bibi. || - Então procurou-me? || - E alguma cousa me dizia que te en- | contrava. || - Pois bem ! aqui estou. || E Nichette abriu um sorriso soberbo, | o sorriso da mulher que antecipadamen- | te está segura da victoria. || - Não é o meu dinheiro que tu vaes | defender, disse Antonia. || - É o nosso, disse friamente Nichete. || Em uma palavra, ella acabava de fa- |

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zer com Antonia um tratado de allian- | ca, de vida e de morte. || E, como Antonia a abraçasse ainda, | ouviu a campainha que annunciava a | chegada de uma visita. || - É Munito “ disse Nichette. || E prompta para o combate, levantou-| se com um clarão nos olhos e um sorri- | so nos labios. || - Não, ainda não póde ser elle, disse | Antonia. || - Então quem é? ||- Um homem que eu tive o capricho | de amar, respondeu Antonia desdenho- | samente, pagando-lhe a bagatella de do- | Zé a quinze mil libras por mez. || - Ah ! disse Nichette. || - Ora ! murmurou Antonia com um | riso cynico, eu não sou joven nem bella | como tu, mas faço-me amar como posso. || Depois accrescentou: || - Mas esta noite não estou para amar. | Tenho muito o que fazer. || E levantou-se para receber o cidadão | X... e despedil-o mais depressa possi- | vel. ||[espaço] XXVII [espaço] || Não se enganara Antonia ; era effec- | tivamente o cidadão X... que chegava. || A bohemia esperava-o em uma saleta | visinha daquela onde recebera Nichet- | te. || O cidadão X... era um epicurista. || Quando atravessava o pateo, perfu- | mes exhalados das cosinhas castigaram- | lhe agradavelmente o olphato, e elle no- | tou em toda casa uma azafama descos- | tumada. || - Esta boa Antonia, dissera elle, tem | gente á ceia para me comprazer, e oc- | cultou-me esta sorpreza. Bons dias, for- | Mosa querida, disse elle entrando e bei- | jando galantemente a mão da bohemia. || - Boas noites, respondeu ella. || - Hoje a casa tem um ar de festa, anjo | idolatrado. ||

Edição 412PONSON DU TERRAIL [espaço] 35

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXVII || E poz-se junto della, na ottomana, em | que ella se tinha sentado. || - Acha? || - Das cosinhas voam perfumes os | mais | deliciosos. || - Disse ao mestre que se excedesse. || - Então tem convivas para a ceia? || - Tenho. || -Quem ? || - Em primeiro lugar uma mulher | muito linda. || - Ah ! ah ! disse o cidadão X... cujos | olhos brilharam. || - Depois um dos meus bom amigos | que voltam da Allemanha. || - E depois ? || - Mais ninguem. || - Uma partida de quatro, segundo | vejo. || - Não, é um triangulo perfeito. || - É possivel ? || - O senhor não é meu marido, disse | Antonia com grande doçura. || O cidadão X... recuou estupefacto. || - Diz que ? ... || - Que não é meu marido, repetiu | tranquilamente Antonia || - Esta a gracejar ! || - Agora. Recebo hoje uma pessoa | deante de quem quero ser virtuosa. || - Ah ! disse o cidadão X... com uma | impertinência digna de um falon rouge. || - Assim é meu amigo. || - Mas... minha bella...|| Antonia tornara-se seria. || - Meu caro, disse ellla, acha agrada- | vel que eu seja rica, não é assim? || - Mas... que relação tem ... o que me | diz... ||

- E si eu fosse pobre, accrescentou | ella, com um sorriso, a sua amizade | permittiria... || - Senhora ! || - Pois bem ! permitta que o despeça | hoje, por que a minha fortuna depende | talvez da sua ausencia. || O cidadão X... attendia á sua posição | Achou conveniente encrespar na sobran- | celha e mostrar-se ciumento. || - E quem me assegura que a senho-| ra falla a verdade? || Antonia deu uma gargalhada. || - Ora o senhor é sempre de um gro- | tesco extremo. Si quer conservar a | minha amizade, vá embora. || - E si eu não quizer? || Pronunciando estas palavras o cidadão X... fez um gesto e tomou uma po- | sição de tribuno. || Antonia deu outra gargalhada e disse: || - Ah ! não me mete medo, meu caro. || - Antonia, tome sentido ! || - Estamos já em outros tempos. || - Senhora ! || - O seu amigo Robespierre morreu ; | e agora já não se guilhotina ninguem. || Estas palavras socegaram o cidadão | X... || - Seja galante, dise Antonia, e vá em- | borá. || - Mas, emfim, disse o tribuno feroz, | dir-me-ha ao menos... || - Quem é o homem a quem eu dou de | cear ? || - Sim. || - É um allemão, não é um bohemio. || - Ah ! || - Que tem dez milhões... esta conten- | te ? ! || - E essa mulher que diz ser tão bel- | la. || - É minha filha adoptiva [.] Está satis- | feito ? || Desta

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vez na voz de Antonia havia | alguma cousa de breve, secco e termi- | nante, que fez perceber ao cidadão X... | que aquella exquisitice dramatica devia |

terminar, que e a sua situação de Othel- | lo já não tinha nenhuma razão de ser. || - Vá embora e venha amanhã ver me, | disse Antonia. || Estendeu-lhe a mão, levantou-se e | abriu-lhe a porta. || O cidadão X... partiu sem dizer uma | palavra. || Afinal de contas esse homem eloquen- | te que tanta vez fizera retumbar a tri- | buna com as suas apostrophes á tyran- | nia, não era isempto de fraquezas. || Um sorriso assomou aos labios de An- | tonia, quando elle partiu ; sorriso tris- | te como indubitavelmente devem ter os | precitos, quando se lembrarem do céu. || - A ceia é a única cousa que elle la- | menta, disse ella. || Depois experimentou esse sentimento | das mães que envelhecem e se acham | bellas em suas filhas. || E pensando em Nichette, murmurou: || - Mas amal-o ha ella ? || Esta creatura, perversa entre todas, | definhada pelo odio e pelo crime, amava | um ser humano, pela primeira vez da | sua vida; e juntara-se a Nichette. || Esta já se tinha habituado á sua nova | situação, repoltreara-se em uma otto- | mana e ennovelara-se como uma gata | que aguça o acho de suas unhas. || - És adoravel assim, lhe disse Anto- | nia, vindo abraçal-a de novo. || Passaram juntas uma boa hora, antes | de chegar o bohemio. || Quando este se apresentou, Nichette | já sabia toda a vida de Antonia, identi- | ficara-se com ella, desposando-lhe os | ódios, os rancores, adivinhando-se os | projectos, e estando resolvida a tornar- | se o braço direito della. Chegou final- | mente Munito. || Dois lacaios que já tinham a senha, | introduziram-o no gabinete, onde o es- | peravam Nichette e Antonia. || Munito estremeceu e pareceu pertur- | bato quando viu a joven. ||

- Bom ! pensou Antonia, o encanto | opera já o seu effeito. || Elle, porém, salvou-se daquella emoção | passageira, e dirigiu a palavra a Anto- | nia, em lingua bohemia. || - Quem é essa mulher? disse elle. || - Minha filha adoptiva, disse Anto- | nia. || - Ah ! disse Munito que pareceu ficar | satisfeito com aquella resposta. ||Depois disse ainda : || - Vamos, por um momento, fallar nos | negócios. || - Falle... || - Accusam-te de um roubo, mas eu | não o creio. || Antonia nem pestanejou. || - É um miserável agente de policia | chamado Bibi ? disse ella. || - É. || - Um desgraçado a quem eu salvei do | cadafalso. || - Talvez ... || - E em que baseia elle tal accusação? || - Diz que é falso o testamento da | princeza Helena. || Antonia teve um leve estremecimen- | to na voz, quando disse : || - E como espera elle proval-o ? || - Isso é que eu não sei. || - Então esse homem esta em Paris? || - Também não o sei. || - Mas, paesinho, tu vens a Paris para | teres essa prova? || - Naturalmente. Mas deves saber que | tenho outros negocios, e que não posso | demorar-me aqui muito tempo. || - Ah ! || - Conto demorar-me quinze dias. || - E depois ? || - Ora, depois ! depois partirei. Si da- | qui até lá elle não me provar o que eu | avanço, farei como que si não o tivesse | visto. || - És a sabedoria encarnada, paesinho. || Munito olhava sempre para Nichette | e parecia que a achava muito a seu gos- |to. ||

Nichette não podia comprehender uma | palavra da conversa do bohemio e de | Antonia ; mas adivinhara, e dizia assim : || - O pobre diabo não é assim tão feroz, | e amal-o hei depressa. || Munito tirou as luvas. || Nichette ficou deslumbrada. Viu bri- | lhar-lhe nos dedos um annel com um | diamante do tamanho de um ovo de pom- | BA. || - Ah “ pensava ella, Antonia tinha | razão. Esse homem deve ser fabulosa- | mente rico. Antes de um mez terei eu | carros como ella. || Um lacaio abriu a porta e disse : || - Esta posta a mesa ! || - Vem cear, paesinho, e dá a mão á | minha filha. || Munito obedeceu. || Nichette imaginou que a mão delle | tremia ao tocar na della. || E como Antonia, ella também disse | de si para si : || - Creio que o peixe pica... || Effectivamente Munito parecia expe- | rimentar um encanto indisivel em com-| templar a joven. || [espaço] XXVIII [espaço] || Entretanto o nosso amigo Polyte to- | Mara o caminho da rua dos Bons- En- | fants. || Bibi dissera-lhe : || - Faz-te convidar para a ceia e con- | tar-me-has tudo o que vires e ouvires, | | Desde que se tornara o

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cherubim de | Antonia, Polyte era inteiramente da | casa. || Os creados saudavam-n’o respeitosa- | mente ; o cidadão X... mostrava-lhe boa | cara. || Ora, quando este sahia da casa de An- | tonia, com muito mau humor, Polyte | virava a esquina da rua, o que fez com | que ambos se encontrassem cara a cara. || - Boas noites, cidadão ! disse Polyte. || - Ah ! és tu ? disse o cidadão X... || - Sou, cidadão. ||

Edição 413PONSON DU TERRAIL [espaço] 36

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXVIII || O feroz representante olhou a volta | delle e disse sorrindo: || - Estamos sós, meu amigo. || - A esta hora não é de admirar, res- | pondeu Polyte. || - Por conseguinte vou dar-te um pe- | queno conselho que ninguem ouvirá. || - Escuto cidadão. || - Amigo, disse o cidadão X... sabes | que a republica tem os seus dias conta- |dos? || - Que me diz? ||- E que já se pode dar o tratamento | de senhor e não pode cidadão? || - Desculpe, é um mau habito que hei | de procurar perder. || - Bem, meu amigo. || - Mas, replicou Polyte, já não vae a |casa da cidadã Antonia ? || - Venho de la. ||- E não ficou para cear ? || - Não. ||[mancha] disse familiarmente Polyte, | parece que não vem contente. || - Não, effectivamente. || - Houve alguma novidade ? ... || O cidadão X... olhou fixamente para | Polyte. || - E tu, vaes agora lá? || - Vou. || - Cear? || - Sim ! || - Bem ! podes poupar caminho meu | amigo Polyte. || - O que ? || - Despedem-te como a mim. ||- Ora ! || - É o que eu te digo. Antonia tem con- | vivas. ||

- Realmente ? || - Primeiramente uma linda mulher, | no que parece. || - E depois ? || - Um homem que eu não conheço, e | que ella não me deixa ver. || - É exquisito, disse Polyte. || De repente uma idéa atravessou o ce- | rebro do cidadão X... || Olhou fixamente de novo para Polyte|| - És curioso ? disse elle. || - Como um gaiato de Paris, que sou. || - E discreto ? || - Quando é necessário. ||- Vou fazer-te uma proposta. || - Vejamos, disse Polyte. || - Tu sabes que tenho um quarto no | palácio. || - Naturalmente. ||- Com esse quarto confina um gabi- | nete de toillete. || - Muito bem. E esse gabinete de toi- | lette tem uma vidraça que dá para a | sala de jantar, disse Polyte. || - Exactamente. || - E então? || - Então supponhamos uma cousa. Tu | entras, vaes ao meu quarto e penetras | no gabinete de toillete. || - Subo a uma cadeira, continuou Po- |lyte, e immovel, por traz da vidraça, | assiste á ceia. || - É oq eu eu ia dizer. || - Depois, amanhã, conto-lhe o que se | passou. || - A bom entendedor meia palavra | basta. || - Mas desgraçadamente, disse Polyte, | isto é um pouco impraticável, senhor. ||- Como assim ? ||- Bate á porta. || - Bom. || - Dão-me entrada, como ao senhor. || - Sim, si tu entrasses pela porta prin- | cipal. Mas si tu desceres á antiga rua | Valois, e entrares no palacio pela pe- | quena porta do jardim... || - Como ? ||

- Com esta chave. || E o cidadão X... poz na mão de Poly- | te uma chave que Antonia lhe tinha da- | do nas suas horas de expansão e de amor. || - Ah “ isso agora é outro fallar, disse | Polyte, pegando na chave. || - Agora, és prudente, és engenhoso e | podes entrar em um palacio sem seres vis- | to. || - Descance, accrescentou Polyte ; eu | tenho amigos na casa. || - Amanhã, concluiu o cidadão X... |vem procurar-me cedo para me conta- | res o que vires e para me dares a cha- | ve. || Dizendo isto apertou a mão a Polyte | e afastou-se. || Polyte começou a rir á socapa. || - Pobre cidadão X..., disse elle, não é | o ciúme que te impelle mas sim o re- | ceio de seres substituído. Ora ! quando | uma pessoa está em boa posição, procu- | ra conserval-a. || E Polyte passou por deante do palace- | te de Antonia sem parar, e descend á | rua de S. Honorato, voltou á direita, pa- | ra se metter na antiga rua de Valois. || O

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palacete de Antonia tinha effectiva- | mente um grande jardim, para o qual | se entrava por uma pequena porta, que | dava para aquella ultima rua, em fren- |te ao Palais- Royal. || Polyte entrou, pois, no jardim, com a | ajuda da chave que o cidadão X... lhe | tinha dado. || Era sombria a noite, e as luzes que | brilhavam nas janelas do palacete, mer- | gulhavam, por opposição, o jardim na | obscuridade. || Polyte metteu-se em uma grande ala- | meda de arvors que conduzia directa- | mente a estufa. || A estufa ficava aberta no verão. Ao | fundo havia uma pequena escada de ser- | viço que dava para os andares superio- | res do palácio. || Elle caminhava com precaução, indo | pela relva, e evitando pôr o pé na areia. ||

Quando chegou a estufa parou para | escutar. || - Agora é que espiono por conta de | duas pessoas ao mesmo tempo, pensou | elle, por conta de Bibi e do cidadão X... || Ora o cidadão X... só saberá de mim o que a | mim me convém que elle saiba. || Os criados vagueavam pelas salas e | corredores. || Polyte ouvia os seus passos ruidosos | e apressados. || Entretanto metteu-se pela escada pe- | quena e subiu pé ante pé. || Parava, quando ouvia ruido ; mas | continuava a seguir para deante, quan- | do não havia rumor nenhum. ||Chegou assim ao primeiro andar.|| Ahi Polyte reconhecia-se perfeitamen- | te e não carecia de ninguem para lhe | indicar o caminho. || Devia só ir nos bicos dos pés, cami- | nhar até a extremidade do corredor, pôr | uma mãona chave e abrir uma porta. || Era o quarto a que o cidadão X... | chamava seu. || E Polyte assim fez. || Quando chegou alli, tirou a chave, | metteu-a por dentro, fechou-se e disse : || - Não quero ser interrompido. || Polyte estava sem luz, e já dissemos | que a noite era sombria. || Mas as janellas do quarto davam para | o jardim, que era plantado de grandes | arvores, então vestidas com todas as fo- | lhas. || As vivas luzes das janellas vizinhas re- |fletiam se nessa verdura, com um espe- |lho, reenviando para o quarto, mergu- | lhado na escuridade, uma especie de luz, | que fazia com que Polyte não esbarras- | se na parede ou não tropeçasse ruidosa- | mente contra algum movel. || Vêr dalli para o gabinete de toillete | era uma brincadeira pa Polyte. || Viva luz passava atravez da vidra- |ça. || Polyte enconstou docemente uma ca- | deira á parede. ||

Subiu e viu então distinctamente o | que se passava na sala de jantar. || Antonia, Nichette e o bohemio esta- | vam a meza. || O bohemio estava vermelho ; tinha o |olhar acintillante, e parecia tomado da | doce embriaguez do vinho e do amor. || A attenção de Polyte cahiu primeira- | mente sobre esse personagem. || - Diabo ! disse elle, o bom homem pa- | rece um pouco animado; lastimo o si | tem com elle todos os seus diamantes ! || Polyte olhou depois para Nichette. || Mal a reconheceu, tão vantajosamen- | te transformada estava ella || - Safa ! murmurou elle, é um bocado | verdadeiramente digno de um príncipe, | a tal rapariga. || Estava aberta uma das meias portas | da vidraça, provavelmente para arejar | o gabinete de toilette. || Polyte ouvia perfeitamente a conver-| sa dos três convivas. || - É adoravel a tua filha, dizia Muni- | to, que parecia ébrio; eu sou viúvo e | quero desposal-a. || - Pois sim ! paesinho, respondia An- | tonia com um tom escarnecedor ; tu és | rico de mais para nós. || - Cubro-a de diamantes. || - Ora ! dizes isso... || - E de pedras preciosas, accrescentou | Munito, bebendo um grande copo de to- | kay. || - E depois, disse Antonia é minha filha | adoptiva. || - Bem sei. || - E tu não quererás desposar a filha | de uma ladra. || Munito entoou um riso grosso e disse: || - Ah ! foi Bibi que me disse isso. || - E acredital-o ? ||- Não. || - Palavra ? || - A prova é que vou pagar-te as tuas | rendas atrazadas. ||

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Edição 414PONSON DU TERRAIL [espaço] 37

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXVIII || Fallando assim, Munito, que parecia | completamente ébrio, tirou do bolso uma | volumosa carteira, que pôz na meza. || - Hum ! pensou Polyte, parece-me que | estamos soffrivelmente derrotados, as | meninas, o pae Bibi e eu. || Munito abrira a carteira e espalhava | sobre a mesa notas dos bancos prussia- | nos e austriacos. || Nichette devorava com os olhos esse | dinheiro. || Polyte disse ainda : || - Vae bem a pequena ; si continuar, | sahirá o que prometia quando era | creança ? || [espaço] XXIX [espaço] || - Também não anda mal o paesinho, | como lhe chama Bibi, continuava a di- | zer Polyte que via o bohemio pregar in- | flamados em Nichette e sorrir a Anto- | nia ; si isto continua, estamos perdidos. || Effectivamente o bohemil parecia não | ligar a menor consideração ás accusa- | coes de Bib e reputar Antonia a mais | honrada mulher da sua tribu. || Polyte porém não teve o gosto de ver | o que ia passar-se, porque um live rui- | do o fez estremecer. ||Voltou-se e ficou mudo, com a fronte | banhada em suor, ao ver que uma mu- | lher tinha entrado no quarto – Ah ! sr. Polyte, disse uma voz fres- | ca e harmoniosa, agora pilhei-o. || - Schiu ! disse o peralvilho, pondo um | dedo nos labios. || Graças ao reflexo da claridade que pas- | sava pela vidraça, elle reconheceu a | criada de quarto de Antonia. || Não era aquella que outr’ora Polyte |

quase que tinha estrangulado em Palai- | seau, no vestibulo da casa. || Era uma linda rapariga chamada Pau- | lina, e que entrara, havia pouco, para | casa da bohemia. || Paulina tinha todos os defeitos e to- | das as qualidades da sua profissão. || Era discreta, mentirosa, atrevida, não | revelava os segredos da sua ama, sinão | a quem lh’os pagava generosamente, e | procurava até saber esses segredos total | ou parcialmente. || Gostava de Polyte, que tomara um ar | distincto, desde a sua metamorphose de | gaiato de Paris em peralvilho. || Deitava-lhe uns olhos apaixonados, | quando elle vinha a casa de Antonia ; e | Polyte mais de uma vez a abraçara e | lhe dera um beijo na testa. || - Mas então que faz aqui ? disse Pau- | lina : por onde entrou ? || - E tu que vens aqui fazer, rapariga ? | perguntou Polyte baixando a voz. || - Ora, eu desempenho os meus deve- |res, respondeu a criada. || - Ora essa ! || - Espreito as portas . || - E olha atravez das fechaduras. || - E como isso não é la muito commo- |dp, vinha vêr mais á minha vontade. || - Esta bom ! então seremos dois a es- | preitar. || Como Paulina era baixa, aproximou | uma cadeira da parede e pôde assim che- | gar á vidraça. || - Então a Sra. Antonia não sabe que o | senhor está aqui ?|| Com certeza que não. || - Mas como entrou o senhor ? ||- Pelo jardim. || -Então tem uma chave? || - Tenho uma que me emprestou o ci- | dadão X... || - E espiona por conta delle ? || - Exactamente. || - Pois eu também, disse Paulina. || E ambos continuaram a espreitar. || O bohemio contava placidamente a |

Antonia cem mil francos em notas do ban- |co. || Antonia pegou no dinheiro e foi guar- |dal-o ao seu quarto visinho. || Munito e Nichette ficaram sós por um | momento. || O bohemio continuava a olhar para a | joven com os olhos inflamados. || - Ama-me ? dizia elle, pegando-lhe | nas duas mãos e comprimindo-as terna- | mente. || Nichette sorria de um modo provoca- |dor e cheio de promessas. ||- Não comprehendo nada disto, mur- | murava Paulina ao ouvido de Polyte. || - Nem eu, respondia elle. || - Conhece aquella mulher ? || - Não, disse Polyte. || - A Sra. Antonia trouxe-a esta noite. || - Ah ! || - Vinha pobremente trajada, mas nós | vestimol-a cá.; || - Mas ella é bonita? || - Ora “ disse Paulina, não tem nada | de extraordinario. || Antonia voltou. || - Ah ! paesinho, disse ella, ao que pa- | rece estás perdido de amores. || - Estou, disse Munito. || - E tu queres desposar a minha filha | adoptiva ? || -

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Immediatamente, si fôr possivel. || - Oh ! não, disse Antonia, tens muita | pressa. Ninguem casa de noite. ||- Isso conforme. || - Além de que, Nichette não é bohe- | mia, continou Antonia. || - Ah ! || - Elle não se contentaria esvasiar uma | bilha comtigo e quebral-a depois, segun- | do o nosso rito. || - Mas, emfim, disse Munito, tu não | vaes despedir-me a estas horas ? || - Vou sim, disse Antonia. || - E para onde queres tu que eu vá ? || - Para a tua hospedaria. || -Ah ! é justo, disse o bohemio, já me | tinha esquecido que parei em uma hos- | pedaria. ||

- O amor faz-te perder a cabeça. || - É verdade. Mas voltarei, não é as- | sim ? || - Quando quizeres. || -Amanhã de manhã? || -Como quizeres. || Munito beijou ardentemente as mãos | de Nichette e disse-lhe: || -Si me amares, cobrir-te-hei de pe- | rolas e de diamantes. || - Quero ser rainha, respondeu Nichet- | te. || - Serás, porque eu sou rei. ||- O bom homem esta perdido, mur- | murava Polyte. || Depois agarrou Paulina pela cintura | e disse-lhe : || - Pequena, é preciso partir agora. || - Porque ? || - Porque já viste e bastantes | cousas. || - E o senhor ? || - Eu ainda quero vêr e saber mais. || - E então eu porque não? || - Porque não ! disse Polyte com um | tom de autoridade. || Paulina fez uma cara de despeito e | retrucou: || - E, si eu disser a Sra. Antonia que o | senhor esteve aqui esta noite? || - Eu digo-lhe que tu me fazias com- | panhia, e ella expulsar-te-ha. || - E ao senhor também. || - Eu sou amigo do cidadão X... || E Polyte pareceu reflectir do seguinte | modo : || - Ella não comprehenderá uma pala- | vra do que dizeram Antonia e Munito. |É melhor ficar de bem com ella. || Sorriu e disse: || - Não tenho intenção de te impedir | que vejas e ouça minha pequena. || - Ah ! assim é melhor. || - Mas já que te tornas minha cumpli- | ce, é preciso que sejas até o fim. || - É o que eu quero. Que poderei fa- | zer para lhe agradar Sr. Polyte ? || - Por emquanto levas-me ao teu quar- |to. ||

- Bom ! || - Escondes-me ahi. || - Até amanhã? respondeu a criada | que fingiu corar. || - Não, até que todos se deitem|| - E depois ? || - Abres-me a porta da rua, e eu vou |embora. || Antonia e o bohemio conversavam na- | quella língua que nem Polyte nem a ra- | milheteira comprehendiam. Polyte, po- | REM examiava a alteração da phisio- | nomia da bohemia. || As feições de Antonia serenaram pou- | co e pouco , e Polyte dizia a si mesmo : || - É claro que Antonia enfeitiçou o | bohemio. Elle ama Nichette, e a paixão |póde mais n’elle que a honra ! Anda mal | Bibi en contar com ele para rehaver a | fortuna das meninas. || Munito estendeu a mão a Antonia e dis- | se lhe em francez: || - Bem; até amanha ! || - Até amanha, repetiu Nichette que | lançou os braços ao pescoço do bohemio. || Este suspirou, deu, cambaleando, AL- | guns passos para a porta, parou e olhou | ainda para a joven ramilheteira. || Anotnia tocou uma campainha. Appa- | receu um criado. || - Mande apromptar a carruagem para | levar este senhor, disse ella. || Munito partiu. || Então Antonia e Nichette ficaram sós. || -Temol-o agarrado, disse Antonia. || -Assim o creio, respondeu a rapariga | sorrindo. || Antonia cingiu Nichette com os braços, | estreitou-a ternamente e disse : || - És digna de mim ! || - Procurarei sel-o pelo menos repli- | cou a perversa creatura. Mas porque o | mandou embora esta noite ? || - Porque é preciso que elle te deseje | por espaço de quinze dias. || - E depois! || - Partiremos com elle, e iremos a Bo- | hemia celebra os esponsaes. || Polyte e a criada ouviam sempre. ||

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Edição 415PONSON DU TERRAIL [espaço] 38

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXX || Antonia e Nichette conversaram al- | guns minutos ainda. || A conversa que versou unicamente | sobre o bohemio não interessou nada a | Polyte. || Finalmente Antonia chamou. || - Ah ! disse Paulina ao ouvido de Po- | lyte, é de mim que ella precisa agora. || - Vaes então ? || - Vou... Ella quer talvez deitar-se. || - Quando te verei? || - Fique aqui que eu virei procural-o || E Paulina sahiu devagarinho do ga- | binete de toillete. || Polyte ficou só ; e. como a solidão dá | logar ás reflexioes, elle dizia de si para | si: || - É bem simples o plano de Antonia : | ella vae fazer engulir a pilula ao bohe- | mio, isto é vae deixa-o desejar arden- | temente Nichette ; e Munito, amoroso, | não mais lembrará que deve a vida a | Bibi e a condessa Aurora. || Facilmente entrei aqui : mas como | hei de sahir agora? Pois é preciso que | eu veja Bibi esta noite mesmo. Talvez | que elle arranje meio de arrancar Mu- | nito as róseas garras de Nichette. || Como elle conversava sempre com a | cara collocada a vidraça, e como conti- | nuava a olhar para a sala de jantar, viu | entrar a criada. || - Leva a menina para o quarto della, | ordenou Antonia. || Dizendo isto, a bohemia depoz um | ultimo beijo na cara de Nichette, e se- | param-se depois. ||

Polyte esperou muito tempo, uma | hora talvez. || Os rumores do palacio extinguiram-se | successivamente, e por um momento elle| viu que tudo estava deitado em casa. || -Mas então essa rapariva não volta- | rá ? dizia Polyte já impaciente. || Depois que Antonia e Nichette deixa- |ram a sala de jantar e que os criados | levaram as luzes, Polyte ficou na mais | completa oscuridade, e não ousava fa- | zer um pequeno movimento com receio | de ir de encontro a algum movel. || Ouviu, emfim, um passo leve no par- | que e a porta abrir-se docemente. || Mão pequena o tomou pelo braço. || - Venha disse a voz da criada. || - Até que emfim, disse Polyte ; jul- | guei que não voltarias. || - Venha devagar, disse a criada. Con- |fie em mim, que eu o guiarei. || Polyte consentiu. || Atravessou pé ante pé o quarto visi- | nho do de Antonia, e, sempre guiado | pela criada, achou-se em um corredor. || Então olhou para Paulina e disse : || - Estão todos deitados ? || - Todos ? || - Podes, pois, fazer-me sahir ? || - Sem duvida, mas... || E começou a corar galatemente. || - Oh ! rapariga, disse Polyte, és ga- | lante de mais para que eu não me tente | em ficar, mas... || - Mas que ? disse ella com certo ani- |mo. || - Preciso de sahir e de me demorar, | ainda que não seja sinão um quarto de | hora. || - Ah ! mas volta ? || - Talvez [espaço] volto sim. || Polyte mentia, mas o que elle queria | era esquivar-se aos galanteios da criada. || - E aonde vae com uma noite destas ? || - Fallar com o cidadão X... || - Ah ! – Elle espera-me. || - Mas aonde? ||

- Em uma sala de jogo do Palais- | Royal. || Isto era possivel e Paulina não duvi- | dou. || - Então não deve sahir pela porta | principal. || - Pelo jardim? || - Sim. || - É me indifferente. || - É melhor para mim, disse Paulina. || - Porque? || - Porque porteiro tem o somno tão | leve que póde dispertar ao abrir-se a | porta. || - Como quizeres, disse Polyte. || Tomaram a pequena escada que dava | para a estufa e que communicava com | o jardim por uma porta que nunca se | fechava. || Uma vez fora da estufa, Paulina le- | vantou a cabeça. || - A senhora dorme, disse. Já não tem | luz no quarto. || - Então que é aquillo que eu vejo lá | em cima ? || - É luz que vem do quarto da meni- | na que a senhora trouxe esta noite, res- | pondeu Paulina com despeito. || - Então ainda não estará deitada ? || -Está, mas tem uma lamparina acce- | sa. ||Polyte notou então que havia uma ar- | vore copada e espessa deante da frontei- | ra do palacete, que subia em linha recta | até a janella, onde ainda brilhava a luz. || Paulina conduziu-o á porta do jardim | que dava para a rua, que outr’ora se ti- | nha

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chamado de Valois e disse-lhe : || - Espero por si. || - Como ! esperas por mim? ||- Pois si não darda mais do que um | quarto de hora... || - É justo. || E Polyte, dando um beijo no collo de | Paulina, foi embora. || Correu á casa de Bibi ; o homem da | policia não se tinha deitado ainda. || Polyte julgou mesmo notar, quando |

bateu a porta, que Bibi, antes de abrir | completava algum negocio mysterioso. || Os aposentos de Bibi, depois da sua | chegada a Paris, constavam de dois | quartos; um para onde se entrava logo, | depois do pateo, e outro a seguir a este, | aonde Bibi tinha a cama. || Foi no primeiro que elle recebeu Po- | lyte, o qual não notou a principio que | o outro quarto estava fechado. || - E então ? disse Bibi. || - Ah ! que exquisitas cousas, papá, | respondeu Polyte. || - Que me dizes ? || - Em primeiro logar, Antonia deu com | a porta na cara ao cidadão X... || E Polyte contou a Bibi como encon- | trará o feroz amigo do defunto e como | acceitara fazer a policia por conta delle. || Bibi encrespou as sobrancelhas e dis- | se : || - Isso é que me contraria. || - Ainda ha mais que o vae contrariar | já, gracejou Polyte. || - Bem, que viste tu? ||- Primeiramente Nichete metamor- | phoseada ; dir-se-hia que nasceu no meio | de sedas e velludos, e que nunca vestiu | outra cousa. || - Duvido. E depois ? ||- Nichette e Antonia adoram-se. Pa- |recém duas rolas. || - E depois ? || - Cearam com o bohemio Ah ! papá | interrompeu Polyte, perdemos decidida- | mente neste jogo. || - Achas ? || - Receio-o bem, pelo menos. || Um sorriso mysterioso passou pelos | lábios de Bibi. || - Continua meu filho, disse elle. || - Munito esta doido de amores por Ni- | chette. || - Ah ! ah ! || - E pagou a Antonia ! || - Como assim ? || - Deu-lhe os cem mil francos atraza- | dos. ||

- Esta bom ! || - E está totalmente convencido de que | o papá é um intriguista e que o dinhei- | ro de Antonia é della ! || Bibi ouvia impassivel. ||- Parece que isto não lhe causa sem- | sacão. || - Ora ! disse Bibi. ||- Mas, supponha uma cousa. || - Diz. || - Munito esta nas garras de Nichette. || - E dahi? || - Nichette leva-o para longe de Pa- | ris. || - É provavel. || - E nós ficamos burlados. || Bibi agitou os hombros. || Polyte abriu uns grandes olhos, admi- |rado do socego e laconismo de Bibi. || Este replicou? || - Então achas que Munito está apai- | xonado por Nichette? ||- Como um doido, como um selvagem. || Bibi começou a rir. || No mesmo instante abriu-se a porta | do quarto e, com grande admiração de |Polyte, entrou um homem. || Era Munito. O bohemio sorria ; esta- | va tão socegado e frio como Bibi. || - Ah ! rapaz então achas que estou | apaixonado ? disse elle com uma pronun- | cia allemã, fortemente accentuada. || - Mas... balbuciou Polyte, aparece- | me... julguei ver.. || - Viste mal... ou antes não viste nada. || E o bohemio começou a rir, accres- | centando : || -Agora estou convencido de que An- | tonia roubou o dinheiro que possue. | Quando eu tiver a prova material, ve- | reis si Nichette me impede de eu o res- | tituir. || Bibi olhava para Polyte sorrindo. || - Meu pobre amigo, disse elle, os bur- | lados esta noite não fomos nós, foram | Antonia e Nichette. ||

Edição 416PONSON DU TERRAIL [espaço] 39

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXX || - Então, disse Polyte, com despeito | vejo que foi inútil tudo quanto fiz e que | era melhor não me terem incommodado. || - Enganas-te, respondeu friamente Bi- | bi, porque agora preciso de ti mais que | nunca, não é assim Munito ? || E Bibi lançou ao bohemio um olhar | interrogador. || [ espaço] XXXI [espaço] || Que se passou entre Polyte, Munito e | Bibi ? || E o que nós saberemos, seguindo Po- | lyte, que um quarto de hora depois vol- |tava a rua de Valois. || - Palavra de honra ! murmurava elle | caminhando com passo rapido, não

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cui- |dava fallar verdade, quando prometti a | Paulina que voltava. || Ella espera-me ; tudo caminha ás mil | maravilhas. || A criada effectivamente, apesar da | frescura da noite, sentara-se atraz da | porta do jardim que ficara meia aberta || Mal póde conter um grito de alegria | ao ver reapparecer Polyte. || Este, tomou-a pela cintura e, dando -|lhe um novo beijo, disse : || - Creio que sou de palavra, hein ? || - Encantador, disse a criada, corando | de prazer. || Depois, pegando-lhe na mão, disse : ||- Não fiquemos aqui ; faz frio. || - Aonde me leva tu ? ||- Ora ! disse elle baixinho, ao meu | quarto. || - E aonde é o teu quarto ? ||- Ao lado do que deram áquella crea- |tura. ||

- Ah ! ah ! disse Polyte. || E de novo se deixou conduzir. || Paulina estava interessante, e naõ era | de uma virtude feroz. || Tinha tido mais de uma aventura, e | Polyte, quando a seguiu, não imaginou | que fosse elle o primeiro que ella met- | tia, de noite, em casa. || Quando chegaram ao corredor, para | onde dava a porta do quarto, ella parou. || - Que ha ? disse Polyte, em que pen- | sãs tu? || - Ora ! disse ingenuamente Paulina, | cá dentrou bem está o senhor, mas... ||- Mas que rapariga ? ||- Como há de ir embora ? || - Vou amanhã. || - De dia ? disse ella com um leve mo- | vimento de espanto. || -Pois ! || - Mas todo o mundo verá ! || - Não, porque quando sahir do teu | quarto vou bater a porta do quarto de | Antonia que supporá que eu venho de |fora. || Paulina fez certamente aquella obser- | vacão por simples formalidade, porque | ella poz-se a caminho e metteu em se- | guida a chave na fechadura da porta. || - Nada de barulho, disse ella ainda. ||- Receias que Antonia nos ouça ? ||- Não ; o quarto della é no andar su- | perior. || - Então que receias tu ? || - Mas a minah nova ama, que tem | sempre luz no quarto, talvez esteja ago- | ra a pensar nos milhões desse macaco | que vimos esta noite. || - Então o teu quarto é assim tão per- | to do della ? || - Póde ver. ||E Paulina, que tinha procurado uma | luz, mostrou uma porta ao fundo do | quarto. || - A tua porta dá para o quarto della ? || - Dá. || - Mas esta trancada? || - É só carregar no botão para abrir.||

- Ah ! || Paulina tinha procurado a luz e olha- |va para Polyte, attentamente. || Polyte, porém, tornara-se pensativo ; | depois, de repente, pareceu obedecer a | uma inspiração. || - Pequena, antes quero dizer-te a | verdade já. || - A verdade ? || - Sim. || Paulina olhou para elle admirada. ||- Sabes quem é esse pobres rapariga a | quem tu chamas uma creatura ? ||- Já me disse que era uma ramilhe- | teira. || - Sim, a ramilheteira do Tivoli. E eu | estou apaixonado por ella. || - Ah ! || E Paulina recuou. || Dir-se-hia que Polyte acabava de lhe | derramar pela cabeça um balde de agua | gelada. || - Pois ama essa rapariga, o senhor ? | repetiu ella. || - Amo ! disse Polyte || - E esta aqui ? || - Para que me introduzas no quarto | della. || - Ora essa ! ||- Rapariga, disse Polyte, não te arre- | negues e conversemos um momento como | bons amigos Tu não estás doida por | mim, não é assim ? ||- Oh ! odeio-o, disse ella. ||- Seja ; mas eu tenho o coração gran- | de e posso amar duas mulheres ao mês- | mo tempo. || - Que horror ! || - Sê amável. Faz oq eu eu te peço, | que talvez não tenhas de te arrepende-| res. || E Polyte deu um novo beijo nas loiras | tranças de Paulina. || - Mas, disse ella amuada, como póde | amar essa creatura que viu ha pouco | abandonar-se ás caricias desse velho ma- | caco ? || - Queres que diga tudo? ||

- Diga. || - Já não a amo, aborreço-a ! || - Ora ! || - E quero vingar-me ! disse Polyte. || E fallando assim, tirou do bolço uma | comprida faca. || Paulina soffreou um grito. ||- Si dás uma palavra, disse friamente | Polyte, mato-te ! || A criada teve modo e ficou muda e | tremula. || O casquilho mudou de attitude repen- | tinamente. || O seu gesto era secco, breve a palavra | e brilhante o seu olhar. || - Tu não me conheces bem, disse elle. | Quando eu prometto uma coisa, cum- | pro-a. Si queres ser minha amiga não te | arrependerás disso ; mas, si te oppões | aos meus projectos, ou si me atraiçoas, | mato-te, tão certo como estarmos ambos | aqui. || - Que quer de mim ? balbuciou a ra- | pariga humildemente.|| - Obediencia em primeiro logar. || - Obedecerei. || - Depois silencio. || - Serei muda. || - Bem ;

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assim é que tens juizo, disse | Polyte. Ouve, pois. ||- Queira dizer. ||- Vaes abrir esta porta. || - E depois ? ||- Entras em bicos de pés no quarto de | Nichette. || - E verei si ella dorme? || - Sim. || - E venho dizer-lh’o? || - Isso mesmo. || Paulina tremia ; mas tinha lido no | olhar de Polyte que ele era homem de | fazer o que dizia. || De fórma que carregou no botão da | porta e entrou no quarto de Nichette. || No chão havia um espesso tapete que | |afastava o ruido dos passos. || Estava uma lamparina accesa. || Paulina caminhou retendo o folego. ||

Nichette não dormia. || A ramilheteira estava agitada a pen- | sar nos milhões do bohemio, como dis- | será a criada. || - Que quer ? disse ella seccamente, ao | ver entrar Paulina. || A criada parou e disse: || - Perdão, senhora, ouvi-a mover-se. || - E dahi ? || - Antes de me deitar, vim ver si pre- | cisava de alguma coisa. || - Obrigada, disse Nichette, não quero | nada. || E voltou-se. || - Paulina sahiu. || Mas Polyte, que tinha caminhado com | precauçã até a porta, ouviu as ultimas | palavras da ramilheteira. || Passou, pois, pela porta de Paulina, | poz um dedo nos labios para lhe recom- | mendar silencio e, emquanto que ella | sahia, achou-se elle no quarto de Ni- | chette. || Nichette dizia : || - De balde me quero illudir, estou | acordada e não posso duvidar e, comtu- | do, parece-me um sonho. Ainda homtem | eu era a ramilheteira Nichette, e agora | tenho milhões em perspectiva, andarei | de carro como Antonia, e tenho mulhe- | res para me servir. || Ah ! si eu sonho não quero desper- | tar ! || Ella pronunciava estas ultimas pala- | vras, julgando fallar comsigo mesma, a | meia voz, como as pessoas distrahidas | que monologam na rua... || Um riso escarnecedor lhe respondeu. || De repente Nichette deu um grito e | ergueu-se perturbada. || Estava um homem ao pé do leito della, | um homem com uma grande faca na não | e que dizia : || - Cautella que não acordes Nichette. ||

Edição 417PONSON DU TERRAIL [espaço] 40

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXI || Ella teve medo e quis puxar pelo cor- | dão da campainha que pendia na alcova . | mas Polyte levantoa-o fora do alcance | da mão della e disse-lhe : || - Então não queres que o teu sonho | se realise? si chamas, si gritas, si alguem | entra aqui, és uma mulher morta ! || E chegou-lhe a garganta a ponta da | faca. || Nichette, pallida e com os cabellos ar-| ripiados, olhava com espanto para aquel- | le homem. || Onde o tinha ella visto já ? || Como entrou elle alli ? || Que lhe quereria ? || A si mesma dirigia ella estas pergun- | tas tacidas, quando Polyte lhe adivinhou | o pensamento. || - Vejo que não me reconheces, diss | elle. || Mas si queres viver, si queres os mi- | lhões do bohemio Munito, não compro- | mettas o teu futuro e ouve-me gentil- | mente. ||- Mas quem é o senhor ? balbuciou | ella. ||- Vou dizer-t’o minha bella. || Polyte sentou-se na extremidade do | leito, cortou com uma faca o cordão da | campainha e disse : || - Conversemos agora. || [ espaço] XXXII [espaço] || Passado o primeiro momento de espan- | to, Nichette reconheceu Polyte. || Reconheceu-o por o ter visto á porta | do Tivoli andar a volta della e rasgar- | lhe um comprimento. || Mas não reconhecia nelle então nem | agora o antigo gaiato de Paris, que tão |

poderosamente contrinuira para salvar | do cadafalso Aurora e sua irmã. || Polyte, feito janota, tinha-se meta- |morphoseado de tal sorbte, que quem o | tivesse conhecido naquella antiga epo- | cha, a começar pelo taverneiro Coclés, | e a acabar pelo corcunda Benedicto, nin- | guem o reconheceria. || E Nichette, serenando seu espanto, | disse : || - Quem é o senhor? || - Chamo-me Polyte. || E o que pretende de mim ? || - Conversar comtigo, minha pequena. || - Mas como entrou aqui ? ||- Não ha porta que resista a um ho- | Mem que esta decidido a

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matar-te, si | fizeres o menor ruido. || Como Paulina, Nichette comprehen- | deu que Polyte cumpriria a sua palavra, | em caso de necessidade. || - Mas que quer ? repetiu ella. || - Quero dizer-te que te amo. || Nichette deu um suspiro. || A ramilheteira não tinha nas veias a | menor gotta de sangue de Lucrecia. || Polyte, conservando sem pre a arma, | pegou-lhe na mão. || - Sabes que és linda de uma vez? dis- | se elle. || Nichette recuperava pouco a pouco a | presença de espírito. || - Pois não é preciso ameaçar-me com | a morte para me dizer isso, disse ella. || - Perdão, si tocasses, teriam vindo... || - Ah ! || - E poriam-me para fora da porta, o que | não me faz conta. || - Finalmente, ama-me? || E ella recuperou o atrevimento de | mulher perdida, habituada a brincar | com o amor dos homens, como um do- | mesticador de feras costuma fazer com | os animaes ferozes. || - Amo-te ha seis annos, disse friamen- | te Polyte. || Ella sorriu e disse : || - Mentes muito bem. || - Ah ! achas? ||

- Ora ! não póde amar-me ha seis an- | nos. || - Porque? || - Porque ha apenas seis mezes que | me conheces quando muito. || - Enganas-te... ||- Ha apenas seis mezes que sou rami-| lheteira á porta do Tivoli. O senhor con- | tou os mezes por annos. || - Repito-te que te amo ha seis annos. || - Que atrevimento ! || - Amo-te desde quando tu te chama-| Vaz Zoé. || Nichette tremeu convulsamente e um | grito lhe fugiu da garganta. || - Cala-te ! disse Polyte, si não queres| experimentar a faca. || E lançou-lhe um novo olhar frio e feroz, que dominou a ramilheteira tremu- |la. || Ella olhava para elle com uma espe- | cie de terror supersticioso. || - Zoé ! dizia ella, sabe que me chama- | va Zoé? || - Sei. || - Então onde me conheceu ? || - Na rua do Petit-Carreau. ||Estas palavras foram para Nichette | como um echo vivo e sonoro do passado. || Pareceu-lhe repentinamente que um | véu se rasgava no seu cerebro, e que | todas as reminiscencias da infancia se | lhe representavam com um kaleidosco-| po. || Reviu-se nos desvão que occupava na | loja da nãe Simão, depois na rua com o | cesto de roupa no braço, e considerou- | se tal qual era, chupada, miserável, ne | grã como uma maeixa, coberta de pe- | quenos farrapos, debaixo dos quaes ella | tiritava de frio todas as noites de inver- | no. || Estranha cousa ! em presença desse | homem, rapaz galante, bastante atrevi- | po ara a matar si ella tentasse resis- | tir-lhe, ella experimento, não um sem- | timento de vergonha, mas um sentimen- | to de orgulho. || Como ? ! pois nessa epocha da sua tris- |

te infancia, quando a repellian, e a con-| sideravam um montro, havia um homem| bastante previdente, talentoso e bem | avisado, para prever nella a linda rami- | lheteira, a Nichette que faria perder a | cabeça aos janotas e faria pusar os co- | rações de todos os pintalegretes ? ! || E ella olhou para Polyte com tal ex- | pressão de alegria e gratidão, que Poly- | te comprehendeu que já não precisava | da faca. || Nichette pertencia-lhe. || Essa rapariga rancorosa e má, essa | creatura sem coração, tinha um de- | feito valente – o orgulho – e foi ahi que | elle a feriu. || Nichete estava altiva que amor que | soubera inspirar a desgeitada Zoé. || Lançava-lhe grandes olhares cheios | de reconhecimento e dizia-lhe: || - Palavra ? conheceu-me quando eu | me chamava Zoé ? || - Conheci. || - Quando eu morava na rua do Petit- | Carreau ? || - Em casa da mãe Simão, a engom- | madeira, a mulher do... || - Oh ! é isso, disse Nichette. || - Eras pequena e magra então, pro- | seguiu Polyte, mas já tinhas esses gran- | des e bonitos olhos, e quando te encon- | trava com o teu certo de roupa no bra- |co, omeu coração fazia um tic-tac como | o de um moinho || A voz de Polyte retumbava nos ouvi- | dos de Nichette como musica encanta- |dora. ||E ella olhava para elle com uma te- | nacidade cheia de curiosidade inquieta. || - Mas tenho boa memoria... || - Ah ! disse Polyte. || - E Deus sabe si me fallavam bastan- | te então, quando eu sahia. E nesse tem- | po ninguem queria saber de amor. || - A guilhotina era a que então ins- | pirava mais amor. || - E parece-me que si alguem como o | senhor me tivesse seguido... ||

- Chamaval-o ? || - Chamava. || Polyte riu. || - É porque eu então não era nin- | guem. || - Ora ! || - Lembras-te das lojas da rua? || - Lembro-me um pouco. ||- Defronte da mãe Simão havia um | açougue. || - Havia o do pae Foubboueuf. || - Ao lado morava um encadernador.

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||- É verdade. ||- Um pouco mais abaixo havia uma | imprensa. || - Onde se imprimia o jornal do Pére-| Dunchem. || - Isso mesmo. Pois bem! na impren- | sa havia um pequeno gajo, alto, magro, | de compridos cabellos, que levava as | provas aos autores. || - Ah ! || E o gajo estava sempre a porta. || - Exactamente. || - E quando a pequena Zoé passava | elle sentia tremer as pernas como varas | verdes. || - E esse gajo quem era? || - Ora ! era eu ! || - Ah ! || - Queres a prova ? espera ! ... || E Polyte despiu a sua casaca a fran- | ceza e ficou em mangas de camisa ; de- | pois pegou em uma gazeta que Nichette | tinha lido para procurar dormir, e fez | um bonet que colocou na cabeça. || De repente o janota se transformou no | rapaz dos arrabaldes de Paris, no gaia- | to descarado, canalha, de sorriso atre- | vido, e de olhar cheio de deboche e as- | tucia. || E com voz aguardentada e avinhada |gritou : || - Olá, Zoé ! || Nichette estremeceu de enthusiasmo ; | estava completa a obra de seducção. ||

Edição 418PONSON DU TERRAIL [espaço] 42

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXII || Nichette tinha diante de si um homem |vindo da lama, como ella, e esse homem | amava-a, não a despressaria nunca, por- | que não valia mais do que ella. || Pegou-lhe na faca e disse: ||- Tira para lá isso, imbecil ! ||E ao mesmo tempo lançou-lhe os bra- |ços ao pescoço. || - Com mil diabos ! murmurou ella, | pensei que ninca amaria ninguem, mas | desta vez parece-me que cahi. || Nichette voltará a ser completamente | a pequena Zoé ||[espaço com 15 pontos finais]|| E ella olhava para elle com extasi e di- | zia-lhe : || -Mas emfim, como te tornaste tu ago- | ra um janota assim ? || - Cmo tu te fizeste senhora de grande | tom ! respondeu Polyte, sorrindo. || Nichette estremeceu repentinamente | Corou e empallideceu ; seus olhos baixa- | ram, pensou em Munito. || - Ah ! perdôa... disse ella... não sabia | que te encontraria. || Polyte deu uma gargalhada cynica. || - Está bom ! respondeu elle, jogo fran- | co já que elle tem milhões... || Esta apostrophe cynica não desilludiu | Nichette ; pelo contrario. ||

Zoé reappareceu, Zoé comprehendeu | que era amada por um home digno del- |la. || Déra a amizade a Anotina, por que via | nella uma natureza tão perversa como a | della; mas dava todo o seu coração a um | homem que não recuava deante dos | odiosos calculos de uma partilha, e que | se revelava cynico com um socego atre- | vido. || Ella abraçou-o de novo dizendo : ||- Creio que me perderei por ti ! ... || [ espaço] XXXIII [espaço] || Nichette contemplava Polyte, e Polyte | olhava para Nichette com a satisfação | um pouco vã do conquistador que fixa a | sua conquista. || A ramilheteira replicou: || - Agora que és o meu namorado, vaes | contar-me tudo, não é assim ? || - Ora essa ! que queres tu que eu te | diga ? || Ella começou a rir e disse: || - Então achas naturam que um homem | entre de noite em casa de uma mulher, | e que, com a faca na mão, lhe diga : Ama- | me si não mato-te ?! || - Bem vês que assim foi. || - É certo, mas ninguem me disse ain- | da como tu entraste. || - Está bem ! vou dizer-tó minha cu- | riosa. || E Polyte collou os labios aos hombros | nus da rapariga. || - Vejamos, disse Nichette, estou prom- | ta a ouvil-o, meu senhor e amo. || - Eu conheço Antonia. || - Esta bem. || - Ella faz-me até alguns favores. ||

Nichette despediu um olhar inflamma- | do e volveu: ||- Mas olha que eu sou muito ciumen- |ta. Polyte riu. || - Descança, não é isso o que eu quero | diser ! || - Vamos depressa. || - Antonia acha-me intelligente, soffri- | velmente canalha e corrupto, e então eu | não podia deixar de lhe agradar. ||- És um grande homem ! disse Nichette| com enthusiasmo. || Polyte continuou : || - Travei conhecimento com ella de | um modo muito engraçado. || - Que me

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dizes ? || - Uma noite introduzi-me em casa | della e quis assassinal-a. || - Para que ? ||- Ora ! para roubar. || Nichette nem se moveu e disse: ||- És um bello companheiro. || - Então fizemos um tratado. || - Ah ! || - Não a matei, não a roubei, e desde | então ella dá-me uma pensão. || - E aposto em como te ama ! || - Quer dizer, ella chama-me filho e | acha-me encantador. || - Decididamente ella ama a mocidade, | disse Nichette gracejando. || E de novo abraçou Polyte. || - Então sabes como eu estou aqui? dis- | se ella. || - Quase que sei. || - Antonia adopta-me como filha. || - E casar-nos hemos por um destes | dias. ||

- Quando eu depennar o velho bohe- |mio. || E a cynica rapariga começou a rir. || - Mas não queres finalmente dizer-me | como entraste aqui ? || - É bem simples. Sou amigo da casa | e amigo do cidadão X... || - Que é o amo agora. || - Tem suas horas, que nem todas são | boas. ||- Porque ? || - A prova é que Antonia despediu-o | esta noite. || - Ah sim ! bem me lembro. || - E eu encontrei-o furioso e queren- | do absolutamente saber o que se passava | aqui. || - Pobre homem ! || - Deu-me, portanto uma chave que | abre uma pequena porta do jardim, e | por onde eu me introduzi aqui. || - E não foste visto ? ||- Tenho uma confidente. || Nichette ergueu a fronte. || - A tua criada de quarto. Fiz lhe dois | dedos de namoro. || - Não quero isso, disse Nichette. || - Ora ! é preciso que ella esteja ás nossas | ordens, e que se prenda também com os | nossos interesses. || - Eu lhe pagarei, já tenho ouro em | abundancia, disse friamente Nichette. || - Não, disse Polyte, não deves metter- | te nisso. || - Porque ? || - Porque eu não quero, volveu elle, | despedindo friamente um olhar domina- | dor. || Nichette curvou a cabeça. ||

Edição 419PONSON DU TERRAIL [espaço] 43

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXIII || Tinha encontrado um senhor. || - Ouve-me, replicou elle ; amas-me não | é assim ? ||- A ponto de enlouquecer. || - Então escolhe : ou não me ver mais, | ou obedecer-me cegamente. || - Sou tua escrava. || - Quero que Antonia ignore o que se | passa entre nós. || - Por que ? ||- Porque Antonia já tem ciumes de ti | e nutre certos projectos relativamente ao | bohemio. || - Antonia não saberá nada. || - Juras-m’o ?|| - Palavra de Zoé. || - Amanha voltarei aqui de dia. || - Bem. || - Deves ser impassivel. Si te trahes | por um gesto, por um grito, por uma | vermelhidão súbita que te suba ao ros- | to, tudo acaba entre nós e nunca mais | me tornarás a vêr... || - An ! não receieis que me traiha; amo- | te muito para tal succeder. || - Mas talvez nos traiha essa rapariga | que está agora na confidencia de nossos | amores. || - Respondo por ella, disse Polyte. || Dirigiram-se depois ternos adeuses. || - Até amanhã. || - Até amanhã. || - Virás como esta noite ? dizia ella. || - Prometto-te. || - Accredito em ti. || E elle caminhou na ponta dos pés, de- | sandou o fecho da porta e achou-se no | quarto da criada Paulina. || Esta estava pallida e tremula. ||

- Ouviste pelo buraco da fechadura ? | lhe disse Polyte. || - Talvez. || - Então asseguraste-te? ||- É um monstro ! || - Agora : soiu apenas um homem e um | homem que póde amar rigorosamente | duas mulheres. || - Va la uma pessoa sacrificar-se por | alguem, disse ela || Elle quis dar-lhe novo beijo mas ella | repelliu o dizendo : || - Causa-me horror. || - Ora, disse elle com seu cynismo ha- | bitual, eu acomodava tudo si quizese. || - Ora essa ! || - Entretanto vem guiar-me. || - Mas... ||- Vamos, disse Polyte, não é prudente | arriscar um jogo perigoso commingo mi- | nha bella. || E principiou a brincar com a faca. || Depois do que ouvira, Paulina sabia | que esse homem era capas até de a ma- | tar. || Suspirou, vieram-lhe as lagrimas aos | olhos e ella accrescentou : || - Venha dahi vou leval-o a porta do | jardim. || -

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Vamos lá ! leva a capa e a touca | que faz bastante frio. || - O senhor é sempre muito bom para | mim realmente ! disse ella com amargu- | ra. || Contudo obedeceu, e alguns minutos | depois atravessavam ambos silenciosa- | mente o jardim. || Aberta a porta Polyte tomou o braço | da criada. || - Agora vem commigo, disse elle. || - Comsigo? ||- Certamente. || - Aonde quer levar-me ? || - Á minha casa. || Paulina estremeceu. || - Ora essa ! disse ella, sempre é muito | atrevido. || - Sempre me dizem isso. ||

- Esta doido... || - Si tu me amas !... || E, á força, arrastou-a para a rua, fe- | chou a porta e metteu a chave ao bolso. || A criada não era de excessiva altivez, | naquele momento tinha certas idéas | eclectivas. || - Ora ! pensou ella, também não tenho | muito que perder ! || E disse em voz alta : ||- Mas que dirá a senhora Antonia, si | não me vir amanhã de manhã ? ! || - Tu entras ao amanhecer. || - Ah a tal não me atreverei eu... || - Garota, disse Polyte, piscando o | olhou, já não ha de ser a primeira vez | que tu ficas fóra de de casa. || Paulina estremeceu. || - Oh ! ainda serão capazes de dizer | mais, retrucou ella. || - Eu sei tudo, disse friamente Polyte, | quando me lembrei de sahir pela porta | principal do palacete, é porque sabia | que tu tinhas uma chave. || Paulina estava confusa. || - Vamos ! vamos ! dizia Polyte, si eu | sei tudo... ||E continuou a arrastal-a || Paulina não sabia onde morava o seu | roubador. || Deixou-se guiar com os olhos fecha- | dos e Polyte levou-a á casa de Bibi. || Bibi e o bohemio ainda estavam um | defronte do outro e bebiam tranquilla- | mente uma garrafa de tokai que lhes ti- |nha levado o rapaz do hotel. || Paulina, que julgava ir á casa de Po- | lyte deu um grito de espanto, quando | ao abrir-se a porta, se assou deante des- | sés dois homens. Ella nunta tinha visto | Bibi ; mas reconheceu o bohemio. || Polyte empurrou-a para deante, di- | zendo. || - Entra, minha bella amiga, são uns | parentes meus da provincia. || E accrescentou, dirigindo se a Bibi : || - Papá, aqui esta o passarinho gala- | te que devemos pôr na gaiola.||

Paulina, estupefacta, voltou-se. || - Rapariga, disse friamente Polyte, |já sabes agora as cousas que eu tenho | interesse em não divulgar. Portanto | acharás rasoavel que nós nos opponha- | mos, estes senhores e eu, a que voltes | para a casa de Antonia. ||Paulina olhava para os tres com um | olhar estupido.|| - Mas descança , minha bella, prose- | guiu Polyte, seremos gentis para comti- |go, serás generosamente paga do teu cap- | tiveiro provisório ; não será, pae Bibi ? || - Com certeza, disse o homem da po- | licia. || Polyte empurrou a porta e disse ain- | da : || - Vou fazer estes senhores scientes |da situação. || E contou como por intervenção de | Paulina, podera penetrar no quarto de | Nichette. || - És rapaz de intelligencia, disse Bi- | bi, e fizeste bem em nos trazeres esta | rapariga. || - É dessa opinião papá ? || - As criadas têm lingua compraida e | é util que Antonia nunca saiba o que | se passou. || - Mas, balbuciou finalmente Paulina | toda tremula, que querem fazer de mim ? || - Mal nenhum ; guardar-te aqui. || - Prisioneira ! || - Dez ou quinze dias somente. || - Si é para que eu me cale, é inútil | Juro que não direi nada. || - Bem sabemos. || - - E, si não me deixam ir, perderei o | meu logar. || - Quanto ganhas em casa de Antonia ? | perguntou o bohemio. || - Seiscentas libras por anno. || - Aqui tens mil. || E Munito tirou do bolso um rolo de | ouro que entregou a criada. || - Ah ! si paga tão bem, é impossivel | recusar-lhe nada. ||

E pegou no rolo de ouro. || -Si queres ficar ao meu serviço, dis- | se Bibi, dar-te-hei cem libras por mez. || Paulina começava a ver que a sua | aventura amorosa tinha um bello desen- | lace. || - Com effeito ! disse ella, eu não ti- | nha tanto, como creada da corcunda. || - É nossa, disse Polyte. || E com um olhar consultou Bibi e o | rei dos bohemios. || [espaço] XXXIV [espaço] || Bibi era um macaco velho. || Para elle o coração humano não ti- | nha mysterios. || Depois de um minuto de reflexão, dis- | se a Polyte e a Munito : || - Esta rapariga serve-nos melhor, fi- | cando ao pé de Antonia. || Paulina tinha a lingua bem comprida. || - Servem-se sempre bem as pessoas | que pagam como os senhores ; mas si | desconfiam de mim, retenham-me aqui. | Uma vez que me duplicam salário, o que me dão o que eu ganho ao

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menos. || - Duplicam-t’o e triplicam-t’o até, dis- | se Bibi. || - Isso melhor, disse ella. || - Mas has de ficar ás nossas ordens. || - Indubitavelmente, meus bons senho- | res. || - E lembra-te, accrescentou Polyte, | que eu jogo a faca quando é preciso. || - Isso é uma ameaça inútil, observou | Bibi em tom paternal. || - Não é tão inutil como isso, disse Po- | lyte. || - Ora ! || - Esta rapariga ama-me. || Paulina deu uma gargalhada tão fran- | ca e zombeteira, que fez desapontar Po- | lyte. ||- Ora essa ! disse ella, amei-o Duran- | te um bom quarto de hora, mas isso aca- | bou. ||

Edição 420 PONSON DU TERRAIL [espaço] 43 [44]

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXIV || E estendeu-lhe a mão. || - Ficas ás nossas ordens ? ||- É boa ! primeiramente por causa | do dinheiro. || - E depois ? || - Depois por amor da arte. Porque, | bem vêm que essa mulher corcunda, per- | seguiu a criada, trata a gente como um | cão, e aborreço-a enormemente. || - Odeias Anotnia ? || - Acho-a grutesca. || - Sim senhor ! disse Bibi, e quererias | vêl-a morrer miseravelmente ? || - Queria, disse ella com um tom de |fraqueza, de que ninguem poderia duv- | dar. || Então Bibi continuou, derigindo-se a | Polyte : || - Levas a rapariga a casa de Antonia. || - Bem ! disse Polyte. || - Ella ser-te ha útil., quando quizeres | entrar no palacete, e entrarás bastantes | vezes, creio eu. || - As que forem necessarias. De resto | Zoé agrada-me, accrescentou Polyte. || - Cautella ! disse Bibi, encrespando as | sobrancelhas. || - Ella agrademe, mas Aurora é quem | amo, disse o peralvilho em ar de conclu-| são. || Depois voltando-se para Paulina : || - Ora eis que te dão a liberdade, em | vez de te metterem na gaiola. Vens? || - Estou prompta a seguil-o, disse a | rapariga. || - E nós, disse Bibi, olhando para Mu- | nito, vamos continuar a conversar. || Polyte e Paulina partiram. Chegados |

á rua o peralvilho agarrou no braço da | criada e disse-lhe: || - Aposto como tu me amas. || - Engana-se, respondeu ella, com um | ar escarnecedor. || - Mas... || - Si eu quizesse, tel-o-hia seguido. || - Ha pouco perdoaste-me já o sei... | Mas eu enganei-te duas vezes. || - E a segunda agradou-me extrema- | mente para que eu o torne a amar. || E Paulina tinha um pequeno ar tão | impertinente que embaraçava um pouco | o peralvilho. || - Quer agora que eu lhe diga tudo ? vol- | véu ella. || - Diz. || - Ha uma hora acreditava eu que | amasse a ramilheteira. || - Ah ! || - Todas as mulheres têm ciumes, até | por causa do homem por quem nutrem | um capricho vulgar. || - É um facto. || - Mas agora como sei que o senhor re- | presenta um papel... || - Como sabes tu isso? || - Ora ! não é difficil adivinhal-o. Esse | bohemio que estava ebrio em casa de An- | tonia, que tinha todo o seu juizo cá fora | e que espalha o outro ás mancheias; esse | outro velho que falla com autoridade de | patrão... || - Bem vê, continuou Paulina, que eu | já não sou criança e que sei o que as COI- | sãs querem dizer. || - Ah ! || - Por conseguinte aconselho o a que | não me supponha uma rapariga credula | o facil de dobrar, accrescentou Paulina. || E não imagine principalmente que eu | lhe guardo o menor rancor. || A criada fallava com uma firmeza que | feria Polyte no seu orgulho de homem | fez ; mas por outro lado serenava-o TAM- | bem mais. || - Então achas que representei um pa- | pel com a ramilheteira ? ||

- Tenho certeza disso. || - E adivinhas com que fim? || - Não; mas nada sabel-o hei. || - Oh ! oh ! || - Ora! deve saber que presentemente | não é spo o dinheiro que me prende. || - Então que mais ? || - A curiosidade. ||E Paulina concluiu sorrindo : || - São três os que meditam um não sei | que contra essa macaca de Antonia. Eu | entrei no jogo, sem o saber, mas hei de |

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comprehendel-o. || - O nosso jogo? || - Sim, porque tenho tudo a ganhar e | nada a perder. || Em quanto a criada fallava com esta | firmeza e intelligencia zombeteira, Po- | lyte pensava: || - Antonia é decididamente menos for- | te do que eu suppunha. Foi procurar bem | longe o que tinha quase á mão. Paulina | vale bem Zoné. || Chegaram á porta do jardim. || Polyte quis dar um beijo em Paulina, | mas ella fugiu-lhe rindo : || - Ah ! agora não vale a pena, disse | ella. Somos dois alliados. Esta dito tudo. | Ou antes os seus amigos compraram-me | e eu executo as suas ordens. || - Bem ! disse Polyte, hás de abrir-me a porta amanhã a noite. || - A que horas ? || - Ainda não sei. || - Mas eu não posso estar toda a noite a pé. || - É verdade, mas ouve. || - Diga... || -Desde as onze ás duas da madruga- |da si ouvires cantar a segunda estro- | phe da Marselhesa, serei eu... || - Bem, disse Paulina : e entrou. || Polyte pensou no cidadão X... || - Quando uma pessoa considera que | elle ainda nem espera no café Foy, disse | elle. || E como estavam fechadas as grades do jardim, elle voltou ao Palays-Royal e su- |

biu a escada principal desse café celebre | que vira successivamente Robespierre, | Dantson e Camillo Desmolins. || Effectivamente o cidadão X... ainda | esperava Polyte. || Era um homem sensual por excellen- |cia esse grande orador, e o systema ner- | voso não predominava nunca inteira- | mente nelle. || Tinha diante delle uma perdiz, ria, | uma garrafa de vinho Médoc, e, apesar | de ter sido despedido por Antonia, ia | fazer desapparecer aquillo. || Quando viu entrar Polyte experimen- | tou uma viva satifação. || Polyte quando entrou tinha um ar | mysterioso e satisfeito. Pelo caminho ti- | nha elle imaginado uma pequena fabula | que o contentara muto. || - Então, disse o grande orador. || - Nada ! disse Polyte, fez mal em ser ciumento. || - Que me dizes ? || = [E bem inoffensiva a sua aventora, | juro-lh’o. || - Dizendo isto, Polyte, sentou-se á me- | sa sem ceremonia. || - Queres cear ? disse o cidadão X... || - Com todo o gosto, respondeu Poly- | te, morro de fome e de sêde. || - Tomou o costado de uma perdiz, e o |ci[da]dão X... deitou-lhe vinho. || Com a bocca quase cheia, Polyte con- | tinuou: || - Acabo de estar duas noras no gabi- | nete de toillete que me indicou. || - E que viste ? || - Vi tudo. || - Mas o que ? || - Vi que ceavam juntos o hospede | mysterioso, Antonia e a outra mulher | bonita. || - Que outra mulher bonita ? || - É a ramilheteira do Tivoli. || - Ah ! e o hospede mysterioso? || - É o bohemio de Vienna. || - O depositario da fortuna de Anto- | nia ? ||

- Justamente. || - É exquisito. || - Também a mim me parece exquisi- | to ; mas expliquei a cousa, ouvindo a | conversa. || - Vejamos. || - Sabem que o bohemio poz as suas dif- | ficuldades em pagar os cem mil francos | do mez passado? || - Mas... disse o cidadão X... tu sabes | isso ? || - Ora ! então não ouvi a conversa ?! || - Ah ! continua. || - Elle veio a Paris para se explicar | com Antonia. || - Muito bem. || - Encontraram-se a noite nus jardins | do Tivoli. || - E então ? || - Então o bohemio, que segundo pa- | rece é sensível ao bello sexo, viu que | era do seu gosto a ramilheteira e Anto- | nia comvidou-a para cear com elle. || - E que succedeu depois ? || - Succedeu que o bohemio perdeu a | cabeça e o coraçao. || - Bem ! || - E que esta perdido de amores pela | ramilheteira. || - Mas pagou os cem mil francos ? per- | guntou o cidadão X... com anciedade. || - Vi-lh’os pôr na mesa em notas de | banco. || - E Antonia recebeu-os? || - Logo e com todo o gosto. || Os olhos do cidadão X... brilharam de | prazer. || - Depois ? || - Depois, julgue que era inutiu o res- | to. Vim aqui trazer a chave. || - Ninguem te viu? || - Ninguem. || O cidadão X... pediu segunda garrafa | do velho Médoc. || Os olhos brilhavam-lhe e elle parecia | o homem mais feliz do mundo. ||

Edição 421

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PONSON DU TERRAIL [espaço] 45

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXIV || No fundo do seu coração dizia elle : || - Como o bohemio esta apaixonado | pela ramilheteira pouco me importa ! o | essencial é que elle pagasse, porque real- | mente já tinha falta de dinheiro. || - Cidadão, disse Polyte, permitte-me um conselho ? || - Sem duvida. Falla. || - Si amanhã vir Antonia, mostre-lhe | boa cara. || - Prometto t’-o || - E não lhe peça explicação alguma. || - Evitarei isso, porque já não quero | saber mais nada. || Polyte acabou de cear com o cidadão | X... || Davam nos telhados os primeiros cla- | rões da madrugada, quando elles sahi-| ram do café Foy. || Separaram-se á porta. || O cidadão X... seguiu para a rua de | Santo Honorato. || Polyte disse de si para si : || - Vamos ver o que faz Munito e o tio | Bibi. || E dirigiu-se para a casa deste ultimo. || Com grande espanto porém, soube que | Bibi e o bohemio acabavam de sahir. || - Onde teriam elles ido ? ... ||[espaço] XXXV [espaço] || Ontem teriam, pois, ido Bibi e Munito ? || Para o saber é preciso reportarmo-nos | ao momento em que Polyte os tinha dei- | xado levando Paulina, a criada grave | de Antonia. || Uma vez sós, Bibi e Munito pozeram-|se a conversar. || - De fórma que, paesinho, estas agora ? |

seguro de que a cidadã Antonia roubou | o dinheiro que te confiou? || - Perfeitamente seguro. || - Então porque não o restitues ? || - Porque quero essa prova material | para apoiar a minha convicção. || - É muito necessária ? || - Muito necessária, como vaes vêr, | respondeu o bohemio. || - Porque ? || - É verdade que sou rei da minha | tribu. || - Bem : e dahi? || - Tenho um conselho fiscal , como se | diz em negocios, isto é , não sou o único | possuidor da nossa fortuna commum. ||- Ah ! || - Tenho associados a quem devo con- | tas, aos quaes é preciso que eu prove | que estamos de posse de uma fortuna rou- | bada. ||- Isso agora é differente, disse Bibi| pensativo. || - Acredito, como tu, proseguiu Muni- | to, que o testamento da primceza Helena | é falso. Tu prometeste-me dar com o fal- | sificador. || - Para isso vim a Paris. || - Pois bem ! procuremol-o. || - Ah, sim ; mas primeiro é preciso que |eu te informe certos negócios de fa- | milia que dizem respeito aos meus clien-| tes, paesinho. || - Falla, que eu ouço. || - Como sabes, Antonia era uma cria- |da. || - Depois de ter sido criada grave da | princeza Helena, foi friada da condessa | de Mazures, não é isso ? || - A mãe do conde Luciano, o marido | de Joanna. || - Muito bem. || - A mãe é que possuía o famoso cofre. || - Ah ! ah ! || - Porque preciso confessar-l’o, paesi- | nho, prosseguiu Bibi, essa fortuna, pas- | sou de mãos em mãos, ou ants de la- | drões em ladrões. ||

A condessa de Maruzes foi assassina- | da. Sabes por quem ? || - Por Antonia ? || - Não ; por um homem que promet- | teu a Antonia fugir com ella para a Ita- | lia e desposal-a. Ora Antonia disse-lhe: | O senhor tem um grande habito de letra | da princeza Helena e tem em seu poder | muitos titulos della. É preciso fazer um | testamento falso, em nome da princeza. || - E esse homem fel-o? || -Fez. || - Como sabes tu isso ? ||- Não posso dizer-t’o ainda. Mas eis | o que succedeu. Quando Antonia tomou | posse do testamento, apoderou-se do co- |fre e fugio, em quanto esse homem as- | sassinou a condessa. || - Ora disso é que eu quero ter a pro- | va. || - Tel-a-has si eu encontrar esse ho- |mem. ||- Como sabes, replicou Munito, logo | que eu possa demostrar áquelles a quem chamo ministros, a nullidade do testa- | mento e a culpabilidade de Antonia, de | modo nenhum nos limitaremos a rest- | tituir o dinheiro. ||- Então que faremos além disso ? ||- Condemnaremos Antonia. || - Em que culpa ? || - Oh ! pódes estar descançado, que o | castigo há de ser terrivel. || Os olhos de Munito brilharam de re- | pente e Bibi tremeu até a medulla. || - Como sabes, prossegiu o bohemio, | nós gosamos na Allemanha o nome de | honrados e probos. O imperador se de- | dignou confiar-me uma

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missão, e jul- |ga-nos muito boas pessoas. E Antonia é | uma mulher da nossa tribu, que com- | prometteu a nossa probidade. ||A justiça dos bohemios será horrivel; | os supplicios que tu podes imaginar em | cousa nenhuma se parecerão com o que | lhe destino. || Vamos então procurar o homem de | quem fallaste... ||

- Espera la, replicou Bibi ; quando me | ausentei de Paris, ha cousa de dois an- | nos, esse sujeito ficou muto doente. || - Talvez que morresse. || - Pesou que não ; mas talvez que es- | teja doido. || - Então esta tudo acabado ? || - Não, porque os tolos também se cu- |ram, e póde muito bem ser que elle te- | nha recuperado o juizo. || - Onde o deixaste tu ficar ? ||- No hospício. Anda commigo. ||Bibi levantou-se e achegou-se á janel- | la. || O dia começava a romper. || - Vamos lá, papá, disse elle. || Envergaram depois os seus carreks, | trajo então da moda, e que estava desti- | nado a ser o precursor do sobretudo e o | herdeiro do capote repudiado por causa | da republica. || Pouco depois desciam ambos as esca- | das, e entravam em um trem de praça. || - Para o Hotel-Dieu ! disse Bibi ao co- | cheiro. || O Hotel-Dieu havia sido chrismado | pela republica, á imitação dos outros mo-| numentos, bem como as ruas, mas o po- |vo mostrava-se rebelde á nova denomi- | nação, e desta maneira o Hospital Na- | cional continuava a chamar-se Hotel- | Dieu. || A carruagem chegou ao Sena, atra- | vessou a Ponte Nova, entrou na cite e | só parou na praça Parvis. || O Hotel-Dieu está toda a noite aberto ; | desde o amanhecer que o pessoal do ser- | viço está a pé, assim o porteiro a quem | Bibi se dirigiu, lhe mostrou logo os re- | gistros. || No fim de um quarto de hora de in- | vestigação, soltou um grito de alegria. || Havia encontrado a seguinte nota : ||<< O cidadão Paulo, director da policia | secreta, deu entrada em o 1º Praireals >> || Na margem não havia nenhuma de- | claração de obito nem de sahida. ||

Por conseguinte o cidadão Paulo es- | tava vivo, e o que mais era, dentro do |hospital. || Bibi pediu licença para fallar ao me- | dico de serviço. || Um enfermeiro que o levara ao por- | teiro, disse, depois de lêr a nota do re- | gistro. || - O cidadão Paulo ; bem me lembrou. ||- Como ? || - Mas elle já não esta cá. || - Como póde ser isso ? perguntou Bibi, | si o registro não tem nenhuma nota de | sahida. || - Procure no registro do anno passa- | do, e la achará. || E o enfermeiro procurou-a de boa von- | tade, e mostrou para Bibi estas palavras: ||<< Hoje, 4 Vendimiario, o [c]idadão Paulo, | ex-chefe de policia, e doido incurável, | saiu d’este hospicio. Foi reclamado por | um mancebo chamado Benedicto que pa- | recia parente d’elle.>> ||- Benedicto ! exclamou Bibi. || - Quem é esse Benedicto? perguntou | Munito. || Bibi não respondeu e voltando-se pa- | ra o servente, disse : || - Esse sujeito de certo que havia de | deixar a morada ? || -De certo, disse o servente. || - Pode dar-m’a ? || - Parece-me que a encontrarei n’um | livro especial que ha em todas as enfer-| marias. || O servente deixou Bibi e Munito na | sala de espera e perdeu-se no interior | do hospicio. || Ao cabo de um quarto de hora estava | de volta. || - Benedicto, disse elle, declarou que | morava em Passy, que era calafate, e | que habitava a casa numero 17 sobre o caes. || - Muito agradecido. || Em seguida entrou de novo na carrua- | gem|com Munito. ||

Edição 422 PONSON DU TERRAIL [espaço] 46

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXV || Para podermos explicar como Bene- |dicto, que não era outro sinão o corcun- | da Benedicto, o heroe dos primeiros ca- | pitulos da nossa historia, reclamou o ci- | dadão Paulo,

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é preciso que nos recorde- | mos de que o pobre rapaz havia sahido | de Paris com Daboberto e a condessa | Aurora. Haviam-n’o levado para a Al- | lemanha. ||||Havia um anno que Benedicto se jul- | gava feliz, passando o tempo, ora com o | general, ora com Juanna e o conde Lu- | ciano de Mazures. || [mancha] as unicas pessoas a quem ha- | ia dedicado a vida e amado ! ||Mas em um bello dia, Benedicto açor- | dou e sentiu-se presa dessa doença ex- | ravagante, dessa nostalgia tão com- | cum que se chama saudade do logar | onde nascemos. || Emfim, tinha saudades de sua flores- | ta, da sua querida floresta de Orleans, | e sonhara com a esperança de ir lá aca- | bar os dias de vida, presentemente que | jaó não se guilhotinavam por da cá aquel- | la palha. || Dagoberto, que acabava de ser nomea- | do chefe da brigada do exercito do Rhe- | no, recebeu a visita de Benedicto em | certo dia. || Benedicto continuava a gaguejar, e | Dagoberto achava isso muito natural || - Venho dizer-te adeus, disse Bene- | dicto. || - Vaes-te embora ? || - Vou. ||

- Voltas para Vienna, para casa da | condessa ? || - Não, disse Benedicto; a condessa | tem agora tanta precisão do pobre Be- | nedicto, como tu, ou Aurora. || - Então para onde é que vaes ? || - Vou para França. || - Porque ? || - Porque me aborreço neste paiz, on- | de não entendo nem palavra do que se | diz. || - Esta bom ! disse Dagoberto, sorrin- | do. || - Demais tenho vontade de tornar a | ver a nossa floresta. || - Ah ! || - E de vêr o que serta do convento da | Corte de Deus. || - E da minha casa, disse Dagoberto, | suspirando. O que será feito della !... || E o antigo ferreiro enxugou uma la- |grima. || Benedicto continuou : || - Pensas que não te digo adeus para | sempre ? || - Ora ? respondeu Dagoberto, tenho a | certeza, que daqui a tres mezes, já cá | estarás de novo. || - Pode muito bem ser, disse Benedic- | to com ar pensativo. || - E que vaes tu la fazer ? Não temos | la nem parentes nem amigos. || - Quem sabe ? disse Benedicto. || - Oh ! pódes ter a certeza de que | aquelles a quem amávamos já morre- | ram. || E Dagoberto poz-se a pensar no pobre | abbade mitrado da Côrte de Deus, nesse | nobre e santo velhinho, que se chama-| va D. Jeronymo, e a quem os revolucio- | narios vieram um dia buscar, a fim de o | levarem para Orleans. || O nome do velho sacerdote veio-lhe | do coração aos labios ; Benedicto ou- | viu-o. ||- Pensas em D. Jeronymo ? perguntou | elle. || - Penso. ||

- Jullgas que elle morresse ? || - Quase não tenho nenhuma duvida a | esse respeito. Aquillo foi guilhotinado | com a fornada de padres de Fevereiro | de 93. || - Pois olha que não penso assim. || - Porque ? || - Poque creio que D. Jeronymo está | vivo. || Dagoberto abanou a cabeça. || - E si eu fôr a nossa terra, hei de lá | ouvir fallar delle. || Dagoberto deu pouca attenção ás pal- | lavras de Benedicto. || O que era certo era que Benedicto ti- | nha saudades dos tanques da Côrte de | Deus, das faias e das matas, da floresta, | e de saltar de novo, como outr’ora, por | cima dos montes e arbustos, tão bem ou | melhor que um cabrito. || - Pois vae, disse Dagoberto. || - Voltarás quando te passarem as sal- | dades. || E deu-lhe um punhado de luizes. || Para Benedicto era quantia sufficiente | para fazer uma viagem á roda do mum- | do. || Mas Benedicto era reflectivo, econo-| mico, quase avarento, como todos os la- | vradores. || Foi a pé, descançando no ar libre de | dia, e de noite nos palheiros das estala- | gens ; comia queijo e pão, e bebia a | água das fontes. || O resultado foi cahir doente, sem for- | cãs para continuar a viagem, quando | chegou a Paris. || O estalajadeiro, onde se foi hospedar, | como o não suppunha possuidor de som- | ma tão redonda, teve medo que o fre- | guez lhe morresse em casa, e mandou-o | levar para o Hotel-Dieu. || O acaso fez com que a cama em que o | deitaram fosse visinha da do cidadão | Paulo, o doido sem cura. || Apenas Benedicto viu o seu collega no | soffrimento soltou um grito. || Reconhecera no cidadão Paulo, o ca- |

valheiro de Mazures, o pae da condessa | Aurora. ||[espaço] XXXVI [espaço] || Como Benedicto gritasse de sorpresa, | chamou a attenção dos serventes e en- | fermeiros. Mas o cidadão Paulo não ha- | via dado conta delle. || Como fizessem a Benedicto algumas |

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perguntas respondeu : || - Conheço este doente. || - Conhece ? || - Conheço, é da minha terra. || Um dos serventes abanou a cabeça. || - Olha que se engana. || As lições que Benedicto havia apren- |dido desde que deixara a sua querida | floresta, haviam-n’o tornado prudente | por isso não insistiu. || - Então é porque estou enganado. || O servente ajuntou : || - Este é o cidadão Paulo. || - Não é o nome da pessoa que eu sup- | punha, respondeu Benedicto. || - Foi chefe de policia de segurança no | tempo do fallecido Robespierre. || - Ah ! então bem dizia o senhor que | eu estava enganado. ||- Ficou doido subitamente sem se sa- | ber porque. continuou o servente. || - Ah ! ele é doido? || - Doido furioso. A manian delle é di- | zer-se aristocrata, e que lhe guilhotina- | ram a filha. || - Ora essa ! disse ainda Benedicto que | mal podia soffrer a commoção. || - Mas, continuou o servente, si elle | tivessi sido aristocrata, não teria atrai- | do os collegas com tanto zelo. Está ahi um doente que era policia, e que | serviu ás ordens delle. || E esse diza que o cidação Paulo era in- | flexivem contra os nobres, e que tinha | por costume prender cincoenta e tantos | por semana. || - Ah ! elle diz isso ? obtemperou ainda | Benedicto. || - Agora como esta loto, continuou o | servente, affirma que é nobre que tem |

grandes títulos, mas que não os quer de- | clara. || - Pois queira desculpar-me, disse Be- |nedicto, fui enganado pelas apparencias. || E fingiu não se tornar a occupar do | cidadão Paulo. || Passados três ou quatro dias o corcun- | da restabeleceu-se pouco a pouco. || - Não me resta duvida, meditava Be- | nedicto nas suas longas noites de insom-| nia ! o meu companheiro de cama não é |outro sinão o cavalheiro de Mazures || Demais, aquella convicção não lhe era | contrariada pela informação do serven- | te. Benedicto conhecia bem como se ha- | via de portar para com o cavalheiro. || Sabia perfeitamente que elle era um | triste fidalgo, e que depois de desappa- | recer da sua terra natal, havia sido ca- | paz de mudar de nome, e ter acceitado o | cargo de chefe de policia, com a única | mira de salvar a propria pelle. || Alem disso, Bibi nunca lhe havia dito | nada de confidencial a respeito do cida- | dão Paulo. || - Por isso Benedicto dizia de si para | si:|| - Quem me dera ter a certeza de que | era elle. Como hei de certificar-me ? || O corcunda era intelligente como to- | dos os corcundas e sobre tudo não lhe | faltava imaginação. || Cerna noite, ouviu o tolo mecher-se e | remecher-se na cama, levantou-se deva- |garinho, collou-lhe os labios a um dos | ouvidos e murmurou: || - Aurora ! || O tolo soltou um grito e sentou-se d’um | pulo na cama. Aquelle grito fez appare- | cer o guarda da vigia. || Mas Benedicto já se tinha tornado a me-| ter na cama, e fingiu dormir. || Assim Benedicto logrou saber o que | desejava. || Então pensou o corcunda : || - Afinal de contas, este é o pae da me- | nina Aurora, e eu não consinto que mor- |ra em um hospital. ||

Edição 423 PONSON DU TERRAIL [espaço] 47

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXVI || A menina Aurora pensa que elle mor- | réu ; no entanto sempre é seu pae... ||E Benedicto desde aquelle momento | tomou uma resolução. || Dois dias depois, podia abandonar o | hospital. || Poz-se a caminho, demorou-se oito| dias, e no nono pediu licença para fal- | ar ao director. || - Cidadão, disse elle, não me enganei | quando ele me figurou reconhecer o ci-| dadão Paulo. || Elle não se chama assim. || Chama-se Benedicto Nicolau, e é ir- | mão de minha mãe. || Quando se proclamou a republica |abandonou os seus lares, e não sabíamos | si era vivo ou morto, quando quai o | achei. Agora velho reclamal-o. || - Como ! reclamal-o ? || - Sim, senhor. Sou caisfate, tenho | meios de subsistência, e prometto cuidar | bem do infeliz. || Os hospicios sempre folgam quando | se vê livre |de um doente, principal- |

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mente quando elles não têm com que pa- | gar. || Benedicto provou, pois fizeram uma | pequena investigação, que tinha algu- |mas economias, que ganhava três fran- | cós por dia e occupava uma casa sauda- | vel sufficiente para duas pessoas. || A licença não podia, pois deixar de | ser concedida, e o cidadão Paulo foi le- | vado para fóra do hospicio, sem fazer | resistência. || A sua loucura era tranquilla, qual- | quer creança lhe impunha a sua vonta- |de. ||

Benedicto pensava comsigo: || -O pobre do velho não póde andar | muito, e por isso hei de cuidar delle até | o resto. || Por ventura não é elle o pae de Auro- | ra ? || Algumas vezes pronunciava aquelle | nome diante do velho. || Nesse momento o louco tremia, solta- | va um grito, escondia o rosto com as | mãos e punha-se a chorar. || Outras vezes punha-se a olhar para | Benedicto. || E então o corcunda repetia : ||- Si tivesse a certeza de que elle tor- | naria a ser malvado e tratante, bem sei o | que havia de fazer. || Mas o pensamento de Benedicto não | chegava a formular-se inteiramente. ||[espaço com 15 pontos finais]||Havia já dez ou doze mezes que Bene- | dicto em companhia do louco, gozava de | uma vida desprecavida, quando Bibi e |Munito se apresentaram no Hotel-Dieu, | e souberam que o cidadão Paulo havia | sido reclamado por um corcunda cha- | mado Benedicto. || Bibi correu logo para Passy. || Quando chegaram, o sol ia alto, e por | isso Bibi não foi bater á porta indicada. || Pois si Benedicto trabalhava no posto, | era lá onde se podia encontrar. || Bibi não se enganou. || Descobriu logo ao longe uma barcaça | pontuda, amarrada no caes, e que trans- | portava para terra, com auxilio de al- | gumas carretas, certo carregamento de | nulha. || O primeiro trabalhador que avistou, |a empurrar uma daquellas carretas, foi | o corcunda. || - Oh ! Benedicto ! exclamou. || Como ouvisse que lhe chamavam pelo | nome, o corcunda parou e olhou com ad- | miração para o bohemio, que nunca ha- | via visto, par que era seu companhei- | ro disfarçado. || De feito, Bibi estava alambicado, que |

passaria impunemente junto da cidadã | Antonia. || E chegando-se para o pé do trabalha- | dor, repetiu : || - Bons dias, Benedicto. || - O senhor sabe-me o nome ? || - Que duvida. || - Então conhece-me ? || Bibi desatou a rir. || - Não és tu só que te queixas de não | me conheceres a cara, mas a voz não te | deve enganar. || - Bibi ! exclamou Benedicto. || - É verdade, sou eu mesmo. || Benedicto olhou para Munito com ar |de desconfiado. || - Este senhor, disse Bibi, é amigo das |meninas ; podes fallar deante delle. Que | estas tu aqui a fazer ? || - A ganhar a vida. || - Para que não ficaste com Dagober- |to ? || - Estava nostalgico ; tinha saudades | da terra. || - Moras sósinho ? || - Moro. || - Fallas a verdade ? || Benedicto tremeu. || -Com quem havia eu de viver? inter-| rogou elle. || - Com o cidadão Paulo por exemplo. || - Ah ! já o sabe? || - Sei, respondeu Bibi. || - Então como é que o sabe ? || - O caso é simples. Fui ao Hotel- Dieu | onde esperava encontrar o meu amigo | o cidadão Paulo. || - O seu amigo ? || - Essa é boa ! || - Então não sabe que... || - Sei que o cidadão Paulo é o pae da | condessa Aurora. || - Mas como logrou saber isso ? ||- Ora, sei cousas mais importantes, e | ha mais tempo. || - Vem de mando da condessa? || - Não si ella pensa que o pae está | morto. ||

- É como si estivesse. || - Porque ? || - Esta doido. || - Mas os doidos tambéms e curam, | atalhou Bibi. ||- Assim dizem e eu acredito, murmu-| rou Benedicto, e espere lá, que eu tenho | ás vezes idéia... || -De que ? ||- Ha certos dias que o louco parece | reconhecer-me || - E dahi?|| - Parece-me que si o levasse lá para | baixo, para a floresta de Orleans, para | a terra delle, lhe tornaria a vir o senti- |mento de percepção. || - Pensaste nisso ? ||- Tenho-o pensado muitas vezes. || -Então porque não o fizeste ? || - É por causa do dinheiro ? || - Tenho mais do que preciso. || - Então qual é o motivo? || Benedicto baixou os olhos. || - Tive sempre receio, balbuciou elle. || - Receio de que ? || -De que si elle recuperar a razão, | torne a ser o que foi em outros tempos. || - Eu sou da opinião contraria. || - Ah ! o senhor acredita ? || - Acredito, e aidna te digo mais que | eu e alguém temos grande interesse em | que elle

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recupere o juizo. || - Esta bom. Pois então tratareis de o | levar para lá, respondeu Benedicto. || Bibi fitou Munito. || - Eu cá sou medico como todos os fi- | gurões da minha raça, disse o bohemio| e talvez tenha meios de o curar ; com- | tudo não affirmo sem o vêr. || - Viemos por causa disso, ajuntou Bi- | bi. || Benedicto largou a carreta. || - Vamos á casa, que é alli ao pé. || Com effeito, era uma casa do cães, de | apparencia desagradavel e mesquinha, | mas limpa. || O louco nunca sahia para a rua, quan- | do Benedicto andava fóra. ||

Punha-se á janella horas inteiras a | ver correr o Sena, que ia deslisando en-| ter o caes e a insula. || Aquella contemplação parecia embe-| bel-o tanto, que no momento em que Be- | nedicto entrava nunca era delle perce- | bido ; era preciso que Benedicto lhe ba- | tesse no hombro, afim de o tirar daquel- | le pasmo. || Bibi segiu Benedicto e Munito se- |guiu em companhia delles. || O tolo fitava o Senna com as costas | voltadas para a porta. Benedicto to- | cou-lhe no braço. || Então o cidadão Paulo voltou-se || Olhou para Benedicto e sorriu. || Depois olhou com curiosidade para | Munito e depois para Bibi. || - Não me conhece ! respondeum o ulti- |mo com tristeza ; a mim que sou o seu | amior amigo. || O louco voltou-se de nova para a ja- |nella. || - Esta bom, disse Bibi olhando para | Munito, que pensas tu, papá ? || - Que maina é a delle ? perguntou o | bohemio. || - Atteima que llhe guilhotinaram a fi- |lha. || Bibi aproximou-se do doido, que ao | sentir que lhe tocaram no hombro, se | voltou de repente, perguntando: || - Que me queres ? || - Quero fallarte de Aurora, disse Bi- | bi. || O doido deu umg rito. || - Depois olhando para Bibi com os | olhos dilatados, trôou com voz ameaça- | dora. || - Quem és tu que assim me vez fal- | lar de Aurora ; Aurora morreu ; foi Ro-| bespierre que a mandou guilhotinar. || E continuou a fixar Bibi, como si um | véu que lhe toldasse a vista se rasgasse |repentinamente...||

Edição 424 PONSON DU TERRAIL [espaço] 48

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXVII || Durante alguns minutos Bibi, Mu- |nito e o corcunda Benedicto se entreo- | lharam silenciosos, espiando no rosto do | louco a metamorphose que se ia operando || Isto passou-se com a rapidez de um relam- | pago. || O cidadão Paulo em breve começou a | dar gargalhadas estridulas, e depois a cantar a Ça [mancha] irá. || - Parece-me incuravel, observou Be- | nedicto. ||- Não é, retrucou friamente Munito, | tu verás como hei de cural-o. || - Com que papá? perguntou Bibi. ||- Com os bohemios, respondeu Munito| possuem drogas mysteriosas e meios de |[mancha] mentos particulares. || - Bem o seu. ||- O que este diz, apontando para Be- | nedicto, é bem imaginado. Levaremos | o doido para os sitios em que viveu, e si | os meus medicamentos forem efficazes, |curado o teremos em tres dias. – Voltar-lhe há a memória ? ||- Decerto. ||[mancha] a estudar. ||- [mancha] dias para ir, e outros dois para |[mancha] ou quatro dias para descançar, |[mancha] papá. || - [mancha] pondeu Munito. || - E no entanto que farás de Nichette | e de Antonia? || Um sorriso transpareceu nos lábios do | bohemio. || - Tu não tens precissão de mim duran- |te estes oito dias.|| - Porque não ? ||- Não vou contigo. || - E o tratamento em que fallaste... ||

- Isso, quando eu o indicar, já o hás | de saber empregar perfeitamente... || - Ah ! então é outro o caso. || O tolo collocou-se de novo ao peitoril | da janella, sem dar attenção aos interlo- | cutores. || Contemplava sempre o rio. || - Espera lá, disse Munito. O tratamen- | to é simples. É uma bebida que fará ca- | hir o doente numa especie de sonmolen- | cia moral e physica. || - Ah ! disse Bibi. || - Suppões que este senhor e tu vão | partir esta noite. || - Entendo. || - O louco não se oppõe, foi sempre do- | cil e obediente, lembrou Benedicto. || -

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Vocês podem ir numa carruagem de- | cente, comer e beber pelo caminho. Si | elle tiver fome que coma ; si tiver sêde | hás de dar-lhe um copo de vinho prepa- | rado por mim. || - E o vinho que faz? || - Ha de adormecel-o; pôl-o num es- | tado lehargico, de modo que elle nada | perceba do que se fizer ao pé delle. || - E depois? || - A casa onde elle morou ainda esta | em pé? || - Saquearam-n’a durante o Terror, | mas um antigo caseiro do cavalheiro | restaurou-a. || - É verdade que m’o disseram. Foi o | tio Cornu, aquele honrado homem. || - Póde-se, pois contar com elle? || - Póde. || - Quando vês chegaresm a essa casa, o | louco apenas verá os objectos através de | um nevoeiro espesso. Em seguida met- | tam-n’o na cama depois de lhe dar uma | poção que eu hei de preparar. Adorme- | cera logo, e no dia seguinte quando ac- |cordar expiará todos os cantos da casa. |A janella deve estar aberta, para que | elle, na occasião de se levantar, possa | desfrutar a vista da floresta e das cam- | pinas onde tantos annos habitou. De| vem-n’o deixar só, e então vocês verão |

como se fará luz no intellecto enoitecido | do pobre doido, que se interrogará a si | mesmo, suppondo tudo um sonho. || - E ficará são ? ||- Ainda não, mas entrará em via de | curativo. E, já me esquecia dizer-te que | não lhe deves apparecer, disse Munito. | É preferível que a primeira pessoa que | se lhe apresente á vista, seja este sujei -| to que esta affeito a viver com elle. || - Pois sim, disse Benedicto. Mas que | lhe hei de eu dizer ? || - Nada, ou então o mesmo que de cos- | tume. || - Entendo. || - E terá o cuidado de que elle só o | veja a si. || Benedicto moveu a cabeça sem signal | de affirmação. || - Ha de fazer-lhe perguntas e o se- | nhor deve responder-lhe ; é até possivel | que desate a chorar. || - E que falle da filha ? || -Sem duvida. || - E então devo dizer-lhe que está | viva? || - Não, matal-o hia com essa noticia. ||- O primeiro dia passal-o ha em um | estado de stupôr ; a noite deve dar-lhe outra poção idêntica. No dia seguinte | acudir-lhe-ha a memoria, os pensamen- | tos hão de borbulhar-lhe no cérebro, e | então tu poderás vel-o papá. || - Bem ! disse Bibi. || - Aposto que ao terceiro dia já elle | terá juizo perfeito, concluiu Munito. || - E poderei dizer-lhe depois que a fi- | lha esta viva? || - Ainda será cedo. Has de fallar-lhe | de Antonia. || - Ah ! sim ! || - É possivel que se enfureça, mas en- | tão dir-lhe-has que ella é muito rica, e | que o dinheiro que possue esta em mãos | de pessoas que decerto o hão de restituir | si se provar que o testamento da Prince- | za Helena era falso. Elle era perdido por| dinheiro, não é verdade? ||

- Si o era ! Si não o fosse, teria assas- |sinado a condessa de Mazures? || - Pois bem ; a esperança de possuir | esse dinheiro ha de acabar de o curar. || - Tens a certeza disso, papá ? ||- Tenho, E depois voltarás com elle | para Paris ? || - Assim o faremos, disse Bibi. ||Depois dirigindo-se para Benedicto, | ajuntou : || - O negócio esta decidido. Vamos tra- | tar da partida. || - Quando ? || - A noite ; vae-te preparando que ao | lusco-fusco cá estarei á porta com a car- | ruagem. || - Estaremos promptos a essa hora, | disse Benedicto. || - Depois, abanando a cabeça, pergun- | tou : ||- Oh Sr. Bibi, já pensou noutra coisa? ||- No que ? || - Que o cavalheiro era um famigera- | do bandido noutro tempo ? || - Que tem isso ? || -Tem muito. Si elle recuperar o jui- | zo talvez volte a vida passada. || Bibi encolheu os hombros como quem | quer dizer? || - Pouco se me dá disso. || - E si elle não quizer ficar com o di- | nheiro? concluiu Benedicto. || Munito desatou a rir. || - Oh , póde estar descançado que não | ha de ser a elle que o hei de restituir. || Bibi e Munito sahiram e subiram para | a carruagem. || - Então estamos combinados,papá, | disse Bibi, tu ficas em Paris durante a | nossa ausencia? || - Fico. || - E que has de lá fazer? || - Apaixonar-me hei por Nichette, dis- | se o bohemios sorrindo. || Cherama a Paris. || O bohemio foi para a sua hospedaria | costumada, com a promessa de vir vêr|

Bibi no mesmo dia e de lhe trazer o vi-|nho destinado a narcotizar o doido. || Bibi voltou para casa, onde soube que | Polyte já tinha vindo duas vezes procu- | ral-o, parecendo inquieto de sua ausen- | cia. || O policia não se tinha deitado deste a | antevéspera. || Foi-se, pois, deitar e não tardou a ador- | mecer. || Roncava como o sino grande de uma | cathedral, quando

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accordou sobresalta- | do. || Estavam a bater a porta. || Bibi abriu e deu de chapa com Po- | lyte. || - Ah ! és tu? disse.||- E pela terceira vez que te procuro. | Que fizeste de manhã ? || -Andei a procura do pae de Aurora. || - Encontraste-o? ||- Encontre. || - Doido Omo era? || - Doido varrido, mas Munito espera | cural-o || - Esta bem, mas eu não entendo bem | uma coisa, disse Polyte. || - Dize lá || - Acredito que curem o cidadão Paulo. || - Adiante. || - Mas que utilidade tem a cura para | provar a Munito que Antonia roubou o | dinheiro? || - Tem muita, porque foi elle quem fez | o testamento. || - Ah ! então já me calo. E convirá elle |nisso ? || - Que pergunta ! bastava que lhe fosse para | empobrecer Antonia, a quem elle tanto | deve aborrecer, por causa das peças que | ella lhe pregou. || - Agora percebo. ||- Então sempre partimos esta noite ? |continuou Bibi. || - Com o doido ? || - Com o doido e Benedicto. || - Com Benedicto ? || - Sim. Nós também o encontramos. ||

Edição 425 PONSON DU TERRAIL [espaço] 48 [2?]

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXVII || E Bibi poz-se a explicar o aconteci- | do a Polyte. || - E Munito ficará em Paris? pergun- |tou ainda o ultimo. || - Penso que sim ; apaixonar-se-ha | loucamente por Nichette.| || - Muito bem, disse Polyte sorrindo. ||- Mas tu o que é que fizeste esta noi- |te ? || - Ceei com o cidadão X... ||- Disseste-lhe o que viste ? || - Disse, mas póde ter a certeza, papá | que me será fiel. Elle deseja que Anto- | nia conserve o dinheiro e deixe ficar mal | o boêmio. || - Viste Antonia? || - Acabo de vir de casa della. || - Sim ? ||- Não duvida de nada. A impassibili- | dade de Nichette foi admirável. || - Julgas que a podes subjugar ? ||- De pés e mãos , como uma escrava. ||- Pois então, escuta-me bem, disse Bi- | bi depois de alguns momentos de silen- |cio. || - Dize... || - É preciso jogar com pau de dois bi- | cós. || - É o melhor. | - Eu cá encaro as cousas pelo peor | lado. Munido póde enganar-se e o cida- | dão Paulo continuar a ser doido. || - Entendo. || - Então não srá de Nichette que te- |remos de nos aproveitar ? || - Para sabermos os segredos de An- | tonia ? ||- Isso mesmo. ||

- Mas é necessário que ella esteja de | posse delles. || - Ha de o estar, disse Bibi. Aquellas | duas creaturas comprehendem-se mara- | vilhosamente para que possam ter se- | gredos uma para outra. E lembra-te | bem do que te digo ; si podermos alcan- |çar uma carta authentica da fallecida|princeza Helena, e comparal-a com o | testamento que Munito possue. || - Provar-se-ha a falsidade ? ||- Certamente ; e não precisaremos en- | tão do pae de Aurora. || - Mas que certeza temos de que An- | tonia possua essa carta? disse Polyte || - Ella tem muitas. || - Tens a certeza? || - Tenho. Ao principio costumava | têl-as no cofre onde guardava o dinhei- |ro. || - Talvez Antonia as queimasse... ||- Não penso assim. || - Porque? || - Porque a bohemia tem orgulho de | conservar as cartas de uma mulher de | alta nobreza, como a princeza Helena. || - De feito, parece possível. Mas onde | estão essas cartas ? || - Nichette as procurará. || - Esta bom, papá, essas se acharão, | disse Polyte. ||[espaço com 15 pontos finais]|| Bibi não se foi deitar : preparou-se | para a viagem, e esperou juntamente | com Polyte, que Munito voltasse; Eram | cinco horas quando o bohemio chegou á | casa. Trazia duas garrafas lacradas. O | lacre de uma era verde, o da outra ama- | rello. || - Este é o vinho sympathico. || - Entendo, disse Bibi. || - Este outro é a poção. Agora não | te esqueças das minhas recommenda- |coes, papá, nada de commoções violen- | tas. || - Esta descançado, papá. || - Quando volta ? perguntou Polyte. || - Daqui a oito dias. ||

- Nesses oito dias, acabo eu de fazer | Nichette doida por mim. ||- Ao contrario, eu endoudecerei por | causa della, disse Munito sorrindo. || - Sem motivo nenhum, observou Po-

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| lyte. || - Como ?! disse o bohemio. || - Sou um pouco ciumento, respondeu | framente o mancebo. Nichette promet- |te muito e falta melhor. || - É o mesmo que eu digo, disse Mu- | nito. Já trintei, e só amo no mundo a | minha filha. ||E como saudade tributada a Móina, o | bohemio enxugou uma lagria. Recor- | dou-se do drama de Coblentz : então pegou | na mão de Bibi dizendo : || - Animo ! quero restituir á condessa | Aurora o dinheiro que lhe roubaram. | É preciso que as cousas não se demo- |REM; vou prevenir os dois individuos da | minha tribu, a quem devo dar conta das | minhas acções. || - Bibi estremeceu. || Se via preparar-se a futura condemna- |cão de Antonia ! ||[espaço] XXXVIII [espaço] || Passadas quarenta e oito oras, roda- | va difficilmente por uma das rua lama- | centas que atravessavam a floresta de | Orleans, um vehiculo cortava a floresta em | todas as direcções. Era tirado por dois | vigorosos cavallos de boa raçae condu- | zia tres pessoas ; uma fóra e duas den- | tro. Dentro estavam Bibi e o cidadão | Paulo, e fóra o corcunda Benedicto. || O vinho sympatico do bohemio Mu-| nito, havia produzido effeito. || O cidadão Paulo, ou antes o cavalhei- | ro de Mazures, como dantes lhe chama- |vamos, levou toda a viagem em uma | profunda somnolencia. || Apenas de momento a momento abria | os olhos para se certificar si Bibi esta- | va a seu lado. ||

Depois tornava a cerrar as palpebras, | e cahia de novo na sua apathia || Até a pequena povorção de Pithiviers, | celebre pelas suas aves de recheio, os | personagens de que nos occupamos, ape- | nas haviam alugado cavallos de posta. || Mas em Pithiviers Benedicto disse a| Bibi : || - Agora escusam de saber para onde | vamos. Vou alugar cavalgaduras e ser- | virei de conductor. || Bibi approvou a resolução. || Os ares da terra natal dão saude e | imaginação, como diz o povo. || Deste modo, assim que Benedicto viu | esfumar-se no horisonte uma facha ne- | grã, que lhe annunciava a sua querida | floresta, sentiu bater-lhe o coração mais | e transformou-se logo no agil lavrador, | matreiro e prudente que nós conhece- | mos. || Em vez de seguir pela estrada ordina- | ria, deitou por um carreiro encravado | na floresta, que elle tantas vezes havia | palmilhado, e que era mais consistente | que os outros, por causa da areia que | lhe cobria o fundo argiloso. O atalho ia | dar a uma casinhola, em outro tempo | habitada pelas guardas, mas presente-| mente abandonada. || Dalli ao caminho de a pé dos campos, | havia apenas um quarto de legua. || Benedicto parou a chem passos. || A floresta estava deserta e silenciosa, | e bem se via que a guarida do guarda | estava deshabitada. || Depois o corcunda fes retroceder os | cavallos e veio parar ao pé do casebre. ||- Papá, espere-me aqui, disse a Bibi. || - Para que ? perguntou o policia. So- |mos a meia legua de Billardiére. || - Que tem isso? ||- É o castello do cavalheiro. ||- Porque não vamos la directamente ? ||- Já lh’o digo, respondeu Benedicto. || - Falla, filho. || - Ouvi dizer que fora comprado por | um honrado caseiro, que certamente de- |

ve ter a intenção de o entregar á meni- | na Aurora. || - Pódes antes dizer á senhora Auro-| ra Dagoberto. || - Perdão, foi engano. || - Diz o resto. || - Si o caseiro fôr ainda vivo, e o cas- | tello ainda lhe pertencer, hei de preve- | nil-o e contar-lhe o propósito da nossa | viagem. || - Bem lembrado, disse Bibi, que co- | mechava a comprehender o caso. ||- Além disso é preciso desconfiar do | cavalheiro, apesar de dormir como uma | pedra... ajuntou Benedicto. || - Tens razão, disse Bibi. || - Poderia acordar e soffrer a com- |moção que Munito recommendou que | evitássemos. || - Lembras-te bem, respondeu Bibi. || - É melhorchegarmos lá de noite. O | senhor fique aqui, que eu vou a desço- | Berta. || E Bibi principiou a tirar os arreios | aos cavallos. || O cavalheiro restava meio acordado e | emio dormente, isto é, em estado mais | que sufficiente para se apear e entrar no | casebre. || A casa não estava trastejada, mas a | um canto via-se um montão de palha. || Benedicto e Bibi deitaram alli o ca- | valheiro, que em breve tornou a ador- | mecer. || Depois disto Benedicto deixou o cava- |lheiro confiado á guarda de Bibi e ausen- | tou-se. || Conhecia a floresta a palmos, apesar | de quatro annos de ausencia. || Sabia de cór todos os atalhos, todas as | clareiras e meandros. || Em menos de um quarto de hora che- | gou a beira dos campos. Depois poz-se a | correr a toda a pressa na direcção de uma | cabana que se descobria a 100 metros da | floresta. ||

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Edição 426 PONSON DU TERRAIL [espaço] 49

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXVII ||Aquella casinha no tempo de Benedic- | to era habitada por um rachador de le- | nha, chamado Jacob, que vivia sósinho, | nunca se quizera casar. || - De certo que ninguem fez mal a Já- | COB. Era pobre de mais para que se im- | portassem com elle ; a isto ajuntava a | sobriedade, pois não frequentava as ta- | vernas e gosava de boa nota a todos os respeitos || Ao sahir de Paris, Benedicto teve o | bom senso de não abandonar a roupa de | trabalho. || Trazia vestido o seu uniforme de ca- | lafate, isto é, blusa azul, calças de risca-| do e chapéu de palha de abas largas. || A chaminé da casa fumegava. || Era bom signal. || Benedicto aproximou-se. || A porta estava aberta, e um homem | fazia a ceia. || Era Jacob. || Ao arruido dos passos de Benedicto, | Jacob voltou-se para a porta, e fez um | gesto de admiração sinão de medo, e fi-| cou de bocca aberta a olhar para o cor- | cunda. || - Porque é que olhar pra mim com | ar de admiração ? Não me conheces ? || - Ah ! és Jacob ? || - Mas o bohmem não [s]e mexia, e conti- | nuava a mostrar-se medroso. ||- É que eu não sei si és alguma alma | do outro mundo, continuou elle. ||- Forte patarata ! disse Benedicto. || E atirou-se lhe ao pescoço com tanto | enthusiasmo que Jacob não duvidou que | estava a tratar com um vivo. ||

- Cautella ; uma alma do outro mun- | do não aperta com essa força. ||- E porque me chamas de alma do outro | mundo ? perguntou Benedicto a rir. || - Porque todos diziam que tinhas mor- |rido. || - Essa não é má ! || - E que te tinham guilhotinado em | Paris. ||- Ve si tenho a cabeça no seu logar. || E Benedicto poz-se a abanar a cabeça. ||- Mas de onde vens? exclamou o ra- |chador. || - De Paris. || - E para onde vaes ? || - Vim vêr-te primeiro. || - Esta bom. || - E uns outros collegas. || - Ah, meu caro amigo, respondeu o | rachador, os nossos collegas estão bem | mudados desde que partiste; uns mor- | tos, outros militares. Dizem por ahi que | o próprio ferreiro da Côrte de Deus é ge- | neral. ||- Não menten. || - Pois olha que eu não queria acredi- |tar. ||- É essa a verdade nua e crua. ||- Mas contavam dele cousas tão ma- | ravilhosas. Também... || - Que se diz ainda ? || - Que se casou. || - Também é verdade. || - Com a condessa Aurora, a filha do | defunto cavalheiro de Mazures. || - É como dizem. ||Jacob olhou para Benedicto com ar | de quem diz: || - Estás a caçoar commigo ? || - E não te admires de te informar tão | dessaffogadamente, porque desde que par- | ti daqui sempre tenho estado com a me- | nina Aurora e a irmã della, disse Bene- | dicto. || - Pelo que dizes tudo isso é certo ? ||- Certissimo. || - Esta bom ! eu é que conheço quem | folgará com isso. ||

- Quem é? || - O tio Cornu. ||- O antigo caseiro de Billardiere ? pois | ainda é vivo? || - Si é. Tu talvez não saibas que elle | comprou o castello.||-Comprou ? ! ||- E bem barato... no tempo dos bens | nacionaes... tinha umas moeditas, e ellas | são raras. Demais naquelle tempo pa- | gavam em papel, e por isso não lhe foi | difficil comprar o castello. || - Boa vivenda que é. || - O pobre homem, porém não quer | viver nelle. ||- Ora essa ! || - Deixou-se ficar na granja, e não lhe | poz o dedo. || - Que modo de pensar. || - Diz que si a menina Aurora vier | morar para elle, lh’o dará, continuou o | rachador. || -De certo que ella ha de vir. || -Tens certeza ? || - Tenho. E ha de vir em pouco tem- | po. ||- Pobre senhora ! murmurou o velho, | dizerem que ella nos tem feito tanto | bem, mas que si não fugisse seria talvez | guilhotinada ! || Benedicto estava de posse do que que-| ria saber. || -Agora adeus, como já te vi, vou dar | uma volta por aqui.|| - Vae já falar com o tio Cornu. || - É o que eu tinha na idéa. || - Queres

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uma pinga de vinho? não é | muito bom mas é de boa vontade. || -Venha elle, disse Benedicto. || E poz-se a beber por um enorme can- | taro, a zurrapa que o rachador lhe offe- | recia. || Depois apertou a mão de Jacob e despediu-se. || Benedicto não andava nem corria, sal- | tava como um cabrito atravez de sua | querida floresta. || E poz-se a caminho para Billardiére, |

cujo tecto de ardosias, brilhava aos ul- | timos raios do sol poente. ||[espaço] XXXIX [espaço] || Benedicto parecia ter voltado á infan- | cia ; saltava pelos campos como um po- | tro fugido á caudelaria. || Quando chegou a Billardiére parou. | Necessitava de reflectir um pouco. || Em seguida parou a contemplar aquel- |la casa, onde tantos dias felizes passara | com as duas meninas, como então lhes | chamava. || Billardiere retinha o seu aspecto meio | senhoril, meio de pousada de caças. || Era inteiramente a mesma pelo exte-| rior, com excepção de uma cousa. || Haviam-lhe apagado as armas da fa- | milia de Mazures, insculpidas sobre a | porta principal, para as substituir por | esta fórmula : | Liberdade Egualdade e Fraternidade. || E note-se que isto era obra do tio Cor- | mu. || Como homem de peso e bom raciocínio, | o tio Cornu dissera com os seus botões : || - Eu comprei o castello, e o que eu | tenciono fazer mais tarde não é da conta | de ninguem. || Agora trata-se de arranjar as cousas | de modo que eu passe por um proprieta-| rio serio. || Si deixasse ficar as armas na porta, | adivinhavam-me a vontade, e talvez sof- | fresse alguns desgostos. || Por isso, o tio Cornu mandou safar as | armas de cima da porta.|| Mas como dissera o rachador Jacob, | os seus projectos não eram ignorados | por ninguem desde o nove thermidor. | Não morava no castello, mas aos que se |admiravam disso, respondia : || - Tenho uma filha casadoira, e ando | a cato de um marido rico com quem a | case ; quando o encontrar cederei a am- | bos o castello. || Deste modo o tio Cornu continuava a | viver na sua granja junto do castello, de | companhia com sua mulher e filha, es- |

perando sempre noticias dos seus anti- | gos senhores. || Benedicto sentou-se debaixo de uma | arvore, a cem passos da porta do castel-|lo. || As campinas estavam desertas, e o sol | acabava de dessaparecer por detraz das | arvores enormes da floresta. || No entanto pensava o corcunda : ||- Insto de tornar a ver as pessoas que | a gente julga mortas, excita uma com-| moção bem forte. Eu tenho só a dar AL- | guns passos, e não ouso. O tio Cornu é | capaz de se pôr a gritar contra as almas | do outro mundo como fez Jacob. || Si ao menos eu lhe viesse annunciar | a chegada de Aurora... || E Benedicto reflectia que a condessa | Aurora havia sido adorada por todos que | a serviam, não succederia o mesmo com o | cavalheiro de Mazures, sempre altivo e | orgulhoso. || - É preciso contar-lhe o negocio com | prudencia. ||E poz-se a caminho. || Como apenas tivesse a saltar um fosso, | que a revolução não curara de entulhar, | viu logo um homem em mangas de ca- | misa, a sahir do pateo, com uma carre- |ta. Era o tio Cornu, simples e attencioso | como sempre, apesar de ter um castel-|lo, e que não o inhabitava de traba-|lhar sempre no amanho de suas terras. || Benedicto foi-se a elle. O tio Cornu | largou a carreta e poz-se a olhal-o fixo : || - És tu ? Benedicto ? disse sem a me- | nor admiração. || Desta vez foi Benedicto que ficou es- | tupefacto. || - Oh tio Cornu, você não me julgava | morto ? || - Como a mais gente, respondeu Cor- | nu. || - E então é essa a admiração qe o trans- | porte com que me recebe ? exclamou Be-| nedicto despeitado. || O tio Cornu estendeu-lhe a mão. ||

Edição 427 PONSON DU TERRAIL [espaço] 50

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A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XXXIX ||- Meu filho, julguei-te morto, é ver- | dade, mas ha um mez que sei que és vi- | vo. || - Quem lh’o disse ? || - Recebi uma carta da senhora. || Benedicto estremeceu. || - A Sra. condessa Aurora escreveu-| me ha um mez, dizendo-me que anda- | vas viajando por ahi, continuou o tio | Cornu em voz baixa. || - É verdade, como a indifferença de | que me diverti pelo caminho. ||- Isso sabemos nós, pois já vae em um | mez que te esperamos. || - Ah ! esperava-me? ||- Co’a breca ! onde havias tu de ir, | a menos que não fosse á nossa casa? || É verdade, que Benedicto estava | agora poço affeito a passar as noites ao | ar livre. || E ao mesmo tempo considerava : ||- A carta da menina complica bastan- | te as cousas. Com toda a certeza que | lhe não fallo do pae, porque o julga mor- | to. Como hei de, pois, dizer ao tio Cor- | nu que o cavalheiro esta ahi? || E Benedicto deixou á roda de si um |olhar investigador. ||- Para que estás a olhar, rapaz? dis- | se o caseiro. || - Estou a ver si estamos a sós.||- Sim? ||- E si alguém mais me viu. ||- Porque estás com essas cautellas ? ||- É porque antes de entrar na gran-| já a comprimentar sua mulher e filha, | desejava dizer-lhe duas palavras. ||

E Benedicto, poiscando os olhos, ajun- | tou: ||- Não sei o que a menina Aurora lhe | disse na carta, pois eu já tinha partido, | mas decerto que não lhe disse tudo. ||- Como? observou Cornu. || E assentou-se na carreta, Benedicto| fez o mesmo e continuou: || - A menina Aurora fallou-lhe do pae? || - Não. Em primeiro logar por que o | cavalheiro morreu... ||- Esta enganado tio Cornu. || - Estás a brincar? exclamou o casei- | ro estupefacto. || - É a pura verdade, respondeu Bene-| dicto.||- Pois isso é possivel? || - Ainda pertence a este mundo, mas é | como si não pertencesse. || - Que queres dizer com isso? || - Que esta doido. Foi a revolução que | lhe deu a volta no miolo. ||- Ah ! foi? respondeu o tio Cornu,| como si uma indifferença que significava tan- | to si lhe dar que o cavalheiro vivesse co-| mo fosse morto. || - É um grande mal para a menina| Aurora ter o pae louco, continuou Be- | nedicto|| - Ora ! disse o velho. || -É o que lhe digo; é uma grande | desgraça, repetiu Benedicto gravemen-| te. || - Então porque? ||- Porque si o cavalheiro recuperasse| a razão, a menina Aurora herdaria gra-| des cabedaes. || - E porqueo não diz elle? ||- Já não lhe disse que estava doido? || - E não tem cura? || - Trata-se disso. || - Onde está elle ? – em Paris? || Benedicto não respondeu e continuou: || - Acha-se confiado ao tratamento de | um medico que promette cural-o, si fôr | auxiliado por todas as pessoas que ainda|

conservam saudades e affeição pela | menina Aurora. || - Pois póde contar commigo, respon-| deu simplesmente o caseiro.|| -Si não tivesse a certeza de que o se-| nhor era um dos mais dedicados amigos| da menina, não teria aqui vindo procu-|ral-o, nem fallar-lhe as occultas. Confia-|va em si. || - Então, dize o resto. || - O cavalheiro não esta em Paris. || - Então onde ? || - A meia légua daqui, com o medico| de que lhe eu fallei. || - E onde os deixaste? || - Em casa do guarda Soulas. || - Coitado do Soulas, ha bem tempo | que morreu, disse o caseiro. A casa está | abandonada. || - Isso eu vi.|| E Benedicto poz-se a contar a sua viagem ; o estado do cavalheiro; a esperan-|çaque nutriam do o curar, transportan-|do-o para a casa que outr’ora lhe perten-| cera, sem que o nobre percebesse a | mudança. ||- É uma boa idéa, sim, senhor, mas | porque não o trouxeste logo? ||- Receiava que o não acceitasse.||- Toleirão. || -Alem disso, eu e o medico não que-| remos que elle chegue de dia.|| - La isso é outro caso.|| Apresentando Bibi como medico, Be-| nedicto furtava-se ao trabalho de rela-| tar uma série de nimudencias relativas | ao antigo policia. ||- Estou entendido. Si queres vamos | contar tudo a minha mulher e filha.|| -Vamos la ! respondeu Benedicto. || E ambos se pozeram a caminho da | granja. ||[espaço com 15 pontos finais]||Passada uma hora, Benedicto passava

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| a floresta e chegava á casa do guarda, | onde havia ficado Bibi e o louco. O ulti- |mo havia adormecido. ||

- Que passaste com o homem? disse | Bibi. || - Promptificou-se a receber-nos. O | Castello esta como estava. Não lhe ar-| redaram um único traste. || - Bom é isso, respondeu Bibi. || Benedicto poz os arreiso aos cavallos, | e Bibi fez entrar o doido na berlinda.|| Era noute escura quando sahiram da | floresta. || - Deviamos fazer-lhe beber mais um | pouco de vinho sympatico, disse Bene-| dicto. || - Pois sim, mesmo porque é conve-| niente que entre no palacio, sem o per-|ceber. || Bibi chegou a garrafa ao louco.|| - Bebe, disse-lhe. || - O nobre, sempre dócil obedeceu. || Minutos depois dormia profundamen-| te, e tres quartos de hora depois a ber-| linda entrava no pateo do palacio ||[espaço] XL [espaço] || Não havia viva alma nos campos. O | carro ao sahir da floresta, rodou por um | caminho bordado de faias, que o torna-| vam impenetravel, á vista, e a, e abafavam o | ruído das rodas.|| Por seu lado, o tio Cornu teve a boa | lembrança de mandar deitar cedo, os | seus criados de casa e de lavoura.|| Quando a carruagem chegou, as uni-| cãs pessoas que a esperavam, eram a | mulhero do caseiro, este e sua filha. Be-| nedicto e Bibi pegaram em charola no | cavalheiro, e levaram-n’o para dentro do | castello. ||O rachador Jacob não havia mentido.|| O Castello estava no mesmo estado em | que o cavalheiro o deixara, quando fu-| giu, e em que Aurora e sua irmã Joan-|na o desampararam ao rebentar o tufão| revolucionário.|| Toda a mobilia estava em seu logar, e | nem uma tapeçaria ficou despregada. |O quarto do cavalheiro, que olhava | para a floresta, não podia ser descoberto |

por ninguem, si a horas mortas, e inun-|dado a lus, passasse algum transeunte, |ou os moços da granja. || O cavalheiro continuava adormecido. || Bibi e Benedicto deitaram-n’o na ca-| ma, e accenderam uma lamparina. De-| pois entrarm na sala de jantar, onde a | mulher e a filha do caseiro, lhe servi-| ram uma ceia frugal. || Durante a ceia ouviu-se um leve ru-| mor no pateo. || - Que é aquillo ? perguntou Benedic-| to.|| - Não é nada, respondeu o tio Cornu, | um pouco embaraçado. || - Parece que ouço passos. ||- Não é ninguem. É o castor, o cão | guardião , que sacudia a cadeia. || Benedicto não insistiu. || Mas tinha a certeza de ter ouvido pas-| sos de homem sobre a areia do pateo. || Prepararam um quarto a Bibi. || Quanto a Benedicto, esse conveio em | dormir ao pé do louco, para cuidar del- |le, si acordasse |de noite. || Tanto o corcundoa como o policia esta- | vam moídos da jornada. || Depois de comer e beber foram deitar-| se ; o caseiro com a mulher e filha reti- | raram-se também. || Ao amanhecer, quando os primeiros | raios d’alva começaram a luzir no céu, | Benedicto acordou.|| Dormira em uma cadeira de braços, | ao pé da cabeceira do cavalheiro, que | continuava somnolento. || O corcunda sahiu em bicos de pés | chegou no corredor e bateu a porta de | Bibi. || - Entra, disse este. || Benedicto ficou admirado de ver Bibi a | pé, e de ter passado a noite vestido. || Bibi deitara-se vestido e com a janella | aberta. Tinha as sobrancelhas carrega-| das e parecia preocupado. ||

Edição 428 PONSON DU TERRAIL [espaço] 51

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XL ||- |Que é que tem papá? perguntou Be- | nedicto. ||- Nessa casa passa-se alguma cousa | de extraordinário. || - Que me diz? exclamou Benedicto. || - Ouviste hontem a noite aquelle ba-| rulho, quando estávamos a ceiar? conti- | nuou Bibi. || - Ouvi, parecia rumor de passos. || - E o caseiro nada disse que te engana- |vas? ||- Disse. Mas... || - Mas tu ouviste bem ? ||-

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Aquillo foi algum rapaz da lavoura| que nos viu chegar, e se ergueu do pa-| lheiro, movido pela curiosidade. ||- Parece-me que não, disse Bibi. ||- Então que seria ? ||- Honte, quando me deitava, abri a | janella, e pareceu-me ouvir sussurro de | gente que segredava|| - Sim ? | |- Puz-me a escuta e reconheci a voz | do tio Cornu. ||- E com quem estava a conversar? ||- Com uma pessoa de voz grave e al- | quebrada, talvez algum velho. ||- Em que sitio estavam? ||- La em baixo, sentados em um banco, | e debaixo de uma arvore. || Por mais esforçs que fiz, não pude | perceber no que fallavam. || Por precaução apaguei a luz, e assim | pude observal-os com pachorra, sem que | me podessem descobrir, porque a noite | estava de luar. || Em um momento dado levantaram-se | e entraram no pateo. ||

Então pude ver de mais perto com |quem conversava o pae Cornu. || É um velho corcovado de grandes | barbas brancas. || Benedicto estremeceu. ||- Eu estava escondido por detraz da | porta da janella, continuou Bibi, e pude| ouvir algumas palavras da conversa del- |lês. || - Que diziam ? perguntou Benedicto. ||- Era Cornu que fallava. ||- Bom ! || - Meu padre, dizia elle, nada tem que |receiar aqui, e em vez de voltar para a flo-| resta seria bom ficar.|| Então o homem de barbas brancas res-| pondeu algumas palavras que não pude| ouvir. || - E ficou ? ||- Não, o pae Cornu dirigiu-se para | uma porta que dá para o andar terreo | da casa, e bateu duas pequenas panca-| das, e depois uma terceira mais forte | um pouco. || - Então ? disse Benedicto. ||- O velho de barbas brancas tomou o | cesto e, em quanto a rendeira entrava | em casa, o pae Cornu acompanhou-a a té | ás ultimas arvores da avenida. ||- Voltou depois ? || - Voltou em quanto o velho seguia |com o cesto. || - E que direcção tomou elle ? || - Perdi-o de vista no caminho que vae | ter a floresta. || - Certamente foi esconder-se á flores-| ta, disse Benedicto. || Depois, olhando para Bibi : || - Que pensa o papá de tudo isto? || - Muito e nada. || - Como assim ? || -Esse homem é certo que se esconde. || - É certo. ||- Mas porque se esconde elle ? a gui- |lhotina já não funcciona... || - É verdade. Será talvez um emigra-|do... ||

De repente Benedicto bateu na testa | e disse: ||- Esta bem certo que o caseiro lhe | chamava <<meu padre>> ? ||- Estou, porque o ouvi. ||- O padre Cornu morreu. E si elle | chama ,,meu padre.. a esse velho, é por-| que effectivamente é padre;. || - É possivel, disse Bibi. ||- E os padres que recusam o juramen-| to são proscriptos. ||- Tens razão,respondeu o homem da | policia, que parecia mais serenado. ||- Em todo o caso, continuou Benedic-| to, o pae Cornu é um bello homem, todo | dedicado a menina Aurora e nós não de-| vemos desconfiar delle. ||- É o mesmo, murmurou Bibi, quan-| do no meu caminho encontro um myste-|rio, não descanço sem o desfazer.||- Ha de desfazel-o logo, respondeu | Benedicto.|| E deixando Bibi, dirigiu-se ao pateo | da herdade.|| O pae Cornu acabava de dar ordens aos | moços da lavoura e aos jornaleiros. || Quando viu Benedicto foi direito a elle | e disse-lhe a meia voz: || - Então, o Sr. fidalgo ainda dorme ? || -Dorme. || - E o médico? ||- O médico não; Nem dormiu. || E Benedicto tomou o braço do casei-| ro. || - Venha dani, que lhe quero dizer | uma cousa. || Levou-o para outra extremidade do | pateo. ||- Sempre tinhas esta manhã um ar | mais exquisito, meu rapaz, disse o pa | Cornu. | || - Acha? || - Si acho !... ||- Si o medico não dormia quem teve a | culpa foi o senhor.|| - Eu ?! disse Cornu admirado. ||- Eu não me tinha enganado hontem |

á noite, quanod disse que tinha ouvido | passos. || - Ah ! ainda acreditas isso? || E Cornu perturbou-se. ||- Quem quer esconder aqui? prose-| guiu o corcunda. || - Eu... ninguem... ||- Vamos, vamos ! a esse velho de bar-| bas brancas ? || Cornu deu um passo para traz e pare-| ceu espantado. || - Viste-o ?! disse elle. || - Eu não, mas viu-o o medico. || O caseiro respirou. || - Tio, é preciso dizer-me quem é. || - Queres sabel-o? || - Podera ! ||- Pois, meu rapaz, esse velho é um | padre. || - Já o desconfiava. || - Esteve preso muito tempo , e por | um milagre que não foi guilhotinado. ||- E fugiu da cadeia? || - Fugiu. |||- E esconde-se na floresta? ||- Ha seis mezes. || - E todas as noites vem aqui buscar | comida ! ||- Todas as noites não, mas

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de tres em | três. ||- Pois, disse Benedicto, para isso | não precisa estar com segredos, o pae Cor- |nu. || - Não que esse segredo não é meu. || - Não sabe quem eu sou ? ||- Sei sim. || - Sabe que podem confiar em mim... || - Em ti sim, mas nesse médico? ||- Tanto pódem confiar nelle como em | mim ; e olhe pae Cornu, tenho cá uma | Idea que me faz pulsar o coração. || - Que é? meu rapaz. || - Tenho pressentimento de que conhe-| co esse velho padre que se esconde. ||- É possível. ||- E que é D. Jeronymo o prior da ab-| badia da Côrte de Deus. ||

- Calla-te ! || - Ah ! disse Benedicto alegremente, já | vê que é elle. || - É mas calla-te. || - E com razão lhe dizia o senhor que | era mau receiar aqui alguma cousa. Es-| tou bem certo de que ninguem cá da ter-| ra pensaria em denuncial-o. ||- É verdade; mas além de salvaguar-|dar a sua liberdade, ainda ha outra ra-|zão. || - Qual ? ||- Oh ! é uma historia que não posso| contar-te. Esse segredo não é meu, é |delle.||- Bem, disse o corcunda. Não lh’o pe- |co. Ah ! eu bem sabia que não tinha | morrido esse bom e santo homem. || E Benedicto radioso foi ter como Bibi, | que o esperava com anciedade. || - Vem depressa, disse elle, vamos vêr. || - E levou-o para a outra extremidade | do corredor, que dava para o quarto do | fidalgo. ||- Olha, disse elle, apontando para o | buraco da fechadura ||Benedicto espreitou e viu o fidalgo | que deixara o leito e se encostara a ja- | nella.||- Entra, disse então Bibi. Sabes que | elle só deve ver-te a ti, como disse Mu- |nito. || - Sim, respondeu Benedicto. || E entrou no quarto. || O ruido que a porta fez ao abrir e fe-| char não sobressaltou o louco. || O fidalgo olhava para o campo e pa-| recia absorvido nessa contemplação. ||[espaço] XLI [espaço] || Benedicto poz então a mão no hombro| do fidalgo. || O louco voltou-se e olhou para Bene-| dicto com surpresa e disse-lhe : || - Porque jã não esta alli o rio? ||- Qual rio? perguntou Benedicto. ||- O sena. ||

Edição 429 PONSON DU TERRAIL [espaço] 52

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XLI ||- Nós já não estamos em Paris. || - Ah ! disse o louco. || E recahiu na sua contemplação. || Benedicto voltou-se para a porta e foi | ter com Bibi ao corredor. ||- Julga que ainda esta em Paris, dis-| se elle. || - Tanto melhor ! || - Então porque ? || - Porque é uma prova de que a reac- | cão não se opera ainda, e que só chega-| rá gradualmente. || Si elle si reconhecesse logo, teriamos |de temer essa reacção violenta que Mu-|nito temas. || Benedicto voltou para junto do fidal-|go. || Este repetia: || - É exquisito ! porque fugiria o rio ?! || Depois de um grande silencio : ||- Então, disse elle, voltando-se para | Benedicto, em cuja ausencia não repa- | rara, então dizes tu que ja não estamos | em Paris? ||- Não. ||- Aonde estamos pois? || Benedicto não respondeu. || Mas o louco não reparou nisso. Uma | voz intima fallava nelle por Benedicto. ||- Parece-me que já iv isto em alguma | parte, disse elle. || - Ah ! disse o corcunda. || - Dormirei eu ? perguntou elle ainda. ||- Não, senhor. || - Estou bem acordado? ||- Sim, senhor. || - Porque me tratas tu por senhor, ci- | dadão, é que me deves dizer. || E o louco foi para a janella, deixando |

divagar a vist pelos campos e pela flo-|resta que se descobriam ao longe no ho-| risonte, e que os raios do sol começavam | a inundar. || Subitamente voltou-se ainda. || E assim como tinha olhado para a pla-|nicie, começou a examinar o quarto on-| de estava, os moveis, os quartos, e pa-|rece que uma lembrança fugitiva atra- | vessou as trevas do seu cerebro, como | um raio luminoso. ||- Não, não, murmurou elle, eu so- |nho... ||- Esta perfeitamente acordado, cida-| dão, disse Benedicto. || - Espera ! disse o louco, porque me | tratas tu por cidadão. || - Porque... || - Porque estou aqui, trate-me por se-| nhor. || - Bem ! disse Benedicto. || -

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Senhor... fidalgo... || E o louco deu uma grande gargalha-|da. || Escondido atraz da porta meia aberta, | Bibi via e ouvia tudo. ||- La começa a cura, disse elle ; já se | lembra do nome delle. ||De repente o louco foi direto a um re-|tabulo que estava á direita do leito, dis-|simulado na armação. || Abriu esse retabulo, o que era uma | prova de que lhe voltava a memória. || Depois procurou dentro uma caixa | quadrada forrada de velludo verde. || Essa caixa, bem como os outros ob-|jectos que estavam no quarto, ainda es-|tava intacta. || Pegou nella com certa avidez febril e | abriu-a || A caixa tinha um retrato em miniatu-|ra ; ao vê-lo, o louco deu um grito, um | grito que saiu do fundo do peito, ras-|gou a garganta e lhe retorceu os lábios. || Depois atirou com a boceta e com o | retrato. ||O retrato cahiu ao parque e quebrou-|se o vidro que o cobria. || Então como uma creança que acaba |

de quebrar o brinquedo favorito, o lou-| co sossobrou em pranto. || Esse retrato que produziu essa reac-| cão violenta, era um retrato de Aurora, | quando criança. ||[espaço com 15 pontos finais]||O cavalheiro de Mazures chorou por | muito tempo. E estava de tal modo ab-| sorvido na sua dor, que não viu Bene-|dicto apalhar o retrato, que só tinha o | vidro quebrado. || Depois de chorar, enxugou as lagri-|mas e começou a rir. || A razão que alumiara um momento| apagara-se de novo... || Aproximou-se da janella outra vez, | recahiu na sua contemplação, e , pouco | depois começou a trautear a Marselhe-|sa por entre os dentes. || Benedicto, atterrado, voltara para jun- |to de Bibi. || - Parece-me, murmurou o corcunda, | que nada fará toda a sciencia de Munito. ||- Esperemos, dizia Bibi. || - Então ainda tem esperanças? || - Tenho. || - Eu não. ||- Elle reconheceu a filha, lembrou-se |della, chorou. ||- Isso é verdade, disse Benedicto ; |mas agora já não pensa em tal. || - Mas lembra-se de outra epocha da |sua vida. ||- De qual? ||- Lembra-se da revolução, e por sig-|nal que até canta a Marselheza|| - E si nós lhe dissessemos que a me-|nina Aurora não tinha morrido? ||- Oh ! ainda não. ||Passou-se a manhã. O louco já não | cantava, cessara de chorar, e tinha re-|cahido na sua pacifica abstracção.||De tempos a tempos o tio Cornu, sua |mulher ou sua filha deixavam a herda-| de, vinham ao castello e fallavam com | Bibi que continuava a não se mostrar. || Bibi estava cheio de esperanças. Ao | meio dia Benedicto entrou no quarto do | fidalgo, levando uma mesa bem servida. |

O fidalgo começou a comer e a beber, | como costumava a fazer na humilde habi-|tacão de Benedicto. || Parecia que se extinguira todo o cla-|raõ da reminiscência. || Depois, quando acabou de comer, vol-|tou-se para Benedicto e disse-lhe : ||- Vem commigo. ||- Onde quer ir ? perguntou o corcun-|da. || - Quero ir ao rio. || Bibi que estava atraz da porta fez um |signal que queria dizer: ||- Não o contraries em nada. || E Bibi occultou-se na sobra de uma | porta. || O fidalgo encostou-se no braço de Be-| nedicto, sahiu do quarto e atravessou o | corredor. || Chegou a escada sem precipitação nem |vagar e deesceu, sempre guiado por Be- |nedicto. ||No vestíbulo parou diante de um tro-|pheu levantado em tempo por Aurora, |contemplou-o por um momento e abriu| a porta que dava para o pateo. || Parou ahi, onde havia uma alameda| de velhas tilias. || O fidalgo disse a Benedicto: ||- Entao este anno não apararam as |tílias? ||Bibi seguia-os a distancia. ||O louco deu uns trita passou e sem-|tou-se em um banco de pedra torrado de | musgo. ||Olhou então fixamente para Benedic-|to e disse emfim:|| - Reconheço-te. || - Ah ! reconhece ? ||- Reconheco, tu és o corcunda... Co-|mo te chamas agora ? || - Benedicto. || - É verdade. || - Passou a mão pela fronte e replicou : || - Aurora gostava muito de ti. || Benedicto abafou um grito. || O cavalheiro recahiu na sua medita-|cão. Não procurava, porém o rio. ||

Passou cousa de uma hora no banco. | Benedicto sentado ao lado delle não ou-|sava fallar. || Bibi parara a adistancia, collara-se a | uma arvore, e não os perdia de vista. || O fidalgo levantou-se repentinamente. || - Vamos, disse elle. || - Onde? disse o corcunda. || - Para casa, tenho frio. || Voltou-se tão depressa que Bibi não | teve tempo de fugir. || Immovel, junto do tronco, esperava | que o louco passasse ao pé delle sem o |ver. || O louco

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caminhando a passos curtos, | dizia a Benedicto : || - Agora bem sei onde estou. Estou em | minha casa... em Billardiére. || - É verdade, senhor. ||- Mas estive bem doente. || - É verdade, senhor. || -Delirei, não é assim ? ||- É, disse Benedicto com a cabeça. ||- Muito tempo ? || - Muitos dias. || - Deve ser isso, porque no meu deli-|rio vi cousas extranhas ; diziam que so- |nava mesmo acordado.||- Que sonhou então o senhor? per-|guntou ingenuamente Benedicto. || - Oh ! bem vejo que foram cousas que | nunca succederam porque eu estou aqui. ||- Com certeza volveu Benedicto sem |saber o que dizia.||- Queimaram os castellos, mataram o |rei, expulsaram os nobres e os padres. || - Ah ! sonhou isso senhor ? || - Eu tinha um gorro encarnado, e | tornara-me o inimigo da minha cas-|ta. Cantava palavras extranhas... Que | diabo cantava eu ?||E o fidalgo fez um novo esforço de me-|moria e entoou os primeiros versos da | Marselheza : ||Allons, enfants de la patrie, ||Le jour de gloire est arrivée || Contre nous, de la tyrannie... || Parou e olhou para Benedicto. ||

Edição 430 PONSON DU TERRAIL [espaço] 53

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XLI ||- Ouviste cantar isto ? ||- Nunca, senhor, respondeu Benedic-|to a tremer. || - Foi um sonho. Eu fui que inventei |isto... || O louco deum alguns passos ainda e de-|pois disse abruptamente a Benedicto: ||- Não foste hoje á caça? ||- Não senhor. || - Aurora não te velou com ella ? || - Não senhor. || - Sabes si ella voltará cedo, esta tar-|de? ||- Vem ás horas do costume. || Benedicto respondia ao acaso. || Subitamente o fidalgo levantou a ca-| beça, e achou-se defronte de Bibi. || Foi um momento instantâneo e terri-|vel|| O cavalheiro olhou para elle e disse : || - Tu ! tu !... ||- Eu ! balbuciou Bibi. || - Ah ! disse o louco, dando um grito, |eu não sonhei... não delirei... a Marse-|lheza, a guilhotina, o rei morto... tudo |isso é, pois verdade? || Bibi, tremulo, baixou a cabeça. || O fidalgo pegou-lhe no braço, sacu-|diu-lh’o rudemente e disse: ||- Mas falla, falla ? porque estou eu |aqui, eu , o cidadão Paulo? || - Para te curares, respondeu Bibi. || Um suspiro sahiu da boca do louco. || Aurora, disse elle, Aurora ! guilho-|tinaram Aurora. || E cahiu desfalecido nos braços do cor-|cunda Benedicto, que murmurou: || -Meu Deus ! parece que vae morrer !||

- Não, disse Bibi, esta salvo.. está cu-|rado ! ||[espaço] XLII [espaço] || Bibi fallara a verdade até certo ponto. || Estava curado o fidalgo. || Rasgara-se repentinamente o véu que | cobria a memoria delle, e tinha-lhe vol-|tado a consciência de sua identidade. || Era o cavalheiro de Mazures, o pae | de Aurora, que elle julgava morta. || Lembrava-se de ter sido o cidadão | Paulo, o terrivel chefe da policia de se-|gurança. || A presença de Bibi não poia deixar-|lhe duvida alguma sobre esta parta da | sua existencia. || Benedicto e Bibi levaran-n’o desfal-|lecido para o castello ; o deliquio, po-|rém, foi de curta duração. || Um pouco de vinagre nas fontes e nas| mãos bastou para o chamar a si.|| Olhou então para os seus dois enfer-|meiores e disse-lhes com uma voz affec-| tuosa e de meiga censura : ||- Porque me trouxeram para aqui ? ||- Vou dizer-çh’o senhor. Ha alguns | mezes travalhava eu em Paris, cahi | doente e levaram-me ao hospital. ||Encontrei-o lá e reconheci-o. || Pedi então para o trazer commigo e | levei-o para minha casa. || - Sim, sim, bem me lembro agora, dis- | se o fidalgo. || - Certa manhã encontrei este senhor | que o conhecia tambem, continuou Be-| nedicto, e pensando que se enganavam | os medicos que diziam que o senhor era |incurável, trouxemol-o para aqui. ||- Mas de quem é esta casa agora ? || - É sua senhor, disse uma voz do | umbral da porta. || O pae Cornu entrou com o bonet na | mão. || O fidalgo reconheceu-o também. || Bibi escondera-se atraz de Benedicto | e tinha posto um dedo na bocca. || Cornu respondeu com um relancear | de olhos. ||

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Era evidente que o fidalgo morreria | ou voltaria a loucura, si soubesse repen-| tinamente que sua filha não tinha mor-|rido. || - Senhor fidalgo, respondeu o tio Cor-| nu, o castello foi vendido como bem na-|cional, mas eu comprei-o e é seu ainda. || - Ah ! disse o fidalgo com indifferen-|ça. || Elle olhava para Bibi de um modo que | queria dizer : ||- Queria ficar só comtigo. || Bibi comprehende. Fez um signal ao | pae Cornu e a Benedicto que sahiram. |Ficando só com o homem da policia, o | fidalgo olhou para elle com doçura e dis-|se : ||- Então ficaste meu amigo ? || - Pois então ! respondeu Bibi. || - Diz me cá... o que se passou... desde | aquelle di terrível ... em que... || O cavalheiro parou, tremendo. || -Sim, disse Bibi, comprehendo. En-|doudeceste. Benedicto contou-te a ver-|dade. ||- Ha muito que foi isso ? ||- Ha três annos. || O cavalheiro cobriu o rosto com am-|bas as mãos e disse : ||- Ha tres annos? e... a republica?... || - Ainda dura. ||- Robespierre? || - Robespierre morreu... e os outros |também... ja não se guilhotina. || - Ah ! disse o fidalgo respirando. || Fez um gesto de medo, e apontando | para a porta, ou querendo apontar para | os que estavam fora, disse : || - E elles não o sabem, ao menos ? ||- Não sabem nada. || - Nunca ouviram fallar do cidadão | Paulo ? ||- Nunca ? || O cavalheiro escondeu a fronte com | as mãos e duas ardentes lagrimas lhe | rebentaram atravéz dos dedos. ||- Fui um grande criminoso, disse elle. | Deus castigou-me. ||

- Arrependes-te então ? ||- Oh ! si me arrependo ! ||O nome da filha subiu-lhe do coração |aos lábios. ||- Ouve, disse Bibi, não foi só para te | restituir a razão que eu te trouxe aqui. || - Então para que mais ? ||- Lembras-te de Antonia ? || Um estremecimento lhe percorreu to-|do o corpo. ||- Ah ! a miseravel ! disse elle, foi ella | que roubou o cofre. || - Foi. || - E a fortuna de minha filha ? || Bibi não respondeu. || O cavalheiro deu um novo suspiro e |disse : ||- Felizmente os mortos não têm ne-|cessidade de nada. ||- Agora que tu voltou a razão, dei-|xarás Antonia gozar esse ouro pacifi-|camente ? ||- Ora ! disse ele, de que preciso eu ? | E depois onde esta Antonia? quem po-|de dizer o que é feito della ? ||- Eu. ||- Tu sabel-o? ||- Sei, e fiz um juramento em como | ella as havia de pagar cedo ou tarde. ||- Mas de que serve ? minha filha mor-|réu... ||- E não tens outra herdeira ? tua fi-|lha... ||- Ah ! sim, disse tristemente o velho, | minha filha tinha uma irmã, a filha de | Gretchen... mas essa morreu talvez tam-|bem... ||- Não, não morreu. ||O cavalheiro deu um grito. ||- Joanna não morreu ? Joanna vive ? ||- Vive. ||- Oh ! então, disse o velho, quero re-|haver de Antonia o dinheiro roubado. || - Como has de tu fazer isso ? disse Bi-|bi arquejante. ||- Não sei... mas Deus me ajudará !||E nos olhos encovados do velho bri-|lhou um raio de mocidade. ||

- Talvez eu te possa fornecer um |meio, disse Bibi. ||- Ah ! disse o cavalheiro, olhando pa-|ra elle avidamente. ||- A cabeça ainda esta bem fraca, pros-|seguiu Bibi, descança, trata de dormir| um pouco... Quando acordares fallare-|mos de Antonia. || O fidalgo mostrou-se dócil. || Quebrantara-o a emoção e não tar-|dou em adormecer. Foi curto, porém, o | somno. ||Quando despertou, Bibi estava a cabe-|ceira. ||- Bem ! disse elle, agora falla-me de | Antonia, já dormi e não estou loucco. || Bibi contou-lhe então o que ja sabe-|mos, que a bohemia confiara o dinheiro | ao chefe da sua tribu, e que este o res-|tituira, si lhe provassem que era falso o |testamento da princeza Helena. || - É falso, disse o cavalheiro. ||- Tens a certeza disso ? ||- Ora ! fui eu quem o fiz, quando era | um miseravel e que queria fugir com | Antonia para casar com ella. ||- Sabia isso, disse Bibi ; as a tua pa-|lavra que é sufficiente para Munito não é |bastante para os companheiros delle. ||- Oh ! disse o cavalheiro irado, que | me ponham diante dessa creatura e eu | a obrigarei a confessar tudo. ||- Não tem nenhuma carta da Prince-|za Helena ?||- Não. || - E Antonia ? ||- Deve ter ; mas onde... || Bibi chamou Benedicto. ||- Amigo, disse elle ao corcunda, já | não precisamos de ti. ||- Então porque ? disse o corcunda | admirado. ||- Vaes partir para Paris. ||- Quando ? ||- Agora mesmo, e não pararás nem | dia nem noite. ||

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Edição 431 PONSON DU TERRAIL [espaço] 54

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XLII ||- Bem ! disse Benedicto. E que mais ? ||- Chegas a Paris, procuras Munito e | entregas-lhe a carta que te vou dar. || Bibi sentou-se diante de uma mesa e | escreveu a Munito a seguinte carta : ||<< Paesinho, ||<< O louco esta curado. Tem tanto jui-|<< zo como tu, e possue toda a sua me-||<< moria. Vem depressa, e si teus minis-|<< tros chegaram, tral-os comtigo. ||<< O pae de Aurora provará a todos os ||<< tres que o testamento da princeza He-|Lena é falso. ||[espaço] <<Teu amigo, ||[espaço] Bibi >> || Uma hora depois, Benedicto caminha-|vapara Paris. Declinou o dia o fidal-|go parecia ter voltado a vida. Julgava | morta a filha, e Bibi não julgava pruden-|te ainda desenganal-o, porque a alegria | mata mais depressa do que a dor ; mas | elle estava resignado e parecia querer | viver para tornar a vêr essa filha que | elle outr’ora perseguira. ||- Si Deus me concede ainda alguns an-|nos de vida, dissia elle, procurarei fazer | com que se me perdôem os meus crimes. || Passou socegado a noite, e no dia se-|guinte disse a Bibi : ||- Queres sahir comigo? Sinto-me |forte esta manhã ; passaremos por baixo | das arvores da avenida. ||- Como quizeres, disse Bibi. || Sahiram. || O cavalheiro quis sentar-se no mesmo | banco, onde na vespera tinha parado com | Benedicto. ||- Si tivesse uma bengala caminharia |melhor, disse elle. ||- Vou buscar-te uma, respondeu Bibi. ||| E o homem da policia foi ao Castello, | deixando o fidalgo no banco de pedra. || Nesse momento apparecia outro per-|sonagem na outra extremidade da ave-|nida. || Era um velho que caminhava a pas-|sos lentos e acurvado. || A principio o cavalheiro olhou para |elle com curiosidade; depois estremeceu |subitamente. ||- Então os mortos voltam ? murmu-|rou elle. || E levantando-se com esforço, cami-|nhou ao encontro do velho. || Este parou espantado, olhou para o | cavalheiro com attenção e deu um gri-|to : ||- O cavalheiro de Mazures ! ||- D. Jeronymo ! exclamou o pae de | Aurora. || Effectivamente era D. Jeronymo.|| Como ousava elle agora mostrar-se em | pleno dia, quando se escondia e não se | atrevia nunca a vir á Billardiere, sinão | de noite e furtivamente ? || É o que nós vamos dizer. ||[espaço] XLIII [espaço] || D. Jeronymo, o velho prior da abbadia | da Côrte de Deus, tinha se refugiado em | Billardiere nos primeiros dias do terror. ||Tinham esperado um momento para | lhe procurarem um passaporte afim de |elle deixar o paiz. || Mas a tempestade que então rugia | contra os nobres, era ainda mais furio-|sa contra os padres. |D. Jeronymo foi preso uma manhã e | posto em um carro que ja estava cheio | de padres e que se dirigia para Orleans. || Foi mettido nas cadeiras da cidade e | achou-se alli com um grande numero de | padres e de nobres. || Na provincia a guilhotina não func-|cionava com a mesma presteza que em | Paris. || Mandaram a gente ao cadafalsto aos | grupos de duas ou três pessoas. ||D. Jeronymo foi um dos ultimos a che- |

gar e por muito tempo esperou a sua |vez. || m carcereiro disse-lhe certa noite : ||- Ainda tem seis boas semanas primei-|ro que chegue a sua vez. Tenha pacien-|cia meu valente. || Nas cadeias de Orleanas não havia só | padres e nobres ; havia também ladrões e assassinos. || Entre estes ultimos havia tres bandi-|dos que tinha assassinado um homem | que era portador dos fundos do estado e, | que desempenhava o cargo de precep-|tor. || Ora como esses três homens eram cri-|minosos e não prisioneiros políticos, fi-|zeram-lhes a honra de os julgar, e o pro-|cesso levou duas audiências. || [F]oram condemnados a morte. Um del-| lês, estranha coincidência ! era um ve-|lho da estatura de d. Jeronymo, e tinha | com ele uma vaga similhança||Era um aldeão de Ingrannes, aldeia de | que os frades tinham sido suzeranos. || Reconheceu d. Jeronymo, lançou-se- |lhe aos pés e pediu-lhe a benção. ||D. Jeronymo tocou essa alma perver-|sa, reconciliou-a cou Deus, e como vão |ver, fez mais ainda. ||O assassino

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chamava-se João Dubois. | Tinha mulher e filha. Desde a sua con-|demnação, desde o seu arrependimento | fallava frequentemente dessas pobres | creaturas, e não cessava de os recom-|mendar a d. Jeronymo. || D. Jeronymo dizia-lhe com um sorriso | triste :||- Meu amigo, que poderei eu fazer | em favor dellas, si vou morrer comtigo ?! || Certa noite o carcereiro annunciou | aos dois assassinos que no dia seguinte | a guilhotina descansaria para os aristo-|cratas e que trabalharia para elles. || João Dubois chorou, ao saber a triste |nova. ||- Ai minha pobre mulher e filha, di-|zia elle entre suspiros, nunca mais as | tornarei a vêr ! ? ||

E beijava a sotaina do pobre padre. ||- Ouve, disse o padre, ha talvez um | meio pelo qual tu ainda as pódes ver. || O criminoso levantou para o padre | uns olhos ávidos. || - Pareces-te commigo alguma cousa, | prosseguiu d. Jeronymo. Tens, como eu | cabellos brancos e tens também a minha | estatura. ||João Dubois não comprehendia. || O padre continuou: ||- Eu não serei guilhotinado antes de | um mez ou de seis semanas. Quem sabe | si daqui até la se abrirão estas portas, e | apparecerá a reacção em França ? ||- Oh ! há de vêr, e o senhor não mor-|rerá, disse o criminoso. ||- Em tal caso, tu é que não morre-|rãs. || E como João Dubois olhava para elle | admirado, d. Jeronymo proseguiu: ||- Toma as minhas vestes e dá-me o | teu facto. Amanhã, quando te chama-|rem, apresentar-me hei eu. Enganar-|se-hão e eu morrerei por ti, feliz, si tu |tornares a vêr tua mulher e tua filha, | e si viveres de ora avante como homem |honrado. || João Dubois deu um grito e cahiu aos | pés do velho sacerdote. || Houve então entre elles uma luta de | generosidade, da qual o padre sahiu vem-|cedor. || O criminoso consentiu em trocar o fa-|to pela veste santa do padre. || No dia seguinte, ao alvorecer chama-|ram os tres condemnados. ||D. Jeronymo tinha derrubado para os |olhos o bonet do aldeão, e levantou-se |quando o meirinho pronunciou o nome |de João Dubois. || Um minuto depois subia ao carro, que |atravez de uma multidão immensa to-|mou o caminho da praça Martroi, onde |estava levantada a guilhotina, e onde |ordinariamente permanecia. || Os dois assassinos cúmplices de João. |

Dubois não tinham tanto medo da morte |como elle. || Quando subiram ao carro começaram| a entoar a Marselheza, com toda a for-|ça. || Ao pé do cadafalso gritaram: ||- Viva a republica ! viva a pátria ! ||A multidão bateu palmas. || Um representante do povo, enviado a | Orleans para reanimar o civismo, um | pouco enfraquecido daquella cidade, ou-|viu aquelles gritos e os applausos da ple-|be, e mandou logo suspender a execu-|cão. || Fez ir á sua presença os três condem-|nados e disse-lhes: ||- Ja que quereis morres, desejando a |republica, a republica perdoa-vos ! || Sois livres ! ||Fez desatar-lhes as mãso e mandou-os |embora. || D. Jeronymo, estupefacto, viu-se le-|vado em triumpho pelo povo, e escapou |assim milagrosamente á morte. ||Durante muitoz mezes viveu o velho|padre escondido em um dos arrabaldes |da cidade. ||Em quanto a João Dubois, conhecen-|do-se o engano no dia seguinte, solta-|ram-n’o, como tinham feito aos seus | cumplices. ||Foi então que dom Jeronymo tomou uma |noite o caminho de Billaridiére, e veio |confiar-se aos cuidados do tio Cornu. ||Até o 9 thermidor, o padre ficou es-|condido no concavo de uma arvore, em |plena floresta de Orleans, sahindo só de |noite para vir buscar alguns alimentos |á herdade. ||Terminado o 9 thermidor, o tio Cornu | esforçou-se por provar a d. Jeronymo |que estava passado o perigo, e que de |ora em diante podia vir viver com elle. ||E d. Jeronymo recusou Porque? ||É porque, voltando á vida, o velho |sacerdote sentiu reviver nelle o senti-|mento de seus deveres de superior da |sua ordem. ||

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Edição 432 PONSON DU TERRAIL [espaço] 55

A JUSTIÇA DOS BOHEMIOS

A ramilheteira Nichette

XLIII ||A republica queimara e saqueara os |conventos ; tinham, porém os padres, |necessidade de altar para dizer missa ? ||Sem asylo, a ordem dos frades da Côr-|te de Deus ainda estava a pé. ||Alguns daquelles a quem abriram as | portas do convento refugiaram-se no | Piemonte e edificaram ahi um outro |mosteiro. || Por falta de recursos viviam de esmo-|las, e d. Jeronymo, que sabia isso, so-|nhavair ter com elles e levar-lhes um |thesouro ; e esse thesouro era a fortuna |do convento destruido. ||Quando rebentou a revolução, d. Je-|ronymo e dois dos frades enterraram em |um canto da floresta uma caixsa volumo-|sa que continha uma somma importante |em ouro, os vasos sagrados do convento |e outros objectos de grande valor. ||Os dois frades tinham morrido no ca-|dafalso ; só d. Jeronymo vivia ainda. ||Por intervenção do pae Cornu poz-se |em relações com os frades de Piemonte.||Dois destes voltaram á França disfar-|çados em carrejões e munidos de passa-|portes. ||Fizeram uma primeira viagem e le-|varam uma parte da somma escondida ;| voltaram dois mezes depois e levaram |outra parte. ||D. Jeronymo não queria mostrar-se |sem que o thesouro todo estivesse em |segurança. ||Lembrava-se de que tinham procurado | inutilmente as riquezas do convento, e |de que quando estivera preso lhe tinham |

promettido a liberdade, si elle quizesse |dizer onde estavam aquellas riquezas. ||Ora dizia-se com razão que elle seria |outra vez preso, si se mostrasse, porque |ainda estava em vigor a lei sobre os con-|ventos. ||E por isso era que d. Jeronymo tinha |ficado escondido na floresta. ||Que succederia , pois, de inesperado pa-|ra que elle ousasse sahir de dia a Billar-|diére, quando na precedente noite ainda |tinha recusado a hospitalidade do pae |Cornú? || Uma cousa simples na verdade. || Na noite passada tinham chegado os | monges disfarçados em carrejões. || Em vez de dois eram quatro e pude-|ram levar tudo. || O thesouro estava agora seguro, e d. |Jeronymo já não tinha motivos para se |esconder. ||[espaço com 15 pontos finais]||Passado o primeiro momento de es-|panto que d. Jeronymo e o cavalheiro |experimentaram, quando se tornaram a |ver, o primeiro exclamou: ||- Ainda vivo, o senhor ! ||-Como o senhor ! disse o fidalgo. ||Poz se de joelhos diante de d. Jerony-|mo e disse com uma voz commovida: || - Padre, fui um grande criminoso, |mas o arrependimento entrou em meu |coração... ||- Assim o desejo, disse d. Jeronymo|que mais de uma vez se deixara le-|var pelas lagrimas hypocritas do cava-|lheiro de Mazures. || Este comprehendeu que o padre du-|vidava do seu arrependimento, e disse : ||- Ah ! não acredita? ||- Senhor ! ||- Fui um grande criminoso, disse o |cavalheiro, abafando um suspiro. Deus, |porém foi terrivel para mim ; castigou-|me com a sua justiça vingadora, e abriu |meu coração ao arrependimento. Padre, |

encluiu o velho prostrando-se diante de |dom Jeronymo, em nome da minha filha |morta, quer perdoar-me também o mal |que lhe fiz ? ||Perdôo, disse d. Jeronymo, mas não |posso perdoar-lhe em nome da sua filha |morta. ||-Porque ? ||- Porque sua filha ainda está viva. ||O fidalgo deu um grito terrivel. ||Levantou-se com olhar desvairado, |perdido, tremulo, e olhou para d. Jero-|nymo, fixando-o medonhamente. ||-Minha filha esta, pois, viva ainda, |diz o senhor ? ||- Sem duvida. || - Ah ! disse o cavalheiro. || E cahiu no solo, fechando-se-lhe os |olhos subitamente. ||- Aurora ! murmurou elle, minha fi-|lha ! || Cerraram-se-lhe os labios, como se lhe |tinham cerrado os olhos. ||Nesse momento voltava Bibi. ||Viu o cavalheiro prostrado, e d. Je-|ronymno inclinado sobre elle, perdido. ||- Meu Deus ! exclamou, que lhe disse |o senhor !?||- Mas, balbuciou o velho padre, elle |julgava morta a filha... ||- E o senhor disse-lhe que ella ainda |era viva? ||- Disse. ||- Pois bem ! disse Bibi, acaba agora |de o matar,

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e esse mesmo golpe arrui-|nou talvez Aurora e sua irmã Joanna. ||O padres cobriu o rosto com as mãos e |cahiu de joelhos. || Bibi fazia vãos esforços para chamar | á vida o seu antigo amigo o cidadão Pau-|lo. ||O cidadão Paulo, porém, o cavalheiro |de Mazures, morrera abafado por essa |immensa alegria que tanto receiava | Munito, o bohemio... ||FIM DO PRIMEIRO VOLUME ||

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