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Tradução de Edmo Suassuna

Orange Is the New Black nos apresentoua Alex Vause. Conheça a verdadeira mulher

que inspirou a personagem.

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1 O ponto sem volta

Hôtel Saint-André des Arts, Paris, FrançaFevereiro de 1993

O AR FRESCO GÉLIDO ME ACORDOU. A porta do banheiro se abriu e Bradley colocou a cabeça para fora por um instante. Olhava com ar reprovador por cima dos óculos cheios de vapor em direção

à janela que Henry tinha acabado de abrir. Então recuou e fechou a porta novamente. Eu podia ouvir uma sirene de polícia se afastando do hotel. Para mim, sempre pareceu que as sirenes repetiam a frase “Uh-oh, oh-oh, uh-oh”. Geralmente aquilo me divertia, mas nessa manhã em particular, foi como um aviso melódico sobre o meu dia.

Na escrivaninha antiga de mogno está a agenda de capa de couro com os compromissos semanais de Henry, a caneta preta Montblanc em cima da agenda aberta. A coleção de cartões de galerias, convites para shows e recibos que tinham sido jogados de um lado para o outro no quarto do hotel durante o chilique pré-partida de ontem estavam empilhados arrumadinhos ou reinseridos nos bolsos de sua valise preta de couro. O laptop incrível da Toshiba que eu queria para mim estava guardado cuidadosamente de volta em sua pasta e quase todo o resto do conteúdo de sua valise tinha sido recolocado na ordem meticulosa. Nesse sentido, Henry é o clássico estereótipo gay; o mundo pode estar acabando, mas contanto que tudo esteja arrumado, está tudo bem. Ele estava no meio do quarto, sentado ereto rigidamente num tamborete giratório de madeira, um acompanhamento que não combinava com a escrivaninha compacta.

Henry tinha acendido o abajur da escrivaninha e parecia estar me-ditando em seu brilho cálido, exceto que seus olhos castanho-escuros

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estavam bem abertos e me encarando diretamente. Eram 5:45h em Paris, hora de eu acordar e começar o dia.

Henry tinha andado ocupado. Ele já tinha se exercitado, tomado ba-nho, feito a barba, as unhas e as malas. Seu cabelo escuro ainda estava molhado e o quarto estava frio, apesar disso não afetá-lo. Tremi um pou-co de frio, mas estava satisfeita pelo ar fresco revigorante. Henry estava sentado silenciosamente, respirando devagar. O rosto bronzeado, com as bochechas vermelhas, apesar de ele estar vestido apenas com as rou-pas íntimas de viagem: uma camiseta branca de malha de seda e cueca branca justa. Eu podia sentir sua colônia; estava misturada ao aroma pro-longado de expresso e cigarros Gauloises. Fisicamente, ele não era um homem afeminado, mas tinha uma graça nos movimentos e uma postura que pertenciam a um bailarino.

Eu estava acostumada a vê-lo com os cabelos penteados para trás, não caindo pelo rosto. Henry girou e se virou de costas para mim para tirar algo da mala. A camiseta apertada definia seus ombros angulosos e cintura fina. Visto de costas, ele parecia uma mulher alta e forte. Notei seu terno Armani cinza-escuro pendurado na porta do armário enquanto ele apanhava algo na bolsa e então se virou de volta. Havia uma garrafa d’água e uma bandeja com café da manhã na mesa em frente a ele, entre alguns outros itens que tinha colocado ali com o mesmo cuidado dos ci-rurgiões quando arrumam seus instrumentos.

Henry virou, me encarando novamente, mas sua mente estava em outro lugar. Respirou profundamente, enfiou a mão em um saco marrom enrugado e tirou um objeto como uma grande cápsula negra com cerca de 2,5 centímetros. Pegou a cápsula, forçou-a para baixo em um dos de-dos de uma luva de borracha e a amarrou com um nó duplo. Então cortou devagar o dedo com a cápsula da luva com sua tesoura prateada de fazer a barba, deixando um pouco de borracha sobrando no final. Henry mer-gulhou a criação do tamanho de um dedo mindinho em uma tigela de io-gurte, e então colocou na boca e engoliu inteira. Observei a protuberância enquanto ela descia pela garganta dele, abaixo do pomo de Adão, e desa-pareceu abaixo da clavícula. Ele tomou um gole deliberado de água, en-direitou as costas e sentou silenciosamente de novo; então repetiu todo o processo. Ele faria isso até estar lotado. Bradley faria o mesmo, mas com apenas um punhado daqueles bolinhos matinais recheados de heroína.

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Bradley saiu vestido do pequeno banheiro cheio de vapor, exceto pe-los sapatos, meias e paletó. Sentou-se na beira da cama e assistiu ao ritual de Henry como se fosse um estudante. Mas na verdade só estava procras-tinando. Não enxergava nada sem óculos e os tinha tirado.

Eu estava impressionada com sua coragem. Assim como eu, essa era a primeira viagem dele. Eu não era a única novata. Bradley tinha se vo-luntariado para engolir a última das cápsulas para que nenhuma tives-se que ficar para trás. Já havia algumas poucas viagens em que outros mensageiros vinham trabalhando para acabar com esse último lote de cápsulas de um estoque que precisava ser transportado de volta aos Es-tados Unidos. Aquele método de transporte estava sendo abandonado. Mesmo assim, eu tinha aprendido que os homens conseguiam aguentar muito mais dessas cápsulas de heroína embrulhada do que as mulheres. Henry as engoliu lentamente, provavelmente porque, se engolisse muito rápido, poderia engolir cápsulas demais. Se fizesse isso, seu sistema iria se rebelar dolorosamente por todo o trajeto até nosso destino, o Hotel Blackstone, em Chicago.

Bradley poderia facilmente ter declinado do risco extra e levado ape-nas os paletós recheados de heroína, como eu. Não creio que fosse ga-nância; ele não ganharia muito dinheiro a mais por engolir essa merda, não o bastante para valer a pena. Considerando que um vazamento em apenas uma das cápsulas seria o suficiente para matar um elefante ins-tantaneamente, a motivação de Bradley tinha de ser algo totalmente irra-cional. Talvez estivesse tentando provar a Henry ou a ele mesmo que não tinha medo ou que era um cara durão ou algo assim. Talvez tivesse uma quedinha por Henry. Uma paixonite pode explicar fazer algo tão suicida. Se ele não tivesse uma quedinha, decidi que ele deveria ter e que Henry deveria ser modelo.

Bradley também era adorável, de seu próprio jeito. Mas se parecia com um Mr. Magoo jovem e loiro no momento. Normalmente usava ócu-los fundo de garrafa que faziam seus olhos azuis parecerem muito maio-res do que eram. Sem eles, ele piscava, fingindo observar Henry, ainda protelando.

Pessoalmente, eu não conseguiria ter engolido as cápsulas, nem por todo o dinheiro do mundo. Eu queria vomitar só de olhar. Teria pulado fora, como fez minha irmã em sua primeira viagem. Ela não conseguiu engolir a primeira cápsula. Na verdade, quase tinha se sufocado com ela,

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como eu ficara sabendo recentemente. Eu a teria enchido de porrada só por tentar fazer algo estúpido assim, se tivesse estado lá. Especialmente porque não eram diamantes, como me disseram originalmente; ela ten-tara engolir uma dose letal de heroína embrulhada em um pacotinho.

O novo método utilizado para transportar e esconder a heroína pos-sibilitou que eu fizesse aquilo. Agora ela era costurada no forro de paletós masculinos. Simplesmente levávamos os paletós na bagagem em meio às nossas próprias roupas e confiávamos que os alfaiates fossem melhores em ocultar o cheiro da droga dos cães farejadores do que eram em cos-turar. A conveniência dos paletós forrados de drogas que carregávamos fez com que fosse muito fácil ignorar a vozinha em minha cabeça me dizendo para não fazer aquilo e apenas continuar seguindo em frente e na direção de casa.

Hester, Henry e Bradley tinham tido uma discussão sem importân-cia na noite anterior. Nós estávamos claramente irritando uns aos outros e eu mal podia esperar para voltar sã e salva. Aquela desarmonia tinha evaporado, entretanto, nas tensas preparações da manhã. Imaginei que Hester ainda estivesse dormindo no quarto dela e de Bradley. Ela ainda estava tão brava comigo por ter vindo, em primeiro lugar, e tinha tentado tudo que podia para que eu fosse embora. Mas eu era teimosa. Eu não lhe dava ouvidos, não depois de ter vindo de tão longe quanto tinha vindo. A decisão de fazer isso era minha, não era de ninguém mais, e por isso agredir os outros não fazia sentido. Ela não pensava assim.

Ela tinha chamado o convite para eu me juntar a eles de traição. Eles disseram que, se ela estava irritada por causa do dinheiro, que podia ficar com ele. Aparentemente, outra pessoa iria receber uma taxa de agencia-dor por me envolver. Ela ficou com mais raiva ainda por terem achado que estava brava pelo dinheiro. Ela disse que não queria me ver antes de eu ir embora. No entanto, eu realmente queria que tudo ficasse bem entre nós antes que eu partisse. Mas depois de discursar sobre o quão insultada me sentia por ela pensar que eu não seria capaz de fazer aquilo, eu não queria que ela soubesse que estava com medo. Especialmente por ser tarde demais para desistir.

Tudo estava tão quieto. Parecia que estávamos nos aprontando para nossos próprios funerais. Não sei, mas toda a bravata da noite anterior tinha acabado. Tínhamos começado a nos arrumar – Henry, Bradley e depois eu – e começamos mecanicamente nossos rituais de preparação

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para o voo. Eu meio que tinha entendido agora o porquê de Henry nos fazer focar tanto em rituais. Focar em detalhes como se meu terno estava bem passado ou meu cabelo estava arrumado era calmante e distrativo. Melhor do que focar na merda idiota que eu estava prestes a fazer.

De repente, senti uma poderosa torrente de medo correr por mim como água gelada. Meu coração palpitou e meu estômago se revirou quando finalmente caiu a ficha de que dia era. Desde que eu saíra de Chi-cago, sempre que acordava, a realidade era como um livro incrível, mas complicado, que eu tinha deixado de lado na noite anterior; eu tinha que lembrar onde estava na história antes que pudesse continuar de onde tinha parado. Num dia como esse, era tentador deixar o livro fechado e voltar a dormir.

Como tinha feito diante de cada momento assustador em minha vida desde que era adolescente, criei uma conexão mental entre o medo pre-sente e um medo que eu tinha muita prática em acalmar. Eu tinha um medo terrível de altura. Minha melhor amiga quando criança fazia salto ornamental; então, para compartilhar o mesmo verão, comecei a fazer salto ornamental também. Enquanto algumas pessoas conseguem elimi-nar suas fobias encarando-as uma ou duas vezes, isso não funcionou para mim. Encarei meu medo várias vezes em competições de salto, mas con-tinuei com tanto medo de altura em meu último mergulho quanto tive no primeiro. Em vez disso, evoluí para algo que alguém certa vez descreveu como um diabrete teimoso. Ou seja, uma pessoa com a compulsão de se jogar de qualquer lugar alto do qual eu me aproximasse. Ótimo para o salto, não tão útil em escadas rolantes, rodas-gigantes ou topos de montanhas.

Afirmei para mim mesma que esse era apenas mais um mergulho controlado e calculado. Eu ficaria bem, desde que não perdesse o con-trole. Respirei fundo. Havia muito que eu podia fazer para garantir uma entrada suave e focar nisso acalmou meu coração palpitante tempo o bastante para eu começar o dia. Tirei meu cobertor aconchegante, sen-tei e abri o livro novamente.

Pela primeira vez em semanas, a visão de Henry me confortou. Além de ser um traficante de drogas experiente, extraordinariamente bonito, organizado e meticuloso, Henry era um controlador obsessivo. Seu con-trole sobre mim tinha começado a parecer uma coleira enforcadora cheia

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de pontas, mas hoje parecia o arnês de um paraquedas. Ele era tão calmo. Tudo o que tinha a fazer era seguir sua deixa.

No entanto, eu não estava totalmente pronta. Apertei o botão de pau-sa, voltei para a cama e encarei o teto. Comecei a respirar lentamente e deixei minha imaginação eliminar cada um dos obstáculos que podiam aparecer em meu caminho naquele dia, um de cada vez. Podia me ver andando pela saída do aeroporto de Chicago sem nenhum empecilho: ninguém tendo overdose no avião porque as cápsulas estouraram no es-tômago, nada de interrogatório longo com os oficiais da alfândega duvi-dando da minha história inventada, nada de atrasos, nada de erros, e todo mundo se safando – todo mundo. Fim.

Eu sairia daquela com dinheiro – dez mil dólares – suficiente para consertar tudo. Algum dia olharia para trás, para esse golpe ridículo com Hester, e daríamos risada. Quem sabe? Podia acabar sendo um verdadei-ro momento decisivo para mim, endireitar-me por conta do medo que sentia. A noção de voltar para a casa dos meus pais para me centrar e começar a estudar de novo realmente me parecia atraente naquele mo-mento. Merda, entrar para um convento me parecia atraente naquele momento.

Meu estômago se revirou novamente ao pensar em deixar minha ir-mãzinha para trás. Hester iria num voo posterior, três horas depois do nosso. Irmãs não podiam fingir não se conhecerem. Ela ficaria sozinha em Paris por três horas, e não saberia o que tinha acontecido comigo até que chegasse a Chicago, ao hotel. Em algum momento no caminho, Hester tinha crescido. Era uma linda mulher agora, com cabelos pintados de ruivo, olhos verdes e sua própria história rica delicadamente esculpida em sua beleza. Mas, para mim, ela sempre seria a menininha de 5 anos com longos cabelos loiros encaracolados chorando no ponto de ônibus porque eu precisara abandoná-la para ir à escola. A noção de deixá-la em Paris, mesmo que por poucas horas, me torturava mais do que o medo de falhar.

Afugentei aquela imagem. Fechei os olhos e me imaginei na Main Street, em Northampton. Não falara com ninguém de lá havia dois meses. A essas alturas, sabia que Phillip, meu melhor amigo, devia estar louco de preocupação e curiosidade, mas tudo acabaria depois dessa tarde. A essa hora amanhã, eu estaria a caminho de volta ao leste, minha irmã estaria a salvo em sua casa em Chicago e tudo isso estaria no passado. Seria uma

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festa, e dez mil dólares em dinheiro. Como será a cara de tanto dinheiro? Alajeh estaria na África, onde o tínhamos deixado, e nós estaríamos nos Estados Unidos, aonde ele não iria. Henry também iria embora logo, assim que me pagasse. Eu estaria à beira de uma nova vida, qualquer que fosse.

Empurrei os cobertores sufocantes, me sentei e saí da cama. Olhei para a forma como tinha arrumado minha elegante nécessaire com arti-gos de banho. Na noite anterior, tinha limpado cada uma das embalagens de creme e pomada que vieram no conjunto de produtos para cuidados com a pele de Madame Calignion. Ela era a esteticista francesa de meia- idade primorosamente refinada do salão e spa que eu tinha ido dois dias antes. Eu tinha precisado de ajuda para escolher e aplicar maquiagem. Henry tinha me levado ao salão e à madame para minha transformação final de uma lésbica desleixada em uma crítica de arte do mundo. Essa era quem eu fingiria ser naquele dia. Aparentemente, em Paris, você con-segue isso num spa.

Eu tinha arrumado minha coleção de artigos de toalete tão meticu-losamente quanto Henry faria. Peguei uma toalha e fui até os chuveiros comunitários no fim do corredor. O banheirinho do nosso quarto chique já estaria uma bagunça e tinha péssima ventilação. Alguns dos quartos do hotel só tinham um vaso sanitário e uma pia, sem chuveiro ou banheira. Para esses hóspedes havia um banheiro coletivo. Eu preferia isso à ba-gunça barbuda desleixada que sabia que Bradley tinha deixado para mim. Além disso, os chuveiros coletivos estariam limpos, quentes e secos tão cedo pela manhã.

Notei cada detalhe pelo qual passei e tudo em que toquei. No chu-veiro, tomei banho recontando o máximo de objetos pelos quais tinha passado em meu curto trajeto ao banheiro. Para cada objeto que me lem-brava, inventei uma história bem breve sobre como e por que ele tinha afetado minha viagem de negócios ao exterior de alguma forma ridícula e muito pequena. Eu estava enchendo minha cabeça com novas imagens, fatos mundanos estúpidos de Paris em vez da África, um lugar para onde a alfândega dos Estados Unidos não saberia que eu tinha viajado. Eu vinha fazendo isso desde que tive meu passaporte substituído em Bruxelas.

Senti um pouco de pânico e apressei meu banho. Eu era cronica-mente atrasada para tudo. Este não era um dia em que eu podia deixar o tempo escapar de mim enquanto catalogava o banheiro. Eu me sequei, me embrulhei e corri de volta ao quarto.

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Henry engoliu a última de suas cápsulas, levantou e andou até a jane-la aberta. O sol estava nascendo sobre a cidade. O céu atrás da Notre-Da-me estava azul profundo onde estivera negro alguns minutos mais cedo. Os sinais de um novo dia surgiam por todos os lugares. Debaixo da janela, um bêbado estava sendo cutucado para sair da calçada por um gari asso-viando e por sua enorme vassoura verde. Mesas e cadeiras estavam sendo levadas de volta para fora, na calçada, num café do outro lado da rua es-treita. Henry ficou parado de pé tranquilamente olhando para a catedral e para as poucas pessoas que iam chegando ao café. Ele não se mexeu. A brisa molhada agitava seu cabelo enquanto ele aguardava que o estô-mago se acomodasse.

Eu ainda estava enrolada na toalha. Henry me passou o grosso rou-pão atoalhado que tinha usado mais cedo. Ele tinha guardado meu rou-pão do hotel em minha mala. Uma vez ele me dissera que é uma boa ideia dar à polícia algo para achar, algo além da droga. Pequenas bugigangas de hotel, toalhas e roupões eram ótimos. Todo mundo já roubou algo de um quarto de hotel em algum momento da vida, até os agentes alfandegários. Ser pego num crime minúsculo como este por um agente alfandegário era excelente. Eles nos liberariam, certos de que tinham descoberto tudo o que havia para ser descoberto sobre nós.

Fui até o armário e puxei uma cadeira para perto do espelho. Fiquei ali parada de pé olhando para mim mesma. Tinha esse estranho senso de não familiaridade com meu próprio reflexo. Atrás de mim, podia ver os rapazes se apressando pelo quarto em um borrão absorto. Tirei o roupão, ainda olhando para mim mesma no espelho. Quatro semanas na África, nadando loucamente para manter meu apetite todo dia para que con-seguisse comer a comida nojenta e um episódio de giárdia tinham me deixado mais magra e em melhor forma do que tinha estado desde que era uma adolescente. Não era surpresa que isso mais quatro semanas sob a tutela de Henry em Paris, esforços para me transformar em uma crítica de arte convincente, fizessem com que eu não soubesse quem estava me olhando de volta no espelho.

Qualquer pudor que pudesse ter existido nesse elegante quartinho com Henry e Bradley tinha sido eliminado pelas semanas que passamos tomando banho, cagando e vomitando um por cima do outro no vestiário que tínhamos compartilhado no complexo de Alajeh em Benin, na Áfri-ca. Continuei me inspecionando, me mexendo de maneiras que exalta-

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vam meu novo físico. Sorri, pensando em encontrar Joan, minha ex, e ver o jogo virar – agora seria eu a rejeitá-la. Sentei na cadeira, encarando o espelho, e comecei a trabalhar no meu novo rosto.

Com batidinhas de leve abaixo dos olhos, passei um pouco da gos-ma cremosa que Madame Calignion tinha preparado. Dava uma sensação refrescante e cheirava a menta. Quando acabei, recoloquei com cuidado a pequena tampa prateada na garrafa de vidro. Minhas unhas feitas ti-nham sobrevivido à noite sem lascar ou arranhar. Eu as queria preserva-das pelo máximo de tempo possível. Puxei cada item da minha nécessaire com cuidado para não estragar as unhas. Isso me divertiu por um instan-te. Lembrei de observar Henry no trem para a Bélgica, onde essa aventura tinha começado. Eu o tinha visto guardar coisas em sua mochila dessa forma cuidadosa. Estava agindo como Henry.

A pessoa no espelho parecia isolada. Eu estava surpresa e entriste-cida. Olhei para os rapazes e senti os laços que ligavam todos nós. Eu não seria capaz de contar nada disso para ninguém quando voltasse para casa. Apesar de poder tentar contar histórias interessantes sobre onde estive e o que fiz, nunca poderia realmente expressar como era tudo isso, não sem ser julgada. Fiquei pensando se isso criaria um grande abismo entre mim e quase todo mundo mais, para sempre.

Terminei de cuidar do rosto e guardei a nécessaire na mala. Voltando ao armário e ao espelho, peguei as três caixas de veludo negro que conti-nham as joias que Henry tinha escolhido para mim. Primeiro, coloquei os brincos de pérola, depois o colar de pérolas e, por fim, o anel de diamante falso. Parecia verdadeiro. Com meu sutiã, calcinha e salto alto, com as pé-rolas contra meu bronzeado e meu cabelo preso em um coque elegante, eu me parecia com uma bela mentira. Apesar disso, não conseguia parar de olhar para mim mesma.

Esse foi o primeiro e único ensaio geral completo que tive. Todos os complementos ao meu visual e história inventada tinham sido uma mudança gradual: umas comprinhas aqui, um tratamento facial ali e as-sim por diante. Juntando tudo agora, vi o que Henry e eu havíamos cria-do e era verdadeiramente bizarro. Eu estava igual à minha mãe. Tirei os sapatos, parei de interpretar no espelho e escorreguei para dentro da meia-calça de um branco cremoso e da combinação. Puxei uma das por-tas espelhadas do armário em minha direção para que pudesse ver meu traseiro. Quando virei o espelho, vi Henry me observando. Ele tinha uma

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delicada cinta de renda branca na mão estendida. Não se parecia com as cintas que minha mãe usava; parecia-se mais com shorts de bicicleta de renda branca. Vesti-a e ela levantou um pouco minhas nádegas. Ri para mim mesma. Assim era melhor. Agora eu me parecia com uma porra de uma stripper.

A hora seguinte passou como um furacão, como se o tempo estives-se acelerando, conforme o ponto sem volta se aproximava. Babaquices à parte, até que passássemos pela segurança do aeroporto Charles de Gaulle, eu ainda poderia dar meia-volta, poderia parar o trem e descer, e as consequências que se danassem. Poderia ligar para mamãe e papai e falar de nós, eu e minha irmã. Eles ficariam bravos, depois que se levantassem do chão. Quando contasse para eles onde estávamos e a roubada em que suas filhas preciosas tinham se metido... Ai, meu deus! Eles desmaiariam, borrariam suas adoradas calças e nos matariam quando chegássemos em casa. Mamãe provavelmente nos internaria num convento ou simples-mente se internaria. Afastei esse pensamento da minha mente. Consegui-ríamos passar por isso. E então estaria acabado, ponto, sem grande drama.

Dei uma examinada em mim mesma, assim como fizeram Henry e Bradley, uma última vez antes de desfilarmos pelo hotel e para a rua, onde um táxi aguardava. Fui a última a entrar no táxi. Sentei e o moto-rista fechou a porta. Em uma das mesas do café, vi minha irmã sorrindo e acenando. “Encontro vocês do outro lado!” gritou Hester. Ela parecia calma e feliz.

Quando o táxi encostou no meio-fio do aeroporto, todos estavam calados e calmos. Henry pagou o táxi. Era ele que guardava o dinheiro. Foi assim a viagem toda. Ele me deu uma nota de cem francos e outra para Bradley. Era aqui que nos separaríamos. Fingiríamos que não conhecía-mos uns aos outros até que subíssemos de novo em um táxi em Chicago, com sorte, todos nós.

“É isso”. Henry também estava certo. Era isso, minha última chance de cair fora. Nós nos afastamos e Bradley seguiu apenas alguns segundos atrás dele. Ambos entraram no fluxo das portas giratórias.

Eu não havia engolido nenhuma cápsula cheia de heroína; tudo que tinha eram os paletós forrados em minha mala. Henry e Bradley tinham ambos. Bradley não podia deixar o estômago para trás, mas eu podia abandonar os paletós em algum lugar e escapar. A única coisa entre mim e a chegada segura em casa era uma decisão: como eu queria fazer aqui-

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lo? Eu tinha cem francos em minha pequena palma suada, o valor de um cartão de telefone. Eu podia comprar um na tabacaria do aeroporto, ligar para casa, ligar para Hester no hotel, e daí o quê? Eu também podia sim-plesmente levar essa merda comigo. Realizar a façanha idiota, ganhar dez mil dólares e lidar com os problemas da minha irmã e do namorado dela depois. Eu não podia ficar no meio-fio para sempre. Perderia o voo. Entrei no aeroporto, passei pela tabacaria e, sem hesitação, direto para a checa-gem de segurança. A sensação era igualzinha à de ir direto para a ponta do trampolim mais alto, virar graciosamente e recuar para que apenas meus calcanhares se libertassem e meus dedos dos pés me segurassem ali.

Quando cheguei ao portão, avistei Henry e ele não olhou em minha direção. Mas Bradley capturou meus olhos e me lançou um olhar que di-zia que ele estava prestes a chorar. Desviei os olhos dele como se não tivesse notado a cara que tinha feito.

Embarcamos no avião e tomei meu assento, guardando cuidadosa-mente minha mala de ternos lotada com os paletós cheios de heroína no compartimento de bagagens. Puxei um livrinho com o ensino básico da língua francesa e uma caneta da mala antes de me sentar. Eu, definitiva-mente, tinha cruzado a linha. Isso era além do ponto sem volta.

Fiquei acordada o voo inteiro. Fiz as lições francesas de ponta a pon-ta. Comprara o livro no aeroporto O’Hare seis semanas antes, antes da viagem ter começado. Assisti a um filme, O último dos moicanos, e chorei na parte em que uma das irmãs se joga na cachoeira em vez de ser estu-prada. Estudei o que já tinha escrito em meu diário falso, fazendo novas entradas falsas para cada um dos dias em que estivera em Paris. Quando entregaram os formulários de alfândega e imigração antes de pousarmos em Chicago, eu tinha criado uma história para cada um dos dias em Pa-ris, até para os que eu estava na verdade na África. Meu passaporte novo não tinha carimbos indicando minha aventura na África, o que tinha sido o propósito de substituí-lo.

Assisti a um avião se mover lentamente pelo mapa na tela onde o fil-me estivera passando. Ele se aproximava dos Grandes Lagos e depois de Chicago. Levantei apressadamente e peguei minha bolsa para que pudes-se ir mais uma vez ao banheiro. Fiquei maravilhada de ver como Bradley e Henry me ignoraram todas as vezes em que passei por eles. Eu não con-seguia evitar olhar para eles, nem que fosse apenas para ter certeza de que ainda estavam vivos. O rosto de Henry estava inexpressivo e Bradley tinha

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uma expressão aflita, mas, fora isso, ambos estavam respirando. Eu me perguntei se Bradley estava assustado ou empolgado. Eu não conseguia entender como eu mesma estava. Mas mal podia esperar para voltar ao meu mundo e me afastar de toda essa confusão.

Quando o avião pousou, eu estava surda. Meus ouvidos ainda não tinham dado um estalo, mas eu meio que gostei do jeito como tudo soava amortecido. Era mais fácil virar meus pensamentos para dentro, de volta ao que devia estar tocando repetidamente em minha mente: as reflexões da Cleary colecionadora de arte, crítica e historiadora, não a Cleary trafi-cante de drogas idiota prestes a arruinar sua vida.

Fiquei surpresa quando desembarquei do avião. Todos estávamos sendo recolhidos por um ônibus, um ônibus que conseguia levantar e descer e tinha portas dianteira e traseira. Era como uma enorme cria-tura que se agarrava ao avião e abria sua boca grande para sugar todos os passageiros para fora. Escolhi ficar de pé e me segurar a uma barra em frente a um homem jovem vestido tão elegantemente quanto eu. Ele me ofereceu seu lugar, mas não aceitei. “Não consigo me sentar por nem mais um minuto.” Ele sorriu, mas continuou olhando para mim como se estivesse interessado. Isso só aconteceria com a Cleary colecionadora de arte, não com a Cleary lésbica desalinhada. Eu podia me ver refletida na janela atrás dele e uma bola de medo e excitação na boca do estômago se contraiu novamente.

O ônibus estava cheio, ele fechou as portas e então desceu ao nível do chão. Zunimos pela pista, passamos por uma fila de aviões enormes, seus traseiros se projetando do prédio. Parecia um bando de pássaros gigantes numa calha de alimentação. O ônibus parou em frente a um dos prédios e subiu novamente, foi puxado para a frente e sacudiu um pouco antes de abrir as portas. Meus joelhos estavam tremendo e meu coração batendo aceleradamente, mas meu reflexo parecia tão calmo e entediado quanto todos à minha volta. A alça da mala de terno estava afundando em meu ombro; a almofadinha que devia evitar que isso acontecesse tinha virado e fez com que ficasse mais desconfortável do que se não existisse. Mas me deu algo em que focar.

Eu tinha sido uma das últimas a entrar no ônibus, então estava perto da frente e fui uma das primeiras a desembarcar. Andei ao lado do jovem bonito que tinha me oferecido lugar. Ele não se ofereceu para pegar mi-nha mala e carregá-la. Isso seria engraçado, pensei. Andei junto pelo mes-

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mo caminho e mantive o passo da multidão. Henry e Bradley estavam em um ou dois ônibus diferentes; eles estavam sentados bem mais para trás no avião e havia três ônibus esperando para tragar o desembarque dos passageiros. Senti meu bolso. Meu passaporte e o formulário da alfânde-ga que eu tinha preenchido estavam lá; todas as outras pessoas estavam com os seus nas mãos. Puxei ambos do bolso e segurei firme meus docu-mentos para a liberdade.

Enfim chegamos a uma grande área cheia de outros passageiros, talvez mais uns dois voos chegando, onde todos estavam se separando e indo para filas diferentes. Em vez de em caixas, como em uma loja, es-sas filas terminavam em uma série de cabines, cada uma com um agente alfandegário. Escolhi uma fila onde um monte de garotos de uns 20 anos ficariam bem na minha frente. Se eles tivessem skates nos ombros, teria combinado com suas roupas e cabelos grunge bagunçados. O rapaz dire-tamente à minha frente usava uma camiseta de Amsterdã.

Nossa fila se arrastava para frente toda vez que eu ouvia o tum do passaporte sendo carimbado. O grupo de jovens grunges na minha frente estava quieto até que um dos caras se virou e falou algo para uma das garotas. Ele falou holandês. Olhei para os passaportes que todo mundo na minha fila segurava. Eram vermelho-escuros. Que merda! Eu estava na porra da fila errada.

Eu devia estar na fila com os americanos. Examinei as dez outras filas e vi os passageiros carregando passaportes azuis e cartões azul-claros da alfândega no lado oposto do grande saguão. Não dava para simplesmente pular da minha fila e correr para lá. Primeiro tinha que negociar minha volta através das pessoas esperando com suas malas atrás de mim. Cada fila era delineada por um cordão, como num cinema. Eu podia passar por baixo, não fosse pelos agentes alfandegários circulando pelo saguão. Hen-ry me dissera que esses caras ficavam de olho em irregularidades e esco-lhiam pessoas aleatoriamente para um questionamento mais profundo.

Se eu saísse da fila onde estava, me destacaria na linha de visão de uma moça que estava de pé com os braços cruzados, pernas separadas, examinando sem expressão todos os passageiros estrangeiros. Eu não de-via chamar atenção para mim de forma alguma. O que a Cleary esnobe da arte faria numa situação dessas? Eu me perguntei. Ela saltaria a porra da fila, pro inferno com a linha que a delimitava. Escorreguei por baixo dela e fiquei de pé novamente. Eu tinha chamado a atenção da agente

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alfandegária. Levantei meu passaporte azul, sorri para ela e balancei a cabeça, tipo Olhe para mim, a grande idiota na fila errada. Sua cara inex-pressiva cedeu e ela sorriu e continuou andando. Eu me virei e andei em direção às filas corretas, torcendo desesperadamente para que quando eu me virasse não fosse na minha direção que ela tivesse começado a andar. Escolhi a menor fila e me virei. Merda.

Ela estava parada em frente à cabine, acenando para que fosse até ela. Sorri, apontei para mim mesma, tipo Quê? Eu? Ela assentiu, ainda sorrindo, e fui em frente. Nos filmes, essa é a hora em que o corredor se estica e a estrela parece não conseguir chegar ao final dele. Na vida real, eu estava parada na cara dela em um instante. Ela fez um sinal para que eu me dirigisse à cabine, virou para o agente lá dentro e falou, “Ela estava na internacional”. Fez uma cara engraçada para mim, como um Opa exa-gerado. O agente fez sinal para que eu fosse até o local que todos estavam esperando para ir e ela foi embora.

O rapaz riu e disse “Isso aqui está uma loucura hoje”. Ele pegou o pas-saporte e o cartão da alfândega.

– De onde está vindo? – Essa eu sabia de cor. Qualquer pergunta que ele pudesse fazer eu tinha a resposta pronta para disparar de volta.

– Paris.– Motivo da viagem? – perguntou ele enquanto anotava algo no car-

tão azul da alfândega.– Negócios – respondi o mais fluentemente que consegui. Ele olhou

para cima, me deu uma examinada rápida.– Algo a declarar?A atenção dele tinha voltado ao cartão da alfândega. Essa era a parte

em que eu deveria listar os itens valiosos que trazia ao país. É claro, eu não tinha anotado a heroína, recheada na costura dos paletós que tinha guardado em minha mala de ternos.

– Bem-vinda de volta. Entregue isto ao agente quando sair. – Ele ca-rimbou o cartão da alfândega, fez um grande rabisco ilegível nele e me entregou de volta, dentro do meu passaporte.

Andei em direção à saída em um grande corredor, com uma porta azul ainda se fechando da última pessoa que tinha passado, e agora havia mais um agente entre mim e o fim dessa maldita viagem. Tirei o cartão de dentro do passaporte e entreguei a ele. Ele estava empoleirado em um banquinho alto e parecia mais entediado que qualquer coisa. Tinha uma

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pilha de cartões já acumulados na mão. Estendeu a mão, pegou o meu, examinou a frente e o verso, assentiu em direção à porta e não disse nada.

Passei pela porta e andei em direção à área de restituição de bagagem lotada. Eu não tinha que esperar por nenhuma bagagem; só tinha que es-perar por Henry e Bradley no meio-fio lá fora. Saí, perdendo uma oportu-nidade de trocar meus cem francos por dólares. Eu os guardaria como um suvenir. Quando cheguei do lado de fora estava bem frio, mas me senti fantástica. Peguei um cigarro na bolsa e o acendi, e então fui para a área onde as pessoas estavam pegando os táxis.

Vi Bradley saindo pelas portas. Ele me viu e andou em minha dire-ção, estendendo dois dedos, num gesto de me-dê-o-seu-cigarro. Passei o cigarro aceso e ele deu uma longa tragada. “Puta merda!” A fumaça e seu hálito no ar gelado vieram em duas grandes plumas.

– Porra, isso foi tão fácil! – exclamei para Bradley, sob a respiração.– Fale por você. Tente segurar o cocô por seis horas.Ele me passou o cigarro de volta e deu um gemido. Parecia terri-

velmente desconfortável. Eu estava prestes a sugerir que ele fosse para o hotel na frente quando Henry saiu pela porta e se dirigiu ao último táxi da fila. Nós nos apressamos para alcançá-lo e praticamente mergulhamos no banco traseiro do táxi. Henry estava no banco dianteiro dizendo ao taxista que sentia muito, mas que não podia esperar na fila. Estava com diarreia. O motorista se opôs fortemente, nos dizendo para descermos e então Henry estendeu duas notas de cem dólares e pediu por favor. Henry se virou e sorriu para nós, como um pai orgulhoso, assim que o táxi deixou o meio-fio.

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2 A incrível jornada

Northampton, MassachusettsMarço de 1993

N ORTHAMPTON É UMA CIDADE UNIVERSITÁRIA, uma pequena aldeia pitoresca nas Montanhas Berkshire da Nova Inglaterra, em Massa-chusetts. Pense nas imagens de capa do Saturday Evening Post de

Norman Rockwell décadas atrás: tempos mais simples, em que crianças sentavam em velhos balcões de lanchonetes conversando com senhores de jalecos brancos e bochechas rosadas – uma cidadezinha perfeita com casas de madeira e cercas brancas. Essa é Northampton. Mas adicione um monte de lésbicas ao quadro de Rockwell.

Eu era a única passageira que restava no ônibus quando paramos na estação de Northampton ao anoitecer. A enorme tempestade de neve que o motorista vinha correndo para vencer já estava pesada no ar, amor-tecendo o som da noite quieta. Inspecionei o estacionamento vazio, recordando a distância ao meu hotel. Antes eu morava bem ao lado do terminal rodoviário, e, naquela época, tinha uma moto para ir à cidade. Eu não andava a pé naquele tempo, nem tinha malas para arrastar. Fe-lizmente, tinha pouca bagagem – apenas uma única mala e minha bolsa. A mala tinha rodinhas resistentes, então decidi andar até o hotel. Não era como se eu tivesse alternativa. Não havia táxis por perto e o telefone público de que eu precisaria para chamar um estava dentro do terminal rodoviário fechado.

Respirei fundo o ar frio e limpo e minha mente se encheu de imagens de chocolate quente, lareiras brilhando e rostos familiares. Era estranho não ter uma casa de verdade para voltar, principalmente com a tempesta-de chegando. Tempestades me faziam querer me enrolar na cama e ficar

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