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Organização de Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo 1ª edição 2017

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Organização deCláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo

1ª edição

2017

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PARTE I

OBRA PUBLICADA

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CÍRCULO CÓSMICO* (1966)

1. PUBLICAÇÃO DO CORPO

Quando distanciar-me das altasnuvens, onde sempre habitei,devo levar algumas delaspara que saibam minha pátria.

Após soltar de espaço a espaçoas cascas vivas da memória,devo levar para a cidadeo corpo, esta palavra forte.

Só meu corpo vai realmentepisar nos jardins e nos pátiose com mãos novas sacudiras grandes árvores por perto.

Vou conduzi-lo com o cuidadode livro muito alvo na tarde:É minha única esperançade estar bem vivo entre vocês.

Só meu corpo sabe virartodas as páginas do tempoe só ele foi publicadocompleto, para ser seguido.

2. O SÍNDICO

Ao amar o edifício, amamoscaixa de fósforo ao luardo Trópico, onde são cremadosos amorosos, um a um.

* Esta é a primeira edição integral deste livro, após meio século da publicação de estreia do poeta. Com ele, inicia-se a sistematização do verso octossilábico, o mais raro em língua portuguesa. O poeta utilizou-o, em duas formas fixas distintas, também nos seguintes livros: Oração pelo poema, Publicação do corpo (1974), Poemas anteriores (1974-1989), Yacala (1999), Meditação sob os lajedos (2002) e Outras retrancas (inédito).

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Perdidos nos altos problemas,aterrissamos aterradosde altos andares, no ascensorque tarde nos economiza.

Ameaçados, não salvamosos escapulários, que a infânciacorre nas salas à procurade escadas e botões de alarma.

Pelo edifício refratárioà solidão e, pura caixa,de onde riscados sairemoscada um com seu próprio incêndio.

3. NOTAS DE UM EXPATRIADO

Permanentemente de malasempunhadas e com um adeusimplícito, como se fosseum alísio, um vento para sempre.

Os planos podem desabartal um eucalipto de noitesobre as casas, e é precisovoar aos primeiros estalos.

Nenhum estrato, nenhum nimbose vangloria pelos arescitadinos, sentimentais,de o ter coberto longas épocas.

E segue como os sós, armadode medo ou de revólver azul,mas não atira para o céude só nuvens para destruir.

Apenas uma sombra extensade volumoso cobertorcobre o areal, para que eleseja bem-vindo no deserto.

4. ASTERISCOS

Como um suicida que deixauma carta em cima da mesa,para descansar a polícia,deixo o meu poema no mundo.

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Minha dor lógica jamaisnecessitou de testemunhooutro, que não fosse o meu corpo,sob os ataúdes do Céu.

Pisei nas calçadas da vida(de cabeça baixa) e gritaram;desci sem nenhuma palavrae eles morreram de vergonha.

O telefone negro tocana sala interminavelmentedeserta. Que nova esperançadirá um telefone negro?

Os meus amigos têm olhoshorríveis, diante de mim.Mas não pergunto o que lhes fiz:deixo o meu poema na mesa.

5. PALESTRA SANGUE

A moça que está ao meu ladoestá ensanguentada. A gola,os bordados da blusa, cobre-os uma pasta de sangue vivo.

Folheia impacientementeum figurino, a machucaro alto das páginas, se moveconstantemente do lugar.

Só em raros momentos erguea cabeça para a paisagemmedíocre, por sinal, trêsou quatro mórbidas colinas.

E desce novamente o olharaos manequins de luto, às linhassóbrias e tristes, de uma terraque ela nunca visitará.

Pergunto-lhe pela extensãodo seu provável ferimento,como é tão óbvio perguntar-se.Ela ri: — Do meu ferimento?

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6. O IRMÃO POETA

O Irmão Poeta tem a vagaimpressão que tenho do mare mora na primeira conchase for aberta com amor.

Por outro lado, não aceitadividir o espaço comigoe logo procura abater-meainda no ar, em pleno voo.

Vive a catar (real detento)uma brecha no meu poemapara escapar-se, na alegriadelatora dos fugitivos.

Se há poucas horas me retevecom a mão recheada de espanto,começa a mexer-se na camae pode arrancar os cabelos.

O Irmão Poeta gosta mesmoé de devorar seu irmão,é de ler o verso que escrevee o dos estranhos e o dos mortos.

7. O LEVANTAR DAS VENEZIANAS

Há muito tempo não sentiauma brisa tão confortantecomo esta, que parece feitapor mim mesmo, para o meu corpo.

Vem-me novamente a impressãode que o sol foi vencido e tudorecuperou o desafogodos objetos libertados.

Chega-me também o alvoroçohumano, das folhas em festa,e a alegria colegialdos livros novos, das piscinas.

Tudo muito fácil e tão frescocomo um suave lençol de águaque cobrisse minha cidadetão desumana, mas tão quente.

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Por isso mesmo desconfiode um Anjo a cavar suas fontesaqui por perto — certamentedeves andar nas redondezas.

8. CONVITE NO VERÃO

O que me chama está felizcom o estado de sombra das almase não é conduzido nuncadentro de latas, como nós.

Possui anjos para abaná-lopor todo lado, tem as águaspuras e altas, e só precisabaixar os cântaros às nuvens.

Está tão próximo e tão dentrodos ventos, que pode escolhera brisa imaculada, aquelaque não saiu a passear.

Atravessa todas as tardesos amplos terraços, convidapara o clima suave as avesque sempre voltam por ali.

Possui as árvores, os livros,unicamente para o sono,nas horas necessárias: todas.Tem tudo nas mãos, e me chama.

9. BREVIÁRIO DA PANTOMINA

Nesta época de economiae de aflição, melhor fingirde morto para os transeuntes,porque no morto tudo sobra.

Deixá-los bater de repenteno meu corpo, como abalroamcasualmente na palmeiraem ruínas, e na verdade.

Autorizá-los a jogaro dominó noturno, mesmo

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sobre a memória do que foitão vivo no tablado negro.

E, se porventura, algum delesdesconfiar de minha morte,eu tão somente devereipedir que não a considere.

Que só o morto-falso podefazer o sobrenatural:a porta leve, a dobradiçasuave para os inocentes.

10. SALVAR DE LONGE

A solidão solta na noiteos seus pássaros mais audazes,que infelizmente não trarãonenhum sinal de vida além.

Vamos esperar uma voltaque não apontará ao longe,vamos esperar que a manhãdiga que todos estão mortos.

E não corramos ao jardimpara a salvação de ninguém:fiquemos nesta sala própriapara morrer-se tão somente.

Assim abandonar o tempodispendido em nos transportara nós mesmos, pelos corredoresde gases cobrindo a garganta.

Vamos discar no telefoneum número qualquer do mundo e desejar felicidade:mas bem de longe, bem de longe.

11. BILHETE A ASCENSO FERREIRA

Não foi o rio que renasceu, foi o teu gadoque enlouqueceu.

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Derrubou cercaspelos baldios, que guarneciam poços vazios.

Com tanto cascoe tanto denteque água espirrou do chão doente.

Como atraídos por teu mistério,bois invadiram o cemitério.

12. NêNIA A RAPHAEL PEIXOTO COM A LIRA DE JOÃO CABRAL

Aprendi com um poeta secoe puro a cantar tua morte,entre o canavial e o mar.

Jogo minha lança no escuroe ela cairá certamentena tua coxa, como um alvo.

Foste muito tempo o copistaúnico da “USINA BULHÕES”, também seu único poeta.

Seguias paralelo ao rioe a pé, como ele, mas a pedranão te feria o expediente.

Isso também eu aprendicom o poeta de que te faleie está conosco no poema.

13. PARA MANUEL BANDEIRA

O que morre jovem faz o bosque chorar.Nada faz.

O pássaro velhopoderá morrer,porque já ensinou o bosque a cantar.

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14. OCIOSIDADE DA CRIAÇÃO

Não me cabe planificaras novas cidades, por certo,cabe-me apenas contemplare já é um grande trabalho.

Principalmente para mim,que para isso fui apontadolá do alto da infância, uma flauta,uma flauta, como testamento.

Inúteis todos os trasladosde cartas que não voltam nunca;porque em si nada conduzem,além do tempo vão perdidas.

Vocês me obrigam a fazê-lasquando o sol morre sem cantiga,e digo sem que ninguém me ouça:— minhas rosas, estou morrendo.

Bato na máquina emperrada,(com rasura) o óbito da tarde;a minha obrigação na Terraé só ler e olhar a cidade.

15. O TELEVISOR

Pelos competentes canais, garanhas a alma, a ofertaro preço falso e a propagandade petróleo e felicidade.

Dentifrícios resolverãotodos os problemas do Mundo:os dentes alvos e o sorrisoensaiado até o soluço.

Atrás dos bonequinhos: Deuse a fala desproporcional. O Senhor de Marionetesmove o perdão atrás das câmaras.

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16. HELICÓPTERO (Geral de pouso)

Não caço o poema que fiz,vivo do poema que faço,que desce perpendiculartal um helicóptero, na estrada.

Qualquer jardim, qualquer telhadoser um campo de repousoou de pouso para a palavra:rosa valente sobre a Terra.

A grande hélice lhe concedeo ar de pássaro, o vento próprioque deve afugentar o levealheio, que não presta mais.

Esse helicóptero aterrissasobre a ojeriza geométricade mãos contadas, que o recebecom réguas moles e com trenas.

Dele salta um homem cansadode voar e de ser tão vãopelo ar, o Poeta que agoraaponta a alma novamente.

17. HORA DE VOAR

O poema depois de prontoainda luta com o poetae vai crescendo na gaveta,onde não cabe uma esperança.

Cresce em seguida no meu bolso,muito menor para contê-lo.O poema, depois de pronto,quer-se mostrar, como as crianças.

Fica assustado no casacoe parece que tem meus olhos.(Eu lhe acendi o último fósforoàs duas horas da manhã.)

Dentro de mim se move alguémsempre a julgar-se muito alto,mas fica na ponta dos pésquando procura ser notado.

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Salva-me na Terra este grandepudor de mostrar o poema,como se fosse uma das partesmais vergonhosas do meu corpo.

18. O PREÇO DAS CONCHAS

Só há tempo para rasgarnossas roupas, sobre um rochedo:as de baixo, as roupas do céudescoladas pelo verão.

Estamos em cima da horamais alta, pedra debruçadanas alturas, que não suportaalém de nós uma lembrança.

O amor à fuga tem o pesodas âncoras, levanta as mãospara o rosto, sem tatearnas ramagens de madrugada.

Caso desponte uma criançade alguma parte, as grandes águassão paisagem suficientepara seu filho, fique certa.

Ele passará lá por baixosem saber da nossa nudez.Ele buscará as primeirase últimas conchas da manhã.

19. PERFORMANCE

Quando iniciei o caminhoo mundo já estava escritoe tudo era inocência: livros,navegações, lápis e flauta.

As letras possuíam pesode bola, de soldado e infância,que eu segurava e reuniano assoalho, cubos e cubos.

Mas se grudaram nos vocábulos sopesados, de muitos quilos,

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depois no poema pirâmidebloco a bloco, sobre o meu corpo.

Que me enterra. Agora me afundocarregado de ouro, no pântano;mais tarde restará a mãonos ares, separando um grito.

O meu sossego de meninovoará sábado, com os pombos,quando a morte arrancar do corpoamado os brilhantes cabelos.

20. CÍRCULO CÓSMICO

Livro-me tarde. Um deus facínorarasga a cabeleira da trevae emerge todo satisfeitocomo uma rocha de entre as ondas.

Estou no patamar do mare suplico gesticulandocom duas bandeiras na mão:uma rosada e outra vermelha.

Tudo realizado e prontoe público e definitivo,tal um diário oficialgrifado para a Eternidade.

Agora o deus mencionadoparticularmente dirigea mão de lâmina, o perdãoridente como todo escárnio.

E levantado num rochedo(no mais alto, naturalmente)dá grande salto pirotécnico,antes de afastar-se dali.

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