ordem caos e percepção

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA ORDEM, CAOS E PERCEPÇÃO MODELO TEÓRICO E ANALÍTICO PARA LUX AETERNA DE GYÖRGY LIGETI Tese apresentada à Universidade Católica Portuguesa para obtenção do grau de Doutor em Ciência e Tecnologia das Artes Por Pedro Miguel Pereira Monteiro ESCOLA DAS ARTES Dezembro de 2012

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  • UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA

    ORDEM, CAOS E PERCEPO

    MODELO TERICO E ANALTICO PARA

    LUX AETERNA DE GYRGY LIGETI

    Tese apresentada Universidade Catlica Portuguesa

    para obteno do grau de Doutor em Cincia e Tecnologia das Artes

    Por

    Pedro Miguel Pereira Monteiro

    ESCOLA DAS ARTES

    Dezembro de 2012

  • 3

    UNIVERSIDADE CATLICA PORTUGUESA

    ORDEM, CAOS E PERCEPO

    MODELO TERICO E ANALTICO PARA

    LUX AETERNA DE GYRGY LIGETI

    Tese apresentada Universidade Catlica Portuguesa

    para obteno do grau de Doutor em Cincia e Tecnologia das Artes

    Por Pedro Miguel Pereira Monteiro

    Sob orientao de:

    Professora Doutora Yolanda Espia (orientadora) e

    Professor Doutor Miguel Ribeiro-Pereira (co-orientador)

    ESCOLA DAS ARTES

    Dezembro de 2012

    Trabalho desenvolvido ao abrigo de Bolsa de Doutoramento concedida pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia

    !!

  • 4

    MEMRIA DE CARMEN BANDEIRA

  • 5

    ORDEM, CAOS E PERCEPO MODELO TERICO E ANALTICO PARA

    LUX AETERNA DE GYRGY LIGETI

  • 6

    O que , pois, o tempo? Se ningum mo pergunta, sei o que ;

    mas se quero explica-lo a quem mo pergunta, no sei. (...)

    Santo Agostinho, Confisses XI1

    1 In AGOSTINHO, Santo Confisses, VII, X e XI. Trad. por: Arnaldo do Esprito Santo, Joo Beato e Maria Cristina Sousa Pimentel. Textos clssicos de Filosofia. Covilh: Lusofonia Press, Universidade da Beira Interior, 2008, p. 111.

    Ilustrao da pgina anterior retirada de: CODE, Art Form - Space Time 3. Just another WordPress site. In http://www.artfromcode.com/wp-content/uploads/2008/11/space_time_07.png

  • 7

    ABSTRACT

    A nossa proposta, Ordem, Caos e Percepo Modelo terico e analtico para Lux

    aeterna de Gyrgy Ligeti, baseada em trs grandes eixos. No primeiro, apresentamos uma

    reflexo especulativa sobre as relaes, lineares e no lineares, que fundam e orientam a

    percepo do objecto musical em nveis dimensionais e analticos. No segundo, estabelecemos

    o exemplo que serve de referncia ao nosso estudo, Lux aeterna, determinando e

    contextualizando a nossa metodologia de anlise. Da partimos para uma anlise formal

    detalhada, baseada na percepo, e estabelecida desde a sua superfcie audvel, delimitada

    pelos conceitos de macro e micro estrutura. Finalmente, no terceiro, apurando as limitaes

    dos modelos analticos tradicionais, fazemos uso do nosso prprio modelo terico, revelando a

    estrutura da obra, a partir da iterao fractal de um nico movimento - arsis-thesis - em toda a

    sua forma. Em consequncia, o terceiro eixo oferece mais do que uma concluso. Para alm de

    apurar uma sntese da informao recolhida, nele configuramos um novo modelo de anlise o

    qual tem em conta, no s a especificidade da percepo, desde o evento forma, mas a

    materialidade especfica da prpria msica. Por isso, esta materialidade, como fenmeno

    sonoro, contemplada atravs dos seus processos estruturais prprios, exclusivamente musicais,

    depende das circunstncias especficas da sua experincia, decorrendo naturalmente do

    espao-tempo que a enquadra.

    A inspirao bsica do trabalho proposto advm, pois, de uma abordagem duplamente

    interdisciplinar. Por um lado, cruza diversos ramos do conhecimento cientfico,

    designadamente, as cincias exactas com a matemtica, a fsica, a Teoria do Caos ou a

    topologia, mas tambm a prpria teoria e anlise musicais, de onde faz emergir um novo

    conjunto de conceitos e uma metodologia inovadora. Por outro, procura entender a msica

    como uma actividade prtica mas necessariamente terica, uma vez que, ao msico, como

  • 8

    artista, indispensvel o conhecimento do objecto da sua obra, do seu processo criativo e da

    reflexo sobre o que lhe serve de suporte.

    Neste sentido, relevante a experincia directa da materialidade da obra, atravs da sua

    audio. Todavia, como fica demonstrado no exemplo prtico da preparao de uma ensaio

    para a obra, a teoria fundamenta uma anlise que, por sua vez, se torna eficaz e reveladora do

    conjunto de processos que descrevem as relaes de complexidade entre o resultado audvel

    do objecto sonoro e o seu processo, relevando a quem ouve, activa ou passivamente, a beleza

    de ambos.

    Decorrente deste facto, vemos como Lux aeterna levanta um conjunto de questes

    tericas e analticas, relacionadas com a sua complexidade estrutural. De resto, estes

    problemas no so verificados apenas nesta obra mas num vasto domnio de sistemas

    dinmicos, humanos e naturais. Esta complexidade, abordada na Teoria do Caos, resulta no

    apenas do objecto musical, em si, mas tambm, e sobretudo, das caractersticas

    intrinsecamente complexas advindas da sua percepo, nas quais se separam, pela natureza do

    mecanismo conceptual, processo e resultado.

  • 9

    NDICE

    1. LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SINAIS......................................................... 12

    2. AGRADECIMENTOS ...................................................................................................... 13

    3. INTRODUO O CASO DE LUX AETERNA ............................................................. 16

    4. ORDEM, CAOS E PERCEPO MODELO TERICO ............................................. 28

    4.1. Introduo .................................................................................................................................28 4.2. Singularidade: do evento conexo .........................................................................................31 4.3. Conceito: espao-tempo............................................................................................................35 4.4. Estrutura e complexidade..........................................................................................................40 4.5. Do diferencial forma ..............................................................................................................46

    5. LUX AETERNA ANLISE............................................................................................. 59 5.1. Introduo a Lux aeterna ..........................................................................................................59

    5.1.1. Antecedentes micropolifnicos .........................................................................................59 5.1.2. Lux aeterna, Gemischter Chor a cappella ......................................................................64 5.1.3. Texto ..................................................................................................................................65

    5.2. Organizao e Nveis Estruturais..............................................................................................66 5.2.1. Coeso: rigidez e flexibilidade ..........................................................................................66 5.2.2. Nveis estruturais ...............................................................................................................67 5.2.3. Descontinuidades ...............................................................................................................69 5.2.4. Experincia e estrutura ......................................................................................................70

    5.3. O inaudvel: Infra-estrutura ......................................................................................................71 5.3.1. Canon: razo e estrutura ....................................................................................................71 5.3.2. Centros tonais vs focos tonais............................................................................................71 5.3.3. Espao tonal.......................................................................................................................72 5.3.4. Espao tonal: limites audveis ...........................................................................................73 5.3.5. Antigo e novo ....................................................................................................................74

  • 10

    5.3.6. Voz e parte .........................................................................................................................76 5.3.7. Fase e Desfasamento..........................................................................................................76 5.3.8. Ritmo e mtrica..................................................................................................................78 5.3.9. Sob a superfcie..................................................................................................................80

    5.4. Superfcie ..................................................................................................................................86 5.4.1. Linha e tecido ....................................................................................................................86 5.4.2. Intervalos e harmonia ........................................................................................................87 5.4.3. Visvel Audvel ...............................................................................................................87 5.4.4. Processo harmnico ...........................................................................................................88 5.4.5. Espacialidade e processo harmnico .................................................................................89 5.4.6. Estase e signos harmnicos ...............................................................................................90 5.4.7. Complexidade e movimento ..............................................................................................92 5.4.8. Grficos..............................................................................................................................94

    5.5. Da estrutura forma .................................................................................................................95 5.5.1. A forma ps-tonal ..............................................................................................................95 5.5.2. Msica antiga.....................................................................................................................96 5.5.3. Msica moderna .............................................................................................................97 5.5.4. Textura e estrutura .............................................................................................................99 5.5.5. Forma e propores .........................................................................................................100 5.5.6. Incio e fim.......................................................................................................................101 5.5.7. Seces polifnicas e conectores.....................................................................................101

    5.6. Seco 1 ..................................................................................................................................103 5.6.1. Supra-estrutura.................................................................................................................103 5.6.2. Infra-estrutura ..................................................................................................................115 5.6.3. Superfcie .........................................................................................................................124

    5.7. Seco 2 ..................................................................................................................................144 5.7.1. Supra-estrutura.................................................................................................................144 5.7.2. Infra-estrutura ..................................................................................................................156 5.7.3. Superfcie .........................................................................................................................171

  • 11

    5.8. Seco 3 ..................................................................................................................................180 5.8.1. Supra-estrutura.................................................................................................................180 5.8.2. Infra-estrutura ..................................................................................................................192 5.8.3. Superfcie .........................................................................................................................200

    6. CONCLUSO ................................................................................................................. 210

    6.1. Principais aspectos da forma...................................................................................................212 6.1.1. Forma fractal (anlise topolgica) ...................................................................................212

    6.2. Forma fractal...........................................................................................................................239 6.3. Texto e estrutura .....................................................................................................................242

    6.3.1. Domine.............................................................................................................................245 6.3.2. Lux / luceat ......................................................................................................................246 6.3.3. Requiem...........................................................................................................................247

    6.4. Arsis-thesis gregoriana............................................................................................................250 6.5. Materialidade ..........................................................................................................................253

    7. BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 258

    8. GLOSSRIO ................................................................................................................... 271

    9. ANEXOS ......................................................................................................................... 276

    9.1. Anexo 1: Linhas meldicas e Blocos Sonoros........................................................................276 9.2. Anexo 2: Quadro dos movimentos entre os cs. 15 e 24..........................................................279 9.3. Anexo 3: Evoluo nota a nota da fase final de contraco seco 1..................................280 9.4. Anexo 4: GR Grfico de registo ..........................................................................................281 9.5. Anexo 5: GE - Grfico de Entradas ........................................................................................282 9.6. Anexo 6: GEC - Grfico de entradas cannicas .....................................................................284 9.7. Anexo 7: GDV - Grfico de densidade vocal .........................................................................287 9.8. Anexo 8: Partitura...................................................................................................................288 9.9. Anexo 9: Quadro analtico geral de Lux aeterna ....................................................................307

    10. NDICE DE ILUSTRAES ....................................................................................... 309

  • 12

    1. LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SINAIS

    #2 - Designao do nmero de ordem cannica; neste caso, corresponde segunda nota de

    uma melodia cannica.

    l4 - Designao de uma nota, e respectiva oitava (em subscrito). O modelo que seguimos

    corresponde proposta pela Acoustical Society of Amrica2, em 1939. Neste caso, l4 designa

    a nota l (440hz), tocada na oitava de d central.

    [3] - Indicao, entre parntesis rectos, da distncia intervalar, em meios tons, entre duas

    notas. Neste caso, o nmero 3 corresponde a trs meios-tons, ou seja, a um intervalo de 3

    menor.

    GR Grfico de registo

    GE Grfico de entradas

    GEC Grfico de entradas cannicas

    BP Bloco sonoro principal. acompanhado de um numeral, correspondente seco a que

    reporta. Por exemplo, BP3 corresponde ao bloco sonoro principal da seco 3.

    C Conector. acompanhado de um numeral para efeitos de distino.

    BS Bloco superior.

    BSD Bloco superior dinmico.

    BSE Bloco superior esttico.

    BI Bloco inferior.

    BM Bloco mdio.

    IS Interval Signal

    2 Cf. YOUNG, R. W. - Terminology for Logarithmic Frequency Units. The Journal of the Acoustical Society of America, 1939.

  • 13

    2. AGRADECIMENTOS

    Para a realizao deste trabalho, foram imprescindveis as colaboraes, abnegadas e

    entusiastas, de um conjunto de pessoas e entidades que passo a citar:

    Mariana, minha esposa, e a Albino e Roslia, meus pais, pelo apoio incondicional, em todos

    os momentos desta longa jornada;

    minha famlia e aos meus amigos, pelo entusiasmo e colaborao constantes;

    aos meus orientadores, Professora Yolanda Espia, orientadora cientfica e espiritual desde

    os tempos em que fui seu aluno, e ao Professor Miguel Ribeiro-Pereira, pelo rigor e

    competncia com que me acompanhou;

    aos Professores Francisco Carvalho Guerra e Maria Teresa de Macedo, pela contnua

    inspirao e exemplo;

    Universidade Catlica Portuguesa - Porto, na pessoa do Presidente do Centro Regional do

    Porto e da Escola das Artes, Prof. Doutor Joaquim Azevedo;

    ao Departamento de Msica da Escola das Artes da UCP-Porto, na pessoa do seu Director,

    Prof. Doutor Paulo Ferreira-Lopes, e a todos os demais colegas, amigos e alunos.

    Universidade de Valladolid e Prof. Doutora Mara Victoria Cavia, minha primeira

    orientadora, pelo apoio e simpatia;

  • 14

    Fundao para a Cincia e Tecnologia, que tornou possvel a concretizao deste projecto;

    ao Andr Rangel, pela pronta colaborao em variados detalhes tcnicos;

    ao ensemble vocal Cappella Duriensis, na pessoa do seu maestro, Jonathan Ayerst, pela

    oportunidade de vivenciar, directamente, Lux aeterna.

  • 15

    INTRODUO O CASO DE LUX AETERNA

  • 16

    3. INTRODUO O CASO DE LUX AETERNA

    (...) music that gives the impression that it could stream on continuously, as if it had no beginning and no end;

    what we hear is actually a section of something that has eternally begun

    and that will continue to sound forever.

    Gyrgy Ligeti3

    Em certa ocasio, algures na linha desvanecente do passado recente, fui surpreendido

    com a rdua tarefa de preparar (talvez a palavra mais adequada seja improvisar), em menos

    de duas horas, um ensaio do motete Lux aeterna, de Gyrgy Ligeti. Por sorte ou providncia, a

    singular obra coral a cappella do famoso compositor hngaro do sc. XX, temida por tantos

    maestros e cantores, era j, por essa altura, objecto de uma anlise formal detalhada com vista

    ao desenvolvimento desta tese de doutoramento.

    A opo por Lux aeterna, como vnculo demonstrativo, advm do meu prprio interesse

    na reflexo terica alargada sobre a organizao material do discurso musical, particularmente

    nos repertrios do sc. XX. Dentro das diversas possibilidades disponveis, a sua escolha

    resultou para mim, em partes iguais: causalidade e intuio.

    Causalidade porque, como msico, defendo a reflexo sobre a minha prpria actividade.

    No apenas a reflexo sobre as necessidades interpretativas associadas execuo de uma

    determinada obra, numa dada ocasio, mas o pensamento terico musical, em si. Mais

    concretamente, como maestro, sinto-me obrigado a reflectir sobre os processos abstractos, 3 In LIGETI, Gyo rgy Ligeti in Conversation, with Pter Vrnai, Josef Hausler, Claude Samuel, and himself. Translated into English by Gabor J. Schabert, Sarah Soulsby, Terence Kilmartin and Geoffrey Skelton. London: Eulenburg Books, 1983.

  • 17

    formais e estruturais, que configuram o objecto da minha prtica musical, razo que me leva,

    necessariamente, a dois campos frequentemente separados da prtica musical: a teoria e a

    anlise.

    Intuio porque, ao escolher Lux aeterna, no me decidi apenas por um exemplo

    performativo interessante e prximo da minha actividade, na altura como maestro de coro,

    mas por uma obra que constitui um ponto de chegada de uma longa viagem tcnica e esttica,

    profundamente representativa dos movimentos musicais e culturais do ps-guerra, uma

    referncia estilstica e estruturalmente slida para os abundantes exemplos posteriores.

    O prprio Ligeti, ao longo da sua vida, procurou sempre reflectir e analisar tanto a

    msica do passado como os exemplos contemporneos dos seus colegas de vanguarda. No

    apenas como compositor, mas como um profundo conhecedor das grandes inovaes do

    pensamento artstico, cientfico, filosfico e at poltico do seu tempo, Ligeti evoluiu, tal como

    a sua obra, procurando constantes transformaes do seu processo criativo e nunca descurando

    o material sonoro, como seu principal objectivo artstico. Paralelamente, na sua tcnica

    compositiva, ou seja, nos meios para modelar este objectivo, tal como o prprio afirmou, cada

    obra produzida serviu de referncia evolutiva obra seguinte4.

    Em consequncia, no de estranhar que a nossa escolha, Lux aeterna, inclua um vasto

    conjunto de referncias, directas e indirectas, s grandes correntes da msica ocidental, desde

    o canto gregoriano s arrojadas propostas dos anos 60 do sc. XX, passando pela polifonia

    renascentista, o contraponto imitativo barroco ou as intrincadas formas da msica de Debussy.

    Por outro lado, pelo seu texto, instrumentao, tcnica e temtica, a obra inclui-se,

    referencialmente, num repertrio particularmente distinto, o repertrio de msica sacra vocal a

    cappella, razo que a torna um exemplo peculiarmente descontnuo com a generalidade da

    produo dos compositores da vanguarda dos 60, marcada por correntes como o serialismo

    4 () it's very similar like work in science, when you solve the problem, there are a hundred new problems. So when I finish the piece, especially when I could listen to the piece, then I have a lot of new ideas for the next piece. In LIGETI, Gyrgy - Transcript of the John Tusa Interview with Gyorgy Ligeti. The John Tusa Interviews, Radio 3. London: BBC, 1 de Abril de 2001. In http://www.bbc.co.uk/radio3/johntusainterview/ligeti_transcript.shtml

  • 18

    integral, a msica electrnica ou aleatria e mesmo os primeiros passos do movimento

    minimalista americano.

    Lux aeterna possui outros aspectos, igualmente particulares, desde o ponto de vista

    tcnico. Ao tratar-se de uma composio eminentemente vocal, veicula um texto e, com ele,

    um conjunto de ligaes ou restries da inferidas. Todavia, e de forma surpreendente, Ligeti

    escolheu no tornar o texto evidente na quase totalidade da obra. Optou, tambm, por anular

    um conjunto de itens analticos, facilmente distintivos na superfcie (aspecto audvel imediato)

    da obra, tais como dinmica, articulao, pronunciao, mtrica, etc. Na realidade, por estas

    razes, a superfcie de Lux aeterna contnua; no se verifica um nico corte em toda a obra.

    Como claro, todos estes aspectos tornam a delimitao e segmentao uma tarefa muito

    complexa e exigem um escrutnio profundo e cuidado.

    No obstante, a partir da anlise da obra, ainda em decurso na altura do meu ensaio e na

    contingncia de dispor de menos de duas horas para a sua preparao, uma vez que o maestro

    do coro se encontrava indisponvel, fiz uso daquilo que havia aprendido, procurando utilizar o

    tempo da maneira mais eficiente possvel. Curiosamente, a necessidade de condensar todo um

    processo analtico, naturalmente extenso e detalhado, numa smula de indicaes facilmente

    reconhecveis pelos msicos e que, ainda assim, permitisse uma abordagem compreensiva da

    obra, obrigou-me a re-conectar o processo explanativo com o processo executivo, na prpria

    msica. Da a necessidade de uma sntese concisa e compreensvel entre estrutura e resultado.

    Como consequncia, concentrei-me em dois aspectos bsicos, facilmente detectveis na

    audio da obra: movimento e repouso. As zonas de movimento incluam trs seces

    cannicas distintas, enquanto as zonas de repouso denotavam o uso recorrente de um agregado

    de 3 menor e 2 maior. Em determinadas ocasies, ambos os padres se sobrepunham.

    Como evidente, nem a obra se reduz a uma anlise to simplista nem as suas pesadas

    exigncias tcnicas podero ser ignoradas. De facto, no uma obra fcil de analisar e, muito

    menos, fcil de executar. No entanto, foi-me possvel entender nesta particular experincia

    que Ligeti visou criar um objecto sonoro acessvel em ambos os domnios (possvel teria

    sido uma escolha mais acertada). Porm, para as zonas de movimento, bastou aos cantores

  • 19

    memorizar os cnones, entender a especificidade dos seus movimentos meldicos e

    particularidades rtmicas, praticamente inaudveis na superfcie da obra. Evidentemente, nas

    zonas estticas, foi suficiente que todos se familiarizassem com a recorrente estrutura

    intervalar. Mas, pelo meio, deparmo-nos com tremendos desafios: tessituras quase

    impossveis de alcanar, texturas harmnicas impenetrveis ou estruturas rtmicas intrincadas.

    Pudemos ento comprovar que na continuidade, aparentemente perptua, de Lux aeterna

    (talvez pela natureza do prprio texto), essa concatenao de zonas de movimento e de estase5

    se encontra perfeitamente delineada, no apenas no conceito e unidade formal de toda a sua

    estrutura, como na prpria materialidade da obra, atravs da explorao pragmtica das

    possibilidades da msica vocal, tanto no seu elemento de contacto no mediado com o som, a

    voz cantada, como na escolha e tratamento particulares do seu texto.

    Vejamos. Os cnones, dominados por sucesses de intervalos conjuntos, constituem

    meios racionais, acessveis execuo; por outro lado, entre cada seco cannica existem

    notas comuns, articuladas nos agregados estticos, e que facilitam as conexes entre uma

    superfcie tmbrica e outra. Em suma, ao contrrio do sugerido noutras abordagens6 a Lux

    aeterna, Ligeti, compositor experimentado e familiarizado com as especificidades tcnicas de

    cada instrumento ou formao e grande conhecedor da tradio musical ocidental, escreveu

    uma pea cujo efeito tmbrico dificilmente poderia ser conseguido com exigncias tcnicas

    menos rigorosas. O compositor hngaro soube, sim, explorar os limites impostos, articulando

    um objecto sonoro que, ainda que desafie as possibilidades dos intrpretes, apresenta uma

    coerncia rigorosamente definida entre estrutura e resultado. Precisamente no mbito da discusso entre estrutura e resultado, num trabalho iniciado

    por altura da elaborao da minha tesina7, debrucei-me sobre a complexa ligao entre sujeito

    5 O conceito de estase que empregamos, de origem grega, significa paralisao. In http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=estase. Neste sentido, estase corresponde equalizao interna de todas as foras ou movimentos em oposio. A estase consiste no cancelamento ou interrupo do movimento, superfcie. 6 Estes temas sero abordados na introduo anlise. 7 Orden, Caos y Percepcin - Temporalidad, Origen y Lmite en la Obra Musical, realizado na Facultad de

  • 20

    e objecto, na experincia musical. Esta ligao advm, justamente, do conjunto de inter-

    relaes especficas e lineares, registadas na estrutura com vista obteno de um

    determinado resultado. Porm, no caso de muitas obras do sculo XX, como Lux aeterna, as

    conexes entre causa e efeito ou entre estrutura e resultado, no so lineares, isto , no so

    directamente proporcionais. Pelo contrrio, elas devem ser entendidas como parte de um

    sistema dinmico onde so produzidos resultados indeterminados, confusos ou,

    aparentemente, incoerentes; este o domnio da chamada Teoria do Caos. De acordo com esta

    teoria, a coexistncia de uma infinidade de variveis, durante o processo perceptivo, conduz a

    resultados inconstantes, a cada observao e segundo cada observador. No entanto, por entre a

    aparente desordem, o objecto, de alguma forma, permanece. O mesmo ocorre na prpria

    natureza, onde fenmenos complexos como o clima, embora registados e documentados de

    forma rigorosa, detm uma tal multitude de condicionantes, entre as variveis observadas, que

    a sua previsibilidade se torna muito difcil. Todavia, o clima permanece, destacado, como

    conceito.

    A Teoria do Caos dedica-se procura de padres recorrentes nestes comportamentos,

    aparentemente errticos e casusticos. Ela tem sido aplicada a todo o tipo de processos

    naturais, como o mencionado caso do clima, e humanos, como o comportamento dos

    mercados bolsistas. Nesta Teoria do Caos, aplicam-se ento, um conjunto de abstraces e

    ferramentas matemticas que, embora se dediquem a estudar as suas relaes, so polarizadas

    pelos conceito-limite da organizao: o caos e a ordem, um dos principais condutores da

    minha abordagem.

    O prprio Ligeti confirmou, em vrias entrevistas posteriores a Lux aeterna, um

    interesse profundo na Teoria do Caos. O compositor hngaro privou regularmente com vrios

    cientistas e matemticos como o franco-polaco Benot Mandelbrot8, grande impulsionador da

    teoria. Todavia, em Maro de 1989, confrontado com explicaes cientficas rigorosas na

    Filosofia y Letras da Universidade de Valladolid, sob a orientao da Prof. Doutora Mara Victoria Cavia Naya. 8 Cf. MANDELBROT, Benot B. The fractal geometry of Nature. Macmillan, 1983.

  • 21

    matria, Ligeti optou por colocar alguma distncia entre resultado e estrutura9, salientando as

    diferenas entre a viso e o conceito de Naturwissenschaftliches de Xenakis e o seu prprio.

    O compositor prontificou-se a explicar que, no seu caso, a Teoria do Caos servia (apenas)

    como inspirao para as suas tcnicas compositivas.

    Assim, nesta mesma linha de pensamento, ficam claramente estabelecidos os limites

    dentro dos quais pretendemos adaptar os pressupostos da Teoria do Caos. Por um lado,

    verificar a existncia de padres e iteraes na intrincada estrutura de Lux aeterna, aptos a

    sintetizar, formal e consistentemente, os dados da observao. Por outro, no esquecer a

    especificidade da experincia musical, desde a sua materialidade o objecto musical

    inspirao das tcnicas necessrias para obter esse resultado e to claramente demonstradas no

    nosso afortunado, porm circunstancial ensaio de coro.

    Na realidade, um dos processos caticos, recorrentemente verificado na natureza, o

    iterativo, concretamente, a fractalidade10, tambm ela conhecida de Ligeti11. Na nossa anlise,

    pretenderemos demonstrar como Lux aeterna e, muito possivelmente, uma boa parte das obras

    de Ligeti, possuem uma estrutura fractal. O termo, herdado da palavra latina fractus, que

    significa fragmentado, foi popularizado por Benot Mandelbrot, que o empregou para

    descrever aspectos particulares do espao onde a geometria clssica euclideana falhava. Estes

    espaos, intrincadamente detalhados, apresentavam determinados padres que se repetiam, em

    qualquer que fosse a escala sobre a qual fossem observados.

    Ligeti, ele prprio, destacou que a ideia de clulas simples e de pequena dimenso,

    organizadas em padres complexos, iterados por muitas vezes, recorrente em muitos tipos de

    msica. Neste sentido, o compositor hngaro acrescentou que a transio de ordem para caos

    9 Cf. BOULIANE, Denys; OEHLSCHLGEL, Reinhard Gyrgy Ligeti im Gesprch. [S.l.]: Musiktexte 28/29. Maro, 1989. 10 De acordo com o dicionrio Priberam (Cf. http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=fractal), o adjectivo fractal, designa um objecto matemtico, geomtrico ou natural, cuja forma irregular e fragmentada ou em cujas partes tm a mesma estrutura (irregular e fragmentada) que o todo, mas a escalas diferentes. 11 Cf. STEINITZ, Richard - Music, maths & chaos. The musical Times. March 1996, p. 14.

  • 22

    e, de novo, para a ordem, muito relevante para a sua msica, pelo menos dos anos 60 e 7012.

    Na nossa anlise verificaremos que o padro iterativo de Lux aeterna corresponde ao

    denominado movimento arsis-thesis. Este padro fraccionrio continuamente repetido em

    qualquer das escalas a que seja analisada. No entanto, antes de aprofundar o efeito inovador

    que o conceito de fractalidade tem na prpria metodologia analtica, devemos a esclarecer que

    o padro arsis-thesis, a que nos referimos, advm da escanso (da prosdia) potica. A

    herana dos padres de acentuao clssica, infinitamente detalhados no seu ritmo, altura,

    durao, intensidade ou cor e cristalizados numa prtica centenria, no apenas de poesia e

    msica (particularmente na tradio gregoriana) como no discurso falado corrente, advm da

    distino entre tenso e repouso. No padro arsis - thesis, a distino mais alargada, tendo

    em conta os movimentos bsicos de acumulao (arsis) e distenso (thesis). Com efeito, no

    primeiro, a tenso crescente, enquanto no segundo decrescente. Entre ambos, naturalmente

    decorridos no horizonte temporal, existe uma simetria13 bsica em que, a um impulso, se faz

    corresponder, do outro lado do seu eixo, o impulso inverso.

    Em Lux aeterna, a aparente continuidade percebida na superfcie da obra, ou seja, no seu

    aspecto sonoro, tal e como recebido, esconde uma rede complexa destes fragmentos arsis-

    thesis, repetidamente desmultiplicados, e que opem impulsos inversos sob o seu eixo de

    referncia. Por isso, a sua anlise requer no s, rigor e detalhe especficos, como um

    adequado enquadramento terico, estabelecidos entre os limites atrs fixados.

    Assim, os objectivos principais do nosso trabalho consistiro, pois, em sistematizar e

    conceptualizar a natureza fractal da obra, nas suas divises, na sua articulao, e na forma

    como as estruturas iteradas se acumulam em determinados pontos da obra. Indo um pouco

    mais alm, tentaremos entender como os desequilbrios e descontinuidades verificados ao

    longo da superfcie de Lux aeterna, tm por base uma re-equao da linguagem musical e da

    12 Cf. BOULIANE; OEHLSCHLGEL Ligeti im Gesprch. 13 O termo simetria que empregamos no se refere ao sentido esttico da palavra mas definio precisa do equilbrio entre duas superfcies auto-semelhantes, gerada dentro de um sistema formal.

  • 23

    sua prpria esttica, fundada no diferencial apurado entre o espao-tempo14 de referncia,

    aquele que mensura o exterior, e o espao-tempo da experincia, o que percebido no

    contacto com o objecto musical15, atravs da estrutura fractal. Sem uma conexo entre os

    diversos pontos observados no exterior, no seria possvel estabelecer comparaes entre

    observaes diferentes de um mesmo objecto. O espao-tempo , antes de mais, uma

    descoberta de um sistema de ordem implcita na realidade externa, aquela com a qual o sujeito

    medeia a sua relao com o mundo. Nesse sentido, o espao-tempo tem caractersticas lineares

    que permitem ao sujeito encontrar um sistema de relao entre si e todas as coisas. O espao-

    tempo mais do que um sistema de coordenadas de localizao mas tambm de conexes e

    delimitaes, no qual se estabelecem as relaes lineares ou no lineares de causa e efeito.

    Neste contexto, os sistemas de micro e macro estrutura, de natureza eminentemente

    espacial, propostos J. P. Clendinnig16, para fundamentao da anlise de Lux aeterna (entre

    outras obras com a tcnicas de composio semelhantes), no dispem da fluidez necessria

    que permita entender as mltiplas iteraes da estrutura fractal, atravs dos seus nveis de

    anlise e as suas consequncias na continuidade percebida do espao-tempo. Por isso,

    partiremos da dialctica percepo mediao, atravs da experincia espao-temporal do

    evento. Esta singularidade, o evento, constitui um nico ponto registado no espao-tempo.

    Como unidade bsica da percepo , simultaneamente, unidimensional e pluridimensional. A

    sua singularidade reside, justamente, neste paradoxo: por um lado, uma unidade fechada,

    14 Na cosmologia, o conceito de espao-tempo rene, numa nica abstraco, as ideias de espao e tempo. O espao-tempo povoado por uma coleco de pontos, os eventos, aos quais servem de sistema de coordenadas.

    15 O objecto musical constitui algo tangvel e ao alcance dos sentidos sobre o que estabelecida uma linguagem entre o compositor e o ouvinte. O objecto musical, assim abordado, corresponde a um veculo de comunicao entre o autor da criao, que o codificou e o sujeito que o interpreta. Cf. SCHAEFFER, Pierre Lobjet musical. Lexprience concrte en musique. Reveu Musical, 1952, pp. 126-27 16 Cf. CLENDINNING, Jane Piper Contrapuntal techniques in the music of Gyrgy Ligeti (Volume I and II). Yale University, 1989. Dissertao de Doutoramento em Fiolosofia na Universidade de Yale. Clendinnig menciona que microestrutura, superfcie audvel e macroestrutura so os conceitos bsicos a utilizar na anlise do repertrio micropolifnico. As notas constituem pequenos grupos, detalhes de construo meldica criando com isso a micro-estrutura. A combinao de linhas que formam harmonia e que delimitam as seces cria a superfcie audvel. Finalmente, a forma da composio, articulada em distintas seces, constitui a macro-estrutura.

  • 24

    sem qualquer contedo; por outro, dispe de uma abertura prpria, uma conectividade, que o

    torna associativo, apto a integrar estruturas mais complexas e, consequentemente, mais

    durveis no espao-tempo. O evento constitui assim, a ligao bsica entre qualquer

    descontinuidade e a sua escala de referncia. Como procuraremos demonstrar, atravs da

    natureza do prprio evento, a superfcie do objecto, por si povoada, fornece o ponto de

    contacto para a criao de estruturas superiores, de sntese, dita macro-estrutura, e

    inferiores, de detalhe, dita micro-estrutura.

    No entanto, pela conceptualizao dos dados fornecidos pelas imagens sonoras

    recebidas, em tempo real, da experincia do objecto, e atravs da estrutura fractal, criam-se,

    no dois nveis - superior e inferior - mas uma multiplicidade deles. esse efeito, de mltipla

    recepo e conceptualizao de dados do objecto, que explorado por Ligeti, na elaborao de

    uma superfcie densa e contnua, onde a percepo da estrutura se encontra submergida no

    denso tecido sonoro. Da, inferiremos a proposta de uma outra dialctica analtica, mais fluida,

    e paralela macro e micro estrutura, mas que tem um alcance diferente: a infra-estrutura17 - o

    conjunto de mecanismos estruturais, no perceptveis, cuja funo gerar a superfcie audvel

    do objecto sonoro, e a supra-estrutura - que agrupa no apenas os nveis macro-estruturais

    como as redes de padres estruturais, neste caso, de natureza fractal, registados

    transversalmente, na organizao da obra.

    17 Quando interpelado por Pierre Michel sobre os nveis micro e macro estruturais do Kyrie do seu Requiem, Ligeti responde de forma algo surpreendente. Il y a des canons au niveau de la microstructure chaque fois que les chanteurs interviennent en commenant par le mot Kyrie. Cela s'appelle un canon micropolyphonique. Le Christe est un canon, mais plus lent; il n'est pas vraiment micropolyphonique. On l'entend mme comme un canon dense, alors que dans le Kyrie est toujours estomp. Mais ici aussi, la technique du canon qu'un moyen de gnrer l'unit horizontal/vertical. La grande structure n'est pas canonique. Si vous analysez les entres Kyrie et e, vous trouverez une lointaine ressemblance avec une fugue, les thmes de cette fugue sont dj eux-mmes des canons complexes. Si l'on prend les sons des entres des canons les uns aprs les autres, on obtient un ensemble de vingt-trois sons qui correspondent la mlodie propre au Christe, l'exception d'une sorte de permutation dans la deuxime partie. J'ai d modifier lordre de succession de ces sons un endroit pour des raisons musicales. Les res rgles me donnaient une combinaison fausse, j'ai donc effectu ce petit changement. Mais c'est un jeu de construction, car vous n'entendez pas dans la forme la grande mlodie des entres, en t cas pas comme une forme musicale audible. Dans le Kyrie, il y avait tout un ensemble de rgles de contrepoint, de rgles mlodiques, rythmiques, de combinaison des voix, etc. In MICHEL, Pierre Gyrgy Ligeti, compositeur daujordhui. Musique Ouverte, Minerve, 1985, p. 159.

  • 25

    Na nossa abordagem, teremos a oportunidade de demonstrar que, no nvel mais

    elementar de anlise, a obra, ela prpria, como objecto sonoro, representa uma

    descontinuidade com o tempo de referncia, constituindo, ainda assim, um movimento aris

    thesis com o seu exterior. Com base nessa constatao, veremos que a observao, na sua

    transferncia mtua de organizao entre sujeito e objecto, conduz a uma experincia

    polarizada e descontnua, necessariamente mais longa e densa, do tempo.

    A novidade da nossa abordagem consiste na espacializao da anlise musical, no

    apenas atravs dos conceitos especulativos de ordem musical mas da prpria natureza,

    experimentada atravs do objecto. Esta experincia advm de uma reconhecibilidade bsica e

    profunda dos fenmenos que governam o natural, quer sejam retratados na prpria natureza,

    numa equao, numa tela de um quadro ou numa partitura. O modelo proposto poder ento

    ser aplicado a obras que incluam matizes estruturais como os de Lux aeterna e, tal como esta,

    uma estruturao, propositadamente desconexa, do seu resultado auditivo; obras

    superficialmente contnuas, onde os modelos analticos de referncia, baseados em nveis

    estruturais absolutos como o fundo, primeiro plano e plano intermdio no produzam

    resultados analticos relevantes para o seu entendimento ou para a sua execuo.

    Assim, na primeira parte do nosso trabalho, encetaremos uma abordagem terica,

    fundamentada na relao entre sujeito e objecto musical. Nesta reflexo, pretenderemos, a um

    lado, entender a influncia dos aspectos estruturais, imperceptveis na observao directa, mas

    que definem em grande parte, pela sua organizao aparentemente catica, a constituio de

    superfcies planas e contnuas com formas indefinidas. E, por outro lado, procuraremos

    analisar como a inferncia organizativa do sujeito lana, a cada nvel estrutural, um projecto

    de forma, baseado simultaneamente, na informao directa, colhida na singularidade do evento

    e na conceptualizao dos modelos pr-existentes que lhe servem de referncia.

    Seguidamente, na segunda parte, delineado o processo terico fundamental,

    abordaremos as principais perspectivas analticas aplicadas a Lux aeterna e ao repertrio

    micro-polifnico, juntamente com as suas limitaes, procurando enquadrar a nossa proposta

    e, quando necessrio, oferecer uma nova metodologia analtica, inevitavelmente fundada na

  • 26

    abordagem terica que previamente realizmos. Em consequncia, analisaremos em

    profundidade a obra, nas seces e subseces bsicas resultantes da nossa prpria proposta

    terica e de acordo com a metodologia estabelecida.

    Finalmente, em concluso, proporemos um modelo analtico assente na forma fractal,

    evidenciando o papel do movimento arsis-thesis e demonstrando como todo o material se

    organiza a partir da sua contnua iterao, em todos os seus nveis conceptuais, alm de

    reconciliar esta estruturao com a influncia da ordem natural no contacto, por si mediado,

    entre sujeito e objecto musical.

  • 27

    ORDEM, CAOS E PERCEPO

    MODELO TERICO

  • 28

    4. ORDEM, CAOS E PERCEPO MODELO TERICO

    4.1. Introduo

    [O cosmos] um pedao subtrado ao infinito e demarcado por um limite, seja rarefeito, seja denso, seja em revoluo, seja estacionrio; os seus contornos so

    tanto esfricos, como triangulares, ou de qualquer outra forma.

    Epicuro18

    Coloquemos, partida, algumas questes sobre o elemento prvio da nossa reflexo -

    espao-tempo - conceito que, em termos prticos, constitui o pano de fundo sobre o qual se

    projecta o objecto musical. Nele encontramos diferentes instncias ou arquitecturas as quais

    constituem aspectos determinados, inerentes sua natureza e sua inevitvel influncia no

    cosmos. O mecanismo receptivo do sujeito est preparado para um conjunto alargado de

    estruturas espao-temporais; no s capaz de relacionar um objecto no tempo e no espao

    como tambm est apto a retirar desse objecto ilaes e reflexes sobre si prprio. Deste

    modo, radicados na sua dimensionalidade, crimos um enquadramento que rene estas ilaes

    e as distingue em quatro instncias: evento, relao, estrutura e forma.

    Na nossa definio de evento, partimos dos fenmenos ocorridos num dado ponto do

    espao e do tempo, aptos a registar uma propriedade fsica quantificvel. A noo de evento

    pressupe, ento, a participao directa do observador que o detecta no exterior, e que o define

    em funo de um sistema de quantificao e de uma propriedade de referncia. Os eventos

    podem ser linearmente relacionados, se entre eles existir uma distncia determinvel, logo

    18 In EPICURO Carta a Pitocles. Apud: LUMINET, Jean-Pierre - Sentido e Segredos do Universo, O Universo Amarrotado. Coleco Epistemologia e Sociedade. Trad. Elsa Pereira. Lisboa: Editora Piaget, 2005, p. 21.

    Ilustrao da pgina anterior: DREAMSTIME 3D Shperical structure black and white (ID: 22649470). Royalty-free illustration. Standard of extended licensing. In http://www.dreamstime.com/stock-photo-3d-spherical-structure-black-white-image22649470

  • 29

    delimitada. Ento, os eventos, unidades perceptivas fundamentais, podem ser convocados pelo

    sujeito, passando a desenhar, com ele, uma superfcie contnua de relaes, baseadas nas suas

    propriedade e quantidades comuns. Esta superfcie representa, na realidade um plano bi-

    dimensional (tempo e espao) contnuo de contacto entre sistemas de organizao de

    propriedades diferentes e delimitados pelas suas escalas de referncia. As relaes verificadas

    entre eventos podem, no entanto, convergir para determinados estados de concentrao,

    criando estruturas localizadas que inter-relacionam propriedades diferentes sob conceitos

    comuns. Finalmente, estas estruturas, delimitadas entre si, por padres recorrentes ou pontos

    de inflexo, tornam-se morfologicamente fechadas, delimitadas. A reunio destas diferentes

    morfologias constitui uma forma.

    Na discusso formal contempornea (explcita ou implicitamente), grande parte dos

    problemas em torno da importncia da delimitao destas instncias ainda discutidos por

    msicos, musiclogos, crticos, tericos, matemticos, fsicos, estetas, linguistas, socilogos,

    semiticos ou filsofos. Tambm neste ponto, o nosso contributo na matria consistir numa

    abordagem alternativa, pela convocao de elementos de diversos campos do conhecimento,

    com vista obteno de uma perspectiva alargada sobre delimitao e organizao na relao

    entre sujeito e objecto musical. Deste modo, procuraremos alargar a discusso da anlise

    musical para alm dos modelos apriorsticos19, e em direco ao problema da complexidade,

    atravs do contributo da Teoria do Caos.

    Ao procurar os limites do que pode ser considerado um objecto musical, teremos

    sobretudo em conta o seu aspecto organizacional, a maneira como ele se projecta,

    dimensionalmente, atravs do espao-tempo. Neste sentido, partindo da materialidade sonora

    19 A questo dos modelos apriorsticos de anlise ser abordada, em detalhe, na Introduo anlise de Lux aeterna.

  • 30

    da msica, concentrar-nos-emos no especificamente musical do objecto, procurando nas

    caractersticas bsicas da sua organizao, as delimitaes20 que lhe do forma.

    Ao procurar enquadrar esta questo e atendendo especificidade da arte musical,

    podemos ento estabelecer como limite ltimo de um objecto musical a sua descontinuidade

    com a linha do tempo, uma vez que tal objecto apenas existe durante o momento da sua

    audio.

    Uma formulao particularmente relevante nesta matria, quer pela sua radicalidade,

    quer pela sua ampla disseminao cultural, pode ser encontrada na obra 433 (1952) de John

    Cage. Sem querermos entrar directamente na amplia discusso sobre esta obra, atemo-nos ao

    seu carcter de ruptura e de limite no que poderia ser considerado, na altura da sua estreia,

    msica (sobretudo na cultura ocidental). Um dos aspectos que Cage colocou em questo foi,

    exactamente, a materialidade da msica perante a evidncia da natureza.

    Dentro desta linha de pensamento, ao estabelecer a temporalidade como limite ltimo da

    obra musical, inferiremos sobre o carcter ambivalente do tempo, ou seja, acerca da sua

    condio objectiva e subjectiva, e como esta pode ser esclarecedora na delimitao.

    Em cada uma das quatro instncias que previamente estabelecemos, encontramos escalas

    de espao-tempo especficas e delimitadas, das quais resultam, consequentemente, diferentes

    topologias21. Em virtude deste facto, s podero ser estabelecidas relaes entre cada uma das

    instncias se as correspondentes transies de escala forem o suficientemente lineares para que 20 s mltiplas tentativas de definio de msica, ao longo da histria, tm correspondido os olhares do homens de cada poca. Os seus contributos, para alm de tentativas de objectivao de uma actividade to heterognea como a msica, contriburam para a introduo de delimitaes e formalizaes. Porm, recorrentemente, a controvrsia gerada em torno de muitas obras, consideradas vanguardistas no seu tempo, constituiu uma extrapolao das fronteiras da prpria arte. Uma das qualidades mais importantes da arte est, precisamente, na sua capacidade de ultrapassar os limites e regras do estilo, de se redefinir; no fundo, a sua abertura. Esta capacidade de redefinio , ela prpria, um sinal de incompletude, de inadaptao ou de insatisfao. De facto, ao considerar que uma determinada obra alcana o limite de uma dada esttica, estamos a considerar a definio de ambas, exemplo e modelo. Afinal, por um lado, atravessar um limite implica identificar o que estava dentro dele; por outro, conceber que mais existir fora dele. 21 A topologia estuda propriedades como a conectividade, compacidade ou separabilidade entre os conjuntos de propriedades. Estes conceitos que relacionam as diferentes escalas a partir dos seus limites possuem, precisamente, propriedades de ligao ou delimitao.

  • 31

    o objecto se mantenha apreendido como tal.

    Cada uma destas escalas constituir num nvel de anlise22 com uma arquitectura

    prpria. Tal como foi sugerido por Joseph Fourier23, as quantidades fsicas registadas nas

    qualidades dos eventos podem ser organizadas num sistema dimensional em que propriedades

    comuns so associadas a uma dimenso. Ao relacionar detalhes ou propriedades associados a

    diferentes escalas de anlise, veremos como frequente, seno determinante, a necessidade de

    conjecturar, extrapolar ou recorrer a analogias e metforas. Como consequncia, o resultado

    da anlise torna-se fortemente influenciado pelo critrio de relacionamento inter-escalar e

    grande parte da informao pode ser perdida. Porm, atravs da compreenso do processo de

    iterao dos movimentos arsis-thesis, observaremos como a informao no relacionada pode

    ser integrada no resultado da prpria obra, uma vez que os limites da sua organizao residem,

    intimamente, na capacidade de conceptualizar nveis e escalas de anlise; de verificar,

    conferir, comparar ou extrapolar ordem a partir do caos.

    4.2. Singularidade: do evento conexo

    Figura 1

    O evento constitui a unidade fundamental do nosso modelo analtico. A sua

    singularidade advm do seu carcter unidimensional; o evento corresponde a uma diferena, 22 Um nvel analtico representa um conjunto finito de dados registados para uma varivel categrica. Os dados so verificados nos eventos e reunidos em categorias similares, segundo a conectividade das suas propriedades, constituindo nveis. 23 Cf. Fourier, Joseph: Thorie analytique de la chaleur. Firmin Didot, 1822.

  • 32

    perceptivamente indivisvel, verificada na superfcie, um nico ponto de contacto entre o

    interior e o exterior que no constitui, em si, qualquer unidade formal, apenas se distingue pela

    sua referencialidade unitria. O que captado interiormente, sem qualquer orientao ou

    sentido, no possui qualquer carcter representativo. Como unidade bsica do nivelamento

    analtico que propomos, ele contm o material sonoro, um mundo onde a possibilidade

    infinita e a expectativa mxima. O evento encerra em si, uma completa abertura a todo o tipo

    de ligaes.

    Segundo Jaegwong Kim24, os eventos podem ser descritos em funo de um objecto,

    uma propriedade e um intervalo de tempo. Por outro lado, na sua obra sobre realismo

    modal25, Counterfactuals, David Lewis defende que os eventos constituem regies de

    espao-tempo com propriedades distintivas associadas a outros mundos. Os eventos

    constituem, assim, pontos de contacto entre estruturas complexas e abrangentes, governadas

    por propriedades e sistemas distintos. Finalmente, Alain Badiou caracterizou o evento

    baseando-se na sua descontinuidade26. Nesta acepo, o autor reitera que o evento apenas no

    ; para que possa ser, o conjunto de regras que dita a sua situao tem de sofrer uma

    interveno que o acolha na realidade do sujeito.

    Embora constitua uma singularidade, o evento naturalmente associativo, razo pela

    qual se podem construir sentidos atravs da recoleco da sua sucesso. Por isso, os eventos

    podem ser interligados, a partir da superfcie do objecto observado, estabelecendo entre si e o

    sujeito, que o observa, um conjunto de relaes determinadas no exterior. Essas relaes

    constituem, na verdade, itens de anlise, dispostos em ligaes simples, causais e unvocas. A

    sua ligao ao evento consequncia de um processo unitrio que assim ganha sentido, de um

    ponto a outro, sucessivamente.

    Por detrs deste processo de aquisio de informao baseada em relaes de eventos

    24 Cf. KIM, Jaegwon - Supervenience and mind. Cambridge University Press, 1993. 25 Cf. LEWIS, David - Counterfactuals. Blackwells, 1973. 26 Cf. BADIOU, Alain - Ltre et lvnement, Editions du Seuil, 1988, traduzido por Oliver Feltham. Continuum, 2006.

  • 33

    est o mecanismo receptor humano, que dotado de uma arquitectura peculiar baseada no

    convvio simultneo da aco de diferentes estruturas internas especialmente concebidas para

    a tarefa. Em resposta ao estmulo externo, ela formula padres internos que podem ser

    organizados, associados ou at considerados redundantes27.

    Este processamento pode ser sumarizado da seguinte forma: introduo de um dado,

    proveniente do objecto, corresponde uma resposta; e essa resposta produzida atravs de uma

    operao mental interna, consciente ou inconsciente. Basicamente, estas redes esto

    especialmente adaptadas a produzir conhecimento atravs da experincia. Ou seja, com a

    multiplicao de entradas, os resultados so progressivamente optimizados e as ligaes,

    dentro de cada contexto, so efectuadas de uma forma cada vez mais precisa e intuitiva. Este

    funcionamento paralelo permite, tambm, uma reduo dos recursos necessrios ao seu

    funcionamento, criando maior disponibilidade para novos problemas ou para a realizao de

    outras tarefas em simultneo. Se necessrio, o modelo de processamento reconfigurado e

    armazenando para utilizao futura em situaes anlogas. Esta sintetizao interna do objecto

    propicia subidas de nvel analtico, uma vez que, por significao, as complexas relaes entre

    eventos, numa dada escala, so sintetizadas e codificadas. Atribuir uma categoria ou um

    smbolo a uma determinada rede de eventos implica a realizao de uma operao formal, isto

    , a incluso numa rede de propriedades comuns verificadas em determinada parte do conjunto

    de eventos em observao.

    A experincia do objecto musical pois, uma actividade intrinsecamente mediada, uma

    condio inerente capacidade do sujeito em estabelecer um contacto com a superfcie do

    objecto, evento a evento, e de o re-organizar internamente, em funo de uma dupla condio:

    27 Em oposio, o funcionamento de uma mquina, quer se trate de um velho relgio ou de um computador digital, assenta em pressupostos diferentes: os sistemas que os compem baseiam-se em conjuntos de componentes distintos e especializados, ou seja, atravs da organizao e distribuio prvias das tarefas a desempenhar. Neste modelo, cada componente funciona em termos altamente esquemticos e de complexidade limitada, circunscritos, partida, pela programao original. o resultado final que justifica a utilidade de cada uma das suas partes.

  • 34

    excntrica e concntrica28.

    Na msica, a inferncia interpretativa do sujeito no objecto exterior capta as

    componentes fsicas do som, expressas em eventos. Com estes dados capaz de criar

    conceitos, encadeamentos de ideias e at estilos que acolham os anteriores. A aptido da

    msica para veicular unidades de sentido simblicas, assim ordenadas no tempo, mas

    mutuamente reconhecveis e capazes de manipular proporcionalmente a temporalidade,

    tornou-a, ela prpria, uma linguagem29.

    Este processo de reconstruo interna do objecto musical, atravs da experincia de

    descontinuidades, algo que afecta o prprio sujeito, alm do seu exterior. Se, de facto, o

    objecto musical, assim recebido, s pode construir-se na medida em que se constituem duas

    foras em relao - o sujeito e o objecto -, a concretizao das relaes que descrevem um

    acarretam, consequentemente, a descaracterizao do outro. O mesmo dizer que quando se

    atende mais concretamente s relaes que os definem e menos aos seus agentes, menor a

    percepo das suas distintas individualidades. Neste sentido, o resultado da observao30,

    como experincia consciente, alterado pelo contacto do sujeito com o objecto.

    Consequentemente, a sua capacidade do sujeito para analisar os resultados tambm alterada.

    O que se gera, definitivamente, um aumento de informao disponvel, apta a ser reinvocada

    e reincorporada em operaes superiores; o tempo torna-se significativo.

    O objecto musical surge na realidade, como uma construo baseada em relatividades 28 Esta mtua referencialidade entre objecto musical e sujeito ouvinte estabelecida pela integrao de dois quadros: o primeiro - interioridade-exterioridade, aquele em que o sujeito se abre ao exterior e se apercebe de uma estrutura que lhe ultrapassa - e o segundo e complementar - exterioridade-interioridade, aquele em que o sistema percebido atravs do objecto musical recebido, categorizado e referenciado em funo de uma permanncia, uma individualidade expressa em propriedades comuns. Por um lado, existe uma presso excntrica, ou seja, uma dificuldade de permanncia por parte do sujeito, perante a experincia do objecto, na transformao constante que lhe percebida. Por outro lado, verifica-se uma outra presso, concntrica, pela qual os padres interiores ordenam e sistematizam o objecto em funo daquele que o observa. 29 Existe uma ligao fundamental entre as manifestaes externas observadas nos outros indivduos, as representaes internas de tais comportamentos e as prprias manifestaes internas do sujeito, quando confrontado com uma realidade semelhante. Essa teorizao recorrente do comportamento social dos outros indivduos constitui um mecanismo modelador por excelncia. 30 Eugene Wigner, Prmio Nobel da fsica em 1967, constatou que o resultado de uma observao que se obtm por interaco modifica a funo ondulatria do sistema.

  • 35

    internas que se erguem de acordo com as propriedades do sujeito, codificadas no objecto. A

    conceptualizao do objecto musical assim dependente do grau de conceptualizao

    realizado entre os mundos de ambos. Ela resulta de um modo particular de vida, individual e

    socialmente participado.

    4.3. Conceito: espao-tempo

    Figura 2

    E se eu deixar de as recordar por pequenos espaos de tempo, de tal maneira voltam a submergir e a deslizar

    para os recnditos mais afastados, que de novo, como se fossem novas, tm de ser arrancadas, -

    pensando, do mesmo lugar pois no outro o seu espao e reunidas de novo, para que,

    possam ser conhecidas, isto , recolhidas como que de uma espcie de disperso,

    por isso se diz que a palavra cogitare deriva de cogere31.

    S. Agostinho ter sido um dos primeiros pensadores a relacionar eficazmente tempo e

    espao, ideia com a qual confrontou a nossa capacidade de conceber um antes por via da

    razo. Do ponto de vista do sujeito (e no dispomos de outro), o incio a dotao do espao-

    tempo. Nesse sentido, o prprio conceito de criao no lograria existir sem o espao-tempo.

    Em diferentes nveis analticos, um valor de tempo de referncia corresponde a diversos

    conjuntos de possibilidades delimitados pela extenso da superfcie sonora por si organizados.

    Dentro de um nvel, cada valor de tempo pressupe, ele prprio, um incio e um fim, ou seja

    31 In AGOSTINHO, Santo Confisses, VII, X e XI, p. 58.

  • 36

    uma distncia32; nos limites desta distncia, compreendida em escala, situam-se, justamente,

    dois instantes, o inicial e o final. A comparao entre ambos estes pontos, no tempo e em

    sucesso, pressupe um movimento, o que uma considerao intrinsecamente associada ao

    espao. Para entendermos a ligao entre passagem do tempo e movimento necessrio

    destacar, previamente, algumas concepes relacionadas com o espao. Em primeiro lugar, a

    noo de que o movimento implica uma alterao no espao, uma mudana de lugar; nesta

    transformao de lugar que o objecto, ou parte deste, por se tornar foco de uma anlise, se

    individualiza, se destaca e, em ltima anlise, se torna mensurvel. Em segundo lugar, o

    movimento uma das relaes registadas entre os diversos eventos detectados no material e

    que ocupam o seu espao; estas partculas relacionais tm a propriedade de se associar umas a

    outras de acordo com a superfcie observada. Finalmente, estas concepes so frequentes na

    msica e expressas em propriedades como altura ou frequncia (dizer que um som alto ou

    que a sua frequncia alta) ou ainda, intensidade (afirmar que um dado som est muito alto

    em relao a um outro ou a um determinado limite auditivo). No fundo, as coordenadas

    espaciais, herdadas da geometria euclideana, so um dos pilares fundamentais da abstraco

    do objecto. No espao isolam-se formas, comparam-se dados, e extraem-se qualidades ou

    quantidades que permitam novas comparaes. O espao de um objecto musical, registado

    pelo sujeito, resulta de uma complexa teia de relacionamentos directos entre elementos

    distintos; permite avanos, retrocessos ou mudanas de escala, constitui uma potencialidade

    do real e, ao mesmo tempo, uma realidade abstracta.

    A espacialidade advm, precisamente, dos limites da percepo. O espao, elemento do

    contacto de sujeito e objecto, constri-se a nvel dimensional. E as dimenses so,

    precisamente, conjuntos de coordenadas que permitem determinar um dado ponto ou objecto

    32 O tempo faz parte de um conjunto de qualidades fsicas dimensionais. Neste conjunto agrupam-se, alm do tempo, a durao, a massa a temperatura, a quantidade de substncia, a corrente elctrica e a intensidade luminosa. Cf. International Bureau of Weights and Measures: Sistema Internacional de Unidades. 8 edio, 2006.

  • 37

    face a outro. Alm disso, a dimensionalidade33 de um objecto a intelectualizao das suas

    diferentes qualidades, agrupadas em sries ordenadas.

    A concepo, em concreto, de massas sonoras, dotadas de uma textura interna particular,

    evidencia qualidades limitveis e inter-relacionveis como altura ou durao, entre outras, e

    pressupe uma intencionalidade directa na restrio da superfcie: interior contra exterior34.

    Assim, espao e tempo constituem um pr-conceito interno contnuo, nunca desligado

    nunca interrompido, especialmente destinado a mediar o contacto com o exterior. Em si,

    constituem um antecedente, uma condio prvia da percepo, uma imagtica sucessiva e

    coordenada de ligaes entre micro e macro estruturas, convocadas para o real atravs do

    33 Segundo E. G. Boring, a conscincia possui, ela prpria, um conjunto de processos como qualidade, intensidade, extenso, durao e intencionalidade aptas a formular anlises contnuas sobre o material percebido sensorialmente. Estes processos dimensionais so universais. Cf. BORING, E. G. - The Physical Dimensions of Consciousness. Cap. 3. Um evento constitui um ponto no espao-tempo ao qual no podem ser aplicadas propriedades mensurveis universais, apenas locais, em funo da estrutura sob a qual detectado; ele define-se, como vimos, por oposio totalidade que o rodeia. Consequentemente, este ponto, o evento, detm uma potencialidade infinita em virtude de estar apto a conectar-se com qualquer outro ponto em seu redor. Pela sua natureza, a singularidade do evento est pois numa ambivalncia desconcertante: ser fechado, por se opor ao todo mas, paradoxalmente, ser aberto pela sua conectividade com qualquer ponto em seu redor com o qual possa constituir uma relao. Por conseguinte, na sua ambivalncia, o evento representa a partcula fundamental do nvel, o limite inferior de uma escala. Enquanto parte desse nvel, no pode ser decomposto. A duas dimenses, deve ser considerada a noo de superfcie. Esta advm do sistema de coordenadas cartesiano. A localizao de um ponto atravs de um quadro de referencialidades, coloca-o na interseco de duas superfcies. Desta interaco se pode inferir a relao entre dois pontos sendo essa relao linear. A trs dimenses so definidas as coordenadas fundamentais de localizao e delimitao dos objectos. A noo de espao tridimensional est fortemente enraizada na forma com que o mundo percebido. Finalmente, a quatro dimenses, importa conhecer a noo de continuum, ou espao-tempo. O conceito, que tinha sido sugerido por H. Minkowski (Cf. NABER, Gregory L. - The Geometry of Miskowsky Spacetime. New York: Springer-Verlag, 1992), foi incorporado na Teoria da Relatividade (restrita) de A. Einstein. O argumento base prende-se com a durao como uma condio bsica da existncia de um objecto no espao. Um qualquer ponto geomtrico com durao transforma-se numa linha. O espao-tempo , pois, uma estrutura generalizada onde se relacionam os acontecimentos no mundo ou numa qualquer obra musical. Lembro que, ao referir-me ao espao, tenho em mente que este representa um conceito intelectual intimamente relacionado com a forma particular de recepo do exterior do qual o homem dotado. A deteco de qualquer movimento, direccionalidade ou relao, implica uma abstraco do tempo como uma quarta dimenso. 34 As representaes de objectos musicais tais como as partituras, grficas ou em pentagrama, demonstram claramente a influncia da organizao espao-temporal na Msica. Nelas se justape um vasto conjunto de sinais ordenados em coordenadas claras e acessveis. Esses sinais representam, convencionalmente, propriedades ou estados particulares e organizados de elementos fundamentais de informao sonora: altura, durao, timbre ou intensidade. Tais elementos, discorrentes no espao-tempo simbolizam, para o sujeito, interaces especficas de matria e energia e constituem, para este, estmulos externos capazes de fazer ressoar o interno.

  • 38

    contacto com a superfcie onde se projecta o objecto.

    No entanto, a informao colectada dificilmente expressar, per se, conceitos bsicos,

    inerentes s referncias receptivas do sujeito, do discurso musical como a melodia, o ritmo e a

    harmonia ou o motivo, a frase e o tema. So, afinal de contas, esses elementos com os quais o

    msico tem de lidar.

    Assim, para entender o que transforma determinados aspectos das organizaes sonoras

    em objectos musicais, necessrio, antes de mais, compreender as complexas relaes entre

    os mecanismos receptores e processadores - os sentidos e crebro, e a instncia de mediao e

    interpretao a mente35.

    A mente intui, representa e revela atravs de conceitos aquilo que lhe apresentado do

    exterior. Essa relao entre exterior e interior estabelecida em funo da aco particular da

    mente do sujeito e desde a sua especificidade humana, individual e cultural. Ento, tudo o que

    pode ser obtido do objecto musical resulta de um processo de interaco e

    correspondncia36. S se estabelece por ser possvel, ou seja, por pertencer a um quadro de

    35 Defina-se, para j, mente como um conjunto de funes superiores do crebro (pensamento, razo, memria, inteligncia ou emoo) associadas conscincia. O que percebido como exterior advm de uma enorme transformao interna efectuada sobre a informao recolhida sensorialmente. Note-se que a sntese bsica do percebido a sua representatividade mental; essa representatividade provm, evidentemente, da abstraco dimensional, quer em termos de espao, quer em termos de tempo. E, de facto, essa transformao destina-se criao ou traduo de conceitos sobre os quais se possam efectuar operaes superiores. Mas a mente no se limita a gerir os impulsos externos de uma forma distanciada. Ela confere-lhes presena e projecta-lhes unidade e sentido na medida da sua apetncia representativa. Isto corresponde, exactamente, a um acto mental, porque exprime um determinado olhar sobre a ideia interna que, embora reaparea em formulaes externas, musicais ou no, constitui uma espcie de re-objectivao. E o resultado mais evidente, porm mais complexo, destas operaes mentais a conscincia. Esta componente fundamental da experincia deve a sua complexidade no s intrincada rede de operaes de processamento que lhe d origem, mas tambm sua componente elementar de mediadora do conhecimento. Assim, muito mais fcil referir o quando da conscincia do que o seu qu. Gerald Edelmann referiu que o aparecimento das manifestaes da conscincia estar relacionado com o alcance de um determinado grau de complexidade, uma organizao especfica encontrada no meio de muitas outras formas de ordenao e modelao coexistentes no crebro humano e que no ser, com certeza, a nica. Cf. BTZ, Michael R.: Chaos and Complexity: Implications for Psychological Theory and Practice. 36 Justamente, em consequncia da incapacidade de experimentar, ao mesmo tempo e no mesmo espao, tudo o que recebido do objecto musical, o sujeito detm um outro importante mecanismo interno de organizao (mediao), a ateno. Atravs dela, so estabelecidos diferentes de estgios de conscincia fugaz, necessrios s tarefas de representao simples, convocadas pela memria para tarefas mais especficas e focalizadas.

  • 39

    referencialidades comuns, uma grelha espao-temporal de propriedades fsicas observveis e

    partilhadas.

    Figura 3

    Para esclarecer a conceptualizao das sucesses de eventos, entendidas atravs da

    mediao do nosso sistema analtico, crimos uma representao grfica, inspirada no cone de

    luz37 e que caracteriza os limites de causa e consequncia num dado momento do presente, no

    contacto com um determinado objecto. A este conceito chamamos cone de evento38. Atravs

    37 O cone de luz uma representao tridimensional (duas dimenses espaciais, horizontais, e uma dimenso temporal, vertical) do espao-tempo de Minkowski (quadridimensional). Esta representao pretende descrever o antecedente e consequente de um raio de luz, registado por um observador num instante de tempo, t=0. 38 A Figura 3 representa o cone de evento, uma criao prpria. Neste exemplo, foi efectuada com base na figura original constante em AINASQATSI, K. - World_line.svg. Verso SVG, 7 de Maio de 2007. Permisso para cpia e ou modificao de documento nos termos do GNU free documentation license, ver. 1.2. Free Software Foundation.

  • 40

    deste cone, verificando um nico acontecimento no espao-tempo, registam-se, a um lado,

    todos os eventos passados cuja sucesso desencadeou o fenmeno em questo e, do outro,

    todos os eventos futuros que sero, por ele, influenciados. As fronteiras do cone assinalam,

    pois, os limites de referencialidade para o evento registado no presente. Fora das fronteiras do

    cone, impossvel estabelecer uma relao com o evento em questo. De certa forma,

    podemos concluir que a determinao causal, a relao do evento com o seu conceito base,

    diminui, medida que mais causas ou consequncias se revelam, ou seja, medida que, ao

    longo do tempo, so convocadas mais referncias. Na nossa anlise, o conceito de cone de

    evento poder facilitar a determinao mais precisa da teia de relaes que interliga os eventos

    em estruturas lineares complexas.

    4.4. Estrutura e complexidade

    Figura 4

    [Existem] dois tipos de processos na natureza, um que se pode medir

    com exactido e outro que apenas se pode tratar estatisticamente39.

    No contacto entre sujeito ouvinte e objecto musical, o sinal sonoro recebido pelo

    primeiro, como estrutura linear de eventos registada na superfcie do segundo, separado em

    39 Primeira referncia directa de G. Ligeti influncia da Teoria do Caos nas suas composies. Neste caso, tratava-se da obra Clocks and Clouds (1972-73). Cf. LIGETI - Ligeti in conversation, p. 64.

  • 41

    dois conjuntos de caractersticas fsicas distintas: as dimensionais, directamente deduzidas das

    ligaes entre espao e tempo (altura, durao ou intensidade), e as lingusticas (discursivas),

    tais como frase, cadncia (repouso) ou motivo.

    Figura 5

    Para o evento E, detectado na superfcie do objecto, existe no sujeito uma forma

    projectada e outra que vai sendo verificada. O ponto de espao-tempo apenas um

    acontecimento, um instante e, para esse acontecimento, o objecto nivelado analiticamente

    toma uma determinada forma; porm, a ligao entre eventos, relaes, estruturas e formas

    contnua. O que a faz movimentar-se para a frente uma consequncia da necessidade de

    estabelecimento de linhas em vez de pontos. O sujeito projecta-se na transformao de

    intermitncias em linhas de sentido.

    A estruturao advm da capacidade de disposio de cadeias de eventos recebidos e

    diferenciados de acordo com uma estrutura conceptual. Quanto maior for essa diferenciao,

    maior ser o grau de importncia formal dessa unidade. A operatividade da diferenciao

    surge ento da capacidade de anlise das conexes entre eventos e acontecimentos

    extrapolando os seus padres, baseada na co-identificao de propriedades.

    Os diversos padres so estratificados de acordo com a sua complexidade, o que permite

    definir analiticamente os nveis dentro dos quais se efectuam as conexes.

  • 42

    Por outro lado, a capacidade de decomposio estrutural das redes de eventos registadas

    superfcie conduz, necessariamente, a uma reduo do nvel analtico e da sua respectiva

    escala. Porm, o limite deste tipo de operaes est sempre sediado na capacidade do sujeito

    em extrair descontinuidades do objecto, a cada nvel analtico. Assim, para a superfcie

    observada existir no s uma macro-estrutura mas tambm uma micro-estrutura. Ou seja, o

    contnuo percebido possui referencialidades articuladas entre os seus elementos fraccionrios,

    os eventos, e os seus elementos sintticos, os conceitos. Embora os mtodos analticos sejam

    diferentes para cada nvel, pode concluir-se que a informao sobre o sistema aumenta com a

    capacidade de extrapolar um nvel criando um outro (acima ou abaixo), modelando as

    limitaes da matria detectvel superfcie; entender a causa e o efeito no espao mas

    tambm no tempo.

    O processo de aquisio de informao no objecto musical est ento relacionado com a

    sntese de elementos temporais descontnuos, no fluxo do contnuo espao-tempo, a escalas

    variveis, encadeadas a partir de um nico ponto de referncia.

    Cada um destes nveis analticos coerente com o conjunto especfico de propriedades

    de cada objecto musical, observvel a uma determinada escala. A necessidade de estabelec-

    los advm de um imperativo organizativo do sujeito na matria, sem o qual a articulao dos

    contactos entre sujeito e o seu exterior no seria compreensvel40.

    Se a verificao directa dos eventos ocorridos na superfcie de um objecto musical

    depende da particular escala de temporalidades que seja relevante (ou ressonante) com o

    sujeito, muitos eventos, verificados para l da escala empregue na superfcie, no so 40 Cf. PENROSE, Roger - O Grande, o Pequeno e a Mente Humana. Coleco Cincia Aberta, n 124. Gradiva, pp. 21-22. Este autor referiu que, na relao com as diversas dimenses espaciais e temporais, o Homem se situa na regio intermdia das relaes entre o enorme e o pequenssimo. A ontologia desta condio-necessidade, a estabilidade, uma discusso to intrincada quanto a discusso do prprio tempo. Alis, apesar de que, do ponto de vista da nossa percepo, enquanto humanos, tais consideraes podem no ser muito claras, elas so previsveis em termos tericos e verificveis em laboratrio ou em demonstraes abstractas. A respeito deste assunto, existem vrias teorias probabilsticas que relacionam o mais nfimo pormenor com os desenvolvimentos formais mais radicais. De facto, a ligao entre os extremos da escala um dos objectos de estudo da chamada Teoria do Caos. Esta teoria, to largamente difundida, descreve a relao entre ordem e desordem e aborda o informe, o confuso ou o irregulvel. A ela e sua relao com a organizao do material me referirei mais frente.

  • 43

    directamente recebidos. Nas estruturas formais estes eventos so ignorados ou sub-entendidos,

    em funo dos padres estruturais dominantes. Na realidade, os prprios eventos verificados

    so, eles prprios, directamente e indirectamente influenciados por essa infinitude de outros

    processos, completamente imperceptveis, verificados para alm dos limites da superfcie e

    constituindo uma influncia possvel e provvel mas no directamente observvel, uma infra-

    estrutura. Na nossa anlise de Lux aeterna teremos a oportunidade de enunciar e destacar um

    conjunto de infra-estruturas criadas para gerar superfcie mas que no so directamente

    observveis, como conjunto independente de propriedades formais, captadas a partir da

    superfcie.

    A associao de um evento a uma propriedade constitui intermitncia no contnuo do

    sujeito. Ela recria ou oblitera o conceito disponibilizado, no seu quadro de referncia, para

    acolher cada evento, no seu ponto no espao-tempo. Porm, nem todo material re-conectado

    nas linhas de sentido de cada nvel estrutural. Existe uma quantidade considervel de

    entropia41 acolhida dentro do sistema, para alm do determinado. justamente esta entropia

    que fornece novos eventos a cada observao de um mesmo objecto. Acima ou abaixo do

    nvel da superfcie do objecto, a possibilidade de construo de sentidos infinita porque a

    indeterminao, no evento, infinita. Contudo, sendo o contnuo afectado pela experincia do

    objecto, o ajustamento entre o conceito e o correspondente evento registado sofre uma eroso

    contnua que lhe retira determinao. Este problema endmico de todo o sistema analtico, uma vez que cada nvel de

    anlise, abaixo ou acima da superfcie observada comporta, necessariamente, uma quantidade

    de informao que se torna decrescentemente determinada, em relao aos extremos de causa

    e efeito, e em funo das limitaes perceptivas do sujeito. Precisamente por esta razo, a

    41 A entropia a nica quantidade verificvel na experincia de um dado sistema que implica uma progresso directa, uma nica direco. Na fsica, esta direco comummente denominada por seta do tempo. Na nossa representao de cone de evento, resolvemos inclu-la para focalizar a direco inexorvel e intransponvel do tempo. A entropia representa uma perda de informao na transio de um nvel do sistema a outro. Qualquer mudana de nvel resulta numa perda entrpica, catica, no inteiramente recupervel. Voltar atrs e entender o sucedido, implica assentar em dados representados por abstraces, por si prprias, deterministicamente insuficientes.

  • 44

    informao ento organizada em funo da proximidade no espao-tempo do evento,

    mediante a polarizao da ateno. O excedente, embora tolerado como sintetizao analtica

    de ordem probabilstica, tornado secundrio ou ignorado.

    Na realidade, objectos musicais como Lux aeterna so complexos, na medida em que a

    linearidade dos seus processos internos no plenamente revelada na sua superfcie, apenas

    subtilmente indiciada. Neste sentido, a pr-conceptualizao (organizao) das suas estruturas

    requer a sobreposio de vrios nveis analticos, diferentes dos sugeridos pelos sistemas

    analticos apriorsticos. Isto ocorre porque, na ausncia de pr-conceitos (estruturas

    apriorsticas) aptas a relacionar a superfcie com micro e macro estrutura, as fronteiras do cone

    de um evento esbatem-se cada vez mais no campo da probabilidade, de tal forma que uma

    estruturao efectiva apenas se pode estabelecer na vizinhana do momento em que

    observado, tal como sugerido no cone; o resto uma possibilidade. Deste modo, na

    superfcie, quanto maior for a quantidade de informao implicada, maior ser o grau de

    possibilidade e menor o de realidade. As relaes de vizinhana, geradas no mecanismo estrutural mas inaudveis no evento,

    formam estas pequenas unidades de sentido. No momento t, um obra discorrida aponta para

    uma possibilidade real de ordem sucessiva (encadeamentos reconhecveis, intervalos de tempo

    regulares, etc.) mas no completamente previsvel.42

    42 Estas relaes simples aportam, em si, um elemento de instabilidade. Ser que tudo o que ouvi seria tnica, dominante, tnica, dominante, etc? A harmonia da obra parece consistir disso, mas ser assim at ao fim? Quando acabar? A que horas chegar o autocarro?...

  • 45

    Figura 6

    Figura 7

  • 46

    4.5. Do diferencial forma

    Figura 8

    Cela ressemble une grande mosaque que l'on peut considrer comme un tout, et qui peut avoir des

    formes un peu floues. Mais c'est une mosaque construite avec des petites pierres parfaitement dlimites.

    Ce n'est pas de la peinture faite coups de grands gestes,

    ni al fresco c'est l'oppos, et trs minutieux43.

    medida que se gera (fixa) cada vez mais informao no discorrer da obra, os conceitos

    estabelecidos em relao sua inteligibilidade, vlida para ambos sujeito e objecto -, sofrem

    a eroso temporal gerada por esse macro-sistema; a superfcie distorcida em funo do

    mecanismo que a recebe.

    O sujeito inclui, de alguma forma em si, uma referncia com as leis da natureza da qual

    faz parte. Esta referncia est implcita na observao das regularidades do mundo exterior: os

    ciclos naturais, os ritmos internos, etc. Mas, como vimos, o ser pressupe tambm um esforo

    de permanncia, uma contnua compensao do transitrio perante o tempo. O sujeito escapa

    permanentemente conceptualizao que lhe prpria. A transmisso de informao, em

    sentido fechado e em sentido cultural, gera ela prpria uma quantidade crescente de 43 Referindo-se a Atmosphres, Ligeti explica como os elementos audivelmente estruturais foram apagados da superfcie. Este sombreamento (estompage) foi, no entanto, conseguido com meios muito precisos. In MICHEL - Ligeti, compositeur daujordhui, p. 156.

  • 47

    indeterminao em relao ao conceito inicial. Isto funciona igualmente no cone de evento.

    Figura 9

    Figura 10

    Assim, o fluir do tempo que percorre todas as conscincias no universal. Podemos

    considerar dois grandes conceitos de tempo: o tempo com o qual interagimos e o tempo que

    nos indiferente. O primeiro envolve a actividade humana em vrios ciclos. O segundo resulta

    directamente do triunfo da ordem na indeterminao e que se verifica indiscutivelmente em

    matizes diferentes por todo o universo. Estes dois conceitos no so completamente distintos.

    Alis, o primeiro est intimamente relacionado com a elaborao conceptual do tempo, ligado

  • 48

    s actividades do Homem, regidas segundo as suas escalas. Sobre o segundo, o tempo do

    universo, o tempo objectivo e independente, no h certezas, apenas teorias e conjecturas no

    verificveis pela experincia humana directa.

    Ento, a definio do tempo, como conceito analtico, resulta ser um grande desafio.

    impossvel avaliar a presso do meio sobre a concepo das relaes que conduzem

    constatao do tempo. No obstante, directamente no tempo que se desencadeia todo o

    processo musical.

    Figura 11

    Figura 12

    Na Figura 12, representamos um conjunto de sucesses de eventos (que constituem

    linhas de sentido), paralelas linha do tempo, e que correspondem a redes separadas de

  • 49