orcamento participativo e_socialismo

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S OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO EM EM EM EM EM DISC DISC DISC DISC DISCUSSÃO SÃO SÃO SÃO SÃO orçamento participativo e socialismo olivio dutra maria victoria benevides

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Page 1: Orcamento participativo e_socialismo

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s o r ç a m e n t op a r t i c i p a t i v oe s o c i a l i s m o

o l i v i o d u t r am a r i a v i c t o r i a b e n e v i d e s

O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO

E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE

QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO

POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU

AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM APERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO

FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM

TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS

SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA

EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS

REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA

E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS

DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO

MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA

INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS

RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA

DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA

DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA

PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA

TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR

À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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o l i v i o d u t r am a r i a v i c t o r i a b e n e v i d e s

O SEGUNDO CICLO DO SEMINÁRIO SOCIALISMO

E DEMOCRACIA DEDICOU-SE AO EXAME DE

QUESTÕES CONCRETAS QUE ESTÃO SENDO

POSTAS PARA AS ESQUERDAS NO BRASIL.A ABORDAGEM DESSAS QUESTÕES JUNTOU

AS URGÊNCIAS DE CURTO PRAZO COM APERSPECTIVA HISTÓRICA MAIS LARGA DO

FUTURO. POR ISSO, OS VÁRIOS TEMAS FORAM

TRABALHADOS, SEMPRE, PERGUNTANDO-SE QUAIS

SÃO SUAS INTERAÇÕES COM O SOCIALISMO.FORAM ABORDADOS TEMAS COMO A RICA

EXPERIÊNCIA – QUE A VÁRIOS TÍTULOS

REPRESENTA UMA ENORME INOVAÇÃO POLÍTICA –DO ORÇAMENTO PARTICIPATIVO,O PLANEJAMENTO URBANO, A REFORMA AGRÁRIA

E O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES

SEM-TERRA, AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS

DA LUTA SOCIAL, A DECISIVA REVOLUÇÃO

MOLECULAR-DIGITAL E A VIRADA DA

INFORMAÇÃO, E, POR ÚLTIMO, AS COMPLEXAS

RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS NA ERA

DA CHAMADA GLOBALIZAÇÃO.O EXAME TRAVEJOU, SEMPRE, A EXPERIÊNCIA

DAS LUTAS COM A REFLEXÃO QUE PROCURAVA

PROJETÁ-LAS E ENTENDÊ-LAS NO QUADRO DA

TRANSFORMAÇÃO URGENTE E RADICAL.NÃO PARA UM DIA QUALQUER POSTERIOR

À REVOLUÇÃO, MAS DIUTURNAMENTE.

FRANCISCO DE OLIVEIRA

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Olívio Dutra

Maria Victoria Benevides

OOOOORÇAMENTORÇAMENTORÇAMENTORÇAMENTORÇAMENTO PARPARPARPARPARTICIPATIVOTICIPATIVOTICIPATIVOTICIPATIVOTICIPATIVO

EEEEE SOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMOSOCIALISMO

Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

Page 4: Orcamento participativo e_socialismo

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional

do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaLuiz Dulci – presidente

Zilah Abramo – vice-presidenteHamilton Pereira – diretor

Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

Assistente EditorialCandice Quinelato Baptista

RevisãoMárcio Guimarães de Araújo

Maurício Balthazar Leal

Capa e Projeto GráficoGilberto Maringoni

Ilustração da CapaRodolfo Pizzignacco

Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande

Impressão Cromosete Gráfica

1a edição: outubrode 2001 – Tiragem: 4 mil exemplaresTodos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2001 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-57-2

Page 5: Orcamento participativo e_socialismo

ApresentaçãoFrancisco de Oliveira ..................................................................... 5

O orçamento participativo e a questão do socialismoOlívio Dutra .................................................................................... 7

Ética e luta de classes ........................................................................................ 12

Na contramão do neoliberalismo ........................................................................ 13

ComentáriosOrçamento participativo e democracia diretaMaria Victoria Benevides .............................................................. 19

Democracia direta como parte da construção do socialismo ............................. 21

Radicalização da democracia e socialismo democrático ..................................... 24

Controle público do Estado ............................................................................... 26

Page 6: Orcamento participativo e_socialismo

4 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Debate com o públicoArmelindo Passoni ....................................................................................... 31

Paulo Rubens ............................................................................................... 31

Roberto Gouveia .......................................................................................... 32

Pedro Pontual ............................................................................................... 33

Olívio Dutra ................................................................................................ 35

Maria Victoria Benevides ........................................................................... 40

Paul Singer ................................................................................................... 43

Anísio Homem ............................................................................................. 44

Juliana Piccoli Agati ..................................................................................... 45

Paulo Vannuchi ............................................................................................ 46

José Reinaldo Braga ..................................................................................... 47

Olívio Dutra ................................................................................................ 47

Maria Victoria Benevides ........................................................................... 54

Zilah Abramo ............................................................................................... 59

Alencar Santana Braga ................................................................................ 59

Gustavo Venturi ........................................................................................... 59

Antônio Lanzetti .......................................................................................... 61

Sebastião Marcelo Sobrinho ........................................................................ 62

Olívio Dutra ................................................................................................ 63

Sobre os autores ..................................................................... 69

Page 7: Orcamento participativo e_socialismo

5SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

ApresentaçãoFrancisco de Oliveira

O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido nacoleção Socialismo em Discussão –, que o Instituto Cidadania, a FundaçãoPerseu Abramo e a Secretaria de Formação Política do Partido dos Traba-lhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedicou-se, desta vez,ao exame de questões concretas que estão sendo postas para o movimentodas esquerdas no Brasil com urgência, particularmente a partir das expressi-vas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. O Partido dos Tra-balhadores, para não usurparmos a fala das outras formações da esquerdabrasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticos proble-mas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelas polí-ticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos.

Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela ur-gência da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva dedesenvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pelatrajetória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das admi-nistrações petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão doEstado, em municípios e estados.

A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto prazocom a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso, os vários

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6 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

temas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suasinterações com o socialismo. De modo que as gestões da esquerda nãodevem ser apenas o breve ciclo de uma administração, mas precisamtambém realizar, concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cida-dãs e cidadãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Nãopara um dia qualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Dessemodo, a perspectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza me-didas simples, ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos gran-des eventos, mas preparando-a para seu autogoverno.

Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, quea vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamentoparticipativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimentodos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, adecisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, porúltimo, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha-mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutascom a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro datransformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dosTrabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici-pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas,reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestadospor um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne-cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da novacomplexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenaspara preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação –como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”.

Em nome da Comissão Organizadora,Francisco de Oliveira

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7SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Prezados companheiros e companheiras, é com imenso prazer que ve-nho debater com vocês “O orçamento participativo e a questão do socia-lismo”. Um encontro deste tipo, com esse tema, revigora o nosso parti-do, por mostrar que ele não se pauta pelo pragmatismo, nem peloimediatismo político. A implementação do orçamento participativo exigede todos nós uma permanente reflexão sobre seus limites e desafios.

Nossa experiência no Rio Grande do Sul começou em 1989, quandoconquistamos a prefeitura de Porto Alegre. Hoje, além do espaço federadoestadual, também estamos governando importantes cidades gaúchas.Governamos, além da capital, cidades como Caxias do Sul, Pelotas, San-ta Maria, Bagé, Viamão, Alvorada, Gravataí, Estância Velha e Cachoei-rinha. No total, o Partido dos Trabalhadores governa 35 municípios e tema vice-prefeitura de seis cidades.

Este inegável avanço do nosso projeto no Rio Grande do Sul tem noorçamento participativo um referencial importante. Governamos o RioGrande há pouco mais de dois anos e administramos Porto Alegre há 12anos. O controle público sobre o Estado é a essência e o diferencial denosso projeto em relação aos projetos adversários.

O orçamento participativo e aquestão do socialismoOlívio Dutra

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8 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Não reinventamos a roda. Nosso projeto é fruto das lutas históricas daclasse trabalhadora, da resistência democrática e de experiências go-vernamentais desenvolvidas pelo campo popular em várias partes doplaneta em diferentes situações e circunstâncias históricas, especialmentena nossa América Latina. Por meio do orçamento participativo, a popu-lação protagoniza a construção da proposta orçamentária. Nesse pro-cesso, invertem-se as prioridades, o que provoca mudanças importantesna concepção estrutural da proposta.

Com a implantação do orçamento participativo, revigoram-se outrasvias de participação popular nas áreas de saúde, assistência social, habi-tação, ensino, interpondo barreiras às práticas tradicionais das elites do-minantes em nosso país, como o clientelismo e a corrupção. Florescecom ele uma nova cultura, na qual o cidadão passa a ser sujeito, e nãomais objeto da política.

O orçamento participativo possibilita uma modificação substancial nasrelações das pessoas com o Estado e o poder público. A proposta orça-mentária deixa de ser um arranjo de interesses entre governo, gruposempresariais, especialistas e técnicos para se tornar uma decisão assu-mida pelo povo na sua dimensão verdadeiramente política e cultural.Começa a se democratizar radicalmente a relação do Estado com asociedade civil; as pessoas não mais limitam sua participação política aoato de votar em dia de eleição.

E não se trata de um “ovo de Colombo”, de uma fórmula mágica,mas de um processo longo e árduo, de um aprendizado comum envol-vendo muita gente. O governo, junto com sua base de sustentação – ospartidos que compõem a Frente Popular –, tem um papel importante,mas a população tem o protagonismo principal. Com ela, o significadodesta alternativa radical de cidadania vai adquirindo contornos maisnítidos. O governo vai se descentralizando e aprendendo a dividir o

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9SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

poder, eliminando os resquícios autoritários que pretendem substituir oprotagonismo do povo e os preconceitos tecnocráticos que menospre-zam a sabedoria popular.

Por esse processo, receita e despesa definitivamente deixam de sermisteriosas fórmulas aritméticas ou arranjos políticos e passam a ser dedomínio público. Já percorremos um bom trecho dessa caminhada, masainda há um longo percurso pela frente. Para vencer os obstáculos ma-teriais e subjetivos que surgem pelo caminho, há que avançar na demo-cratização desse processo.

Criar essa nova cultura – a do protagonismo – é um dos pontos cen-trais do projeto que estamos implementando no estado, com todas asdificuldades decorrentes da complexidade de uma estrutura desse porte,distorcida em suas finalidades e em fase adiantada de privatização. Ogoverno que nos antecedeu seguiu à risca a lógica do pensamentoneoliberal, atribuindo ao tamanho do Estado a razão maior de seus pro-blemas, e tratou de torná-lo mais reduzido para a população e concentra-do para o benefício de poucos.

Para o nosso projeto, a democracia pressupõe participação populardireta e uma nova forma de administração e planejamento, na qual cida-dãs e cidadãos se apropriam de dados e informações e exercem o direitosoberano de influir nas decisões sobre a aplicação dos recursos públicos.O governo tem o compromisso de executar um programa e, além daobrigação formal e institucional de prestar contas aos poderes constituí-dos sobre a execução da Lei Orçamentária, precisa também regular-mente se explicar sobre os encaminhamentos das decisões tomadas pe-las assembléias do orçamento participativo.

Assim, política e culturalmente, o orçamento participativo é também anegação da ideologia neoliberal e da hegemonia do pensamento único:prega e pratica o controle público sobre o Estado e se efetiva desde o

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10 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

início, de modo aberto e pluralista. Dessa forma, as 22 regiões do orça-mento participativo no Rio Grande do Sul vão se tornando espaços fe-cundos nos quais se desenvolve uma verdadeira opinião pública inde-pendente. Espaços que não podem ser instrumentalizados nem pelospartidos, nem pelo governo.

Com a experiência e o aprofundamento dos debates, esses espaçospúblicos acabam por superar os corporativismos egoístas e os particu-larismos limitadores, que aliás brotam inevitavelmente num primeiromomento, em razão de uma longa história de exclusão e de ausência dedecisões e de projetos coletivos. Assim, as pessoas lutam não apenaspelas demandas de suas ruas e de seus bairros, mas adquirem uma visãointegral de sua cidade, de seu estado e de seu país. Portanto, tornam-secidadãs e cidadãos solidários, com consciência crítica e preocupaçãosocial, entendendo os processos de dominação, combatendo-os e se re-conhecendo como construtores de uma nova sociedade.

Aqui, penso, reside a principal crítica ao socialismo que conhecemos ea maior contribuição à construção do socialismo democrático que quere-mos. Refiro-me ao protagonismo das pessoas no processo de transfor-mação social enquanto atividade permanente e cotidiana, ponto em queas experiências de socialismo até aqui fracassaram. O orçamentoparticipativo é um espaço propiciador do exercício pleno da cidadaniapor parte de milhares de pessoas do povo.

Assumimos, portanto, o desafio de reconstruir o Rio Grande como umestado participativo sob o controle público. Para isso, não poderíamosfazer a mera transposição do orçamento participativo aplicado em âmbi-to municipal para a esfera mais ampla e complexa do estado. Era preci-so levar em consideração um leque maior de forças e estruturas políti-cas, como as prefeituras, os conselhos regionais de desenvolvimento, asrepresentações políticas locais, as diferenças regionais e as relações

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11SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

político-institucionais com os demais poderes. A Coordenadoria de Re-lações Comunitárias (CRC) e o Gabinete de Orçamento e Finanças (GOF)foram importantes ferramentas forjadas para tratar dessas relações.

Os desafios estão sendo encarados e equacionados nas assembléiaslocais e regionais, e nas reuniões do Conselho do Orçamento Participativo(COP), consolidando o processo, como revelam os números de seu cres-cimento: no primeiro ano, tivemos a participação de 190 mil pessoas; nosegundo ano, 280 mil e, em 2001, 430 mil. Esse crescimento, porém, nãofoi apenas quantitativo, mas também na diversidade da participação, nariqueza e na qualidade dos debates. Apesar das manobras jurídicas denossos adversários, que obtiveram uma liminar – derrubada um ano emeio depois – que impedia o Executivo de promover a organização e aconvocação do orçamento participativo, o processo foi assumido pelomovimento social e resultou na elaboração de uma proposta de orça-mento com inversão de prioridades encaminhada, em tempo hábil, àAssembléia Legislativa, o poder legítimo e insubstituível que a transfor-ma em lei.

Buscamos, assim, a gestão descentralizada de recursos, com a partici-pação universal, direta e voluntária da cidadania. Como já salientei, é óbvioque se trata de um processo, que vai progressivamente se aperfeiçoandoe fazendo desabrochar a consciência crítica da população e, com ela, anoção de responsabilidade coletiva de cada um com a coisa pública.

Nesse contexto, o conceito de hegemonia assume igualmente umadimensão concreta, pois o orçamento participativo é, também, um espa-ço de disputa, no qual coexistem as diversas crenças e ideologias e emque são preservadas as múltiplas especificidades regionais de nosso es-tado em suas características econômicas, sociais e culturais. Mesmo osnossos adversários mais ferrenhos aos poucos estão vindo debater pro-postas neste espaço construído paulatinamente pela cidadania.

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12 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Ética e luta de classes – O orçamento participativo revigora o con-teúdo ético da atividade política, contrastando com o mar de corrupçãoque assusta e revolta os brasileiros neste início do século XXI. Nossaexperiência de democracia participativa prova que a gestão transparen-te dos recursos é a melhor maneira de se evitar a corrupção e o mau usodo dinheiro público.

Entretanto, não encaramos essas conquistas nem de forma meramen-te administrativa, nem de maneira idílica, como se tudo estivesse funcio-nando às mil maravilhas. Ao contrário, temos plena consciência de queesse processo revolucionário situa-se em um contexto de exacerbadaluta entre dois projetos distintos. As elites tradicionais sabem perfeita-mente que esta prática dá um conteúdo real à democracia, acabandocom os privilégios, com o clientelismo e, em última análise, com o poderdo capital sobre o conjunto da sociedade. Trata-se, pois, de uma lutapolítica com nítido conteúdo de classe (ou de bloco de classes) que vai sedesenvolver ainda por um longo período.

Por isso, se alguém afirmar – alguns o fazem – que o orçamentoparticipativo é apenas uma forma mais organizada de os pobres disputa-rem entre si as migalhas do capitalismo ou, no máximo, uma ligeira pri-mavera democrática, mas sem qualquer relação com o socialismo, esta-rá inteiramente equivocado. Além de ser um aprofundamento e umaradicalização da democracia, também se constitui num vigoroso impulsosocialista, se encaramos o socialismo como um processo, para o qual ademocracia direta e participativa é elemento essencial, pois possibilita ofortalecimento da consciência crítica e dos laços solidários entre os ex-plorados e os oprimidos, abrindo caminho para a apropriação pública doEstado e a construção de uma nova sociedade.

Nossos adversários de projeto de sociedade sabem bem disso, tantoque os partidos alinhados com a ideologia neoliberal buscam nos sub-

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13SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

meter, no parlamento, a um cerco raivoso e irracional, enquanto osprincipais meios de comunicação distorcem os fatos e assumem aber-tamente o combate a esse processo democrático. Eles percebem, tal-vez por instinto de classe, que o orçamento participativo é um instru-mento de protagonismo do nosso povo para a formulação ampliada dasocialização da política; é o surgimento de estruturas que levam à lutapela hegemonia democrático-popular, sinalizando a superação da soci-edade de exploração, apontando para a possibilidade de criação deuma sociedade autogestionária, humanista, democrática e libertária – asociedade socialista.

O orçamento participativo, e não só ele, mas também os conselhosmunicipais de saúde consolidados no processo de municipalização soli-dária, a Constituinte Escolar, os comitês de gerenciamento das baciashidrográficas e os diversos canais de participação popular em proces-so de construção ou de aperfeiçoamento em todas as áreas da esferapública referenciam um projeto efetivamente democrático no Rio Gran-de do Sul, em que o ser humano é o centro e o protagonista das políti-cas de governo.

Na contramão do neoliberalismo – Caminhamos na contramãodo neoliberalismo e da globalização controlada pelos grandes mono-pólios e centros financeiros internacionais. O neoliberalismo, na suafase globalizada, devastou continentes inteiros, e o Brasil não esca-pou aos efeitos dessa devastação: agravaram-se em nosso país aspráticas históricas de exploração. A inserção no mundo globalizadofoi apresentada como uma panacéia para todos os graves problemasque enfrentamos e um passo inevitável rumo à modernidade e aoprogresso. Mas essa ilusão vendida pelo pensamento hegemônico seesvaneceu rapidamente.

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14 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Na prática, o neoliberalismo globalizante só tem concentrado renda e dis-tribuído a miséria, agravando as desigualdades sociais e regionais, aumen-tando o desemprego e promovendo crescente empobrecimento dos povos.

A abertura comercial e financeira feita de forma indiscriminada eirresponsável torpedeou os projetos nacionais; parque industrial brasi-leiro foi abandonado à própria sorte, numa competição desigual comempresas estrangeiras que para aqui foram atraídas praticamente semriscos e com muito dinheiro público. Muitas fábricas pequenas e médi-as fecharam, indústrias tradicionais foram compradas por grupos es-trangeiros, setores importantes de nossa economia desapareceram epresenciamos a desorganização de importantes cadeias produtivas. Nocaso brasileiro, desde 1994, o patrimônio controlado por multinacionaiscresceu 80%. O desemprego e a exclusão social constituem a facemais perversa desse modelo.

Nas grandes cidades brasileiras, pelo menos 20% das pessoas econo-micamente ativas estão sem emprego. As decisões econômicas que afe-tam milhões de brasileiros são cada vez mais tomadas fora de nossasfronteiras, a partir do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma espéciede cooperativa dos grandes banqueiros, muito mais preocupado em de-fender os interesses de credores e investidores estrangeiros do que emresolver a crise social que este modelo agrava a cada dia em nosso paíse em diversos países do globo.

Mas, ao contrário do que pretendiam os teóricos neoliberais, a histórianão acabou e os povos do mundo inteiro começam a perceber o engododesse modelo perverso. As manifestações de Seattle contra a Organiza-ção Mundial do Comércio (OMC), em Washington, em Praga e, recente-mente, em Buenos Aires contra a Área de Livre Comércio das Améri-cas (ALCA) demonstram o vigor do crescente movimento de contesta-ção ao pensamento único que o neoliberalismo tentou nos impor.

Page 17: Orcamento participativo e_socialismo

15SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

A realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em janeiro de2001, é uma prova da rearticulação das emergentes forças sociais pro-gressistas do mundo, ao mesmo tempo que referencia nossa experiência dedemocracia participativa como um luzeiro importante. Em nosso país, aseleições municipais de 2000 registraram expressivas vitórias de nosso parti-do e do campo progressista e de esquerda, sinalizando um início de rejeiçãoao neoliberalismo e demonstrando as possibilidades de crescimento de umprojeto popular e participativo em todas as regiões brasileiras.

É preciso, pois, que avancemos na construção de um projeto comumdo campo de esquerda, democrático e progressista, que cada vez maismobilize os agentes sociais na disputa sindical, na luta pela terra, na pro-dução cultural e na arquitetura de projetos de governo democráticos,populares e participativos que tenham a qualidade de vida e a dignidadedo ser humano como centro das políticas públicas. Nesse sentido, ascidades e os estados que governamos devem se tornar espaços de espe-rança e de redenção para milhões de brasileiros. Permitam-me maisuma vez falar sobre o Rio Grande do Sul, que é a nossa experiênciaconcreta. Assumimos o desafio de transformar um estado em adiantadoprocesso de privatização num estado participativo, por meio de mecanis-mos democráticos de controle público sobre as ações do governo. Aca-bamos com a política de anistias e privilégios fiscais, que incentivam asonegação e a inadimplência. Revisamos os benefícios já concedidos eadotamos novos critérios seletivos para concessões de incentivos, discu-tidos com a sociedade. Criamos organismos executores de políticas pú-blicas fundamentais, como a Secretaria de Habitação, a Secretaria doMeio Ambiente e a Secretaria Especial de Reforma Agrária. Na educa-ção, queremos garantir o acesso universal a um ensino público qualifica-do, debatido com a comunidade, por meio da Constituinte Escolar. Porisso somos o estado que mais investe por aluno na rede pública estadual.

Page 18: Orcamento participativo e_socialismo

16 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Devemos, pois, trabalhar cotidianamente para a construção do espaçopúblico, em que devem surgir e se desenvolver novas instituições, e bro-tar viçoso o conceito vivo de república. Paralelamente, começam a seralicerçados os fundamentos de um Estado verdadeiramente democráti-co, com o objetivo principal e essencial de garantir a cidadania. UmEstado que socialize o poder, que seja transparente e controlado pelasociedade civil, que caminhe em sentido oposto ao do neoliberalismo epromova a mais ampla inclusão social.

Não queremos um Estado que seja maior do que a sociedade, mastambém rejeitamos o Estado mínimo pretendido e arquitetado pelosneoliberais sob as cinzas das conquistas sociais e das lutas de váriasdécadas dos trabalhadores.

Nessa luta pela hegemonia, o conteúdo da crítica socialista ao capitalismopermanece vivo e atual. Não se confunda o conteúdo do socialismo com oque se convencionou chamar abusivamente de “socialismo real”, para ca-racterizar os regimes burocráticos do Leste Europeu. A desintegração daUnião Soviética, em dezembro de 1991, assinala o fim de um ciclo e abreuma nova etapa, marcada pelo absoluto domínio militar norte-americano epor uma hegemonia indiscutível do hemisfério Norte na economia, na políti-ca e na cultura. Entretanto, na Rússia, o encantamento com a vitória docapitalismo durou pouco e logo desabaram os sonhos de consumismo gene-ralizado. Em menos de dez anos, o chamado mercado livre só fez gerarmiséria, desemprego e constituir grupos mafiosos como órgãos de poderpolítico e econômico não institucionalizados; uma assustadora desagregaçãoética faz hoje em dia parte do cotidiano russo em tempos neoliberais.

Mas a alternativa – e não existe outra, não há capitalismo com justiçasocial – ao sistema capitalista neoliberal no qual estamos inseridos é,digamos claramente, o socialismo. O socialismo democrático e libertário,renovado permanentemente, mas sem se descaracterizar; um movimen-

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17SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

to de oposição radical à exploração do homem pelo homem, à guerra eaos preconceitos. A desintegração dos regimes burocráticos não deixasaudades, mas muitas lições. Hoje e sempre precisamos pensar o socia-lismo como uma questão prática, integrá-lo em nossa vida cotidiana. Emúltima análise, pensá-lo como um processo, como luta pela hegemonia,sem jamais colocar em plano secundário os conceitos de liberdade, de-mocracia, justiça e igualdade.

Nessa luta pela hegemonia, nos estados e cidades que governamos,estamos demonstrando na vida cotidiana que a história não terminou eque um outro caminho é possível e viável. Porém, não temos qualquerilusão: não somos ilhas perdidas em um imenso oceano neoliberal. Nos-sas conquistas influirão e, ao mesmo tempo, dependerão de outras lutase de outras conquistas na América Latina e no resto do mundo. Lutasque, felizmente, estão sendo retomadas e começam a ganhar força esinalizar a esperança de que um mundo novo é possível.

Por isso, vamos batalhar para que os acúmulos dessa experiência pos-sam contribuir para um projeto nacional do PT e dos partidos do campopopular na campanha do companheiro Lula para a presidência da Repú-blica em 2002. Temos certeza de que um outro Brasil é possível. É pre-ciso lutar por ele.

Muito obrigado e boa luta!

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18 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

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19SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

É uma grande satisfação participar dos seminários Socialismo e De-mocracia, organizados pela Fundação Perseu Abramo, pela SecretariaNacional de Formação Política do PT e pelo Instituto Cidadania.

Participei como entusiasmada ouvinte da primeira fase do projeto* eestou convencida de que essas discussões têm sido muito importantespara revigorar a reflexão no partido. E o tema do orçamento participativo,que está no âmbito da temática mais ampla da democracia direta, pare-ce-me especialmente importante. Considero que é uma marca de refe-rência importantíssima para o Partido dos Trabalhadores, para umanova e verdadeira esquerda democrática, propositora de um socialis-mo, como diz o governador Olívio Dutra, democrático e libertário.

Estou à vontade para comentar a exposição do companheiro Olíviopelo fato de ter uma concordância plena com suas idéias, além deuma grande admiração por seu trabalho, por suas lutas, desde que oconheci por ocasião da fundação do partido, em 1980, e antes por suaatividade como líder sindical. E, ainda, por ser um dos principais instiga-dores e promotores dessa experiência que tem em Porto Alegre oseu principal exemplo.

ComentáriosMaria Victoria Benevides

* O primeiro ciclo dos seminá-rios Socialismo e Democraciafoi realizado em 2000. Vejana página 72 os livros daEditora Fundação PerseuAbramo que reproduzemesses debates.

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Em relação à sua brilhante exposição, gostaria de tecer algumas con-siderações a partir de sua avaliação e de sua análise do processo den-tro do partido, da experiência do Rio Grande do Sul, da temática dosocialismo e da democracia. Concordo com suas frases finais, no sen-tido de que a experiência do orçamento participativo, e toda a discus-são que é feita sobre suas dificuldades e suas possibilidades deaprofundamento, de ampliação, de levá-lo para outros municípios dopaís, pode realmente configurar um projeto nacional do partido, quefaça parte da discussão e da especificidade programática de um parti-do que aspira chegar à presidência da República.

Quando discutimos a democracia, num momento como o atual, emque todos se dizem democratas, em que todos os partidos se afirmamdemocratas, em que todas as lideranças no país se afirmam valentes,vigorosos democratas, temos de afirmar esse traço fundante da de-mocracia para o Partido dos Trabalhadores, que é a soberania popu-lar verdadeira, autêntica. Autônoma das peias de um sindicalismotutelado pelo Estado; autônoma de um partido entendido como van-guarda, de dirigentes entendidos como elites iluminadas, de umsindicalismo populista e trabalhista como o da nossa experiência his-tórica anterior a 1964. Ou seja, essa especificidade do PT, indepen-dentemente de eventuais alianças partidárias que ele possa fazer, deveestar muito clara.

Não devemos ter medo de falar em democracia direta, mesmo diantede prováveis ambigüidades que cercam a expressão. O PT é, sim, opartido da democracia participativa, da democracia direta, embora issonão signifique o desprezo pelas formas institucionais da democraciarepresentativa, muito pelo contrário. Pela democracia representativatemos companheiros ilustres, valorosos e combativos em governos, comoOlívio Dutra; em prefeituras, como Tarso Genro, Marta Suplicy, nos-

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sos companheiros do Norte e do Nordeste e nossos excelentes parla-mentares municipais, estaduais e federais.

Democracia direta como parte da construção do socialismo –Gostaria de esclarecer algumas premissas que marcam minha posiçãocomo militante, mas também como socióloga que tem trabalhado comessas questões. Essas premissas independem de uma avaliação da ex-posição do Olívio, mas não entram em choque com o que ele falou.

A primeira premissa é uma convicção muito profunda sobre a incom-patibilidade radical entre democracia e capitalismo, no sentido de que ocapitalismo é cada vez mais, nesse modelo globalizado e neoliberal, oinimigo principal da democracia.

O que entendemos por democracia? De vez em quando eu brinco como companheiro Carlos Nelson Coutinho1, dizendo que, no meio acadêmi-co, essa crença na soberania popular ficou tão fora de moda que daqui apouco, só nós dois estaremos falando em democracia como soberaniapopular. Temos várias definições de democracia em que não apareceessa expressão tão simples e tão antiga, tão clássica até, de entendê-lacomo soberania popular.

Nesse sentido, entendo democracia como o regime político da sobera-nia popular, com respeito integral aos direitos humanos.

Trata-se de uma definição singela, que tem a vantagem de agregaras nossas convicções e os nossos princípios sobre a democracia políti-ca, que inclui a democracia participativa, é óbvio, as formas de partici-pação indireta e direta da cidadania, a liberdade – as liberdades públi-cas, as liberdades individuais –, mas também a democracia social; osdireitos econômicos, sociais e culturais sem os quais não se pode falarem democracia. No máximo se pode falar nessa coisa adjetivada dedemocracia liberal etc.

1. Professor titular de teoriapolítica na UniversidadeFederal do Rio de Janeiro(UFRJ) e autor, entre outroslivros, de A democracia comovalor universal.

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Então, se agregarmos a idéia de soberania popular ao respeito integralpelos direitos humanos, nas suas dimensões de liberdades públicas, indi-viduais, direitos civis, econômicos, sociais, culturais, direitos da humani-dade, que são essencialmente históricos, veremos como não deixaremosfora do nosso conceito de democracia nem os seus aspectos de partici-pação política, de liberdade, de pluralismo, de igualdade, nem os aspec-tos da obrigação do Estado em relação aos direitos fundamentais, bemcomo o dever da sociedade em relação àquele princípio revolucionárioda fraternidade ou, como falamos hoje, da solidariedade.

Essa é a primeira premissa do que entendo por democracia e de comoentendo a oposição radical entre democracia e capitalismo, mesmo que nãose fale ainda, explicitamente, de uma proposta socialista, que é a minha.

A segunda premissa é que a defesa da democracia direta, nas suasvárias formas, das quais a experiência mais bem-sucedida é o orça-mento participativo, não exclui a democracia representativa. É justa-mente por isso que insisto que não devemos ficar na defensiva emrelação ao nosso compromisso com a democracia direta; ora, ninguémdefende a abolição de eleições para nossos representantes no Legis-lativo e no Executivo. Pelo contrário, há até os que defendem umaampliação das eleições, para, por exemplo, determinados cargos noJudiciário, como ocorre em outros países. Aliás, em países que estãolonge de ser socialistas, como é o caso dos Estados Unidos, existe aexperiência com eleições diretas para promotores, entre outros car-gos. Existe, sem dúvida, uma complementaridade entre democraciadireta e democracia representativa.

Considero que a democracia direta, nas suas várias formas, exerceum efeito extremamente positivo na democracia representativa, nosentido de que age como um corretivo aos vícios e mazelas já pordemais conhecidos em nossa cultura política – aliás, existentes em vá-

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rias democracias que, há mais tempo, incorporam representação e par-ticipação direta dos cidadãos.

Nunca é demais lembrar, por exemplo, que estão em discussão pro-postas de levar a questão da adesão à ALCA a um plebiscito; de incenti-var iniciativas populares legislativas encabeçadas por movimentos dacidadania e de não esperar que o Legislativo tome a iniciativa para aconvocação de referendos etc. Tivemos o exemplo recente do plebiscitosobre a dívida externa, por iniciativa de organizações da sociedade civile, portanto, de conseqüências não-oficiais, mas que já foi um bom come-ço, no sentido da mobilização popular. No entanto, em nenhum momentose pensa em abolir a representação. Pelo contrário, o partido político eos parlamentares de um partido que têm compromisso com a democra-cia direta deveriam se envolver com essa mobilização popular – e sóteriam a lucrar com isso.

A terceira premissa se refere a entender esses processos de demo-cracia direta, especificamente do orçamento participativo, como parteda construção do socialismo, tendo sempre em mente que o socialismoé um processo; assim como a democracia é um processo – ela nãoestá pronta e acabada em nenhum lugar do mundo –, o socialismotambém é um processo. Não temos uma experiência real e de sucesso,e esperamos que isso ocorra como resultado de um processo deaprofundamento da democracia.

Considero também que a participação nessas formas de democraciadireta resulta em um processo de educação política, que diz respeitodiretamente a um partido como o PT, que tem compromisso com umafunção essencial dos partidos, muito negligenciada na história partidáriabrasileira, a sua função pedagógica. Entendo que o compromisso do PTcom formas de democracia direta configura um passo importante nocompromisso com a formação, com a educação política. E insisto: uma

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educação política que não está fechada nos limites da militância partidá-ria, mas aberta para a cidadania efetivamente democrática. O orçamen-to participativo, nesse sentido, é uma excelente escola de democracia.

A quarta premissa é que, hoje, o orçamento participativo é uma reali-dade que transcende o PT, embora seja marca registrada do partido. Elejá está sendo reivindicado por outros partidos, por outras tendências,porque viram que dá certo, em termos de mobilização e de empenho dascomunidades, no plano local, com o processo decisório em torno de inte-resses públicos.

Portanto, é cada vez mais importante que o diferencial petista se afir-me. Assim como todos se dizem democratas mas não são, há diferençascruciais entre partidos e tendências políticas e ideológicas sobre o signi-ficado concreto da democracia – e isso ocorre em relação ao orçamentoparticipativo também. Vejam o que aconteceu, por exemplo, com o pro-jeto de bolsa-escola, que hoje se tornou um projeto de todos, a começarpelo governo federal, que na minha avaliação está longe de ser um go-verno republicano e democrático.

Radicalização da democracia e socialismo democrático – Então,qual é o nosso diferencial em relação ao orçamento participativo?

Expostas as premissas, especificamente em relação ao orçamentoparticipativo e ao socialismo, quero reforçar algo que está presente notexto do Olívio: que o orçamento participativo – aí entra o nosso dife-rencial – não é apenas uma radicalização da democracia. É evidente,como diz Olívio, que é, sim, uma radicalização da democracia, mas nãosó isso. Quando alguém me pergunta se sou uma democrata radical, eudigo: sou. Radical de raízes, democracia é governo do povo, pelo povoe para o povo. Daí, mesmo que não se fale em socialismo, a participa-ção popular, além da representação, é evidente. Considero que Olívio

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foi extremamente feliz quando afirmou que, além da radicalização dademocracia, o orçamento participativo é um vigoroso impulso socialis-ta, no sentido de que o socialismo é um processo no qual a democraciadireta é essencial, como no controle público sobre o Estado e na parti-cipação popular no processo decisório.

Eu diria mais ainda: o orçamento participativo e outras formas de par-ticipação direta tendem a reforçar laços concretos de solidariedade,princípio histórico e essencial no socialismo democrático.

Continuando, considero que socialismo entendido, por exemplo, comouma extensão à economia do princípio político da soberania popular sig-nifica que as grandes diretrizes econômicas e a definição de prioridadesexigem a participação direta de todos.

Aqui, Olívio também lembra como essa participação direta do povonas prioridades é o ponto principal de algo extremamente positivo nessaidentificação do orçamento participativo com o tipo de crítica que elelevanta em relação ao “socialismo” que realmente existiu, no sentido dereconhecer o sujeito, o cidadão, individualmente e em seus grupos deorganização pela base.

Tudo isso se contrapõe aos que argumentam contra as formas de de-mocracia direta, muitas vezes com uma retórica reacionária que já tempelo menos 200 anos e que afirma que o povo não está preparado nempara votar em seus representantes, que dirá para votar em questões deinteresse público que exijam alguns conhecimentos técnicos.

Nesse ponto, recordo-me de uma análise do intelectual socialistaCornelius Castoriadis em que ele se refere à oposição entre povo e es-pecialistas e afirma que

“a idéia dominante de que existem especialistas em política, isto é,especialistas do universal e técnicos da totalidade, faz troça da

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idéia de democracia. O poder dos políticos seria uma justificadaperícia que eles sozinhos possuiriam e, por definição, o inábilpopulacho é chamado periodicamente apenas para julgar essesperitos. Não existem nem podem existir especialistas em assuntospolíticos. Perícia ou sabedoria política pertencem à comunidadepolítica. Pois perícia, a tekiné, do grego, no sentido estrito, estásempre relacionada a uma ocupação específica, e técnica é obvi-amente reconhecida em seu próprio campo”2.

Sócrates, no diálogo “Protágoras” (de Platão) critica a democraciagrega direta, contra os direiros de isegoria, ou seja, de todos terem odireito à palavra. Na sua crítica, afirma:

“os atenienses escutarão os técnicos quando for discutida a cons-trução adequada de muros e navios; mas escutarão qualquer umquando se tratar de questões da política. Questões da política di-zem sempre respeito à definição de prioridades”3.

Mas esse argumneto contra a democracia direta é exatamente o queproponho como argumento a favor da democracia direta.

Lembro também a relação necessária, historicamente fruto de muitasreflexões, entre democracia e socialismo, retomando o que sempre dissenosso querido mestre e companheiro Antonio Candido4, inspirado emRosa Luxemburgo, que democracia sem socialismo não é democracia esocialismo sem democracia não é socialismo.

Controle público do Estado – Outro ponto que considero muito im-portante, tanto na reflexão mais histórica e acadêmica como na observa-ção das práticas concretas da democracia direta, é que o orçamento

2. CASTORIADIS, Cornelius. “Apólis grega e a criação dademocracia”. Revista FilosofiaPolítica, n°3, Porto Algre/Campinas, LPM/Unicamp/UFRGS, 1986.3. Diálogos de Platão:Protágoras. 4. Crítico literário e autor devários livros fundamentais dasociologia e da teoria literáriabrasileira. É presidente doConselho Editorial da EditoraFundação Perseu Abramo.

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participativo e as demais formas de democracia direta nos levam a perce-ber com clareza a superação da velha dissociação, da velha dicotomia, entreo Estado e a sociedade civil, vigente até hoje tanto entre liberais como entreantiliberais. O que diz Olívio? Que o importante no orçamento participativoé a força de uma cultura nova que exige o controle público sobre o Estado.E aí ele diz, e eu reforço: isso significa dizer não ao Estado mínimo, mastambém ao Estado que pretende ser maior do que a sociedade.

Assim, com a vigência dessas formas de democracia direta ocorreuma abolição das fronteiras rígidas e tradicionais entre Estado e socie-dade civil.

Quando me refiro ao controle público sobre o Estado, estou pensandotambém em uma via de mão dupla: controle público da cidadania sobre oEstado e a obrigação do Estado prestar contas. Às vezes, vejo comcerta ironia meus colegas tucanos, acadêmicos, que insistem muito na talde accountability, ou seja, a obrigação do governo de prestar contas. Esão justamente os governos que eles apóiam que não prestam contas àsociedade, não se sentem responsáveis perante o povo, nem no Executi-vo nem na instância de poder na qual estão inseridos.

Concluindo, esse controle público do Estado é novo, é uma nova visão doEstado com mão dupla: é o controle de cá e a prestação de contas de lá.

Lembro ainda, citando nosso companheiro Paul Singer5, que um proje-to socialista não se limita à economia, por mais importante que ela seja.E ele vai adiante nesse texto: “um projeto socialista alcança a cultura, asociabilidade, é um projeto de reorganização de toda a sociedade, dainfra à superestrutura”6. Lembrei-me dessa citação quando Olívio sereferiu a uma nova cultura que é criada a partir dessas formas novas departicipação e de fazer política. Estou sempre pensando no mote do nos-so Fórum Mundial Social de Porto Alegre, “Um novo mundo é possível”,uma nova cultura política é possível.

5. Economista e professor titularna Universidade de São Paulo(USP), é um dos principaisexpoentes da economiasolidária e do cooperativismono Brasil. É autor de vasta obrasobre estes temas.6. SINGER, Paul e MACHADO,João. Economia socialista. SãoPaulo, Editora FundaçãoPerseu Abramo, 2000.

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E aqui também entendo a ênfase que Olívio dá à questão da hegemonia,entendida como uma direção política, mas também como uma direçãocultural da sociedade. O ponto importante levantado por Olívio Dutra é ode entender essa forma de participação direta com o seu conteúdo declasse. Já houve quem dissesse, até mesmo nas nossas hostes, que a lutade classes tinha acabado. Então acho ótimo que o Olívio tenha enfatizadoesse aspecto. É, sim, um problema de luta de classes, e isso aparececlaramente no horror que causa às elites a própria idéia de participaçãopopular soberana.

Se consultarmos os anais da Constituinte que se encerrou em 1988,veremos o argumento sincero e ideológico dos constituintes radicalmen-te contrário à possibilidade de que o povo participasse de processosdecisórios diretamente, sem a mediação de partidos e de representantes.É algo profundamente arraigado, que revela o solene horror a que opovo, essa multidão suína – como dizia Burke, referindo-se à Revolu-ção Francesa – possa efetivamente participar de processos decisórios.

Finalmente, gostaria de enfatizar a necessidade de que o orçamentoparticipativo seja uma experiência que leve efetivamente a um novo modode se fazer política, como parte de uma proposta alternativa de um siste-ma político e econômico que caminhe na direção de um socialismo de-mocrático e libertário.

Creio que seria importante reforçar alguns pontos, até para evitarmosa armadilha de dizerem: “Vocês com essa história de democracia diretaestão querendo reproduzir as experiências totalitárias dos sovietes, dasrevoluções etc.” Nós queremos as experiências radicalmente democrá-ticas, na democracia participativa e, eu diria, no socialismo democrático.

Então, a primeira exigência é a garantia de informação, ou seja, man-ter um fluxo constante de informação. Não existem no orçamentoparticipativo efetivamente democrático os arcanos, os segredos, a mani-

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pulação do conhecimento. Não devem existir. Pelo contrário, a informa-ção sobre o que está acontecendo quanto à parte técnica, às ingerênciase às conseqüências dos processos decisórios deve desembocar num ca-nal permanentemente aberto. A transparência é decorrente disso, a trans-parência nos procedimentos, lembrando sempre que a legitimidade dosresultados, ao contrário de algo muito antigo, está comprometida com alegitimidade dos procedimentos, dos meios. A transparência nos proce-dimentos, naquela forma que afirmei antes: controle da cidadania sobreo poder, mas também prestação de contas do poder para a cidadania.

Outra exigência é a socialização dos resultados. Os que participamdas assembléias têm o direito de participar também da discussão e daavaliação dos resultados.

É preciso ter claro, contrariando velhas crenças, que o partido não é avanguarda. O partido tem de permitir a independência da opinião e opluralismo da participação, como bem lembrou o Olívio, e também res-peitar as particularidades locais e regionais. Isso num país como o nosso,com uma diversidade política, social, econômica e cultural tão grande etão rica, deve ser um ponto da nossa especial preocupação.

Era isso que eu tinha a dizer, enfatizando meu entusiasmo pela exposi-ção do Olívio e minha admiração pelo seu governo, pelo seu trabalho epela sua militância. Muito obrigada.

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Armelindo PassoniA questão do orçamento partici-

pativo não pode gerar também umasituação em que o povo, em algunsmunicípios, resolva se reunir para de-cidir onde não aplicar o dinheiro? Jáexistem algumas prefeituras do par-tido, hoje, que não fazem orçamen-to participativo por causa da situa-ção de escassez do dinheiro. Comoficaria a questão de o partido imple-mentar uma política e ter essa situ-ação particular de alguns municípi-os com dificuldades de orçamento?

PerguntaSou estudante de direito e para

nós interessa muito a questão jurí-

Debate com o público

dica do orçamento participativo.Como ficaria em âmbito nacional aaplicação dessa proposta?

Paulo RubensGostaria de destacar duas ques-

tões. A primeira delas talvez repre-sente a ansiedade que muitas pes-soas têm. Viajei 1.200 quilômetrospara vir a este seminário, sou depu-tado estadual em Pernambuco pelosegundo mandato, e gostaria de dis-cutir como nós, como partido, pode-mos disputar o controle social dasverbas públicas mesmo quando nãosomos prefeitos ou governadores.Há uma lacuna inexplicável até hojeentre a pauta das nossas interven-

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ções nos movimentos sociais quan-do não somos governo – via de re-gra somos fragmentados, corpo-rativos, categorias isoladas, movi-mentos que não se somam no con-trole social do dinheiro público – equando somos governo – aí, passa-mos a tratar de uma forma global agestão do dinheiro público.

A outra questão, que é tão gravequanto a gestão do orçamento, dizrespeito ao dinheiro que não entrano orçamento, pois acaba sendodesviado pela sonegação fiscal, queé uma das formas mais estruturadasde crime contra o patrimônio públi-co. Temos tido poucas experiênci-as, pelo menos em nossas banca-das estaduais e municipais, e atémesmo na bancada federal, no to-cante a como a sociedade se es-trutura para não permitir que esseEstado que aí está continue a serineficaz no combate à sonegação.

Temos que lembrar que não é sóa gestão oligárquica, elitista, queprivatiza o Estado e concentra ri-queza dentro de um orçamento. Étambém a gestão do Estado que

permite que as elites se apropriemdo imposto que é pago pela socie-dade como forma de acumulaçãode capital. E temos atuado poucono sentido de estruturar a socieda-de para fazer frente a esse Estado,principalmente às Procuradorias eao poder Judiciário, que são tam-bém parte desse Estado da elite quedomina o país.

Roberto GouveiaFico muito animado com essas

duas belíssimas exposições. O queeu acredito que se coloca como de-safio para nós é exatamente a edu-cação para o exercício do poder.Não viemos apenas para dividiruma série de coisas, fundamental-mente viemos para dividir o poder,e aí se coloca a questão da educa-ção para o seu exercício. Gostariade ouvir o comentário de MariaVictoria e de Olívio Dutra a res-peito da potencialização dessa ex-periência e se o próprio orçamentoparticipativo deve fazer parte de umconjunto de medidas que leve aoprocesso de descentralização, de

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ampliação da representação. Aquina cidade de São Paulo, por exem-plo, temos 55 vereadores para re-presentar milhões de pessoas. Pormais que os vereadores se multipli-quem, se movimentem, eles serãoquestionados. Surge, então, a ques-tão da eleição de conselhos de re-presentantes etc. Nós temos dedescentralizar também os proces-sos de representação e as subpre-feituras. E, nesta linha, minha pre-ocupação – e eu acredito queesta é uma questão estratégica paranós – é sempre dividir o poder eeducar para o poder. Aliás, as nos-sas elites estão cada vez mais de-monstrando um profundo despre-paro para o exercício do poder,como temos visto de forma acen-tuada recentemente.

Pedro PontualGostaria de sublinhar dois pontos

que tanto Olívio Dutra como MariaVictoria tocaram de passagem –ressaltando que sempre que eles sereferiram também ao orçamentoparticipativo, se referiram a outras

formas de participação popular, deexercício da democracia direta.Queria destacar que o orçamentoparticipativo tem todas essas virtu-des e potencialidades que foramaqui apresentadas, e digo isso tan-to a partir da minha prática comogestor de orçamento participativoem Santo André (SP) como tambémde pesquisador.

Porém, ao mesmo tempo queacredito em todas essas potencia-lidades, também acho que o orça-mento participativo sozinho não dáconta desse conjunto de potenciali-dades. E por isso saliento que temosalgumas temáticas – que passam poruma reflexão estratégica – em nos-sas cidades e municípios, ou nos es-tados, que colocam a questão do or-çamento participativo num horizon-te de 10 ou 20 anos e que, portanto,transcendem muito os limites da ela-boração de uma proposta orçamen-tária. Nós temos a temática, porexemplo, da modalidade e da quali-dade das políticas públicas, o mode-lo de saúde, de cultura, de educa-ção que queremos desenvolver. Es-

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ses são aspectos em relação aosquais o orçamento participativo so-zinho não dá conta, daí a necessida-de de revigorarmos espaços comoos conselhos municipais de políticaspúblicas, articulá-los ao orçamentoparticipativo. Então, penso – e gos-taria de debater essa reflexão tam-bém no nosso partido – que corre-mos o risco de operar um certoreducionismo da discussão da parti-cipação popular e da ampliação dasformas de exercício da democraciadireta se limitarmos estas questõesao orçamento participativo.

Isso, por um lado, tem o seu sen-tido, dado o vigor dessa experiên-cia e sua originalidade, mas, aomesmo tempo, recoloca para nós odesafio de ampliarmos o horizontedas discussões, sem o que estare-mos talvez depositando no orça-mento participativo um nível de res-ponsabilidade do qual ele sozinhonão pode dar conta na operação dosprocessos de participação populardos municípios.

Hoje, mesmo no âmbito do orça-mento participativo, há todo um re-

pensar da sua própria metodologia,da discussão de como é que se arti-cula, por exemplo, a questão da par-ticipação direta nas plenárias, o exer-cício de uma participação direta quenão necessariamente supõe que ocidadão vá à plenária e que deve teralgum peso no processo.

Então, penso que devemos, commuita razão, aprofundar essa dis-cussão sobre o orçamento partici-pativo para não perder de vista quea questão da participação popular,da ampliação das formas de exer-cício de democracia direta, supõeoutros canais e outros instrumen-to articulados ao processo de or-çamento participativo. Quando fa-lamos, por exemplo, do controlepúblico sobre o Estado, temos aface da organização da sociedadecivil, dos processos de exercícioda cidadania, mas temos um enor-me desafio, que é a modernizaçãoda própria máquina do Estado.Quer dizer, como os processos deplanejamento estratégico, no níveldos governos, podem efetivamen-te contribuir para essa transparên-

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cia? Como é que organizamos ges-tões participativas no interior dopróprio Estado como condição deque esse trabalho em favor datransparência, da prestação decontas, possa se dar em todos osníveis do Estado?

Assim, queria apenas alertarpara esse aspecto, ou seja, de queno nível do Partido dos Trabalha-dores precisamos voltar a refletirsobre participação popular e am-pliação das formas de exercícioda democracia direta, a partir deum conjunto de instrumentos ar-ticulados com o processo de or-çamento participativo.

Olívio DutraVou começar pela preocupação

do Pedro Pontual. Não podemos tero orçamento participativo comouma coisa mágica, idílica ou comoa solução radical para todos os pro-blemas da democracia. Certamen-te, o orçamento participativo é uminstrumento poderoso ainda não su-ficientemente bem implantado,“tensionado”, entre nós. Para usar

um termo nosso, é uma experiên-cia não suficientemente espraiada,que padece ainda de um certolocalismo. É um processo. Portan-to, ele vai se aperfeiçoando. Por elepassa a questão da participação, darepresentação, do controle públicosobre o Estado, do protagonismo,que torna as pessoas construtorasda mudança, sujeitos e não objetosda política.

A informatização, a ciência e atecnologia podem ser postas aserviço da democracia, possibili-tando que muito mais pessoas par-ticipem intensamente do proces-so, independentemente de esta-rem ou não no local da assem-bléia. Mas é importante não per-dermos o caráter da participaçãoa mais direta possível e o valorda convivência comunitária.

As assembléias temáticas comoas que tratam da questão da ciên-cia e tecnologia, são um bom exem-plo. Minha cidade, Bossoroca –sempre gosto de citá-la –, fica a540 quilômetros de Porto Alegre.Nasci lá, mas me criei a 32 quilô-

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metros dali, em São Luiz Gonzaga.É um lugar no mundo onde ciênciae tecnologia parecem ser coisas dis-tantes. No entanto, ciência etecnologia têm tudo a ver com oprocesso de desenvolvimento queprecisa ser desencadeado ali paraaquela comunidade se ligar com aregião, o estado e o país. Como pro-vocar essa discussão? Esperar queela surja espontaneamente, nas as-sembléias, é equivocado. Primeiroo tema deve ser provocado, e hávárias formas de fazer essa boaprovocação. A partir das questõeslocais articular as questões regio-nais com o espaço federado e aintegração do país, da AméricaLatina, enfim. Acredito que não háum espaço tão rico hoje quanto odas assembléias do orçamentoparticipativo para a apropriaçãodesses elementos e a compreensãode seu entrelaçamento. O orça-mento participativo não fabrica di-nheiro, mas fabrica uma coisa muitoespecial, o protagonismo, a cidada-nia, a crítica. Isto aumenta a co-brança sobre o governo, mas tam-

bém as propostas alternativas, jáque um número crescente de pes-soas se dispõe a pensar, a discutire a produzir políticas.

Entendo que as preocupações dePontual alertam para que não fa-çamos do orçamento participativouma panacéia ou a forma única deradicalização da democracia. Essecuidado, no entanto, não pode di-minuir a importância da experiên-cia. É preciso aprofundá-la,espraiá-la mais ainda, antes de di-zermos “é preciso ter cuidado comela...”, “reforcemos outras...”.

É possível, companheiroArmelindo Passoni, que o povo de-cida não aplicar recursos segundo aproposta do governo. Se não há re-cursos, essa é uma outra questão.A discussão do orçamento tambémencara este problema. Por que nãohá? De onde vem a receita? Quempaga impostos? Quem não paga?Quem está sendo privilegiado comesta ou aquela política de anistia fis-cal ou de subsídio? Como o poderpúblico gasta o dinheiro? Com queprioridades? Quem define isso? En-

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tão, a questão de haver ou não re-cursos torna ainda mais necessáriaa discussão do orçamento. Até por-que, se não há, o povo precisa saberas razões e, a partir delas, discutiruma nova matriz tributária.

Alguns prefeitos adversários àsvezes me encontram e dizem: “Go-vernador, estou aplicando o orça-mento participativo lá no meu mu-nicípio”. Que bom! Vamos conver-sar com o povo da cidade e as pes-soas nos dizem: “Sobrou uma ver-ba e o prefeito chamou uns líderescomunitários, para discutir comoaplicá-la”. Como sobrou? Sobrou oquê? O orçamento é a discussãoda receita e da despesa, por com-pleto, por inteiro. Existem algumaspessoas que criticam o orçamentoparticipativo dizendo: “Mas o orça-mento participativo discute só umpercentual da receita, porque o res-tante já está indexado, sobre issonão tem o que discutir”. É precisodiscutir tudo, até mesmo porque acidadania tem o direito de saber oporquê dessas indexações e se es-tão funcionando bem.

Então, é esse processo que euacho instigante, provocador, positi-vamente, de uma apropriação pú-blica do Estado. Com escassez derecursos, quais serão as priorida-des e por quem serão definidas? Seos recursos são escassos, há ne-cessidade de ter critérios para aten-der as demandas da comunidade.Se há necessidade de hierarquizar,quem hierarquiza? É o governante?É o grupo econômico mais influen-te? Penso que deve ser o povo. Issoé muito importante.

Sobre a questão jurídica, con-fesso que o que temos de acúmulonão sugere a institucionalizaçãodo orçamento participativo. Éuma questão política a ser anali-sada. Institucionalizar significa en-quadrar numa lei, num regula-mento jurídico, burocrático, umprocesso nascente de controle docidadão sobre o Estado, o gover-no e os governantes.

Penso que está de bom tamanhotermos na Constituição federal,nas constituições estaduais e nasleis orgânicas dos municípios um

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princípio geral que garanta a par-ticipação popular, cidadã, na cons-trução do orçamento. O resto temde ser aberto, não pode serengessado, no nosso entendimen-to. Como vai ser quando assumir-mos a presidência da República?É um grande desafio: abrir o orça-mento público federal para umadiscussão que vá além da Comis-são de Orçamento do Congresso,das duas casas do Congresso, dosespecialistas, dos grupos econômi-cos. Como fazer isso? Eis a gran-de e desafiadora questão.

O controle social das verbas pú-blicas, companheiro Paulo Rubens,é um ponto fundamental. Vejamoso caso da saúde. Existem os con-selhos municipais de saúde. Cadacentavo do dinheiro público repas-sado deve ter sua aplicação com-provada. Por isso a importância deum conselho de saúde no municí-pio. Mas não raro vamos encon-trar o conselho manobrado pelo fi-gurão local, pelo cacique político, econstituído pelos seus parentes ecabos eleitorais. Infelizmente, essa

é a realidade. Vamos criar um con-selho paralelo? Não, vamos ter queestimular os militantes sociais atensionar constantemente esse pro-cesso e, com transparência e polí-ticas claras, transformá-lo.

Essa é uma luta que temos deassumir. Firmeza e paciência nãodevem faltar para levá-la adian-te. Mas, evidentemente, um go-verno nosso não pode repassarverbas para um município sem acomprovação de como o dinheiroserá aplicado. Às vezes no pró-prio local há dificuldades de fu-rar o bloqueio, mas na região hápossibilidade de discutir melhor efazer dessa maneira um cerco,que acaba também por provocaruma mudança naquele lugar ini-cial. Esse controle é muito impor-tante: o cidadão saber que tem re-cursos para o seu município. Es-ses recursos têm prazos para che-gar lá. Chegaram? Quanto?Como foram gastos? Essa é umaquestão em torno da qual se podetrabalhar o fortalecimento dosconselhos. Os delegados e con-

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selheiros do orçamento participa-tivo, que são eleitos, também têmessa tarefa. E se eles acompa-nham, passa a haver, portanto, umaincidência maior de outros sujei-tos sociais sobre esses espaços queprecisam ser conquistados parauma cidadania verdadeira.

O combate à sonegação é, evi-dentemente, importante. Existe asonegação propriamente dita, quecontraria a lei, e a sonegação de-corrente da lei, ou seja, grupos eco-nômicos que conseguem aprovarleis nos legislativos para ficar como dinheiro público. O cidadão pagao imposto mas o imposto não che-ga aos cofres públicos porque temum incentivo para determinado gru-po. É a renúncia fiscal, isto é, aapropriação privada dos recursospúblicos com o beneplácito dos le-gisladores e governantes. E a cida-dania, que não discutiu essa políti-ca, fica sem recursos para o aten-dimento de suas demandas.

Esse é um combate sério para oqual a administração fazendáriadeve estar mais bem estruturada e

integrada com instituições como oMinistério Público, a Polícia Fede-ral etc. A cidadania discutir e influ-enciar na construção das propos-tas de 100% das estruturas de re-ceita e despesa pública nos três ní-veis, federal, estadual e municipal,faz parte desse combate.

Roberto Gouveia sublinhou bema questão da educação para oexercício do poder. Evidente quepoder, para nós, não é ter um car-go, um mandato, isso é apenasuma parte do poder. Existe umoutro poder que para nós é o prin-cipal: o protagonismo do povo.Eleger representantes para admi-nistrar parcelas do Estado – go-verno municipal, estadual ou fe-deral – não significa a conquistado poder, mas apenas de uma partedele, mesmo que importante, àqual a classe dominante jamaispensaria que chegássemos.

Disposição para aprender em to-das as circunstâncias, superandonossas limitações e nossos precon-ceitos, não nos deve faltar nunca.Diferentemente da direita, temos a

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capacidade de nos construir, cons-truindo com os outros a apropriaçãopública, e não privada, do Estado.Temos obrigações e compromissos,até porque somos um partido, e oPartido dos Trabalhadores tem pro-posta. Queremos que nossa propos-ta, que é de uma parte da socieda-de, possa ser aceita pelo conjuntodela num processo de construção dahegemonia, por meio do convenci-mento e do reconhecimento, e nãoda imposição e do arbítrio.

No processo do orçamento parti-cipativo, são eleitos os conselhei-ros, que, por sua vez, elegem osdelegados que compõem o COP,Conselho do Orçamento Partici-pativo. A realização de cada assem-bléia local e regional é antecedidade reuniões e encontros de iniciati-va das próprias organizações da so-ciedade civil que mobilizam milha-res de pessoas. Reúnem-se paradiscutir prioridades locais e regio-nais, para buscar a melhor repre-sentação possível nas eleições deconselheiros e de delegados. É umexercício de política praticado por

um número cada vez maior de pes-soas do povo. Isso acaba arejandoos espaços já existentes e possibi-litando a criação de novos e ricosespaços de participação popular.

Entendo que estas cinco coloca-ções apresentadas pelos compa-nheiros trouxeram elementos no-vos e importantes para a reflexãosobre democracia, sua radicali-zação, representação, descentra-lização do poder, controle público,aletando para o risco de, pela sim-plificação, não aquilatarmos bem osdesafios e potencialidades do orça-mento participativo.

Maria Victoria BenevidesOlívio Dutra respondeu de uma

maneira tão completa e eficiente àsquestões, e de uma maneira com aqual eu concordo bastante, que voume deter apenas em alguns pon-tos. Por exemplo, a questão sobreo orçamento participativo no planonacional e a questão jurídica. Sãopontos extremamente complicados.Acho muito difícil pensar numa con-figuração jurídica para o orçamen-

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to participativo em nível nacional.É uma experiência que tem melho-res condições para dar certo nosníveis locais e estadual. Para o ní-vel nacional, o caminho seria umapressão da sociedade organizada,inclusive via partidos, movimentose mesmo organizações não-go-vernamentais (ONGs), para mudan-ça na discussão das leis orçamen-tárias, do que entra como aprova-ção, se são aquelas verbas especí-ficas dos parlamentares ou verbasglobais para determinadas áreas,como essa questão é discutida. Issosignificaria realmente mudar o pro-cesso decisório em relação à ques-tão orçamentária no plano do Con-gresso Nacional.

Vejo uma possibilidade ampliadapara consultas populares, em âmbi-to nacional, sob a forma de plebisci-tos ou referendos, dependendo daanterioridade ou posterioridade dotema, para questões que vão exigiruma dotação orçamentária importan-te ou que decidam prioridades.

E aqui entra a questão da espe-cialidade. Não vamos perguntar, por

exemplo, se o povo prefere o acor-do nuclear do tipo alemão ou do tiponorte-americano. Isso realmentecabe aos especialistas. Mas pode-mos perguntar se cabe uma dota-ção orçamentária de tal magnitudepara um programa nuclear em de-trimento de outros investimentos emeducação, saúde etc. A mesmacoisa pode ocorrer em relação àsprioridades de reforma agrária, doprograma de previdência social,entre outros.

Em relação à questão do Ro-berto Gouveia, queria lembrar quea ênfase na descentralização é ex-tremamente importante, junto coma desconcentração do poder.Quer dizer, não apenas descen-tralizar, ou seja, multiplicar as ins-tâncias, mas também desconcen-trar. Muitas vezes se descentrali-za mas não se desconcentra opoder. Vou dar um exemplo daárea da educação. O Ministérioda Educação descentraliza etransfere poderes para as secre-tarias estaduais. Mas aí cada se-cretário “senta em cima”. Sai das

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secretarias estaduais e vai paraas delegacias de ensino; mas aícada delegacia “senta em cima”.Vai para as escolas, e as diretoras– que muitas vezes são extrema-mente conservadoras diante dequalquer inovação – “sentam emcima” da proposta e do projeto. Ouseja, há descentralização, mas opoder continua concentrado.

E, finalmente, em relação à ques-tão do Pedro Pontual, eu lembrariaoutras formas de democracia dire-ta. Por exemplo, a iniciativa popu-lar: é necessário ampliar o âmbitoda iniciativa popular legislativapara emendas à Constituição. Hápaíses em que as emendas consti-tucionais podem ser feitas por de-cisão popular, e acho que nós po-deríamos perfeitamente fazer isso,assim como ampliar formas de par-ticipação popular em relação, porexemplo, à realização de obras deimpacto ambiental ou de grandevulto financeiro.

Lembro que a ex-prefeita deSão Paulo Luíza Erundina promo-veu consultas populares, por exem-

plo, no plano urbanístico de mu-dança do bairro do Bixiga, em quea população interessada participoude assembléias para discutir a ex-posição dos diferentes projetos edepois votar.

Assim, outras experiências dedemocracia direta certamente com-pletariam, junto com o orçamentoparticipativo, um projeto efetivo demudança no exercício do poder, dedemocratização do poder.

PerguntaLevando em conta que a maioria

dos eleitores não se interessa porpolítica, uma crítica que se faz aoorçamento participativo é que sóvão às assembléias aqueles que jásão atuantes. O eleitor comum aca-ba ficando fora de qualquer parti-cipação. Como poderíamos respon-der a essa crítica?

PerguntaO governador Olívio Dutra menci-

onou que houve uma liminar contrao orçamento participativo. Poderiaexplicar melhor isso e como ficouessa questão?

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PerguntaMuitos municípios e estados têm

suas finanças quase totalmentecomprometidas por dívidas, muitasvezes herdadas da gestão anterior.Como discutir, nesse caso, um or-çamento que dificilmente será exe-cutado e tentar enfrentar as tantascarências da população?

Paul SingerA questão que gostaria de levan-

tar é como se dá o processo orça-mentário sem orçamento partici-pativo. Na verdade, existem gru-pos de interesses, que são geral-mente comandados pelas empre-sas que executam as ações de Es-tado – e agora com o neolibera-lismo e com as privatizações issose dá cada vez mais. São grupos– na verdade lobbies – que, jun-tamente com a Assembléia oucom a Câmara Municipal, acabamfazendo o orçamento. Tambémexiste a parte da burocracia doExecutivo, mas as empreiteiras, asfornecedoras de serviços e de pro-dutos, aparecem como advogadas

da população, que, em princípio,carece de escolas ou de centrosde saúde, estradas etc. É assim quefunciona. A população diretamen-te não é mobilizada, ela ignoracompletamente o que ocorre, ojogo se dá entre as secretarias eos departamentos do Executivo ouos parlamentares, mas sobretudoentre essas empresas, ou gruposde empresas, associações, que emúltima análise abocanham, já deuma forma mais ou menos fixa, de-terminadas porcentagens dos re-cursos, seja para investimento,seja para serviços.

A minha pergunta, sobretudo aocompanheiro Olívio Dutra, é de quemaneira nós conseguiríamos atuar,mudando completamente esse tipode jogo, por meio do orçamentoparticipativo. O orçamento parti-cipativo, em princípio, deveria co-locar os diferentes interesses po-pulares em confronto. Aqui estoupartindo da idéia de que o povo nãoé homogêneo, nem todos têm omesmo interesse. Seria uma sim-plificação trágica se imaginássemos

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44 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

que a sociedade é composta por ri-cos e pobres, e que os pobres que-rem exatamente a mesma coisa,portanto basta dar aos pobres, quesão maioria, a voz e o poder de de-cisão e tudo muda. Não é assim. Apopulação é heterogênea, sobretu-do no plano estadual, por isso gos-taria tanto que o companheiroOlívio nos contasse um pouco comosão os conflitos no processo do or-çamento participativo entre as fac-ções do povo. Porque existem gran-des quantidades de pessoas preci-sando de escolas e de creches. Mas,e as famílias que não têm criançasem idade escolar, como é que fi-cam? Existe necessidade de gran-des recursos para a saúde. Mas osque não precisam desse recurso,que não têm doenças crônicas,como é que ficam? Ou seja, a basedo orçamento participativo, a meuver, é um processo de conflito e denegociação entre as correntes, ouentre os setores que formam opovo. A soberania popular se cons-trói nesse processo. Ela não vempronta de uma vez. Seria magnífi-

co se o povo fosse homogêneo etodo mundo quisesse a mesma coi-sa e fosse preciso só implementaraquilo que todo mundo quer. O queeu gostaria de ouvir do companhei-ro Olívio é um comentário sobreisso, porque é aí que está o proces-so de construção da soberania po-pular. No plano orçamentário, após12 anos de orçamento participativo,provavelmente já há um lastro deconhecimentos de como encami-nhar essas negociações e garantirque elas desemboquem depois, noLegislativo, de forma positiva.

Anísio HomemGostaria de fazer uma interven-

ção partindo um pouco da preocu-pação de Paul Singer, mas tirandoconclusão inversa. Ele tem razãoquando diz que há um verdadeiroconflito estabelecido entre a popu-lação que vai ao orçamento parti-cipativo. Por quê? Porque existealgo que não apareceu na primeirarodada de falas, ou seja, que o or-çamento dos orçamentos está am-putado, ele é completamente deter-

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minado pela política de FernandoHenrique Cardoso. O mesmo acon-tece com a descentralização, por-que o governo federal transfere res-ponsabilidades para baixo e deixao dinheiro em cima.

Então há um conflito que, a meuver, não é saudável para a demo-cracia; ao contrário, vai contraaquilo que nós queremos, a unida-de do povo, unificar esse povo con-tra aqueles que roubam, que pas-sam a mão nas riquezas deste paíse que servem às multinacionais, aogrande capital especulativo finan-ceiro internacional.

Não acho interessante esse tipode conflito que surge com a demo-cracia participativa. Olívio Dutra fa-lou que os recursos são escassos,que é preciso hierarquizar. Se fizer-mos uma leitura do orçamento naci-onal, veremos que, se não me enga-no, 70% dele em 2001 estão sendocanalizados para o pagamento de dí-vidas. É um montante muito gran-de. E nós ficamos aqui embaixo, nosdigladiando em torno das dificulda-des de recursos. Esse é o papel do

partido? Esse é o papel dos nossosgovernantes? Esse é o papel dosparlamentares do nosso partido?

Fazendo uma análise do orçamen-to participativo em Porto Alegre,acho que os dados não são anima-dores nesse sentido. Creio que esseproblema de tentarmos hierarquizarpor baixo colabora para que o queestá aí fique como está e para queacabemos simplesmente ajeitandoentre nós a miséria que nos dão, quenos impõem. Esse é um consensoque não interessa...

Juliana Piccoli AgatiTenho uma questão que se re-

laciona com a construção do so-cialismo, porque sabemos que oprocesso do orçamento partici-pativo proporciona conscienti-zação crítica para enfrentar osproblemas que vemos acontecerna política e que são manipuladospela mídia no capitalismo, na eco-nomia em que vivemos.

Como construir uma proposta,uma alternativa econômica, dentrodo capitalismo, rumo ao socialismo?

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46 ORÇAMENTO PARTICIPATIVO E SOCIALISMO

Como atrelar junto ao orçamentoparticipativo uma proposta de de-senvolvimento econômico, porqueacho que ele, por si só, não leva aosocialismo, porque não existe capi-talismo democrático. E acho tam-bém que o orçamento participativonão é uma alternativa dentro do ca-pitalismo, mas um processo queleva à construção do socialismo.Gostaria de saber qual a posição dopartido sobre essa questão.

Paulo VannuchiGostaria de apresentar duas

questões. A primeira é pedir umrelato aos companheiros da mesa,e também uma avaliação, um ba-lanço da questão levantada porAnísio Homem sobre o possívelconflito entre setores da população,que ele vê como algo prejudicial.Eu gostaria de ver isso refletido nadiscussão do PT.

É uma pena a ausência de ValdirGanzer, vice-prefeito de Belém,que iria participar deste debate masna última hora não pôde compare-cer, pois ele traria para a discussão

a experiência de Belém1 . Por queValdir Ganzer foi convidado? Des-de a primeira fase deste seminário,o critério tem sido mesclar visõesdiferentes no debate, com pessoasde regiões diferentes e com posi-ções diferentes. E a regra geral noseminário é dinamizar o debate, fa-zer uma discussão quente no PT.Quando convidamos o Valdir, eledisse, tudo bem, mas nós temos aquiem Belém hoje uma divisão, no PT,a respeito do orçamento partici-pativo. E nós dissemos, ótimo, tra-ga isso para o debate. Então, gos-taria que os companheiros refletis-sem um pouco sobre isso.

Como segunda questão, eu pedi-ria que os dois debatedores reto-massem o tema da relação do or-çamento participativo com o socia-lismo. O orçamento participativo jácomeçou a nos permitir algumassuposições, algumas hipóteses deum socialismo que não é mais vistocomo algo que nasce da noite parao dia, um Armagedon que separa ahistória em antes e em depois. Oorçamento participativo traz algu-

1. O debate deveria tercontado com a presença deValdir Ganzer, vice-prefeito deBelém, e de GuilhermeMenezes de Andrade, prefeito deVitória da Conquista (BA), comocomentadores, mas ambos nãopuderam comparecer.

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ma idéia sobre um processo de idaao socialismo, que precisaria sercombinado com outras formas departicipação popular. Podemos co-meçar a pensar, Maria Victoria,nessa complementação, comoaponta a sua reflexão sobre a não-contradição entre a democraciarepresentativa e a direta? O que oorçamento participativo permite, emrelação a isso?

José Reinaldo BragaMinha questão também vai nes-

se sentido. Essa discussão está noescopo da relação Estado–socie-dade. Eu queria saber qual o pa-pel do partido nessa forma demo-crática de administrar, como, e se,o partido tem feito algo em rela-ção aos movimentos sociais, aomovimento sindical, a fim de esti-mular a população a discutir o so-cialismo, para politizá-la. Enfim,para que a discussão não fiqueapenas no nível da administração,mas comece no povo, com o tra-balhador, para que avancemos emdireção ao socialismo.

Olívio DutraSeriam as assembléias do orça-

mento participativo freqüentadasexclusivamente por militantes doPT, ou pelo pessoal do MST (Movi-mento dos Trabalhadores RuraisSem Terra)? Esse é o discurso ad-versário, que tinha maior intensi-dade no início e que com o tempo,foi sendo esvaziado na prática.Hoje temos a maioria desses ad-versários participando e disputan-do conosco, trazendo suas propos-tas para o processo do orçamentoparticipativo, até elegendo conse-lheiros e delegados.

As assembléias são abertas eamplamente convocadas até mes-mo por prefeituras governadas poradversários. O governo, por meioda Coordenação de Relações Co-munitárias, faz também a sua con-vocação, aliás, prerrogativa que per-deu por mais de um ano, por contade uma iniciativa jurídica da oposi-ção. Refiro-me à liminar contra oorçamento participativo interpostapelo ex-governador do estado Al-ceu Collares. A ação sustentava

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que os gastos na convocação paraas assembléias não tinham sido pre-vistos e que não era de competên-cia do Executivo fazer essa discus-são, pois a Assembléia Legislativajá discutia o orçamento. Era, por-tanto, um gasto desnecessário.

O poder Judiciário concedeuliminar, o que simplesmente impe-diu o Executivo de fazer qualquerreferência às assembléias do orça-mento participativo, informando olocal e a hora das reuniões, convo-cando a população. Fomos proibi-dos de fazer isso, seis meses apósa deflagração do processo. Essaliminar demorou mais de um anopara ser derrubada.

O que aconteceu? O movimentosocial assumiu essa tarefa como suae fez a convocação, organizou asreuniões e convidou o governo paraparticipar. E tivemos 190 mil pesso-as participando no primeiro ano. Nosegundo ano foram 280 mil pesso-as. Então, esse é um processo quevem sendo apropriado pelos sujei-tos sociais, individuais e coletivos e,por isso, tem se consolidado cada

vez mais. Tanto que os adversáriosdo projeto começam a vir para den-tro dele disputar suas propostas.

Quero sublinhar novamente queo orçamento participativo é umprocesso e não apenas a discus-são da receita e da despesa. É cla-ro que ele engloba também a pres-tação de contas do orçamento doano anterior e, mais do que isso, aprevisão do que é o gasto funda-mental, estratégico. Portanto, noorçamento participativo disputa-mos uma visão de desenvolvimen-to para o Estado. Fomos eleitoscom um projeto de desenvolvimen-to desconcentrado, descentraliza-do, reforçador dos sistemas locaisde produção. Isso envolve ques-tões de conteúdo, de como orien-tar nossa ação, nossos recursos einvestimentos nessa direção. Nos-so governo disputa esse projeto pordentro do orçamento participativo.

Essa disputa inclui setores da nos-sa própria base social, que têm umavisão particularista da luta, local,econômica, regional. O governo nãopode ir para as assembléias e dizer:

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“Vim ouvir o que a população querque nós façamos”. Não. Deve pro-por, debater e assumir responsabili-dades. O espaço do orçamentoparticipativo é um bom espaço paraesse debate denso, às vezes tenso.É um espaço de construção.

Em 1999, nosso primeiro ano degoverno, tivemos de lidar com umorçamento herdado. A Lei Orça-mentária é votada num ano paraexecução no ano seguinte. Estáva-mos com um projeto de integração,de desconcentração, de descentra-lização, condicionados por um or-çamento feito com uma visão dia-metralmente oposta.

Na verdade, herdamos um esta-do em que o governo trabalhavacom três orçamentos: o orçamen-to propriamente dito do ano de1999; as antecipações de receitae os 5 bilhões de reais da vendade patrimônio. Somente a partir de2000, portanto, é que começamosa trabalhar com o orçamento cons-truído com participação e que temum grau de sintonia maior com onosso programa.

O espaço do orçamento partici-pativo promove a discussão sobreo destino da renda gerada pelo tra-balho, sua apropriação e o papel doEstado nessa questão. É difícil terum espaço melhor para fazer essedebate render tanta cidadania.

A população é heterogênea, porisso ao promover o desenvolvimen-to é necessário respeitar especifi-cidades locais, regionais, e vercomo introduzir novas vocaçõessem destruir as antigas, e atualizaras tradicionais, sem descaracterizá-las. Isso é um processo, no qual odebate vai avançando, se tornandomais complexo, mas também maiscompreensível para um númeromaior de pessoas. Imaginem a di-ficuldade inicial de levar adiante umprocesso desses em Porto Alegre,multipliquem por dez e encontrarãoalgo parecido com a complexidadede se fazer o mesmo no estado.Imaginem essa questão sendo en-frentada na dimensão do país quenós queremos governar. Diante detamanho desafio, alguns poderão di-zer: “Não vamos nos meter nisso”.

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Eu digo que essa é uma boa e ne-cessária peleia.

Sendo governo, temos responsa-bilidade de executar obras, qualifi-car serviços, atender bem a popu-lação, além do compromissoprogramático. E como é que se fazisso? “Ah, mas o orçamento her-dado foi ditado pelo FMI, no gover-no anterior...” Isso pode ser umaexplicação no início, mas não umasolução depois. Claro que se devedenunciar esta ingerência para sedesvencilhar dela. Conscientizar! Opovo tem noção desses problemas.Quando discute o orçamento doestado, ele se pergunta: “E o orça-mento aqui do município?” Já é umaboa inquietação, ele já está se aper-cebendo de mais coisas. A vida docidadão, da pessoa, na verdade, étratada por três orçamentos públi-cos: o da União, o do estado e o domunicípio. Por que orçamentoparticipativo só no estado? Ele sepergunta. E a partir daí passa aquerer orçamento participativo tam-bém na sua prefeitura. Penso queisso é positivo.

E é por dentro do orçamentoparticipativo, por exemplo, que dis-cutimos qual é a estrutura tributá-ria justa para o país e o Rio Grandedo Sul. Quem paga imposto, quemnão paga, quem ganha, quem per-de com isso? E qual é o papel dosentes federados municipal, estadu-al e federal? Temos de nos sujeitara uma matriz tributária imposta ver-ticalmente? Não, é preciso pressio-nar para mudá-la. Há medidas quepodem ser tomadas no estado, semesperarmos reforma tributáriafederal. Levamos essa discussãopara a Assembléia Legislativa,onde, de 55 cadeiras, temos 12. Adiscussão foi grande e é claro quenão passou. Já no segundo ano, se-tores empresariais se mostraramfavoráveis a mudanças importan-tes na estrutura, mas ainda não ti-vemos maioria para aprová-las naAssembléia Legislativa. No espa-ço do orçamento participativo elas,no entanto, foram apreciadas, aper-feiçoadas e recomendadas.

Portanto, o orçamento participa-tivo não é um espaço de subordi-

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nação ou de aceitação do que estádado. Ali se tensiona a situação exis-tente, debatem-se as relações entreo orçamento do estado, o orçamen-to federal e os orçamentos munici-pais, e se constroem políticas alter-nativas de médio e longo prazos.

Bueno, o que não se quer é jogarpovo contra povo a discutir miga-lhas. É evidente que não. Mas nãohá mudanças que não comecempela definição de critérios. Não soueconomista, mas sempre ouvi dizerque economia é a ciência que ensi-na a lidar com a escassez, a admi-nistrar a escassez. É isso mesmo.Ainda que fosse aprovada a novaestrutura tributária, não teríamos, deimediato, recursos suficientes paraatender de uma vez todas as de-mandas do povo há tanto temporepresadas. Por tudo isso é precisodefinir critérios. É evidente.

Então, é preciso hierarquizarações. E quem vai fazer isso, quemdefine as prioridades? A pressãodos grupos econômicos? Os seto-res mais influentes na mídia? A vai-dade do governante? O desejo de

ganhar a eleição seguinte? Todosesses são elementos da política,mas o correto é que haja uma defi-nição de prioridades baseada nanegociação direta com participaçãoda cidadania. O orçamento partici-pativo é propiciador disso.

Ou seja, o orçamento participa-tivo é um processo que vem ga-rantindo mais consistência e obje-tividade à apropriação pública doEstado. É uma ferramenta maispoderosa à medida que mais gen-te participa do processo.

Encaramos o socialismo comoum processo, não como uma re-ceita pronta e acabada. O orça-mento participativo é revolucioná-rio sem ser “o assalto ao Paláciode Inverno”. Para mim, ele desen-cadeia um processo de mudançasem que milhares de pessoas vãointeragindo e se assumindo comoprotagonistas. Se o encaramos des-se modo, o orçamento participativoé revolucionário.

Eu não tenho uma receita acaba-da, pronta, de socialismo. Mas te-nho consciência de que o sonho da

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humanidade de felicidade e de de-mocracia não se realiza nos mar-cos do capitalismo.

O orçamento participativo, por-tanto, é um instrumento poderoso,que, quanto mais for apropriado pormilhares de pessoas, mais potenteserá como ferramenta de constru-ção de uma participação que aradicalidade democrática vai fazen-do mais transformadora.

Tudo isso liga-se à questão doEstado de direito democrático, queestá no discurso dos liberais masnão está na sua prática. Não restadúvida de que a democracia repre-sentativa é uma conquista da hu-manidade, mas ela precisa ser re-vigorada, e a forma de fazer issoé estimular a participação, apos-tar na intervenção direta das pes-soas na construção da política, nocontrole do Estado, do governo,dos governantes. Entre nós nãoestá sequer alastrada – e muitomenos sedimentada – a idéia derepública. As elites tradicionaistêm feito do Estado uma proprie-dade particular. Nossos partidos

devem ser também estimuladoresdessa consciência republicana dorespeito à coisa pública e do con-trole público sobre o Estado, o go-verno e os governantes.

Temos um ditado popular, achoque não só no Rio Grande do Sul,mas no Brasil inteiro, que diz: “Oolho do dono é que engorda o boi”.E o povo é o dono da coisa pública.O povo tem de ter instrumentospara cuidar bem do que é seu efazê-lo produzir qualidade de vidaem todos os sentidos.

O companheiro Braga, de Cam-pinas, pergunta qual tem sido o pa-pel do PT ou do movimento social,dos sindicatos, no processo do or-çamento participativo.

Na exposição inicial, fiz questãode sublinhar que o espaço do or-çamento participativo não pode serum espaço sob controle nem dogoverno e nem dos partidos. Masé um espaço em que todos devematuar com intensidade, franqueza,disposição, solidariedade e políti-cas. O PT tem de ser um grandeestimulador da participação popu-

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lar e ser ele mesmo um protago-nista. Evidentemente que o parti-do, por intermédio de suas instân-cias, pode reunir militantes sociaiscomunitários em torno dessa oudaquela posição, antes de ir paraa assembléia. É evidente, mas temde assumir que é governo, por issosua ação articulada deve corres-ponder à de um partido que temresponsabilidade de governar eassumir plenamente as conseqüên-cias disso. Significa enfrentareventuais disputas com áreas daprópria base social em questõesque vão além do senso comum.Este é um bom espaço de apren-dizado que caldeia e forma mili-tantes sociais e partidários. Nanossa experiência de 12 anos deorçamento participativo, em ne-nhum momento o nosso partidocaiu na tentação de instrumenta-lizar o orçamento participativo. Oorçamento participativo não podeser uma correia de transmissão dospartidos, e muito menos do gover-no. Ao contrário, tem de ser, real-mente, um espaço aberto de inter-

venção cidadã que possibilite omais amplo controle público sobreo Estado. O PT tem tudo para fa-zer, por dentro desse processo, aboa disputa de projeto.

Tem havido, sim, alguns questio-namentos do tipo: “Bom, mas agorasó podemos disputar tal verba seformos para dentro das assembléi-as do orçamento participativo?” Porexemplo, o movimento dos peque-nos agricultores, o MST e tantos ou-tros. É evidente que os movimentossociais não podem ser diluídos den-tro do processo, mas também nãopodem ficar alheios ou acima dele.Há um bom debate ainda para sefazer sobre isso. Está em curso umprocesso de discussão da relaçãodos movimentos sociais com o go-verno e com o orçamento partici-pativo. Há necessidade de um novobalizamento. Pensávamos: “Agoraque assumimos o governo as coisasvão ser facilitadas por conta da basesocial, da sintonia das entidades maisrepresentativas do movimento socialcom o nosso projeto”. Evidentemen-te, o que mais precisamos ter, num

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quadro de acirrada e permanentedisputa com o projeto adversárioneoliberal, é coesão da base socialdo governo. Isso significa construira política e a ação do governo coma participação de todos os partidose movimentos sociais da sua base.Esse fazer político permanente exi-ge bons debates e não é uma coisafácil nem idílica. Requer descon-centração do poder, descentraliza-ção da ação, provocação permanen-te à participação direta, qualificaçãoda informação etc. etc. O compro-misso é executar o Plano de Inves-timentos, resultado da discussãorealizada no orçamento participativo,nas suas assembléias, consolidado naLei de Meios aprovada na Assem-bléia Legislativa. É uma responsa-bilidade séria e importante. Se nãohouver essa relação de responsa-bilidade no seu cumprimento esta-remos despotencializando um pro-cesso que tem uma enorme rique-za, e que tem muito a ver com nos-so sonho de transformação da so-ciedade que se realiza a partir doprotagonismo político. Nosso sonho

rejeita o individualismo e tem no res-peito à individualidade do ser hu-mano um dos valores fundamentaisda vida comunitária e da solidarie-dade entre as pessoas. Esse sonhonos embala para a construção dosocialismo democrático e libertário.

Maria Victoria BenevidesComo da outra vez, acho que

Olívio Dutra respondeu de formabastante completa às perguntas,que, aliás, tinham muito mais a vercom sua experiência.

Eu teria duas considerações ape-nas. A primeira, em relação à ques-tão de que só as pessoas que já sãoparticipativas vão às plenárias doorçamento participativo. Como en-frentar essa questão, que ocorreem muitos outros momentos da vidapartidária, quando falamos somen-te para os convertidos?

Acho que isso ocorre em relaçãoa todo tipo de envolvimento políti-co de indivíduos e de grupos. É evi-dente que os mais politizados, quejá estão de alguma maneira inseri-dos numa organização pela base,

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vão participar mais. Mas é por issoque eu insisto em reforçar a idéiade que formas de democracia dire-ta contribuem para a educação po-lítica, como uma escola de cidada-nia democrática. Diante desse mes-mo argumento de que só os“participativos”, os mais politizados,vão participar, poderíamos dizer quesomente os politizados é que parti-cipam das eleições para represen-tantes do Executivo e do Legislativode uma maneira consciente. Só elesvão se informar, vão realmente vo-tar de uma maneira consciente e,inclusive, só eles vão acompanharpara realmente se sentirem partí-cipes e representados nesse pro-cesso democrático. E, no entanto,sabemos que o processo eleitoralé também uma escola política. Évotando que se aprende a votar. E,quanto mais se vota, maior é a pos-sibilidade de se adquirir uma cons-ciência política. Temos visto issocomo um dado extremamente po-sitivo da participação popular naseleições. Eu diria que a participa-ção popular hoje nas eleições é de

uma qualidade muito melhor do queera, por exemplo, quando votei pelaprimeira vez, aos 18 anos. Hoje ascamadas mais oprimidas da soci-edade têm canais para se mani-festar, procuram se informar e pro-curam votar de modo independen-te da manipulação dos currais elei-torais, com muito mais chance doque nos anos 60, isso sem falar nosperíodos anteriores.

O que me parece interessante éque esses que já são participativose que vão participar do processo deorçamento participativo e outros dedemocracia direta, justamente por-que são mais organizados e maispolitizados, têm condição de levaroutros; e o processo é esse mes-mo. O Olívio insiste na idéia de pro-cesso e eu também; é um proces-so, e nesse processo a politizaçãovai contagiando, vai aumentando aparticipação. Mas não existe outramaneira, só se aumenta a partici-pação participando. E tem que secomeçar com aqueles que são maisparticipativos mesmo. Todo proces-so político é assim.

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Paulo Vannuchi nos lembra doobjetivo desse seminário, que é jus-tamente associar o tema em ques-tão com uma proposta socialista,uma reflexão sobre o socialismo.

Eu gostaria de insistir nisso, poisvejo as formas de democracia di-reta não apenas como uma radica-lização da democracia mas real-mente como um caminho para essesocialismo a construir, esse socia-lismo que é processo.

Conhecemos a tradição históri-ca, revolucionária, de democraciadireta, os sovietes, a Comuna deParis e outras formas, e Paulo Van-nuchi lembrou os entraves para queessa participação fosse efetiva-mente democrática.

Aqui, devemos voltar aos militan-tes pensadores, como Rosa Luxem-burgo, que já questionavam, nosembates de doutrinas e estratégiasque marcaram seu tempo, os des-vios antidemocráticos do socia-lismo. Por isso, digo que não deve-mos ter medo de falar em demo-cracia direta. Não podemos. Temosque reconhecer a contribuição his-

tórica da experiência dos sovietes,mas afirmar que ela não é suficientenem é o modelo para nós hoje. Omodelo do duplo poder não é maiso modelo, na minha opinião, paraum socialismo contemporâneo, de-mocrático e libertário, mas é umaexperiência que tem de ser levadaem conta.

Eu faria uma analogia, seguindoCornelius Castoriadis, em relaçãoà democracia direta grega, que eleconsidera o embrião de nossa de-mocracia, apesar de ter sido alta-mente excludente, porque excluíaas mulheres, os não-proprietários,os estrangeiros. Era uma democra-cia que convivia com os escravos,assim como muitos séculos depoisos liberais jeffersonianos, os paisfundadores da democracia ameri-cana e que defendiam a República,conviviam, apesar de seu liberalis-mo, com a escravidão. São experi-ências históricas que têm de seranalisadas em seu contexto históri-co. Mas é preciso contextualizar: ademocracia ateniense se deu no sé-culo IV a.C. No meu livro sobre a

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cidadania ativa2, escolhi comoepígrafe justamente o discurso dePéricles, citado em A Guerra doPeloponeso, do historiador Tucí-dides: “Nós somos, de fato, os úni-cos a pensar que aquele que nãose ocupa da política merece serconsiderado não como cidadão tran-qüilo, mas como um cidadão inútil.Intervimos todos, pessoalmente, nogoverno da pólis, quer pelo nossovoto, quer pela apresentação depropostas, pois não somos dos quepensam que palavras prejudicam aação. Pensamos, ao contrário, queé perigoso passar aos atos antesque a discussão nos tenha esclare-cido sobre o que se deve fazer”.Péricles disse isso quatro séculosantes de Cristo. O que nos devesurpreender é como essas idéiasforam sepultadas durante centenasde anos para só reaparecerem nofinal do século XVII, nas revoluçõesburguesas do século XVIII, no mo-vimento socialista do século XIX.

Então, temos de avaliar tudo issoe tirar dessas experiências concre-tas, inclusive das experiências dos

sovietes, que são extremamente ri-cas, o que elas têm de revolucioná-rio em relação ao seu momento his-tórico. E entender o que isso repre-senta para nós, hoje, sem que issose torne o nosso modelo. Por exem-plo, toda vez que nos pressionampara dizer “mas, afinal, qual é o so-cialismo de vocês?”, nós responde-mos, como disse o Olívio, que nãoexiste nenhum modelo, hoje, quepossamos dizer que é o nosso mo-delo de socialismo. Temos de dizerque é um processo que vamos cons-truir, porém tendo como base eaproveitando os erros e dos acer-tos dessas experiências históricas.

Paulo Vannuchi levantou umaquestão que já havia sido levanta-da por Pedro Pontual, ou seja, a ne-cessidade de combinar orçamentoparticipativo com outras formas dedemocracia direta. Isso é absolu-tamente indispensável. O orçamen-to participativo sozinho não se sus-tenta. Acho, como disse Olívio, quepodemos considerar essas formas,hoje, como revolucionárias. Elassão revolucionárias, sim, porque

2. BENAVIDES, M.V. A cidadaniaativa. São Paulo, Ática, 1999.

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botam de ponta-cabeça uma idéia depoder, uma idéia de governo, umaidéia de processo decisório, e elassão tão revolucionárias que causamnão apenas perplexidade, mas o ódiodas elites, que não querem abrir mãode uma fatia mínima do seu poder.

Quando discuti essas questõesnuma Comissão Mista, do Senado eda Câmara, na época da Constituin-te, defendendo essas idéias de de-mocracia direta, lembro-me de umdeputado, bem tradicional, de MinasGerais, que dizia: “Professora, tudoisso que a senhora fala é muito boni-to. Mas, na realidade, não é isso. Eu,por exemplo, sou votado por quê? Souvotado porque todo mundo sabe quemé o meu pai, quem foi o meu avô,quem foi o meu bisavô. Não tem sen-tido que toda essa dinastia de poderseja atacada, contaminada e prejudi-cada por um povo que não sabe denada, que não tem condição nenhu-ma de participar. Eu recebi um man-dato, eu tenho de ter carta brancapara o exercício desse mandato”.

Essa idéia de que o mandato éuma carta branca é tão forte na de-

mocracia representativa brasileiraque se torna necessário voltar a ou-tra experiência do socialismo his-tórico, que é o mandato imperati-vo. Defendo o mandato imperativonão no sentido absoluto de uma pri-são do eleito por seu eleitorado, masdefendo um mandato imperativopartidário, ou seja, um compromis-so inamovível com o núcleo doutri-nário e inegociável do programapartidário, que tem de ser contro-lado não necessariamente pelo elei-torado – que não sabemos quem é,no sistema eleitoral que temos –,mas controlado e discutido pelo pró-prio partido. Ou seja, ninguém noPT pode ser contra certos princípi-os e certas propostas que compõemo programa essencial do partido. Eaí é que vamos discutir se realmenteo orçamento participativo e formasde democracia direta compõemesse núcleo central do compromis-so partidário.

Não tenho medo de enfrentar aquestão histórica do que foi a de-mocracia direta, desde a democra-cia direta ateniense, excludente,

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até as formas revolucionárias dedemocracia direta e as experiên-cias de hoje.

Para terminar, quero registrar querecebi agora um texto que traz umcomentário muito bonito da profes-sora Suzana Prudente Correia. Elanão faz nenhuma pergunta, faz umareflexão no sentido de que o orça-mento participativo é um fermentona nossa luta democrática. Eu gos-tei muito da expressão. Obrigada.

Zilah AbramoTenho uma preocupação com a

questão da democracia direta e dademocracia representativa, princi-palmente com as conseqüênciasque ela pode ter em relação aosparlamentares, ao Poder Legisla-tivo. Queria saber qual foi a dife-rença de qualidade ou de maneirade procedimento das bancadas devereadores a partir da implantaçãoreal do orçamento participativo. Oque mudou? Se conseguirem dar umou dois exemplos, já fico satisfeita.Estou extremamente preocupadacom isso. No momento, o assunto

que mais me preocupa é essa ques-tão da atuação parlamentar, e eurealmente não sei ao certo comoessas coisas acontecem.

Alencar Santana BragaQuero fazer uma pergunta à pro-

fessora Maria Victoria Benevides.A senhora apontou no início a difi-culdade de se implantar o orçamen-to em nível federal. Mas, por issomesmo, considerando que vivemosnum país em que a União concentrao poder de distribuição dos recur-sos, não seria possível colocar o or-çamento pensando nas cinco regiõesdo país, ou outras quaisquer, passan-do de instância em instância até che-gar ao município, ou seja, uma re-gião em que fosse viável a parte prá-tica do orçamento participativo, emvez de a distribuição de verbas ficarcomo está hoje, ao bel-prazer do go-verno federal, que as distribui deacordo com seus interesses?

Gustavo VenturiTivemos a oportunidade de fazer,

por meio da Fundação Perseu

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Abramo, duas pesquisas de opiniãode âmbito nacional, uma em 1997,com a população em geral, e outraem 1999, com jovens de todas asregiões metropolitanas. Incluímosnelas algumas perguntas para ten-tar captar a consciência de direitosno país. E tanto em uma como naoutra o que se observou foi quecerca de dois terços da populaçãoou dos jovens das regiões metro-politanas expressaram espontanea-mente ter noções sobre direitos quepodem ser classificados na catego-ria de direitos sociais ou econômi-cos: direito à educação, à saúde, aotrabalho, à renda etc. Pouco maisde 20%, somente, em ambas aspesquisas, mencionaram os chama-dos direitos individuais ou civis: li-berdade de ir e vir, liberdade de ex-pressão. E os direitos propriamen-te políticos foram mencionados porcerca de 10%, apenas.

Então, uma leitura otimista des-ses dados nos levaria ao seguin-te: é bem provável que poucasdécadas atrás essa consciência dedireitos sociais, que apareceu

de maneira bastante acentuadanesses dois levantamentos, nãoaparecesse em amplas camadasda população.

Isso nos coloca uma questão, queseria: cabe ou não aos governos fo-mentar a consciência desses direi-tos políticos de participação? O quepode ser uma questão banal, por-que provavelmente o que une amaioria das pessoas que estão aqui,atraídas por este tema, é uma res-posta positiva a essa questão. Mas,como já foi dito, nem mesmo todosos governos petistas dão a mesmaimportância e essa quetão. O or-çamento participativo é uma mar-ca forte do PT, mas não é desen-volvido em todas as administraçõespetistas. Acredito que aparece nes-sa questão, talvez, um problema napercepção do caráter pedagógicoque não só o orçamento participa-tivo, mas também outras formas departicipação popular têm em rela-ção a transformar as pessoas queparticipam desse processo, seja osindivíduos, seja os agentes coleti-vos. Para fazer governos com in-

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versão de prioridades, não é preci-so orçamento participativo ou ra-dicalizar a democracia a partir dopoder, basta que se usem instru-mentos como as pesquisas de opi-nião e se detecte quais são os prin-cipais problemas da população esuas maiores demandas. No entan-to, atender mais ou menos a essasreivindicações está muito pouco nocontrole dos governos municipais,um pouco mais no dos estaduais,por falta de controle das questõesmacroeconômicas. Corre-se o ris-co de alguns governos serem ava-liados como tendo sido um poucomelhores ou um pouco piores doque outros que já passaram, do PTou não, em relação às medidas ob-jetivas de atendimento a essas rei-vindicações. Mas o que fica de mu-dança propriamente dita em rela-ção a uma nova cultura política? Eaí entram as questões de participa-ção, entre elas a do orçamentoparticipativo. Gostaria de ouvir al-gum comentário a respeito disso dogovernador Olívio Dutra, que já nosrelatou aqui algumas questões de

como setores inicialmente alheiosa esse processo acabaram por seincorporar a ele.

Antônio LanzettiTrabalhei vários anos na admi-

nistração de Santos, no período emque o PT governou a cidade. Co-ordenei por um período curto oorçamento participativo, que lá sechamava Congresso do Orçamen-to. E sempre me interessou muitoa questão de como lidar – essa é aprimeira pergunta para o compa-nheiro Olívio Dutra – com o queeu gosto de chamar de espíritopassional reivindicativo, que éessa situação de só reivindicar parao poder público, sendo que umadas características fundamentaisdo capitalismo, e do capitalismocontemporâneo, é a produção defaltas, de carências. Todo mundoestá em falta. Quem não tem paracomer não tem nada mesmo...Quem tem um Santana quer umBMW, e assim por diante. Formasque levaram um filósofo como FelixGuattari a chamar isso de experi-

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ências ou práticas capitalísticas,um modo de ser capitalístico.

A segunda questão é a tensãoentre as formas de participação eas formas de protagonismo.

Em terceiro lugar, uma perguntaque suponho ser uma crítica frater-nal: o orçamento participativo nãoé também, às vezes, uma maneirade postergar a ação do poder lo-cal? Não é uma maneira de nãofazer, de adiar um serviço ou de nãofazer transformações que impli-quem rupturas muito grandes parao imaginário coletivo?

Quarta questão: a professoraMaria Victoria Benevides citouCastoriadis, que afirmava que po-demos lutar contra o mercado ca-pitalista, mas o mercado é como alinguagem, não se pode viver emsociedade sem ele. Assim, o orça-mento participativo não seria umamaneira, como outras experiênci-as que Porto Alegre tem, dereinvenção do mercado como ta-refa histórica da esquerda?

E, penúltimo, como funciona aquestão do imaginário, porque o or-

çamento participativo não acaboucom a teoria inventada por Maquiavelde marketing político. Nosso maiorêxito são as várias gestões que sesucedem no Rio Grande do Sul.

Por último, gostaria de saber se,baseado nessa idéia de Guattari dasformas ou práticas capitalísticas,poderíamos nos aventurar a cha-mar a experiência do orçamentoparticipativo de forma socialística.

Sebastião Marcelo SobrinhoGostaria de fazer aqui alguns co-

mentários e, ao mesmo tempo,apresentar algumas questões. Eudiria que a primeira coisa que leva-mos satisfeitos daqui é essa noçãode processo. Acho que é importan-te fixar essa noção. Por quê? Pa-rece-me que é um processo de edu-cação política – e para nós o orça-mento participativo na cidade deMauá (SP), do qual sou coordena-dor, tem sido isso, é coisa de genteteimosa. E ser teimoso tem umgrande valor na política. Por quedigo isso? Temos, em Mauá, umadas maiores dívidas públicas deste

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país. Para um orçamento próximode 160 milhões de reais temos umadívida de 800 milhões de reais. Enessa situação estamos debatendo.Não sei se podemos chamar deorçamento participativo, mas tive-mos a coragem de fazer o debatecom a população dessa situação fi-nanceira e, a partir dela, estamosdiscutindo e tendo um processo departicipação popular muito interes-sante. Acho que precisamos ficaratentos ao que se relaciona a essaexperiência do orçamento parti-cipativo. Não há receita. No nossocaso é assim, se tivéssemos quepartir de uma receita, chegaríamosà seguinte conclusão: não dá parafazer nada e ponto final. Então, esseé o fato importante, estarmos aten-tos a quais processos se relacionamcom o orçamento participativo.

Na nossa caminhada em Mauá,temos de destacar algumas coisasque estão se relacionando, sim, nodebate, na discussão e naquilo quetemos construído na cidade. Pri-meiro, a ligação que isso tem coma política financeira, tanto estadu-

al como federal; cada vez maispara os municípios está sobrandoserviço e faltando dinheiro. Preci-samos estar muito atentos a essapolítica financeira.

Gostaria também de testemunharaqui que o grande ganho desse pro-cesso é o encontro de saberes. Éfantástico ter a possibilidade, den-tro desse processo, de entender oque é o diálogo político.

Por fim, acho que está na horade podermos refletir e aprofundarmais essa experiência, fazendo en-contros, mas acho também que opartido precisa encabeçar isso,destacando a importância que estátendo não só essa experiência doorçamento participativo, mas vá-rias outras experiências de políti-cas públicas que estão sendo im-plementadas, centradas na partici-pação popular.

Olívio DutraResta-me pouco tempo para

abordar as cinco importantes colo-cações feitas, então eu queria agra-decer esta oportunidade propicia-

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da por todos de avaliação séria daexperiência desafiadora queestamos vivendo. Doze anos é pou-co, ela não está ainda suficiente-mente espraiada e enraizada nonosso próprio estado. Mas não po-demos jogar fora a criança com aágua do banho. Devemos cuidarbem dela para que cresça viçosa echeia de esperança. É evidente queela se relaciona a experiências ri-cas, vividas em situações históricase geográficas diferenciadas. Rela-ciona-se ao protagonismo dos mo-vimentos sociais e a uma propostade nova sociedade que pensa glo-balmente mas trata de formaentrelaçada os desenvolvimentoslocal, regional e nacional.

A questão da democracia direta,participativa, e sua correta combi-nação com a democracia represen-tativa há de ser sempre atual nes-se processo. As pessoas têm quesaber clara e objetivamente que es-tão construindo uma proposta, masnão estão finalizando ali o orçamen-to, porque o orçamento só se tornalei depois de aprovado pela Assem-

bléia Legislativa, pois no Estadodemocrático de direito as leis sãofeitas pelas casas legislativas: ascâmaras municipais, as assembléi-as legislativas e o Congresso Na-cional. Se existe uma participaçãocrescente no processo de discus-são e feitura do orçamento mas,quando votado na casa legislativatodo aquele processo é descarac-terizado, desrespeitado, surge umatensão entre o representado e o seurepresentante, que vai desembocarem uma nova postura do eleitorquando da renovação dos manda-tos legislativos. Mas isso em um pro-cesso com ritmos diferentes.

Mas é importante que aqueles queparticiparam da construção coleti-va da proposta na fase inicial parti-cipem também do seu debate nafase seguinte, nos legislativos. Issoimplica construir uma permanenteinteração do governo com seus par-lamentares, inclusive para que parti-cipem, desde o início do processo, dosdebates da proposta nas suas basese regiões. Isso certamente qualificao debate no Legislativo, possibilitan-

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do que a Lei Orçamentária a seraprovada não ignore ou desconstituaa proposta que veio fecundada pelaparticipação popular.

Bueno, é importante realmente aapropriação coletiva das modernastecnologias da informática e da co-municação. Existem desafios im-portantes nesse terreno para nós.Podemos aproveitar a informáticae ter locais na cidade, nos municí-pios, onde o cidadão possa acessarem tempo real a informação, nacasa dele, na praça ou num prédiopúblico. Isso é muito importante,mas nada substitui o encontroafetivo e solidário de um ser huma-no com outro, na sua comunidade.

Não podemos confundir pesqui-sa de opinião com participação.Como disse aqui o companheiroGustavo Venturi, uma pesquisapode apontar o desemprego, a vio-lência, a saúde como principais pre-ocupações do povo. Mas qual é ograu de imantação, de participação,de responsabilidade cidadã no en-frentamento dessas questões pro-vocado pela pesquisa? Nisso o or-

çamento participativo ou outras ins-tâncias de participação direta da po-pulação são insubstituíveis.

Portanto, a informática ajuda ademocratizar a informação, masnão supera nem substitui a partici-pação. Lembro o que ocorreu noRio Grande do Sul. Em 1998, no fi-nal de seu mandato, ano eleitoral, ogoverno anterior, prevendo e ten-tando evitar a derrota, e perceben-do que o orçamento participativoera uma proposta programáticanossa que ia ao encontro da cida-dania, bolou uma coisa chamadaconsulta popular. Era uma espé-cie de pesquisa de opinião, sem ple-nária, sem assembléia, bolada nosgabinetes, que foi institucionalizadacomo uma decisão de governo.Isso deixou amarradas para nós al-gumas obras e serviços definidospela tal consulta popular, sem su-plementação de recursos. Foi pre-ciso submetê-las às assembléias doorçamento participativo e, revistas,elas estão sendo executadas juntocom o Plano de Investimentos de2000 e 2001. Mas, com a experi-

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ência do orçamento participativo,ninguém mais quer saber daqueletipo de consulta.

Também a Assembléia Legis-lativa, à medida que o orçamentoparticipativo foi sendo apropriadopela cidadania e se consolidou, ten-tou a ele se contrapor criando oForo Democrático. No fundo, é oreconhecimento de que o debate doorçamento não poderia ficar ilhadona casa legislativa. Os própriosparlamentares querem agora ir àsregiões, às comunidades, fazer reu-niões abertas sobre a proposta or-çamentária que o governo entregaao Legislativo a cada mês de se-tembro. Estimulamos o povo a par-ticipar também das reuniões doForo Democrático como momentoimportante no processo do orça-mento participativo.

O orçamento participativo nãopode ser uma protelação, servir dejustificativa para se dizer “não fizporque o povo não decidiu ainda naassembléia do orçamento”. Eviden-te que não, mas é uma instância deformulação, de decisão, de propo-

sição, de acompanhamento que temde ser respeitada. Aliás, não é de-mais sublinhar que o orçamentoparticipativo é o processo e não apeça orçamentária, a lei.

O orçamento participativo nãopode servir de escapatória para sejustificar que tal obra não saiu porconta disso ou daquilo. É evidenteque, participando da construção daproposta, o povo passa a conhecero grau de endividamento, os recur-sos para investimentos e os custospara a manutenção e conservaçãoda máquina pública. Estamos ago-ra na terceira edição do orçamen-to participativo no âmbito estadual.Começamos o ano com uma pres-tação de contas sobre a execuçãodo orçamento anterior, para nelaengatar a construção das priorida-des do novo orçamento. Nosso go-verno tem conseguido que a defini-ção das prioridades tenha conso-nância com a execução de políti-cas constantes do nosso programa.É claro que a estrutura administra-tiva, burocrática, às vezes não res-ponde com a agilidade e a qualida-

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de necessárias. O governo tem dese explicar, e isso é correto, fazparte do processo.

Dinheiro público não é proprie-dade do governante, em nenhumnível, e é escasso. Os entes federa-dos – União, estados e municípios– têm de estar articulados na exe-cução dos recursos públicos, ecomo somos uma República fede-rativa, e não unitária (como a Fran-ça, por exemplo), existe um espa-ço de autonomia tanto para o muni-cípio como para o estado. Não pre-cisamos ser meros repetidores dapolítica do governo federal. Temos

de demandar esse espaço próprio eresponsável, sem afrouxar a articu-lação no plano administrativo e a vi-são nacional dos problemas brasilei-ros. Essa noção da relação federadavai se tornando cada vez mais claranos espaços de discussão do orça-mento participativo.

Bueno, para encerrar, gostaria deexpressar a enorme alegria de ver onosso partido fazendo discussões detemas como este e tantos outros, quenão estão presos a uma circunstân-cia ou a uma conjuntura específica,mas têm tudo a ver com a conjuntu-ra maior que a gente tem de mudar.

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Sobre os autores

OLÍVIO DE OLIVEIRA DUTRA nasceu no dia 10 de junho de1941 em São Luiz Gonzaga (RS), no distrito de Bossoroca, hoje ummunicípio emancipado.

Como funcionário concursado do Banco do Estado do Rio Grande doSul (Banrisul), mudou-se para Porto Alegre no final da década de 1960.Foi presidente do Sindicato dos Bancários por duas gestões, coordena-dor da Intersindical e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores,do qual foi presidente nacional e regional. Deputado federal eleito em1986, participou da Constituinte, recebendo nota 10 do DepartamentoIntersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP). Em 1988, elegeu-se pre-feito de Porto Alegre. Durante o seu governo, foi implantado o orça-mento participativo e inaugurada a Prestação de Contas Pública da Pre-feitura. Ao passar o cargo ao novo prefeito, Tarso Genro, que fora seuvice na primeira Administração Popular, retornou às atividades de ban-cário. Em 1998, foi eleito governador do Rio Grande do Sul. Implantou oorçamento participativo, a Municipalização Solidária da Saúde, o pro-grama Primeiro Emprego e o Movimento de Alfabetização (MOVA-RS)e criou as secretarias de Habitação e de Reforma Agrária.

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MARIA VICTORIA BENEVIDES nasceu em 1942, na cidade deNiterói, Rio de Janeiro. Socióloga, com trabalho nas áreas de ciênciapolítica, história política do Brasil e sociologia da educação, é professoratitular da Faculdade de Educação (Departamento de Filosofia da Educa-ção e Ciências da Educação) da Universidade de São Paulo (USP).

É também membro titular do Conselho da Cátedra Unesco/USP de Edu-cação para a Paz, os Direitos Humanos, a Democracia e a Tolerância,sediada no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP; diretora e pro-fessora da Escola de Governo; membro do Centro de Estudos de Cultu-ra Contemporânea (Cedec); membro da Comissão Justiça e Paz, de SãoPaulo; membro da Diretoria da Rede Brasileira de Educação em Direi-tos Humanos.

É autora dos seguintes livros: A cidadania ativa (Ática, 1992); O PTBe o trabalhismo (Brasiliense, 1987); Violência, povo e política(Brasiliense, 1984); O governo Jânio Quadros (Brasiliense, 1981); AUDN e o udenismo (Paz e Terra, 1981) e O governo Kubitschek (Paze Terra, 1976).

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26 de março – Perspectivas que a vitória das es-querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons-trução do socialismo

Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente deHonrra do PT)

Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau-lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e LuizDulci (presidente da Fundação Perseu Abramo)

9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimentolocal e a distribuição de renda abrem à construção dosocialismo.

Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo AndréComentadores: Ladislas Dowbor (professor da PUC-

SP), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e MiguelRossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul)

23 de abril – O orçamento participativo como um dospressupostos políticos da construção do socialismo.

Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran-de do Sul

Comentadora: Maria Victoria Benevides (profa. daUSP e da Escola de Governo)

7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativasante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, naperspectiva do socialismo.

Expositor: Fernando Haddad – professor da USPComentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do

MST), João Felício (presidente nacional da CUT) eRicardo Antunes (professor da Unicamp)

21 de maio – A luta pela terra e a organização dosassentamentos como contribuição para a construçãodo socialismo.

Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputadofederal e consultor da ONU.

Comentadores: José Graziano da Silva (professorda Unicamp)

4 de junho – Perspectivas que a revoluçãomicroeletrônica e a internet abrem à luta pelo socialismo.

Expositor: Laymert Garcia – professor da UnicampComentadores: Bernardo Kucinski (professor da

USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro(líder do PT na Câmara dos Deputados)

18 de junho – Alternativa socialista ante aglobalização financeira

Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJComentadores: João Sayad (secretário de Finan-

ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacionaldo PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamentode Recife)

Programa do segundo ciclo de seminários Socialismo eDemocracia realizados no primeiro semestre de 2001

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

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Leia também da coleção

Globalização e socialismoMaria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoFrancisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

Economia socialistaPaul Singer e João Machado

O índividuo no socialismoLeandro Konder e Frei Betto

Instituições políticas no socialismoTarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

Socialismo em discussão