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Oratórios Mineiros D. José I: O tema cristológico nos objetos de devoção familiar produzidos entre o fim do século XVIII e início do XIX Maria Alice Honório Sanna Castello Branco Mestranda – Universidade Federal do Rio de Janeiro No Brasil colonial, os símbolos da fé faziam parte da vida cotidiana da popu- lação. Herança da tradição católica portuguesa, esses símbolos podiam ser mate- riais ou não. Dentre os intangíveis, que ficamos conhecendo através de textos de gêneros literários diversos, podemos citar o hábito entre os habitantes livres ou es- cravos de persignarem-se pronunciando a fórmula litúrgica: “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, de nossos inimigos”. Dentre os símbolos de fé materiais, podemos citar os oratórios. De origem medieval, os oratórios para uso domiciliar e privado compunham o cenário religio- so onde eram venerados os santos do devocionário popular. Outras vezes funcio- navam também como relicários onde se conservavam preciosidades, como peda- cinhos do Santo Lenho ou de ossos de algum santo e até mesmo alguns talismãs, símbolos pessoais de proteção e de sorte tolerados pela Igreja Católica. Esses objetos da fé chegaram às Minas Gerais com os primeiros desbravadores conforme podemos ler no trecho de Carrato: “Os bandeirantes paulistas eram os verdadeiros arautos da fé: desde o princípio de suas andanças, pelas Minas, portavam seus oratórios de cedro ou cabiúna e as imagens padroeiras”. Nos primeiros tempos da colonização portuguesa ou mesmo mais tarde, nas re- giões mais longínquas da imensa colônia, a existência desses altares portáteis po- deria ser justificada pela carência de igrejas e de templos para a prática religiosa comunitária. Naturalmente, nessas condições, o cristão procurava suprir sua neces- CARRATO, J.F. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo. Ed. Nacional, 963, p. 55.

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Oratórios Mineiros D. José I: O tema cristológico nos objetos de devoção familiar

produzidos entre o fim do século XVIII e início do XIX

Maria Alice Honório Sanna Castello BrancoMestranda – Universidade Federal do Rio de Janeiro

No Brasil colonial, os símbolos da fé faziam parte da vida cotidiana da popu-lação. Herança da tradição católica portuguesa, esses símbolos podiam ser mate-riais ou não. Dentre os intangíveis, que ficamos conhecendo através de textos de gêneros literários diversos, podemos citar o hábito entre os habitantes livres ou es-cravos de persignarem-se pronunciando a fórmula litúrgica: “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, de nossos inimigos”.

Dentre os símbolos de fé materiais, podemos citar os oratórios. De origem medieval, os oratórios para uso domiciliar e privado compunham o cenário religio-so onde eram venerados os santos do devocionário popular. Outras vezes funcio-navam também como relicários onde se conservavam preciosidades, como peda-cinhos do Santo Lenho ou de ossos de algum santo e até mesmo alguns talismãs, símbolos pessoais de proteção e de sorte tolerados pela Igreja Católica.

Esses objetos da fé chegaram às Minas Gerais com os primeiros desbravadores conforme podemos ler no trecho de Carrato: “Os bandeirantes paulistas eram os verdadeiros arautos da fé: desde o princípio de suas andanças, pelas Minas, portavam seus oratórios de cedro ou cabiúna e as imagens padroeiras”.�

Nos primeiros tempos da colonização portuguesa ou mesmo mais tarde, nas re-giões mais longínquas da imensa colônia, a existência desses altares portáteis po-deria ser justificada pela carência de igrejas e de templos para a prática religiosa comunitária. Naturalmente, nessas condições, o cristão procurava suprir sua neces-

� CARRATO, J.F. As Minas Gerais e os primórdios do Caraça. São Paulo. Ed. Nacional, �963, p. 55.

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sidade espiritual de consolo e proteção divina diante de seu altar particular. Atual-mente, basta contemplarmos em museus de arte sacra as diversificadas coleções de oratórios vindos de fora ou produzidos em Minas Gerais ao longo dos séculos XVIII e XIX, para percebermos que independente da proliferação de templos, capelas ou igrejas na capitania mineira, a posse de oratórios para devoção privada, singelos ou ricamente ornamentados, era usual. De fato, através de diversos estudos historio-gráficos sobre a religiosidade brasileira, ficamos sabendo que esses objetos eram comuns nas residências coloniais. Em geral, ficavam expostos no cômodo principal da casa, sinal de deferência ao lugar do sagrado.

A tipologia de oratórios D. José I, enfocados nessa pesquisa, são um exemplo da vitalidade da produção artesanal de objetos de devoção para uso doméstico em Mi-nas Gerais, entre o final do século XVIII e início do XIX. Esses móveis portáteis são verdadeiros retábulos em miniatura. Conhecidos como maquinetas e também como lapinhas, eles são inconfundíveis, especialmente por possuírem uma grande palmeta dourada entalhada no frontão e terem os nichos fechados por uma peça de vidro. Os motivos ornamentais ao gosto rococó, a composição do cenário e os temas represen-tados nos nichos centrais são invariavelmente os mesmos em toda a série.

Embora ainda não tenham sido encontrados, ou não existam, documentos e fontes diretas sobre os locais e as circunstâncias de sua produção, sabe-se que eram próprios da região de Santa Luzia. O estudioso da arte sacra brasileira Eduardo Etzel, entretanto, acrescentou outras regiões produtoras: Ouro Preto e Serro do Frio (atual Serro).� Tanto Etzel quanto o historiador Luiz Mott,3 ao mencionarem essa tipologia em ensaios sobre a arte sacra brasileira, comentam sobre o enorme desenvolvimento da produção des-ses oratórios em Minas Gerais, que chegou a exportá-los para outras capitanias, espe-cialmente para a Bahia.

Ao longo do tempo, muitos desses oratórios, que originalmente pertenciam a famílias mineiras, foram adquiridos por colecionadores ou instituições. Atualmen-te, fazem parte do acervo de museus de arte sacra públicos ou privados. É o caso, por exemplo, de três exemplares dessa tipologia que estão no Museu Mineiro, situ-ado em Belo Horizonte. Eles integram a coleção Geraldo Parreiras composta de �87 peças de arte sacra reunidas ao longo de treze anos pelo colecionador, nas cidades mineiras de Sabará, Caeté, Santa Bárbara e São João Del Rei e adquirida pelo Governo do Estado de Minas Gerais em �978. Outros exemplares podem ser admirados no Museu do Oratório e no Museu da Inconfidência, ambos em Ouro Preto e no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, em Mariana. Há ainda uma nume-rosa coleção deles no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, a ser incluída nessa pesquisa.

� ETZEL, Eduardo. Imagem Sacra Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, Editora da Universi-dade de São Paulo, Série Arte e Cultura, �979, p. �00. 3 Mott, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: História da Vida Privada, p. �67.

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A observação e a comparação entre quinze oratórios D. José I tornaram possível perceber as singularidades dessa tipologia�. Dentre a série selecionada para a pesqui-sa, doze oratórios possuem dois nichos e três possuem apenas um nicho. A diferença entre eles é que os de dois nichos contêm um nicho menor, embaixo do nicho cen-tral, com um presépio onde se vê a cena da adoração dos reis magos.

Nessa tipologia, os nichos centrais abrigam seis imagens religiosas esculpidas em pedra sabão que, fixadas em pedestais em lugares predeterminados, misturam-se à decoração ornamental numa encenação sagrada. O grande tema representado é cristológico.

Decerto a composição das imagens nos nichos expressa uma hierarquia que obedece aos princípios clássicos do decoro e da verossimilhança. Assim, pregada a uma cruz entalhada em madeira, a imagem de Cristo crucificado sobressai no cenário azul celeste enfeitado com rosinhas de malabar. Em muitos nichos, além das rosinhas, foram pintadas nuvens brancas sobre o fundo azul, bem atrás do cor-po de Cristo, em alusão mais direta aos Céus, o lugar do divino: do Deus Pai, do Espírito Santo e do Deus Filho. A crucificação e morte de Cristo, episódio essencial à cristandade por significar a fé inabalável na remissão dos pecados, na promessa de ressurreição e na vida eterna, domina o cenário da representação, no lugar mais central e mais alto.

Segundo a ordem da hierarquia devocional nas representações plásticas, ve-mos que a imagem de Jesus crucificado está sempre rodeada por Maria e José, respectivamente ao seu lado direito e esquerdo. É curioso verificar que Maria é representada como Nossa Senhora da Conceição, invocação que sublinha a pureza da mãe de Jesus Cristo. São José é sempre invocado como São José de Botas, repre-sentação que exalta o pai zeloso que, após receber de um anjo o aviso de perigo, salva a vida do filho pequeno, predestinado pela profecia divina a morrer crucifi-cado para a salvação da humanidade. A posição das imagens de Nossa Senhora da Conceição e de São José de Botas, fixadas em pedestais de formas singulares e pin-tura marmorizada, é invariavelmente a mesma em todos os exemplares. Aos pés da cruz, a imagem de Sant’Ana Mestra, invocação que exalta sua qualidade de guardiã da doutrina e das Sagradas Escrituras, aparece em doze exemplares. É inte-ressante observar que essa imagem está ausente, ou foi substituída por outra, justa-mente em três oratórios onde ocorreram visíveis alterações.

Portanto, nos lugares mais próximos de Jesus, estão Nossa Senhora da Concei-ção, São José de Botas e Sant’Ana Mestra, ou seja, a Sagrada Parentela. Habitual-mente a representação plástica da Sagrada Parentela se refere à vida de Jesus meni-no. Entretanto, nos nichos centrais de nossos oratórios, esse tema está imbricado ao

� Os exemplares selecionados para o presente estudo fazem parte do acervo dos seguintes museus: �0 oratórios do Museu da Inconfidência, 0� do Museu do Oratório, 0� do Museu Mineiro, 0� de coleção particular de Vera Silviano Brandão Corrêa Lima. Há ainda exem-plares dessa tipologia no Museu de Arte Sacra da Bahia e do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana a serem incluídos.

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tema da crucificação e, por isso, aparece de forma subliminar. Isto porque sempre que nos deparamos com as imagens de Jesus, Maria, José e Sant’Ana reunidas em uma composição, independente das invocações, imediatamente as associamos à Sagrada Família. Supostamente, essa licença poética pode ser relacionada ao fato das representações nesses oratórios não possuírem responsabilidade com a liturgia e, assim, poderem sintetizar dois momentos da vida de Jesus Cristo extraídos de fontes diversas: um do Novo Testamento, o outro dos Evangelhos apócrifos.

Por outro lado, a reunião da Sagrada Parentela parece ser muito pertinente para objetos de devoção dirigidos à vida doméstica, ao lar, sobretudo naquele primeiro sé-culo de formação e organização da sociedade mineira onde a questão da família era primordial. Além disso, não podemos deixar de dizer que, individualmente, Nossa Senhora da Conceição, São José de Botas e Sant’Ana tinham muito prestígio no devo-cionário popular, segundo o estudo de Cristina Ávila e Silvana Cançado5 sobre as dez devoções mais disseminadas no território mineiro no século XVIII.

Completando a cena religiosa, encontramos as duas imagens que ficam nos cantos, esquerdo e direito do piso, estas sim variantes de exemplar para exemplar. O que nos leva a pensar que, talvez, esses lugares no nicho estivessem reservados às imagens de devoção mais íntima do proprietário daquele exemplar em particular e de sua família, lugares consagrados àqueles santos e santas mais estreitamente ligados ao devocionário popular setecentista e ao cotidiano dos fiéis mineiros, a quem se pedia bênção ou se recorria em qualquer tipo de apuro. De fato, o popular São Sebastião tem sua imagem em quatro oratórios. Em seguida, Santo Antônio e São João Batista, com três imagens cada um. São Jerônimo tem sua imagem em dois oratórios. Outros santos contemplados com uma imagem em um dos oratórios são: São Gonçalo do Amarante, Santa Tereza D’Ávila, Santa Bárbara, São Francisco de Paula. Vale lembrar que São Sebastião, São João Batista, Santo Antônio e São Gon-çalo também constam entre as dez devoções mais disseminadas pelo território mi-neiro no século XVIII, segundo o estudo de Cristina Ávila e Silvana Cançado citado anteriormente.

Contudo, a identificação iconográfica das imagens, realizada nos quinze orató-rios, demonstrou a surpreendente recorrência de imagens de Santos Apóstolos, além daquelas mais comuns no devocionário popular, nesses dois cantos dos nichos. Eles aparecem em nove oratórios, em geral no canto inferior do lado direito do especta-dor. Ora, os apóstolos são santos de muita devoção, sem dúvida. No entanto, há um aspecto excepcional que deve ser ressaltado, ou seja, o fato de estarem estreitamente vinculados à vida de Jesus Cristo, de quem foram companheiros e discípulos. Viven-ciaram sua morte, seu sepultamento e sua ressurreição e, após esses acontecimentos, continuaram a pregação de Cristo, semeando sua palavra e seus ensinamentos mundo afora. Por tudo isso, eles simbolizam a Fé, a primeira virtude teologal. Tanto assim que a oração do Credo, reafirmação da fé e símbolo apostólico por excelência, tem seu

5 ÁVILA, Cristina; CANÇADO, Silvana. A geografia do sagrado na Minas colonial. In: Obje-tos da Fé, Oratórios Brasileiros. �ª ed. Belo Horizonte: Formato, �99�, p. 9-�9.

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texto dividido em doze versículos distribuídos entre os doze apóstolos que formavam o Colégio Apostólico presidido por Jesus. Portanto, é compreensível a presença fre-qüente de imagens de diversos apóstolos nesses nichos onde o tema primordial é Jesus Cristo, sua vida, sua morte.

Enfim, na tipologia de oratórios D. José I, a narrativa da vida de Jesus Cristo, por meio da composição das imagens no cenário, contempla de seu nascimento da Virgem Maria à sua morte sob Pôncio Pilatos, exaltando a fé na salvação da humanidade pelo sacrifício da cruz, a família cristã e a comunhão dos santos, os verdadeiros seguidores de Cristo e, conforme antiga tradição do catolicismo popular, intermediários entre o devoto e o divino.

Figura �: Oratórios D. José I. (Museu do Oratório e Museu da Inconfidência).

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Figura �: Detalhe do Cristo crucifica-do tendo à sua direita. N. Sa. da Con-ceição e à sua esquerda S. José de Botas. Observar a forma dos pedes-tais marmorizados, que se repetem em toda a tipologia. (Museu Mineiro)

Figuras 3 e �: Acima, detalhe do presépio. Ao lado, Sant´Ana, ladea-da à sua direita por Sto. Antônio e à sua esquer-da pelo apóstolo Thiago Menor. (Coleção Vera Silviano Brandão)