orÇamento e direito - construindo um método

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  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

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  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

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  • Oramento e Direitos:Construindo um Mtodo de Anlise do Oramento Luz dos Direitos Humanos

  • expeDiente INESC - INStItutO DE EStuDOS SOCIOECONMICOSend: scs - Qd. 08, Bl B-50 - salas 431/441 ed. Venncio 2000 - cep. 70.333-970 - Braslia/DF - Brasil - Fone: (61) 3212 0200 - Fax: (61) 3212 0216 - e-mail: [email protected] - site: www.inesc.org.br - conselho Diretor: analuce rojas, armando martinho raggio, David Fleisher, eva Faleiros, Fernando paulino, Jurema Werneck, Luiz Gonzaga, Oswaldo Braga Jr. e taciana Gouveia - colegiado de Gesto: atila roque, iara pietricovsky, Jos antnio moroni - assessores(as): alessandra cardoso, alexandre ciconello, cleomar manhas, edlcio Vigna, eliana magalhes Graa, mrcia acioli, ricardo Verdum - assistentes: ana paula Felipe, Lucdio Barbosa.

    INStItuIES quE ApIAM O INESC:actionaid associao recife-OxfordccFDchristian aid charles stewart mott Foundation conanda eeD FastenopferFundao avina Fundao Ford international Budget partnership (iBp) instituto Heinrich Bll Kindernothilfe norwegian church aid Oxfam novib unicef

    Este texto o resultado de reflexes coletivas da equipe do Inesc, sendo a sua redao coordenada por um Grupo de Trabalho composto por: Alexandre Ciconello, Eliana Magalhes Graa, Evilsio Salvador e Lucdio Barbosa. Contamos tambm com a colaborao do consultor Leandro Lamas Valarelli.

    Editor responsvel Alexandre Ciconello Revisor paulo Henrique de Castrotraduo Demerval Aires Jr.projeto Grfico/ Diagramao Clarissa teixeiraApoio diagramao Ivone Melo

    Essa publicao contou com o apoio das seguintes agncias: Fundao Avina, Fundao Ford e International Budget Partnership (IBP).

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    Apresentao

    O pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (pI-DESC) impe um conjunto de obrigaes sobre os governos que o ratifi-caram. O artigo 2 (1) do pIDESC requer especificamente que os governos deem passos valendo-se do mximo dos seus recursos disponveis para alcanar a realizao dos direitos reconhecidos pelo pacto. Essa frase geralmente reconhecida como uma afirmao relativamente vaga, e o re-gistro histrico no detalha com preciso o que ela deve significar. Ainda assim, ela traz consigo uma obrigao potencialmente poderosa, para a qual a maioria das Constituies nacionais no dispe de um dispositivo equivalente. um dos desafios enfrentados pelo ativismo dos direitos eco-nmicos e sociais em nossos dias a tarefa de atribuir um contedo substancial a essa obrigao internacional.

    As organizaes da sociedade civil em todo o mundo vm trabalhando, h muitos anos, utilizando os oramentos dos governos para avaliar em que medida o mximo disponvel de recursos financeiros est sendo usado para a realizao dos direitos econmicos, sociais e culturais. As aborda-gens empregadas tm variado entre os pases, mostrando um amplo leque de exemplos de como o sistema de direitos humanos pode se relacionar ao modo de um governo decidir sobre o emprego de recursos escassos.

    Na tanznia, por exemplo, a HakiElimu tem usado informaes do ora-mento pblico daquele pas para cobrar a prestao de contas pelo gover-no da realizao do direito educao, afirmando que no basta aumentar as taxas de matrcula dos estudantes. De igual forma, a citada organizao salienta que recursos suficientes devem ser investidos no aumento da qua-lidade da educao para as crianas daquele pas. Na frica do Sul, o Centre for Social Accountability (CSA) pressiona o governo da provncia de Eastern Cape para garantir um processo amplo de gesto das finanas pblicas no qual os direitos dos cidados tenham um papel central. trabalhando com sade, habitao e outros direitos, o CSA tem cobrado as secretarias da provncia por terem falhado em planejar suas polticas pblicas levando em conta os direitos das pessoas e suas necessidades reais, que persistem.

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    Na Amrica Latina, o objetivo de usar informaes do oramento pblico para avanar na direo da realizao dos direitos humanos tem apresen-tado muitas expresses. Nossa regio tem liderado esse esforo por qua-se dez anos, tentando e testando uma multiplicidade de abordagens. H alguns anos, uma iniciativa regional sobre direitos humanos e HIV/Aids, na Argentina, no Chile, no Equador, no Mxico e na Nicargua, examinou os oramentos dos referidos pases para requerer que a Comisso Interame-ricana de Direitos Humanos continue produzindo medidas cautelares pelo provimento de medicamentos antirretrovirais nesses e em outros pases. O Centro de Investigaciones Internacionales en Derechos Humanos (CIIDH), na Guatemala, tem sistematicamente acompanhado e analisado o ora-mento daquele pas a partir da perspectiva dos Acordos de paz da Guate-mala e os seus componentes especficos de direitos humanos. A Fundar, no Mxico, tem liderado e construdo coalizes em torno de um amplo leque de questes e iniciativas de direitos humanos, pressionando o governo para que o oramento se torne uma ferramenta central no planejamento, na realizao e na avaliao de polticas pblicas de direitos humanos. Dos direitos das mulheres at o direito sade, de iniciativas da sociedade civil a esforos governamentais, a Fundar tem testado muitas abordagens no trabalho com oramento e direitos humanos.

    O Instituto de Estudos Socioeconmicos (INESC) tem realizado um tra-balho igualmente consistente tanto no Brasil quanto em nvel internacio-nal. Ao trabalhar diretamente com o governo brasileiro na integrao da perspectiva de direitos humanos no oramento nacional, o INESC tem consolidado bases para iniciativas amplas em nvel internacional, como o constante monitoramento conduzido pelo Social Watch, para ilustrar as conexes entre os dois campos.

    A hiptese subjacente a muitos desses esforos semelhante: para que os direitos humanos assumam a proeminncia que merecem, no basta haver um sistema jurdico em nvel internacional. Essas normas internacionais precisam ser devidamente integradas s leis nacionais, e o seu completo cumprimento deve ser testado continuamente. Ademais, se as normas no forem traduzidas em termos de polticas pblicas capazes de elencar as

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    aes prioritrias para o avano constante na realizao desses direitos, com base em uma avaliao de direitos humanos, o cumprimento amplo das normas falhar. Se dermos esse simples passo lgico, torna-se eviden-te que, sem um oramento para a sua implementao, as polticas no tm para onde ir.

    todo o objetivo do trabalho de oramento e direitos humanos remonta a isto: a garantir que os governos usem o nosso dinheiro que provm das pessoas e dos bens nacionais, como o petrleo e outros recursos no-renovveis naquilo que deve ser a prioridade mais alta, ou seja, para garantir o direito das pessoas. Alguns poderiam dizer que estamos pedin-do demais, que os governos tm muitas coisas a fazer e que os direitos humanos no podem ser o nico propsito das polticas governamentais. porm, na verdade, qual poltica no est ligada realizao dos direitos humanos? O problema reside no no escopo dos direitos humanos em si, e sim na compreenso limitada que os nossos governos tm sobre os direitos humanos.

    O trabalho com direitos humanos nunca foi fcil. tampouco o trabalho com o oramento. A combinao dos dois um desafio, em funo das linguagens extremamente diferentes nas quais ambos os elementos esto codificados. Mas esse um passo inevitvel para a construo de pontes entre eles, pois sem polticas e oramentos, os direitos humanos conti-nuaro sendo uma questo para a justia, e no para as aes dirias que dizem respeito s vidas das pessoas e possuem impactos no viver de crian-as, mulheres e homens.

    precisamos continuar pressionando.

    Helena HofbauerinternatiOnaL BuDGet partnersHip (iBp)mxico, outubro de 2009

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    Introduo

    O Instituto de Estudos Socioeconmicos (INESC) uma organizao da socie-dade civil brasileira fundada em 1979 com a misso de contribuir para o aprofun-damento da democracia e a promoo dos direitos humanos, com um foco de atuao no parlamento e nas polticas pblicas. Desde 1991, o INESC elegeu o oramento pblico como um instrumento estratgico para a anlise e o controle social das polticas pblicas. A incidncia sobre o oramento pblico brasileiro tem estruturado a ao do INESC desde ento.

    A estratgia e as metodologias utilizadas pelo INESC para a incidncia e o mo-nitoramento do oramento pblico vm se aprimorando ao longo dos anos. No incio da dcada de 90, com a recente promulgao da Constituio Federal de 1988, que estabeleceu os marcos do planejamento oramentrio do Estado bra-sileiro (planos plurianuais, Lei de Diretrizes Oramentrias e Lei Oramentria Anual), nosso trabalho era o de desvendar as relaes entre as polticas pblicas e o oramento e lutar pela transparncia e pelo acesso s informaes oramen-trias.

    posteriormente, por meio de alianas com diversos movimentos sociais, avana-mos no sentido de contribuir com mudanas significativas na qualidade da gesto oramentria e tambm na anlise do oramento destinado para algumas reas (indgenas, meio ambiente, crianas e adolescentes, reforma agrria, segurana alimentar e seguridade social), especialmente com relao alocao dos recur-sos pblicos e sua execuo. Nesse sentido, criamos, em parceria com outras organizaes, ferramentas importantes para o monitoramento do oramento, tais como o Oramento da Criana e do Adolescente (OCA), o Oramento da Segurana Alimentar e Nutricional (OSAN) e o Oramento Indigenista.

    parte fundamental da atuao do INESC foi a de buscar a atuao em rede. Nes-ta direo, o INESC foi um dos fundadores e atualmente integra a coordenao do Frum Brasil do Oramento (FBO), que foi criado em 2002 e rene 57 or-ganizaes, movimentos e sindicatos com o objetivo de monitorar e influenciar o oramento pblico no Brasil na perspectiva da justia social e da promoo de polticas de redistribuio, ampliando a participao social.

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    A partir de 2007, impulsionado pelos debates e pela participao em redes in-ternacionais e nacionais de direitos humanos,1 o INESC se desafiou a avanar na metodologia de anlise do oramento, buscando articular o marco dos direitos humanos e das desigualdades, com a medida de sua efetivao por meio das po-lticas pblicas e do oramento.2

    Assim, apresentamos a seguir os elementos conceituais e metodolgicos que te-mos utilizado para a construo da metodologia de Oramento e Direitos Huma-nos, que estaremos aprimorando ao longo dos prximos anos. Nosso objetivo socializar, com um nmero maior de organizaes da sociedade civil e parceiros, os caminhos que estamos trilhando na busca por criar um instrumento poltico e metodolgico til para que possamos avanar na anlise do oramento sob a perspectiva da realizao dos direitos humanos e do combate s desigualdades.

    Direitos humanos e combate s desigualdades como um marco poltico e operacional

    A luta por direitos uma construo histrica. Eles no so dados, mas sim conquistados por aqueles/as que vivem situaes de opresso, invisibilidade e violao. Os direitos s existem, portanto, pela contnua luta de sujeitos polticos pelo reconhecimento de suas identidades, ao longo da histria, e por uma luta redistributiva dos recursos gerados pela sociedade. trata-se de um movimento dinmico de lutas e avanos que eleva progressivamente a comunidade interna-cional a novos patamares de liberdade, igualdade, respeito e dignidade.

    utilizar os direitos humanos como um marco conceitual para a anlise do or-amento pblico significa considerar os compromissos que o Estado brasileiro assumiu internacionalmente em tratados e convenes. Significa considerar tam-bm os direitos garantidos em nossa legislao constitucional e infraconstitu-

    1 social Watch, international Budget partnership, plataforma Dhesca Brasil, Frum de entidades nacionais de Direitos Humanos, processo de articulao e Dilogo (paD) entre as agncias ecumnicas europeias e parceiros brasileiros.

    2 cabe ressaltar o importante apoio dado pela Fundao avina durante todo este processo, assim como a contri-buio valiosa dos seguintes profissionais: marcelo paixo, suzana cavenaghi, myllena calasans, paulo carbonari, Leandro Lamas Valarelli, silvia cristina Yannoulas e ronaldo sales.

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    cional. Estamos falando de um conceito poltico, normativo e operacional que impe obrigaes ao Estado brasileiro (e aos seus/suas representantes, gestores/as, servidores/as). Essas obrigaes foram e so pactuadas tanto na comunidade internacional como na prpria sociedade brasileira e se expressam por meio de um sistema jurdico-normativo, que os indivduos, os governos e a comunidade internacional devem respeitar e promover.

    Ao Estado cabe respeitar (no violar direitos), proteger (evitar que os direitos sejam violados por terceiros) e promover (garantir direitos para todos/as). a isso que chamamos de um Estado Social e Democrtico de Direitos, que ainda no se efetivou para uma grande parte de nossa populao. sociedade cabe respeitar os direitos humanos, a diversidade e os diferentes modos de vida, cons-truindo relaes baseadas na solidariedade e na justia, abolindo as discrimina-es e os preconceitos.

    por direitos humanos entendem-se no s os direitos civis e polticos (previstos nos artigos 5 e 14 da nossa Constituio), mas tambm os direitos sociais, eco-nmicos, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos (previstos nos artigos 6, 7 e nas sees especiais da nossa Constituio, bem como em outras normas nacionais e internacionais).

    Ou seja, na construo da nossa metodologia consideramos a moderna defini-o de direitos humanos (direitos civis, polticos, econmicos, sociais, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos) com suas caractersticas expressas na Con-ferncia Mundial de Viena de 1993, de universalidade, indivisibilidade e interde-pendncia.

    Muito se avanou aps a Constituio Federal de 1988 na construo de um ar-cabouo legal de garantia de direitos. Contudo, pouco se avanou na efetivao de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades.

    No caso da sociedade brasileira, essa dimenso essencial. No h como se falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades estruturais, que permite que certos sujeitos de direitos (em razo de fatores como cor, sexo, fai-xa etria, orientao sexual, etnia, etc.) tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados.

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    Combater a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa necessaria-mente pelo entendimento de que aqui ambas tm relao com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras so as mais pobres e tm menor grau de esco-laridade, enquanto os homens jovens e negros so os que mais sofrem com a violncia, por exemplo. As inaceitveis distncias que ainda separam negros de brancos, em pleno sculo XXI, se expressam no microcosmo das relaes inter-pessoais dirias e se refletem nos acessos desiguais a bens e servios, ao mercado de trabalho, educao que persistem apesar das melhorias nos indicadores tomados para o conjunto da populao , bem como ao gozo de direitos civis, polticos, sociais e econmicos.

    portanto, nossa opo pela nfase dimenso das desigualdades de raa e gnero no oramento pblico, pois consideramos que o racismo e o sexismo so duas das principais causas estruturantes das desigualdades sociais no pas. pode-se concluir que uma metodologia que queira enfatizar, dentro da questo oramentria, a tica dos direitos no Brasil deve necessariamente integrar, em seu conceito, a discriminao de gnero e raa como definidora do acesso a esses direitos. Alm disso, deve tambm levar em conta as vrias formas de in-terseco dessas duas discriminaes.

    Oramento pblico e direitos humanos: uma abordagem

    O oramento pblico a materializao da ao planejada do Estado para a manuteno de suas atividades e a execuo de seus projetos, o que permite a visualizao do direcionamento das aes do Estado e de suas efetivas priori-dades. O oramento pblico tambm , ao mesmo tempo, um espao de luta poltica onde as diferentes foras da sociedade buscam inserir seus interesses e a sua resultante.

    Nesta perspectiva, entendemos que a anlise do oramento pblico uma porta de entrada para o debate sobre:

    como os recursos pblicos so arrecadados e distribudos; a correlao de foras/poder dentro da sociedade; quem se apropria preferencialmente do fundo pblico; e

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    a construo de polticas pblicas e de uma legislao que promova os direitos humanos e a sustentabilidade, reduzindo as desigualdades.

    Nesse sentido, as estratgias do INESC ao longo dos anos tm sido:

    a produo de anlises oramentrias (sobre a alocao e a execuo dos recursos);

    a ampliao dos espaos de participao (no executivo e no legislativo) para o debate e sua incidncia sobre o oramento pblico;

    a ampliao da transparncia e o acesso s informaes pblicas sobre os dados oramentrios; e

    o acompanhamento e a influncia na elaborao do oramento e na sua execuo, tanto no executivo como junto ao parlamento.

    Estabelecer relaes concretas entre o oramento pblico, a garantia dos direi-tos e o enfrentamento das desigualdades sociais no Brasil o objetivo da meto-dologia de anlise do oramento pblico sob a perspectiva dos direitos humanos. O desafio est em criar um instrumento de anlise das polticas pblicas e do or-amento que seja compreensvel, simples e aplicvel tanto pelo INESC como por outras organizaes da sociedade civil. A seguir, apresentamos o modo como o estado da arte da estratgia e da metodologia formulado pelo INESC est at o presente momento.

    Estratgia central da metodologia de Oramento e Direitos Humanos

    O oramento pblico deve alocar recursos suficientes e de forma progressiva para a realizao dos direitos, conforme expresso em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil signatrio. quanto mais concentrado o poder poltico e econmico nas mos de poucos e mais imperfeitas so nossas instituies democrticas, maior ser a tendncia de que os recursos pblicos se-jam aplicados para beneficiar os interesses de uma minoria e no com o objetivo central de assegurar direitos e reduzir as desigualdades.

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    Do ponto de vista da anlise oramentria, para alm de verificar os recursos alocados para as polticas pblicas e como foram executados, estamos nos colo-cando dois novos desafios, traduzidos nas seguintes perguntas:

    Em que medida os programas e as aes governamentais esto efetivan-do os direitos e combatendo as desigualdades?

    Como as polticas pblicas so financiadas? Em outras palavras, sobre quem recai o financiamento tributrio do Estado brasileiro?

    para respond-las, partimos do pressuposto de que o oramento pblico deve alocar recursos suficientes (mximo de recursos disponveis para a promoo dos direitos) e de forma progressiva para a realizao dos direitos, conforme expresso no compromisso assumido pelo Estado brasileiro quando da ratifi-cao do pacto Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (pIDESC), em 1992. Alm disso, o financiamento das polticas pblicas deve se basear na justia tributria, evitando o aprofundamento das desigualdades sociais na arrecadao e fazendo a redistribuio de renda do ponto de vista da arrecadao tributria.

    Disso decorre que uma estratgia de anlise do oramento sob a tica dos di-reitos humanos deve pautar-se pela anlise do cumprimento das obrigaes do Estado em:

    aplicar o mximo de recursos disponveis para a promoo dos direitos humanos;

    garantir o seu financiamento com justia social; e promover a realizao progressiva dos direitos humanos direitos civis,

    polticos, econmicos, sociais, culturais, ambientais, sexuais e reproduti-vos (contemplando a dimenso das desigualdades, especialmente de gnero e raa/etnia).

    Nesta perspectiva, a estratgia e a metodologia de Oramento e Direitos pro-postas pelo INESC estruturam-se a partir de quatro eixos.

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    Figura 1: Eixos da estratgia de Anlise do Oramento Pblico sob a tica dos Direitos Humanos

    1. Financiamento do Estado com justia social

    2. Mximo de recursos disponveis para a promoo dos direitos, tendo em vista as restries impostas pela poltica econmica

    3. Realizao progressiva dos direitos humanos, analisando-se em que medida os programas e aes governamentais esto efetivando direitos e reduzindo as desigualdades sociais, em especial as desigualdades de gnero e raa/etnia

    4. Oramento alternativo para propor o quanto o governo deveria gastar em reas e programas determinados para efetivar os direitos humanos

    Estratgia de Anlise do Oramento Pblico sob a tica

    dos Direitos Humanos

    Detalharemos, a seguir, cada uma dessas estratgias.

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    para o INESC, a anlise do oramento pblico deve se dar a partir das despesas e tambm das receitas. Ou seja, o oramento possui dois lados: a parte da ar-recadao, que se constitui a partir da estruturao de um sistema tributrio, e a parte dos gastos, por meio da implementao de programas e aes. Assim, consideramos uma parte essencial na anlise oramentria sobre uma perspecti-va de direitos, a anlise do financiamento do oramento pblico, isto , a forma como so extrados os recursos, particularmente a arrecadao tributria, na sociedade para a realizao das polticas pblicas. Nesse sentido, a nossa anlise leva em conta a necessidade de que o financiamento tributrio seja feito com jus-tia social, considerando os elevados nveis de desigualdade social existentes na sociedade brasileira, de maneira que tambm se tenha por objetivo a promoo ou a reduo da desigualdade de gnero e raa.

    O debate sobre o financiamento e os gastos pblicos no Brasil tem sido feito de forma a se isolar as duas dimenses do problema, ou seja, trata-se, por exem-plo, a questo tributria como evento descolado do gasto pblico e das polticas sociais, da necessidade de reduo das desigualdades, das injustias sociais e do combate pobreza.

    No Brasil, h uma perversa e regressiva estrutura de financiamento do Estado que onera as pessoas mais pobres. pesquisa recente realizada pelo Instituto de pesquisa Econmica Aplicada (IpEA) revelou que a populao de menor renda tem de trabalhar quase duas vezes mais do que a de alta renda para arcar com o pagamento de tributos.3

    3 instituto de pesquisas econmicas aplicadas (ipea). comunicado da presidncia n 22, de 29 de junho de 2009.

    1. Financiamento do Estado com justia social

    1. Financiamento do Estado com justia social

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    As famlias com renda mensal de at dois salrios mnimos gastam 53,9% de seus rendimentos com impostos, tendo de trabalhar 197 dias por ano para arcar com o pagamento de tributos. Em comparao, as famlias com renda mensal de mais de 30 salrios mnimos pagam proporcionalmente menos impostos no Brasil (31,7%), dedicando 106 dias por ano para o pagamento de tributos (vide tabela 1, a seguir).

    Faixas de renda CT 2004 CT 2008At 2 mnimos 48,8% 53,9%De 2 a 3 mnimos 38% 41,9%De 3 a 5 mnimos 33,9% 37,4%De 5 a 6 mnimos 32% 35,3%De 6 a 8 mnimos 31,7% 35%De 8 a 10 mnimos 31,7% 35%De 10 a 15 mnimos 30,5% 33,7%De 15 a 20 mnimos 28,4% 31,3%De 20 a 30 mnimos 28,7% 31,7%Mais de 30 mnimos 26,3% 29%Total 32,8% 36,2%

    Tabela1: Porcentagem da renda das famlias comprometidascom o pagamento de tributos no Brasil

    Fonte: instituto de pesquisas econmicas aplicadas (ipea).comunicado da presidncia n 22, de 29 de junho de 2009.

    nota: ct = carga tributria.

    Assim, podemos responder a pergunta sobre quem financia os gastos pblicos no Brasil e quem dele se apropria com uma nica frase: o oramento pblico no Brasil financiado pelos pobres e apropriado pelos ricos. O INESC defende, portanto, a necessidade de vinculaes diretas entre as dimenses do financiamento da estrutura tributria e dos gastos pblicos, ou seja, da estrutura fiscal. um aspecto importante na relao entre arrecadao e gastos pblicos diz respeito perversidade da imensa transferncia de renda que est se processan-do no Brasil, para os setores financeiros da economia, por meio do pagamento de juros da dvida (como veremos a seguir).

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    Em suma, a marca principal do sistema tributrio brasileiro, que tem permane-cido indelvel ao longo dos anos, a sua enorme regressividade em funo da preferncia pela tributao indireta, que possui efeitos perversos sobre a camada mais pobre da populao. Isso ocorre devido elevada incidncia de tributos sobre o consumo.4

    Cabe dizer, tambm, que a questo de gnero e raa tem sido ausente no debate tributrio. Devido regressividade do nosso sistema tributrio, as mulheres e a populao negra representam os estratos populacionais que proporcionalmente pagam mais tributos, pois de acordo com os dados da pNAD/2005 do contin-gente que ganhava at 2 salrios mnimos, 61,9% eram mulheres e 72% pessoas negras. Somente com esse dado, podemos verificar que quando o Estado arre-cada os recursos da sociedade, ele onera mais as mulheres e a populao negra, aprofundando as desigualdades.

    4 Ver, nesse sentido, a nota tcnica 120 do inesc.

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    2. Mximo de recursos disponveis para a promoo dos

    direitos: as restries impostas pela poltica econmica

    A atividade de analisar qual o mximo de recursos disponveis para a promo-o de direitos que devem ser aplicados pelo governo federal em polticas que objetivem a garantia dos direitos humanos passa necessariamente pela anlise da poltica econmica.

    O governo, ao fazer as escolhas de polticas macroeconmicas (fiscal, cambial e monetria), tambm define, na prtica, quais sero suas prioridades no ora-mento pblico e quais sero os recursos que sero destinados universalizao de direitos. Caso a poltica econmica seja de cunho conservador e inspirado nos preceitos neoliberais, que predominou nos ltimos anos, ela vai impor for-tes restries para os recursos destinados garantia de direitos no oramento pblico. por exemplo, quando o governo faz a opo por uma poltica monet-ria contracionista, com elevadas taxas de juros, significa que o oramento pblico vai ampliar o montante gasto com o pagamento de juros. Assim como ao praticar, desde 2000, um elevado supervit primrio, a poltica econmica restringe e no permite a destinao do mximo de recursos para a realizao dos direitos por meio do oramento pblico.

    No perodo de 2000 a 2007, o oramento da unio gastou R$ 794,65 bilhes (uS$ 429,54 bilhes5) em juros, encargos e amortizao da dvida pblica, ex-cluindo o refinanciamento. Esses recursos equivalem a 35% de um pIB mdio do perodo que foram transferidos ao setor financeiro da economia.

    As opes de polticas monetria e fiscal que aceleram a expanso do rendi-mento financeiro real no pas so articuladas na inter-relao entre o oramento

    5 cmbio mdio em agosto de 2009 (r$ 1 = us$ 1,85).

    2. Mximo de recursos disponveis para a promoo dos

    direitos: as restries impostas pela poltica econmica

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    fiscal e o oramento da seguridade social.6 Nesse sentido, dois instrumentos so importantes para viabilizar essa estratgia no oramento pblico: a Desvincula-o de Receitas da Unio (DRU) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

    A DRu revela a intricada e obscura relao entre oramento da seguridade so-cial e oramento fiscal. por meio dela ocorre a perversa alquimia de transfor-mar receitas da seguridade em recursos ordinrios do oramento fiscal que so canalizados para o supervit primrio e destinados ao pagamento de juros da dvida pblica. De cada R$ 100,00 de supervit primrio, em 2007, pelos menos R$ 65,00 foram retirados do oramento da seguridade social por meio da DRu.

    A LRF concretizou as mudanas necessrias na pea oramentria para viabilizar a poltica econmica com o estabelecimento de metas fiscais na Lei de Diretrizes Or-amentrias (LDO) para os oramentos pblicos da unio, dos estados, do Distrito Federal e dos municpios. A LRF normatizou a submisso da execuo oramentria ao cumprimento das metas fiscais, permitindo que os gastos sociais discricionrios e os investimentos pblicos entrem na lgica da financeirizao, pois garantido prioritariamente o pagamento de juros da dvida. No h o estabelecimento de metas sociais ou, mais precisamente, de metas de efetivao de direitos.

    Cabe descrever tambm outro instrumento utilizado para engordar o supe-rvit primrio, funcionando como um apndice da poltica econmica adotada pelo governo federal: so os decretos de contingenciamento do oramen-to. Eles reduzem os valores autorizados que devem ser gastos pelos rgos do governo e atingem, sobretudo, aquelas funes oramentrias que no tm gastos obrigatrios ou vinculados. trata-se de um instrumento que limita o em-penho, a movimentao financeira e os pagamentos de despesas discricionrias no mbito federal.

    Convm dizer que, desde a edio das Medidas provisrias 435 e 4507, em 2008, permitido que qualquer recurso vinculado legalmente a reas sociais possa ser

    6 O Brasil possui trs oramentos distintos no mbito federal: o oramento fiscal (geral), o oramento da seguridade social (com fontes tributrias exclusivas que garantem o financiamento das polticas de seguridade social: sade, assis-tncia social e previdncia) e o oramento de investimento das empresas estatais. esses oramentos integram uma nica Lei Oramentria anual, que estabelece as receitas e as despesas no Oramento Geral da unio.

    7 essas medidas provisrias foram convertidas, respectivamente, nas Leis 11.803/2008 e 11.943/2009.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

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    destinado ao pagamento da dvida, caso seja contingenciado e no gasto at o final do ano. por meio dessas Mps foram redirecionados cerca de R$ 50 bilhes das reas sociais para os gastos financeiros, tal como no caso dos R$ 20 bilhes de royalties de petrleo pertencentes unio que deveriam ter sido destinados para pesquisas cientficas, para o meio ambiente e a Marinha, mas que serviram para amortizar a dvida interna.

    Aliada ao contingenciamento de recursos, a no-execuo integral da do-tao oramentria autorizada tem efeito semelhante a este, pois os valores ficam retidos no caixa nico do tesouro Nacional, contribuindo para a realizao do resultado financeiro do governo federal.

    Assim, estes seis mecanismos (elencados a seguir) impedem que o Estado bra-sileiro disponibilize os seus recursos existentes para polticas pblicas que pro-movam os direitos humanos e reduzam a desigualdade social, racial e de gne-ro. pelo contrrio, grande parte desse recurso vai para o pagamento de juros, engordando a renda de especuladores, investidores financeiros, bancos e em-presas. Em outras palavras, no capitalismo contemporneo, os juros da dvida pblica pagos pelo fundo pblico ou a conhecida despesa servio da dvida do oramento estatal (juros e amortizao) so alimentadores do capital portador de juros por meio dos chamados investidores institucionais, que englobam os fundos de penso, os fundos coletivos de aplicao, as sociedades de seguros e os bancos que administram sociedades de investimentos.8

    portanto, estes mecanismos no Brasil so:

    a poltica monetria contracionista, com altas taxas de juros; o elevado supervit primrio; a adoo da Desvinculao de Receitas da unio (DRu); a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); o contigenciamento de recursos oramentrios; e a no-execuo da dotao oramentria.

    8 Ver, nesse sentido, cHesnais, Franois. O capital portador de juros: acumulao, internacionalizao, efeitos econmicos e polticos. in: cHesnais, Franois (org.). a finana mundializada. so paulo: Boitempo editorial, 2005, p. 35-68.

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  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

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    O oramento pblico necessita tambm proporcionar a realizao dos direitos humanos de forma progressiva. um primeiro argumento a ser colocado que a realizao progressiva dos diretos humanos significa que no pode haver re-trocessos nos indicadores sociais referentes implementao e ao acesso aos direitos. por exemplo, se verificarmos um aumento da taxa de analfabetismo no pas, a reduo do nmero de jovens nas escolas, a suspenso do pagamento de aposentadorias para trabalhadores rurais, podemos deduzir que est havendo um descumprimento legal, por parte dos gestores pblicos e dos governos, do dever constitucional de aplicar os recursos da sociedade para a melhoria das condies de vida da populao. Em suma, no possvel haver retrocessos de direitos e nem uma estagnao.

    um segundo argumento que o Estado deve elaborar planejamentos de longo prazo (como planos decenais, por exemplo), para alm dos quatro anos exis-tentes no ppA, de forma que demonstrem quais so as metas para a progressiva realizao dos direitos ao longo dos anos. quais polticas sero implementadas e qual ser a previso oramentria? As metas so razoveis? So factveis? H dados que nos permitam observar a mudana na vida na populao?

    Assim, podemos extrair outros dois elementos essenciais para se verificar a pro-gressiva realizao de direitos. O estabelecimento de metas de efetivao de direitos e a existncia de indicadores sociais e indicadores de direitos humanos,9 com os quais se torna possvel verificar qual o dficit de acesso a

    9 nos ltimos anos, vem crescendo o debate sobre a criao de indicadores de direitos humanos que possam quan-tificar e mensurar o gozo e a efetivao de variadas dimenses de direitos pela populao. alguns argumentam que

    3. Realizao progressiva dos direitos3. Realizao progressiva dos direitos

    23

  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

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    direitos por parte da populao em um determinado momento e quais so as mudanas que podem ser observadas ao longo do ano.

    Do ponto de vista metodolgico, podemos ter dois caminhos: analisar uma poltica pblica em curso (educao, sade, etc.) e verificar

    se ela est permitindo mudanas nos indicadores sociais da populao, ou seja, se est realizando os direitos de forma progressiva.

    iniciar a nossa anlise a partir dos indicadores sociais (ou de direitos hu-manos) e nos perguntar quais polticas esto sendo implementadas para enfrentar uma situao verificvel de dficit de direitos, buscando saber quanto de recurso tem sido alocado para essas polticas.

    Como exemplo, escolhemos o caso do acesso de jovens ao ensino mdio. po-demos verificar pelo grfico a seguir que h uma progressiva universalizao do acesso dos/as jovens ao ensino mdio nos ltimos 10 anos. Verificamos tambm que esse direito est longe de ser universalizado. Contudo, se os dados no esti-vessem desagregados por raa, estaramos deixando de observar uma dimenso essencial da realidade, que a imensa disparidade do acesso de jovens negros/as ao ensino mdio com relao ao acesso de jovens brancos/as.

    O grfico 1 revela que cerca de dois/duas jovens negros/as em trs (64%) j desistiram do ensino mdio ou se encontram em defasagem crescente nos nveis educacionais anteriores, ou seja, jovens de 16 anos ainda cursando o ensino fun-damental (IpEA, 2007, p. 284).

    indicadores de direitos humanos seriam, na verdade, apenas uma leitura de direitos humanos sobre os indicadores sociais. acreditamos, contudo, que h especificidades e que o avano conceitual desse debate ir permitir a constru-o de instrumentos mais precisos para avaliar as mudanas das condies de vida da populao.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

    25

    Grfico 1: Taxa lquida de matrcula no ensino mdio, segundo raa/cor Bra-sil, 1995-2005

    Fonte: pnaD 1995-2005 Dados sistematizados pelo ipea (2007, p. 284).nota: a populao negra composta pela soma das categorias censitrias pretos e pardos.

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    Ou seja, a progressiva universalizao do acesso dos/as jovens ao ensino mdio ao longo dos ltimos 10 anos no est conseguindo diminuir a imensa desigual-dade entre jovens negros/as e brancos/as. Os nmeros apontam para dados de como o racismo e as desigualdades raciais podem estar operando para gerar maiores dificuldades para a populao negra ter acesso aos seus direitos. A pol-tica universal, neste caso, no est operando para reduzir a desigualdade. polti-cas afirmativas precisam ser formuladas e implementadas. E o acompanhamento oramentrio e da execuo fsica dessas polticas deve considerar o seu impacto na alterao dos indicadores sociais referidos no grfico 1.

    Em suma, a realizao progressiva dos direitos significa: a existncia de indicadores sociais e de direitos humanos desagregados

    que nos permitam identificar o dficit de direitos da populao e de gru-pos e identificar populaes historicamente discriminadas;

    a existncia de diagnsticos que abordem as desigualdades e os dficits como base das propostas de polticas, programas e projetos pblicos;

    o estabelecimento de metas de longo, mdio e curto prazo de realizao progressiva de direitos;

    a implementao e o acompanhamento de polticas pblicas formuladas para provocar mudanas nessas realidades;

    o acompanhamento do volume de recursos destinados a essas polticas e a avaliao do impacto que estas tm tido na melhoria dos indicadores de acesso da populao aos seus direitos.

    trata-se de mensurar o dficit dos direitos e a alocao de recursos necessria para concretiz-los, monitorando ano aps ano a desejada melhoria da situ-ao de vida da populao.

    Isso envolve um conhecimento mais aprofundado do desenho de cada poltica escolhida e de programas que se deseja acompanhar. Exige uma relao prxima com os produtores de dados no sentido de buscar parcerias para a obteno de informaes importantes que subsidiem os estudos, o monitoramento e a ava-liao das aes governamentais. Exige tambm uma proximidade dos gestores das polticas para se conhecer e interferir no seu desenho, na sua concepo e propor mudanas de rumos.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

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    pretendemos, tambm, que o desenvolvimento dessa metodologia permita ao INESC, no mdio prazo, construir um oramento alternativo a partir da pers-pectiva dos direitos humanos, propondo o quanto o governo deveria gastar em reas e programas determinados, para efetivar direitos assegurados em tratados internacionais e na legislao brasileira.

    A construo de um oramento paralelo possibilita criar um ambiente crtico que exponha a atual lgica oramentria, denunciando-a e propondo uma alternativa. para isso, tal oramento paralelo deve ser baseado no posicionamento poltico e metodolgico de que o oramento deve servir como um instrumento poltico para a priorizao de gastos que garantam os direitos humanos da populao.

    A criao de um oramento alternativo depender da definio de dimenses de acesso aos direitos consideradas como estratgicas para a promoo da justia so-cial e da sustentabilidade ambiental no pas. Alm disso, depender da explicitao de quais metas fsicas de efetivao de direitos devem ser alcanadas ano aps ano e de quais recursos financeiros deveriam ser disponibilizados para esse fim.

    poucos pases possuem experincias de articulaes e organizaes da socieda-de civil que trabalham a anlise oramentria com a perspectiva de construo de um oramento alternativo. A articulao do Social Watch nas Filipinas e a organizao canadense Canadian Center for Policy Alternatives so dois exemplos nesse sentido. Os passos que esto sendo dados na construo da metodologia proposta Oramento e Direitos permitem ao INESC trabalhar progressiva-mente nesse sentido.

    4. Oramento alternativo4. Oramento alternativo

    27

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    Exemplo de construo de um oramento alternativo: quan-to custa ampliar o Benefcio de Prestao Continuada (BPC) para a pessoa idosa?

    Contextualizao

    O Benefcio de prestao Continuada (BpC) uma conquista fundamental da ci-dadania no Brasil. previsto na Constituio Federal de 1988, o BpC uma garan-tia de renda bsica, no valor de um salrio mnimo, para o/a idoso/a acima de 65 anos e a pessoa com deficincia, em ambos os casos, com renda mdia familiar per capita de do salrio mnimo. A amplitude da cobertura do BpC, que vem se ampliando nos ltimos anos, um dos fatores responsveis pela diminuio do nmero de pessoas vivendo em situao de pobreza e indigncia no pas.

    Cabe reafirmar a importncia da vinculao do BpC ao salrio mnimo, em que pese as diversas tentativas de desvinculao realizadas nos ltimos anos, feitas por representantes de uma elite conservadora que ainda acha pouco que quase 30% do oramento federal seja destinado ao pagamento de juros e amortiza-es da dvida pblica.

    importante tambm registrar que o BpC s conseguiu ampliar sua abrangncia e os valores oramentrios destinados sua implementao em razo de sua previso constitucional. O BpC e a previdncia para trabalhadores/as rurais tm sido um dos principais mecanismos de transferncia de renda para as camadas mais pobres da populao. Enquanto o primeiro destinado para aqueles/as com incapacidade para o trabalho em razo da idade ou da deficincia, a previdncia rural garante uma vida digna na velhice aos/s milhares de trabalhadores/as rurais deste pas.

    A seguir, apresentamos um grfico com a evoluo do nmero de pessoas aten-didas pelo BpC. O ppA prev atingir em 2009 aproximadamente 2,77 milhes de pessoas, sendo que, destes, 1,41 milho de indivduos representam pessoas com deficincia e 1,36 milho de pessoas so idosas.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

    29

    Quanto custaria ampliar o BPC para um nmero maior de sujeitos de di-reitos?

    Segundo dados do IpEA, em 2005, quase oito de cada dez idosos no pas rece-bem benefcios pagos pelo INSS, seja de natureza previdenciria, seja assistencial.

    temos, portanto, que aproximadamente 20% da populao idosa no pas ou 4,3 milhes de idosos no conseguiram, ao longo de sua vida laboral, contribuir re-

    Grfico 2: Evoluo do nmero de pessoas atendidas com o BPC em milhares (1996 2007)

    Fonte: snas/mDs. elaborao: spi/mp.

  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

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    gularmente para a previdncia social e no esto em famlias de extrema pobreza para fazer jus ao benefcio da assistncia social. O pagamento de uma renda incondicional de cidadania a essas pessoas, no valor de um piso previdenci-rio (R$ 415,00 em 2008), implicaria uma despesa oramentria anual de R$ 23 bilhes, que poderiam ter como fonte os recursos que so desviados pela Des-vinculao das Receitas da unio (DRu) do oramento da seguridade social para o oramento fiscal. Em 2009, por meio da DRu, sero transferidos para o ora mento fiscal cerca de R$ 40 bilhes, montante que contribui para a realizao do supervit primrio.

    um segundo cenrio possvel trabalhar com a ampliao do nmero de pes-soas idosas que teriam o direito ao BpC, tornando aptas a receber o benefcio as pessoas idosas cuja renda mdia familiar per capita seja de salrio mnimo. A redao original da Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), que foi vetada pelo ex-presidente Collor, previa esse corte, que foi posteriormente modificado para famlias cuja renda per capita mdia seja de do salrio mnimo. Isso pos-sibilitou que muitos/as idosos/as em situao de pobreza no tivessem o acesso ao benefcio.

    Apresentamos, na tabela a seguir, a projeo oramentria para a ampliao do BpC da pessoa idosa para famlias cuja renda mdia familiar per capita seja de salrio mnimo. Inclumos no clculo tambm o quantitativo de pessoas idosas que hoje estariam aptas a receber o benefcio pelas regras atuais e no o rece-bem (vide tabela 3).

    Assim, para 2009, a ao oramentria 0573 - BPC da assistncia social para a pessoa idosa, prevista no programa 1384 Proteo Social Bsica, deveria ter um acrscimo de R$ 7,9 bilhes para que o direito ao BpC fosse ampliado para pessoas idosas cuja renda familiar per capita fosse de salrio mnimo. Isso sig-nificaria a incluso de mais de 1,5 milho de pessoas idosas e uma progressiva universalizao da seguridade social no pas.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

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    Tabela 2: Projeo de recursos necessrios para o pagamento do BPC (pessoa idosa) com corte de salrio mnimo, incluindo os excludos

    Elaborao: Instituto de Estudos Socioeconmicos (INESC).

    Tabela 3: Projeo de recursos necessrios para o pagamento do BPC (pessoa idosa) com corte de do salrio mnimo, incluindo os excludos

    Elaborao: Instituto de Estudos Socioeconmicos (INESC).

    Anos

    2008

    2009

    2010

    2011

    Acrscimo de Beneficirios

    1,293,249

    1,520,483

    1,759,241

    2,009,993

    SM

    405.73

    433.19

    462.52

    493.83

    101.45%

    Acrscimo R$

    6,296,458,698

    7,903,965,451

    9,764,229,771

    11,911,222,393

    35,875,876,314

    Total com Acrscimo

    12,871,381,609

    15,735,132,174

    19,216,102,637

    23,416,775,912

    71,239,392,333

    Governo R$

    6,574,922,911

    7,831,166,723

    9,451,872,866

    11,505,553,519

    35,363,516,019

    Total com Acrscimo

    2,647,870

    3,006,470

    3,378,874

    3,773,248

    Proposta Governo

    1,354,621

    1,485,987

    1,619,633

    1,763,255

    Nossa proposta Beneficirios

    Acrscimo em 4 anos

    Anos

    2008

    2009

    2010

    2011

    Acrscimo de Beneficirios

    179,770

    183,537

    187,383

    191,309

    SM

    405.73

    433.19

    462.52

    493.83

    11.32%

    Acrscimo R$

    875,248,718

    954,084,490

    1,040,021,190

    1,133,698,417

    4,003,056,816

    Total com Acrscimo

    7,450,171,629

    8,785,251,213

    10,491,894,056

    12,639,251,936

    39,366,568,835

    Governo R$

    6,574,922,911

    7,831,166,723

    9,451,872,866

    11,505,553,519

    35,363,516,019

    Total com Acrscimo

    1,534,391

    1,669,524

    1,807,016

    1,954,564

    Proposta Governo

    1,354,621

    1,485,987

    1,619,633

    1,763,255

    Nossa proposta Beneficirios

    Acrscimo em 4 anos

  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

    32

    Roteiro e dimenses para a anlise das polticas pblicas e do oramento

    para operacionalizar a metodologia de Oramento e Direitos, o INESC fez uma opo por analisar os programas e as aes governamentais a partir dos direitos humanos, ou seja, os direitos so o ponto de partida e de chegada da anlise do oramento.

    Esta perspectiva permite uma anlise tanto da universalidade quanto das desi-gualdades relativas a um determinado direito. Entretanto, tambm ser necess-ria uma mediao poltica para, a partir do direito, identificar as questes ou os aspectos a ele relacionados que so mais relevantes mediao feita certamente com o apoio dos sujeitos polticos, mas no s. tal mediao ainda ser necess-ria para identificar as polticas e os programas que estariam relacionados a esses aspectos. Essa abordagem contribui para a superao da fragmentao de anlise oramentria por sujeitos, na medida em que a escolha de direitos e a anlise das expresses de desigualdades (gnero, raa, regio, territrio) poderiam apontar a necessidade de dilogos e alianas antes insuspeitos ou inusitados entre ato-res distintos.

    Assim, propomos o seguinte roteiro metodolgico para a anlise de programas e aes governamentais:

    1) Definir os direitos e as dimenses das desigualdades que sero analisadas, a partir da anlise da conjuntura e do contexto poltico, com base no dilogo e na articulao com os diversos sujeitos polticos, as organizaes e os movimentos sociais;

    2) Escolher determinadas polticas, programas e aes que expressem as inicia-tivas governamentais para a efetivao dos direitos e tambm as dimenses das desigualdades selecionadas;

    3) Verificar a configurao e a abrangncia dos direitos, dos benefcios e dos ser-vios na poltica pblica (programas e aes):

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

    33

    i) Indicadores de situao/impacto: universalidade e desigual-dade de acesso segundo gnero e raa/etnia (prioritariamen-te) e outras dimenses (territrio e gerao, por exemplo).

    ii) Anlise da configurao e da natureza da poltica ou do programa pblico: qual a natureza do programa e de suas aes? qual seu desenho (diagnstico, metas e indicadores de univer-

    salizao e enfrentamento de desigualdades)? qual sua abrangncia (benefcios concedidos x universo po-

    tencial)? O programa contributivo ou no? qual o reconhecimento legal do programa? A execuo do programa realizada pela tica do direito ou

    clientelista? O programa contnuo ou no? qual o critrio de acesso e permanncia (quando estes exis-

    tirem)? Existe uma articulao com outras polticas? Se houver, como

    feita? Existe uma articulao federativa (descentralizao)? Se houver,

    como feita? Como a gesto e o controle social so feitos (relao entre as

    esferas governamentais, participao da sociedade civil, espaos de participao)?

    iii) Oramento: financiamento e gasto: A fonte oramentria indica se o financiamento da poltica ou do

    programa progressivo ou regressivo? A direo do gasto (incluindo as perspectivas de raa e gnero)

    indica quem realmente est se beneficiando do oramento p-blico?

    qual a magnitude do gasto (montante de recursos destinados)?

  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

    34

    Figura 2: Passos metodolgicos para a anlise do Oramento sob o ngulo da Progressiva Realizao de Direitos

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

    35

    Consideraes finais

    Este texto traz alguns elementos e caminhos que o INESC pretende seguir nos prximos anos na construo de suas anlises e na incidncia destas sobre o oramento e as polticas pblicas. Acreditamos que estamos concluindo uma primeira etapa de discusso e sistematizao de um mtodo de anlise do ora-mento pblico luz dos direitos humanos e das desigualdades.

    Desde o princpio, ns colocamos para ns o desafio de inovar na anlise or-amentria, aprofundando o enfoque da efetivao dos direitos humanos e do combate s desigualdades por meio de sua concretizao nas polticas pblicas e no oramento. A hiptese de que este esforo cumpriria o papel de evidenciar com mais clareza as conexes entre o oramento e as polticas pblicas e entre a garantia e a realizao dos direitos, o que serviria como um instrumento ino-vador para a ao poltica do INESC e de outras organizaes da sociedade civil.

    Contudo, muitos desafios ainda so colocados para o INESC no desenvolvimen-to desta metodologia. Entre eles, evidenciamos os seguintes:

    Aprofundar estratgias que garantam mais operacionalidade dos con-ceitos de financiamento do Estado com justia social e mximo de recursos disponveis para a promoo dos direitos.

    Aprofundar a anlise e a capacidade de incidncia sobre as polticas a partir do que a metodologia orienta, priorizando dimenses de direitos, polticas, programas e aes que tenham maior impacto no processo de superao das desigualdades de gnero e raa;

    Implementar uma estratgia de comunicao que d visibilidade e fora ao referencial oramento e direitos com nfase na repercusso das informaes, das anlises, das posies e dos dados construdos a partir deste parmetro;

  • i n e s c - i n s t i t u t O D e e s t u D O s s O c i O e c O n m i c O

    36

    Aprofundar nossa capacidade tcnica e poltica de utilizao de dados estatsticos e econmicos em nossas anlises oramentrias;

    Dialogar com outras organizaes, redes e instituies para o contnuo aprimoramento da metodologia.

    Esperamos que estas reflexes iniciais possam auxiliar o trabalho de diversas organizaes da sociedade civil brasileira que tm como pauta o monitoramento do oramento e das polticas pblicas em uma perspectiva de efetivao dos direitos humanos e reduo das desigualdades. Nosso compromisso poltico pela transformao social, visando construo de uma sociedade mais justa e sustentvel. Isso s ser possvel quando o oramento pblico deixar de ser apropriado por poucos e for realmente aplicado em polticas transformadoras que redistribuam renda e contribuam para a emancipao e o estabelecimento de uma vida digna para toda a populao brasileira.

  • O r a m e n t O e D i r e i t O s

    37

    Um Olhar sobre o Oramento Pblico

    a n e x O

    pretendemos apresentar, neste anexo, alguns aspectos da legislao que rege a elaborao e a tramitao das leis oramentrias no Brasil, assim como algumas reflexes sobre a estratgia de incidncia poltica no oramento federal.

    Conforme dissemos ao longo do texto, o oramento pblico a materializao da ao planejada do Estado para a manuteno de suas atividades e a execuo de seus projetos, o que permite a visualizao do direcionamento das aes do Estado e de suas efetivas prioridades. Segundo a metodologia apresentada, o oramento pblico deve alocar recursos necessrios e de forma progressiva para a realizao dos direitos, como dispe a nossa legislao e conforme o que foi pactuado pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos dos quais nosso pas signatrio.

    So vrios os prismas pelos quais podemos olhar o oramento pblico O oramento pblico um espao de luta poltica onde as diferentes foras da sociedade buscam inserir seus interesses. Na sua dimenso poltica, o oramento pode ser visto como uma arena de disputa ou um espao de luta (ou cooperao) entre os vrios interesses que gravitam em torno do sistema poltico. portanto, a conformao do oramento pblico se d dentro das nossas instituies democrticas e a partir de como o poder est configurado na nossa sociedade. A tabela 1 releva algumas dimenses do oramento.

    Tabela 1: Dimenses do Oramento Pblico

    1. Dimenso legal: O oramento pblico estabelece os parmetros legais para a realizao de receitas e a execuo de despesas num determinado perodo de tempo dentro dos limites fixados pela Constituio e por leis especficas.

    2. Dimenso econmica: O oramento pblico instrumento que auxilia o Estado a cumprir suas funes econmicas: as funes alocativa, distributiva e estabilizadora.

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    3. Dimenso de planejamento: Fornece elementos de apoio para a boa administrao dos recursos pblicos e para o controle e a avaliao de desempenho das instituies e de suas gerncias.

    4. Dimenso financeira: Sistematiza, por meio de categorias apropriadas, as entradas (receitas) e as sadas (despesas), assumindo carter de autntico plano financeiro.

    5. Dimenso sistmica institucional: resultado da interao das preferncias de atores (os mais diversos) que buscam a concretizao de seus interesses. Essa interao ocorre sob um forte constrangimento institucional de regras (formais e informais) que pautam tais relacionamentos. Nesse processo, as caractersticas dos participantes, sua cultura, sua quantidade (nmero de participantes) e as regras escolhidas para pautar as interaes dos atores so variveis determinantes na definio dos resultados observados.

    6. Dimenso poltica: O oramento pblico um espao de luta poltica onde as diferentes foras da sociedade buscam inserir seus interesses. Na sua dimenso poltica, o oramento pode ser visto como uma arena de disputa ou um espao de luta (ou cooperao) entre os vrios interesses que gravitam em torno do sistema poltico. O debate sobre o oramento deve se dar em um espao pblico, a partir da interao entre diversos sujeitos polticos, a fim de criar um ambiente democrtico para a resoluo de conflitos. Isso pode ocorrer em espaos institucionais j existentes (como o parlamento) ou em novos espaos pblicos formais ou informais de debate.

    7. Dimenso dos direitos: O oramento pblico deve ser um instrumento para a promoo progressiva dos direitos humanos a partir da alocao do mximo de recursos disponveis para a promoo dos direitos.

    quanto mais concentrados so os poderes polticos e econmicos nas mos de poucos e quanto mais imperfeitas so nossas instituies democrticas, maior ser a tendncia de que os recursos pblicos sejam aplicados para beneficiar os interesses de uma minoria e no com o objetivo central de assegurar direitos e reduzir as desigualdades.

    A Constituio Federal (CF) de 1988, em matria oramentria, registrou avanos considerveis, consagrando o ciclo oramentrio brasileiro em trs leis: o plano

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    plurianual (ppA), a Lei de Diretrizes Oramentrias (LDO) e a Lei Oramentria Anual (LOA), cada uma delas com funes bem definidas. A sistemtica envolve uma relao entre planejamento, oramento e controles internos e externos. O ppA um planejamento das metas e dos programas de governo para quatro anos. A LDO, que deve ser compatvel com o ppA, vai estabelecer as diretrizes para o oramento anual, como tambm as modificaes na legislao tributria para o exerccio subsequente. A LOA vai quantificar os valores em relao a programas, com os seus respectivos executores, com base nas estimativas e na autorizao para obteno de receitas, fixando os gastos para o exerccio seguinte.

    Alm disso, a Constituio Federal, em seu art. 165, 5, determina que a Lei Oramentria Anual compreender os seguintes oramentos: fiscal, o de investimentos e o da seguridade social. Ou seja, nossa Constituio criou fontes de recursos e um oramento exclusivo para o financiamento das polticas da seguridade social como forma de garantir a continuidade e a segurana no financiamento das referidas polticas.

    No entanto, quais variveis e mtodos de anlise devem constar de uma metodologia para analisar o oramento luz dos direitos humanos? Considerados os princpios da universalidade, da interdependncia e da indivisibilidade dos direitos, como devem ocorrer as intervenes na realidade, passo a passo, no tempo e no espao, de modo a concretizar os direitos e combater as desigualdades?

    No se trata apenas de traar uma estratgia para aumentar a execuo oramentria de programas selecionados no oramento. Em outras palavras, a realizao progressiva dos direitos mediante a alocao do mximo de recursos disponveis para a sua efetivao vai depender da implementao, a mdio e longo prazo, de um plano de metas coordenado pelo Estado com a participao da sociedade civil.

    Uma metodologia de anlise do oramento pblico, voltada para a realizao dos direitos humanos, deve ser um mtodo que considere a

    interao entre o sistema de planejamento e oramento, uma estratgia de desenvolvimento e o funcionamento do sistema poltico.

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    Atribuies do Executivo e do Legislativo no processo de elaborao e aprovao das leis oramentrias

    Cada poder tem papel especfico no processo oramentrio e autonomia em relao s suas tarefas. O Executivo tem iniciativa exclusiva (ou privativa) em relao s leis oramentrias. Cabe a ele elaborar e apresentar projeto de lei ao Legislativo. Os outros poderes (Legislativo, Judicirio e o Ministrio pblico) elaboram suas previses oramentrias e as enviam ao poder Executivo para consolidao na forma de um projeto de lei.

    O Executivo deve considerar os valores da LOA em vigncia (ajustados aos limites da LDO). Se as propostas dos demais poderes forem encaminhadas em desacordo com os limites estabelecidos pela LDO, o Executivo proceder aos ajustes necessrios para fins de consolidao e envio do projeto de lei para a apreciao do Legislativo.

    Grfico 1: Representao do Clico Oramentrio Ampliado

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    A Constituio determina que as propostas do ppA, da LDO e da LOA sejam analisadas pelo Legislativo. Ao Legislativo compete apreciar, modificar e aprovar (ou rejeitar) as propostas oramentrias. No caso da unio, essa competncia cabe ao Congresso Nacional.

    No Congresso Nacional, a proposta primeiramente analisada por uma comisso mista de parlamentares (senadores e deputados) intitulada de Comisso Mista de planos, Oramentos pblicos e Fiscalizao (CMO) e depois apreciada por todo o plenrio. Os parlamentares podem, individual ou coletivamente, apresentar emendas ao projeto original. No caso da LOA, eles podem modificar os crditos oramentrios previstos para cada rgo ou entidade pblica, por exemplo.

    Na prtica, o poder Executivo defende seus interesses no Congresso de maneira veemente. A sociedade civil busca participar de audincias pblicas sobre o oramento convocadas pelo Congresso, quando estas so realizadas.

    Legislao de referncia: Constituio Federal (do art. 165 ao 169), que estabelece mudanas

    importantes na legislao, entre as quais o superordenamento entre as trs principais leis oramentrias: ppA, LDO e LOA.

    Lei n 4.320, de 17 de maro de 1964, que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaborao e controle dos oramentos e balanos da unio, dos estados, dos municpios e do Distrito Federal1.

    Decreto-Lei n 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispe sobre a organizao da Administrao Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e d outras providncias.

    portaria n 42, de 14 de abril de 1999, que atualiza a discriminao da despesa por funes de que trata o inciso I do 1 do art. 2 e 2 do art. 8, ambos da Lei n 4.320, de 17 de maro de 1964, que estabelece os conceitos de funo, subfuno, programa, projeto, atividade, operaes especiais e d outras providncias.

    Lei Complementar n 101, de 4 de maio de 2000, que estabelece normas

    1 Devemos ficar atentos ao projeto de Lei do senado n 248/2009, em tramitao, que poder vir a ser a nova Lei de Finanas pblicas.

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    de finanas pblicas voltadas para a responsabilidade na gesto fiscal e d outras providncias.

    Resolues n 1, de 2006, e n 3, de 2008, do Congresso Nacional, que dispem sobre a tramitao de matrias oramentrias no Congresso Nacional.

    Como se d a execuo do oramento pblico e quais so os mecanismos de controle interno e externo existentes?

    Aps a aprovao do projeto pelo Legislativo, isto , depois que o Congresso o aprova, cabe ao Executivo gerenciar e executar o oramento. As alteraes do Legislativo tm limites:

    Elas no podem aumentar o total de despesas previsto no oramento (com algumas excees).

    Ao incluir nova despesa ou aumentar despesa j prevista, o Legislativo deve indicar os recursos que devem ser cancelados de outra programao para cobrir o novo gasto. um exemplo quando as receitas oramentrias so reestimadas.

    As alteraes devem ser compatveis com as disposies do ppA e da LDO.

    As alteraes devem respeitar os limites de valor para as emendas individuais de deputados/as e senadores/as.

    proibido cancelar despesas com pessoal, benefcios da previdncia, transferncias constitucionais, juros e amortizao da dvida pblica.

    O Legislativo tem a tarefa (mediante controle externo, efetivado pelo tribunal de Contas da unio) de zelar pela boa execuo do oramento. Isso porque o Legislativo recebeu da Constituio a funo da fiscalizao contbil, financeira, oramentria, operacional e patrimonial da unio e das entidades da administrao direta e indireta.

    O Ministrio da Fazenda e o Ministrio do planejamento tambm tm um papel estratgico porque so responsveis pela arrecadao dos tributos (Receita Federal), pela gerncia do tesouro Nacional e pela programao financeira dos gastos e investimentos da unio. Nesse sentido, influenciam o ritmo do fluxo de

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    caixa, que possibilitar que os ministrios e outros rgos executores dispunham ou no, ao longo do ano, dos recursos assinalados no oramento pblico para o desenvolvimento de seus programas e suas aes. um dos mecanismos utilizados para o controle do fluxo financeiro, que tem graves impactos sobre a execuo das polticas pblicas, o contingenciamento de recursos.

    O Ministrio da Fazenda tambm exerce papel importante na gerao de informaes, pois administra o Sistema Integrado de Administrao Financeira (SIAFI). por isso, tem o controle dos fluxos de caixa e de gastos do oramento na esfera federal.

    Com relao ao controle dos recursos, h uma srie de mecanismos de controle tanto internos quanto externos. So eles:

    A Controladoria Geral da unio (CGu), que coordena o controle interno e a elaborao do Balano Geral da unio (BGu). A CGu, vinculada estrutura da presidncia da Repblica, tem status de ministrio. Alm de ser responsvel por coordenar o controle interno, coordena a elaborao do Balano Geral da unio.

    Cada rgo setorial executor do oramento (ministrios, autarquias e outros) estabelece mecanismos e realiza o controle interno de sua rea especfica.

    No incio de cada novo ano, o poder Legislativo julga as contas do presidente da Repblica, baseado no parecer do tribunal de Contas da unio. No caso da unio, o tCu realiza, por amostragem, auditorias contbeis em obras e projetos sobre a aplicao de recursos do oramento da unio, a fim de subsidiar a tomada de decises do Legislativo.

    O poder soberano em uma Repblica pertence ao conjunto dos cidados e das cidads de seu pas. E qualquer cidado ou cidad, partido poltico, associao ou sindicato parte legtima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o tCu (CF, art. 74, 2).

    A denncia (com indcio) tramita em sigilo e o denunciante no se sujeita a qualquer sano administrativa, cvel ou penal em decorrncia da denncia, salvo se for comprovada m-f (arts. 53 e 55 da Lei 8.443/92).

    O controle tambm exercido por cidados e cidads em diversos

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    espaos pblicos, tais como os conselhos de polticas pblicas, as conferncias e as audincias pblicas. para alm do controle sobre os desvios e a improbidade no uso dos recursos pblicos, alguns conselhos tm a atribuio de participar da formulao, do monitoramento e da avaliao das polticas pblicas. Alguns conselhos tm a atribuio de aprovar o oramento para a sua rea especfica, tais como, por exemplo, os conselhos de sade.

    Incidncia poltica sobre o oramento pblico realizada pelo INESC no Congresso Nacional

    A ideia de traduzir o oramento a partir do marco dos direitos afirmar os seus princpios como orientadores da sociedade brasileira e do Estado em todas as suas aes, oferecendo coletividade um instrumento para poder influenciar esse processo, por meio da participao popular e do exerccio do controle social. Isso pode ser feito em diversos momentos:

    Antes mesmo da apresentao da proposta oramentria do Executivo ao Legislativo, por meio de espaos de participao, como os conselhos de polticas pblicas e as conferncias nacionais;

    A partir da incidncia, ainda no Executivo, na elaborao dos oramentos setoriais, que so formulados nos ministrios especficos. Acreditamos tambm que novos espaos de participao devem ser criados na estrutura do poder Executivo para a participao da sociedade na elaborao do oramento;

    No Legislativo, por meio da presso para modificar as leis oramentrias nas Casas legislativas (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Cmara de Vereadores) durante a tramitao dos projetos de lei;

    Aps a aprovao da pea oramentria, a sociedade deve ter instrumentos para o acompanhamento da execuo oramentria, a fim de verificar se os gestores pblicos esto efetivamente aplicando os recursos autorizados pelo oramento e em que medida esses recursos esto produzindo mudanas concretas na realidade das pessoas. Alm disso, as organizaes da sociedade civil deveriam explorar a possibilidade de acionar judicialmente os gestores e as autoridades do Estado em caso da no efetivao das leis oramentrias aprovadas pelo Legislativo.

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    Assim, podemos descrever a participao e a incidncia no oramento em quatro momentos:

    Ao longo dos anos, o INESC tem desenvolvido uma estratgia poltica de acompanhamento e incidncia poltica durante a tramitao das leis oramentrias no Legislativo brasileiro. Essa incidncia tem pelo menos dois objetivos: (1) influenciar os contedos do ppA, da LDO e da LOA; e (2) democratizar os processos internos ao parlamento no que diz respeito tomada de decises sobre a poltica oramentria do pas.

    para o primeiro objetivo, alguns caminhos so percorridos, como o descrito a seguir:

    to logo o Executivo encaminhe os projetos de lei para o Legislativo, a equipe do INESC analisa o projeto do ponto de vista tcnico e poltico e constri um consenso, em Nota tcnica, sobre os principais pontos que devem ser abordados. So tambm discutidas as propostas de modificao que podero se transformar em sugestes de emendas para os parlamentares.

    Em seguida, essa Nota divulgada tanto para os nossos parceiros da sociedade civil organizada quanto para a mdia em geral e discutida nos fruns e nas redes dos quais o Instituto participa. por vrios anos, o INESC tem obtido uma grande divulgao de suas posies com relao s leis oramentrias.

    Ao mesmo tempo, essa divulgao alcana os/as parlamentares em audincias pblicas na Comisso Mista de Oramento ou em discusses individuais com cada deputado/a e senador/a, em geral por solicitao deles/as. tanto por parte dos parceiros quanto dos/as parlamentares h

    Debate sobre as polticas e o oramento em conferncias e conselhos.

    Elaborao da Proposta Oramentria pelo Executivo.

    Tramitao da Proposta Oramentria no Legislativo.

    Acompanhamento da execuo do oramento (sua implementao e a avaliao dos resultados).

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    uma expectativa com relao posio do INESC a cada projeto do ciclo oramentrio.

    Em cada caso especfico so construdas formas de interveno muitas vezes coletivas, principalmente com o Frum Brasil de Oramento (FBO), entre outras redes e fruns parceiros.

    Essas intervenes acontecem, na maioria das vezes, nas audincias pblicas ocorridas dentro do parlamento, onde o INESC tem deixado clara a sua posio crtica com relao aos projetos e deixado as suas sugestes de mudana para o texto em apreciao.

    No que se refere ao segundo objetivo, a luta por um processo mais democrtico e participativo encontra muitos desafios e est longe de ter seus intentos alcanados. O foco da ao tem sido a Comisso Mista de Oramento -CMO. tal ao envolve um processo complexo de discusso com parlamentares sobre a necessidade de aperfeioar a discusso das leis oramentrias, abrindo espao e canais institucionais de participao da sociedade civil organizada. A democracia representativa resiste ao convvio com a democracia participativa. Mesmo assim, em todas as discusses em reunies ou audincias pblicas, o INESC apresenta a proposta de se criar mecanismos concretos de participao social no debate do ciclo oramentrio. um bom momento para esses embates tem sido quando a CMO discute suas resolues internas que disciplinam o seu funcionamento. Sugestes de emendas tm sido apresentadas por intermdio de parlamentares aliados/as.

    Outros caminhos tm sido usados para se chegar CMO. A Comisso de Legislao participativa (CLp) tem sido uma grande aliada neste combate. por seu intermdio so realizados debates sobre os projetos de lei e sugestes de emendas aos textos. um novo passo est sendo tentado para a realizao de audincias pblicas conjuntas entre a CLp e a CMO, mas ainda no se conseguiu vencer todas as resistncias.

    As intervenes que o INESC tem realizado ao longo dos anos junto ao parlamento, com relao ao contedo das leis oramentrias, na maior parte das vezes tm sido feitas em articulao com outros movimentos e organizaes, tendo logrado xito quanto aos objetivos propostos. Em vrias ocasies, as emendas sugeridas foram aprovadas nas leis oramentrias.

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