Ópera dos vivos.ou não

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Entertainment & Humor


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Artigo sobre a peça Ópera dos Vivos, da Cia. do Latão. Publicado na revista Retrato do Brasil, no. 45 (www.oretratodobrasil.com)

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Page 1: Ópera dos Vivos.Ou não

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Teatro

ÓPERA DOS VIVOS. OU NÃOO novo espetáculo da Cia. do Latão traça um amplo painel crítico sobre a história da produção artística nacional, iluminando o eixo de sua afirmação de mercado, mas desconsidera as tensões internas dessa hegemonia

por Leandro Saraiva

APESAR DO JÁ costumeiro rigor

estético, intelectual e político de seus

espetáculos, basta uma rápida olhada na

estrutura básica da nova peça do Latão

para perceber que se trata de um esforço

especialmente ousado e ambicioso.

O ato I, “Sociedade Mortuária”, re-

encena a história da Liga Camponesa de

Sapé, surgida a partir de uma associação

entre os trabalhadores para o rateio das

despesas de enterro de seus mortos,

numa aproximação à produção do CPC

(Centro Popular de Cultura).

!"#$%&'$&()&*'+',$'-)&./0$#'1,#'retoma, com brilho estilístico, a matriz

cinemanovista utilizando-se de trama e

personagens de Terra em transe (Glauber

2&34-5'6789:5';,<0=>4->?&'&;'3&>@=)&;'de classe e as ambiguidades pessoais e

culturais do momento de vitória golpista

e de realinhamento reacionário da bur-

guesia nacional.

“Privilégio dos mortos”, o ato III,é

um show de música – de ótima música

- no qual se confrontam Miranda, uma

cantora engajada que, no Golpe, entrou

em coma e agora reencontra um cenário

muito transformado, e um grupo clara-

mente tropicalista, que se apresenta já

plenamente adaptado às demandas do

espetáculo de massa.

O ato IV, “Morrer de Pé”, é contem-

porâneo e narra um episódio de uma pro-

dução televisiva que evidencia o processo

industrial subjugando a criação artística.

A recapitulação CPC-Cinema Novo-

Tropicalismo-TV onipresente é acom-

panhada dos estágios históricos corres-

pondentes, fazendo o quadro avançar

do período pré-Golpe para o imediato

pós-Golpe, seguido dos rearranjos

implicados na “adaptação” ao período

militar e da formação da nossa sociedade

de consumo (ou de consumo vicário),

saltando, numa teleologia irônica, direta-

mente para os estúdios imperiais da “TV

Tudo”, para a qual toda a história parece

convergir (e se anular).

Mas será que se trata, propriamente,

de uma recapitulação expositiva, de uma

aula empirista de história da cultura?

Basta atentar um pouco para os rear-

ranjos formais de cada ato, em relação

aos “originais”, para perceber que não

é bem disso que se trata. O diálogo de

fundo é com o clássico ensaio de Roberto

Schwarz, “Cultura e política 1964-1969”

(em O pai de família e outros ensaios), já

em si mesmo sintetizante e interpretativo,

sob um ponto de vista marcado pelo

interesse político de esquerda. Ópera

dos vivos desdobra, e traz para o pre-

sente, esta visão interessada e uma sutil

e permanente “distorção criativa” das

referências sumarizadas em cena.

No ato cepecista, a moldura é meta-

linguística, com a ação sendo interrom-

pida por comentários épicos dos atores

sobre o caráter de estudo da montagem.

Essa atualização – que deixa entrever

o recorrente diálogo do Latão com o

Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST) – implica ainda em mu-

danças de estilo na encenação do drama

camponês, com motivações mais indivi-

duais dos personagens do que aquelas

utilizadas pelo CPC, que trabalhou num

clima de época altamente politizado,

implicando “uma certa abstração e velo-

cidade do novo teatro e cinema, em que

as opções mundiais aparecem de dez em

dez linhas, a propósito de tudo”, como

diz Schwarz sobre o período.

CINEMA NOVO, DE NOVOA&'-)&'BB5'3=>#$-)&C(D/3&5'&'3&>)#E)&5'e algo do estilo – câmera na mão, cortes

descontínuos, planos curtos, alternados

com acúmulos de tempo, –, é o da urgên-

cia de Terra em transe. Mas em Tempo

Morto o protagonista é o jovem empre-

sário. Quem oscila é o burguês, versão

do Fuentes de Glauber, aqui trazida ao

centro: sua linguagem, tensionada pelo

furacão da história, não é a da poesia,

como a de Paulo Martins, mas a dos

negócios. O que o arrasta para o círculo

?-' -()#' #;1,#(?=;)-' F&' )#-)(&' #' &'/0$#'1,#'#0#'1,#('/>->3=-(:'+'&'#>G&0G=$#>)&'com Júlia, uma atriz engajada e, no lugar

do embate trágico, tudo se desfaz como

uma aventura. O transe do Golpe é então

representado pela perspectiva burguesa,

desde o nosso presente, no qual “venceu

o sistema de Babilônia e o garção de

costeleta”, como aponta com triste graça

a frase de Oswald de Andrade citada por

Schwarz no prefácio a O ornitorrinco, de

Francisco de Oliveira. Deste ângulo da

burguesia nacional, a produção artística

esquerdista – e, mais amplamente, as

reformas de modernização democrática

– foi, literalmente, uma aventura com a

1,-0';#'@#()&,'%&(',$'$&$#>)&H'No debate que acompanhou este

ato, Ismail Xavier ampliou o leque de

pontos de atualização das referências

expostas e discutidas na peça-filme.

Lembrou que o Cinema Novo não se

fez à margem, e sim por meio da busca

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do sucesso no mercado regular das salas

de cinema, retirando rendimento estético

da tensão entre a vanguarda modernista

e o desejo de intervenção no presente,

com uma utopia política que era também

empenho na conquista de hegemonia no

$#(3-?&'3=>#$-)&C(D/3&5'3-$%&'%(=G=-legiado – justamente por ser industrial

e ter mercado mundial – de combate

anticolonialista.

Essas considerações não contra-

dizem a leitura feita pelo Latão, mas

podem servir para um “deslocamento

do deslocamento” que Tempo Morto

&%#(-H'A&'/0$#'I#=)&'%#0&'J-)K&5'&'I&3&'se transfere do poeta engajado para o

burguês, produzindo uma versão da obra

glauberiana que sublinha as contradições

de classe com as tintas do pragmatismo

burguês. O comentário de Ismail chama

a atenção para as dimensões também

pragmáticas, que se misturavam ao

projeto político e estético, das relações

entre artistas e mercado, que iam além

de uma miopia informada por uma má

0#=),(-'?&;'3&>@=)&;'?#'30-;;#'F=?#=-'1,#'Schwarz associa à arte e à política do PC

pré-Golpe, e que o Latão reencena aqui

-)(-G+;' ?&'@#()#' #>)(#' &' %(&)-C&>=;)-'burguês e a atriz engajada). Ou seja, havia

um projeto de mercado, enunciado, aliás,

muito claramente já em 1966, no artigo

“Cinema Novo e estruturas econômicas

tradicionais”, de Gustavo Dahl, que

G=(=-' -' ;#(' ?=(#)&(' ?-'L$<(-/0$#5' ?#M'anos depois.

Obviamente, o Latão sabe disso, e se

prefere preservar Júlia das jogadas ambí-

guas de Paulo Martins (e dos cinemano-

vistas, que sentaram em todas as mesas

militares necessárias à consolidação da

L$<(-/0$#'#5'>&'/$'?&;'->&;'9N5'-)(--G+;'?#0-'3&>1,=;)-(-$',$-';=C>=/3-)=G-'fatia do público consumidor, ), o faz

para melhor construir, dentro da peça,

a progressão da mercantilização da arte,

que é o tema explícito do ato seguinte.

O ”Privilégio dos mortos” tem a

forma de um show tropicalista, que

tem como convidada especial, e foco de

3&>@=)&5'O=(->?-5' -' 3->)&(-' #>C-P-?-H'As performances e as músicas são mui-

to irônicas: “Borboleta Predestinada”,

com sua dança de parangolés, anuncia o

“desabrochar” dos astros tropicalistas,

se adaptando às demandas do show

Sociedade mortuária: os vivos e os mortos se encontram no palco

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business; “As Entranhas do Monstro”,

$-=;'-=>?-5'#>I(#>)-5'#'G#>3#5'&'?#;-/&'de fazer uma paródia da paródia pop

tropicalista: consegue ser divertida e

#/3=#>)#5'$-;' >#$' )->)&5' PD' 1,#5' %#0-'estranheza forçada da imagem, expõe

&'-()=IQ3=&'-0#C&(=M->)#'R'1,#'$=F;:)=/3-'a Indústria Cultural como o monstro (a

música da cena choca, diverte, mas diz

pouco – o compositor do Latão, Martin

Eckerman, consegue dar uma volta a

mais no avesso do avesso do avesso). E

há as falas do intelectual-cantor Cao (evi-

dentemente, Caetano), que alternam evo-

cações irracionais e inversões brilhantes

das diretrizes da cultura do engajamento,

espetacularizando a estética da fome.

PARANGOLÉS AO VENTOAqui o ponto de vista atualizante faz ca-

ricatura do tropicalismo, a partir de suas

versões mais vendáveis e desdentadas.

S34T-(M5' #$'67875' @-C(-G-' -' =$-C#$'tropicalista como um instantâneo dos

arcaísmos do subdesenvolvimento,

iluminados pela “luz fria” de formas

ultramodernas – um “achado”, dizia o

autor, que introjetava, na forma estética,

as ambiguidades entre lucidez crítica e

comercialismo, mimetizando (e também

expondo ao sol) o congelamento im-

posto pelo Golpe à dinâmica democrá-

tica que prometia superar a contradição

entre os setores pobres e atrasados e os

ricos e atualizados do país. A versão do

tropicalismo apresentada na peça nada

tem dessas ambiguidades, mas apresenta

apenas o cinismo bem informado pseu-

domoderno.

No debate sobre este ato, Francisco

Alambert, ao contrário de Ismail, não

apresentou contrapontos, mas explicitou

e sublinhou uma tese que está na peça: o

tropicalismo, entendido como submissão

da arte crítica nacional à forma-merca-

doria, tornou-se tão hegemônico que se

confunde, hoje, com o próprio campo

da produção artística nacional. Para ele,

a vitória absoluta do tropicalismo tem

3&$&'$-(3&' &' ->&' ?#' UNNV5' 1,->?&'

Caetano cantou no Oscar e Gil assumiu

o Ministério da Cultura. A apreciação

?#;)-'=>)#(%(#)-WK&'?&')(&%=3-0=;$&'/3-'mais clara se considerarmos o retrato

deste mundo-mercadoria, pintado na

parte seguinte da peça.

X'-)&'/>-0'>-((-',$-' ;=),-WK&'#$'1,#'-'@,=?#M'#/3=#>)#'?-'=>?Y;)(=-'3,0-tural se interrompe: durante a realização

de um melodrama televisivo sobre “os

tempos da ditadura”, um ator que os vi-

veu se rebela contra seu papel – mais por

motivos de verossimilhança psicológica

do personagem torturador do que por

resistência política. E por um breve mo-

mento a indústria pára, até conseguir de

novo se impor - não por uma visão ideo-

0ZC=3-5''PD'?#;>#3#;;D(=-'3&$&'P,;)=/3-)=G-'–, mas apenas por fazer valer a força das

engrenagens da produção e das relações

?#')(-<-04&'(#=/3-?-;H'[,(->)#'#;)#'!<,C'?&';=;)#$-*'?#;/0-$'/-%&;'?#'3(=;#'?#'consciência dos trabalhadores culturais,

desimportantes frente ao mastodôntico

poderio industrial.

O TRABALHO NA TELAComo disse Maria Rita Kehl, o tema

central é o trabalho da representação e a

alienação do trabalhador deste processo,

o artista. Frente a tal fechamento de hori-

zontes, segundo a analista, e como narra

também o Latão, a memória se torna

nostálgica e lírica, como acontece com

a canção de Miranda, tão viva no início

da peça, e reduzida a repertório antigo,

no circo da mercadoria contemporâneo.

Este rigoroso “teorema”, como cha-

mou Alambert, tem o mérito de colocar

em foco a questão central das relações de

trabalho da produção cultural, as histori-

cizando através de ensaios com formas

do passado, produzidas dentro de outro

quadro de relações. A operação, bastante

inteligente, obtém a façanha brechtiana

?#'?#;>-),(-0=M-('&'!%(&/;;=&>-0=;$&*'R'que, aliás, Nelson Xaiver e João das Ne-

Tempo morto: a Cia. do Latão refaz Terra em transe como arqueologia encenada do presente

As predestinadas borboletas tropicalistas caminhando e cantando as entranhas do monstro

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5345 retratodoBRASIL |

ves, artistas que viveram intensamente o

período do engajamento e mantêm suas

posições políticas até hoje, fazem ques-

tão de reivindicar em seus depoimentos

(sobre este importante ponto, vale a

pena ler as observações de Ismail no

livro Cinema brasileiro contemporâneo,

1,#'I-0-';&<(#'&'/0$#.$-(3&'?&'/$'?&'período moderno no cinema brasileiro,

Cabra marcado para morrer, que se inicia

como uma produção cooperativada entre

estudantes e camponeses e se conclui

15 anos depois do Golpe, como obra

(#@#E=G-'?#',$'?=(#)&('1,#5'3&$&')&?&;5')&(>-(-.;#',$'%(&/;;=&>-0:H'

O CENTRO E AS CONTRADIÇÕESDe fato, a atividade artística já foi outra

coisa, e a evidência disso, posta em

cena, nos permite interrogar, em termos

materialistas, o que é “fazer arte” hoje.

A peça nos faz ver com mais clareza,

inclusive, que muitos artistas têm tema-

tizado a condição de produção da arte:

-'(#@#E=G=?-?#')&(>&,.;#'-)+',$'3-3&#)#'no documentário; o incrível sucesso mar-

ginal dos Racionais leva Mano Brown a

(#@#)=(';&<(#'&;'?=0#$-;'?#';,-'3(=-WK&'na genial “Negro Drama”; e até quem

trabalha na Globo, com Guel Arraes e

Jorge Furtado, faz repetidos trabalhos

sobre o trabalho e a condição do artista

(Romance, O homem que copiava, An-

chietanos, Clandestinos – só para citar

os mais evidentes).

À parte considerações de tema e de

(#@#E=G=?-?#'I&($-05'&')(-<-04&'-()Q;)=3&'surge hoje de maneira nova e renovada,

em experiências que, ainda que não

devam suscitar ufanismos emancipáo-

rios, merecem consideração: pontos de

cultura, organizações em rede (como o

crucial Fora do Eixo, dos roqueiros, ou

o Circuitos Compartilhados, nas artes

plásticas), artistas de várias frentes que

lançam mão dos recursos digitais para

produzir e fazer circular o que produzem

fora do contexto industrial – uma gama

de formas de produção com as quais

a gestão de Gilberto Gil, no MinC, se

relacionou aberta e criativamente.

O teorema de Ópera dos Vivos tem,

portanto, o mérito depor a nu a questão

das relações de produção das artes, mas

não aponta sua luz para as forças em

contradição com o eixo do poder e do

capital.

Claro, pode-se facilmente argumentar

1,#'&')#&(#$-'?-'%#W-'<,;3-'?#/>=('&'G#-tor dominante do sistema cultural – o da

sociedade do espetáculo, em suma – e não

estas tensões periféricas. Esse entendi-

mento foi defendido por Maria Rita Kehl

e Eugênio Bucci no debate sobre a TV,

que engrossaram o caldo frankfurtiano

ao caracterizarem a TV como uma forma

de satisfação de desejos inconscientes,

inconfessáveis e com simulacro oligopo-

lizado do espaço público – e tudo o que

estivesse fora desta caracterização seria

=>;=C>=/3->)#5'%&(1,#'$-(C=>-0HNão fosse o Latão um grupo marxis-

)-5'&')#&(#$-'4=;)Z(=3&'?-'-/($-WK&'?-'

Luz sobre a

mercantilização

da arte, e alguma

penumbra sobre

as contradições

mercantilização da arte nacional seria um

resultado e tanto. Mas uma parte, mesmo

que central, não vale pelo todo dinâmico.

Como lembrou Marcos Napolitano no

debate com Alambert, se tudo é contra-

ditório, é preciso considerar o conjunto

de forças contrárias à mercantilização,

inclusive no âmago da indústria cultural.

Não é preciso muito marxismo para

compreender que o mesmo processo

que concentra poder e capital na “TV

",?&*'F#'-/>;:'%(&?,M')#>;\#;'R'3&$&'as vividas inclusive por artistas inovado-

res que nela trabalham –, e, como na era

?&' ?=C=)-0' /3-'$-=;' #G=?#>)#5' 3(#;3#$'as forças produtivas, de um modo que

o capital tenta controlar, mas que lhe

escapa por todos os dedos.

]=%#()(&/-(' !-'"^*' #' !&' )(&%=3--lismo” até torná-los um DNA de toda

a vasta fauna e flora cultural talvez

seja construir uma imagem congelada,

incapaz de reconhecer o que há, ainda,

senão de subversivo, pelo menos de

instigante, por exemplo, nos arranjos de

Caetano para clássicos da música norte-

americana (em A foreing sound), ou no

trabalho de Furtado, ou, em outra ponta

do espectro social dos produtores, em

,$'/0$#'3&$&'_;'G&0)-;'?&'`#>#5'?&'cineasta huni kui Zezinho Yube, que

@-C(-' -' )#>;K&' #>)(#' )(-?=WK&' #'$#(-3->)=0=M-WK&'?&;'%-?(\#;'C(D/3&;'R'&;'kene – de sua cultura.

As contradições continuam vibrando

e tensionando a indústria cultural por to-

dos os lados, neste mundo feito – refeito

– pelos vivos e pelos mortos.

Eu vi um Brasil na tevê: no ato final assistir sentado a Morrer de pé