olarias bragantinas

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ENSAIO argila Gente de TRABALHADORES DAS OLARIAS DA REGIÃO DE BRAGANÇA PAULISTA FAZEM PONTE ENTRE O MUNDO RURAL E O URBANO Texto e Fotos MARCELO DELDUQUE

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Ensaio publicado na revista Globo Rural

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ENSAIO

argilaGente

de

TRABALHADORES DAS OLARIAS DA REGIÃO DE BRAGANÇA PAULISTA FAZEM PONTE ENTRE O MUNDO RURAL E O URBANOTexto e Fotos MARCELO DELDUQUE

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TRABALHADORES DAS OLARIAS DA REGIÃO DE BRAGANÇA PAULISTA FAZEM PONTE ENTRE O MUNDO RURAL E O URBANOTexto e Fotos MARCELO DELDUQUE

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TRABALHADORES DAS OLARIAS DA REGIÃO DE BRAGANÇA PAULISTA FAZEM PONTE ENTRE O MUNDO RURAL E O URBANOTexto e Fotos MARCELO DELDUQUE

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Orepetido vai-e-vem dos trabalhadores é como o prolongamento das en-grenagens da maromba. Enquanto a máquina não

para de cuspir tijolos, os oleiros não descan-sam: enchem o carrinho de mão de tijolos e empilham ao sol, do fi nal da madrugada ao pôr do sol. Depois da secagem, colocam no forno para a queima. Por fi m, carregam o caminhão. Quanto mais se carrega, mais se ganha. Daí a pressa, a urgência. Para ga-rantir um salário minimamente decente, as jornadas de trabalho devem ser longas.Quem é esperto esvazia seu carrinho rápi-

do e espera antes a vez na fi la para carregar novamente. Respira um pouco, proseia, lembra que é gente. Quando a máquina desliga – e como esse raro momento é es-perado! – está na hora de tomar café.

Olarias tradicionalmente dividem a ce-na com lavouras e pastos. Nasceram no pe-ríodo colonial como forma de as fazendas se proverem de materiais de construção. Fabricavam originalmente telhas, até que, no século XIX, por infl uência dos italianos, o tijolo se popularizou, substituindo pouco a pouco as construções em taipa.

Na região bragantina, vizinha à Gran-de São Paulo, onde nos dias de hoje pastos

e lavouras vêm rareando a passo rápido – assustador até – da expansão urbana, justo por essa razão as olarias fl oresce-ram, ganharam autonomia das fazendas e se mecanizaram. A região é um dos mais importantes polos produtores de tijolos do estado de São Paulo.

Ali, quem não tem mais chance na agricultura e não consegue colocação como caseiro das chácaras e condomí-nios que pululam por todos os lados, mas não quer ou não pode se transferir para a cidade, tenta a sorte como oleiro.

Com a mecanização, exceto o amassa-dor da argila e o forneiro, que precisam

conhecer bem o barro e o processo de quei-ma, o trabalho é de carregador. Basta um pouco de saúde para poder trabalhar.

Não foi sempre assim. Antes do ad-vento da máquina, oleiros detinham um conhecimento precioso, que passava de pai para fi lho. Era um trabalho sofrido, porém bonito e digno, que ainda se pode ver em poucas olarias, em geral as mais pobres, que não puderam adquirir uma maromba.

A máquina trouxe outra mudança fundamental ao aumentar em escala geométrica a produtividade. Para se ter uma ideia, numa olaria manual, a pro-dução diária não passa de três mil tijolos. Uma maromba é capaz de produzir de mil a dois mil tijolos por hora. A pá, que era usada para retirar a argila do barreiro, deu lugar ao trator. Assim, potencializou-

AS OLARIAS NASCERAM NAS FAZENDAS DO BRASIL COLONIAL,COMO FORMA DE AS PROPRIEDADES SE PROVEREM DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO. HOJE, GANHARAM AUTONOMIA E SE MECANIZARAM AUTONOMIA E SE MECANIZARAM AUTONOMIA

A MECANIZAÇÃOaumentou a produção em escala geométrica, mas potencializou a ameaça ambiental representada pela retirada de argila de áreas de nascentes e matas ciliares. Hoje, o amassador de argila e o forneiro são os poucos que conhecem bem o processo de fabricação, restando aos demais a função de carregador de tijolos

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Orepetido vai-e-vem dos trabalhadores é como o prolongamento das en-grenagens da maromba. Enquanto a máquina não

para de cuspir tijolos, os oleiros não descan-sam: enchem o carrinho de mão de tijolos e empilham ao sol, do fi nal da madrugada ao pôr do sol. Depois da secagem, colocam no forno para a queima. Por fi m, carregam o caminhão. Quanto mais se carrega, mais se ganha. Daí a pressa, a urgência. Para ga-rantir um salário minimamente decente, as jornadas de trabalho devem ser longas.Quem é esperto esvazia seu carrinho rápi-

do e espera antes a vez na fi la para carregar novamente. Respira um pouco, proseia, lembra que é gente. Quando a máquina desliga – e como esse raro momento é es-perado! – está na hora de tomar café.

Olarias tradicionalmente dividem a ce-na com lavouras e pastos. Nasceram no pe-ríodo colonial como forma de as fazendas se proverem de materiais de construção. Fabricavam originalmente telhas, até que, no século XIX, por infl uência dos italianos, o tijolo se popularizou, substituindo pouco a pouco as construções em taipa.

Na região bragantina, vizinha à Gran-de São Paulo, onde nos dias de hoje pastos

e lavouras vêm rareando a passo rápido – assustador até – da expansão urbana, justo por essa razão as olarias fl oresce-ram, ganharam autonomia das fazendas e se mecanizaram. A região é um dos mais importantes polos produtores de tijolos do estado de São Paulo.

Ali, quem não tem mais chance na agricultura e não consegue colocação como caseiro das chácaras e condomí-nios que pululam por todos os lados, mas não quer ou não pode se transferir para a cidade, tenta a sorte como oleiro.

Com a mecanização, exceto o amassa-dor da argila e o forneiro, que precisam

conhecer bem o barro e o processo de quei-ma, o trabalho é de carregador. Basta um pouco de saúde para poder trabalhar.

Não foi sempre assim. Antes do ad-vento da máquina, oleiros detinham um conhecimento precioso, que passava de pai para fi lho. Era um trabalho sofrido, porém bonito e digno, que ainda se pode ver em poucas olarias, em geral as mais pobres, que não puderam adquirir uma maromba.

A máquina trouxe outra mudança fundamental ao aumentar em escala geométrica a produtividade. Para se ter uma ideia, numa olaria manual, a pro-dução diária não passa de três mil tijolos. Uma maromba é capaz de produzir de mil a dois mil tijolos por hora. A pá, que era usada para retirar a argila do barreiro, deu lugar ao trator. Assim, potencializou-

AS OLARIAS NASCERAM NAS FAZENDAS DO BRASIL COLONIAL,COMO FORMA DE AS PROPRIEDADES SE PROVEREM DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO. HOJE, GANHARAM AUTONOMIA E SE MECANIZARAM AUTONOMIA E SE MECANIZARAM AUTONOMIA

A MECANIZAÇÃOaumentou a produção em escala geométrica, mas potencializou a ameaça ambiental representada pela retirada de argila de áreas de nascentes e matas ciliares. Hoje, o amassador de argila e o forneiro são os poucos que conhecem bem o processo de fabricação, restando aos demais a função de carregador de tijolos

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O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS NÃO TROUXE MELHORIAS PARA AS CONDIÇÕES DE VIDA DOS OLEIROS, QUE CHEGAM

O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS PARA AS CONDIÇÕES DE VIDA DOS OLEIROS, QUE CHEGAM

O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS

A PASSAR 10 H0RAS POR DIA CARREGANDO CARRINHOS10 H0RAS POR DIA CARREGANDO CARRINHOS10 H0RAS POR DIA

se o poder de degradação ambiental. Os oleiros experientes sabem que as argilas mais puras geralmente encontram-se em áreas de nascentes e matas ciliares, locais frágeis e protegidos por lei.

Apesar de livrar parte do trabalho pe-sado, a máquina não implica melhoria das condições de vida dos trabalhadores, muitos deles mulheres e idosos que, se não batem mais o barro nas formas, chegam a passar dez horas por dia carregando carri-nhos cheios de tijolos debaixo de sol.

O modo de produção familiar perma-nece como antigamente. Muitas famílias trabalham e vivem nas olarias, o que aca-ba facilitando que jovens entrem cedo na atividade. Nota-se claramente que a compleição física típica dos oleiros é de homens baixos e fortes.

Hoje, o poder público, aos trancos e barrancos, procura impor algumas regras. O trabalho infantil, que já foi muito co-mum, atualmente é raro. Quanto à extra-ção de argila, passou-se a exigir licenças

MUITAS FAMÍLIAStrabalham e vivem nas próprias olarias, facilitando a entrada de jovens na atividade, como o do retrato ao lado, numa pose que lembra os quadros de Portinari. A compleição típica dos oleiros é de homens baixos e fortes, forjada na lida que envolve bater o barro nas formas, carregar os carrinhos de mão repletos de tijolos e empilhá-los ao sol

ambientais, contrapartidas pelos danos ao ambiente e taxas pela extração da terra. Mas praticamente nenhuma olaria da re-gião bragantina se adequou às regras. Os oleiros alegam que é inviável. Sempre que algum promotor ameaça fechar olarias, acaba vencido pelo argumento do impac-to social que causaria a medida.

Este ensaio foi realizado como ten-tativa de extrair algo humano de uma atividade de forma geral muito mal vis-ta, e de enxergar o ponto de transição entre a zona rural e a cidade em uma região de crescimento rápido e desorga-nizado. A olaria, numa certa maneira, representa essa passagem. E os oleiros, essa gente do barro, mal deixam de ser da roça e já são obrigados a perder a inocência solidária do campo, plantan-do eles mesmos uma urbanidade nem sempre desejável. .

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O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS NÃO TROUXE MELHORIAS PARA AS CONDIÇÕES DE VIDA DOS OLEIROS, QUE CHEGAM

O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS PARA AS CONDIÇÕES DE VIDA DOS OLEIROS, QUE CHEGAM

O USO DE MÁQUINAS NA FABRICAÇÃO DE TIJOLOS

A PASSAR 10 H0RAS POR DIA CARREGANDO CARRINHOS10 H0RAS POR DIA CARREGANDO CARRINHOS10 H0RAS POR DIA

se o poder de degradação ambiental. Os oleiros experientes sabem que as argilas mais puras geralmente encontram-se em áreas de nascentes e matas ciliares, locais frágeis e protegidos por lei.

Apesar de livrar parte do trabalho pe-sado, a máquina não implica melhoria das condições de vida dos trabalhadores, muitos deles mulheres e idosos que, se não batem mais o barro nas formas, chegam a passar dez horas por dia carregando carri-nhos cheios de tijolos debaixo de sol.

O modo de produção familiar perma-nece como antigamente. Muitas famílias trabalham e vivem nas olarias, o que aca-ba facilitando que jovens entrem cedo na atividade. Nota-se claramente que a compleição física típica dos oleiros é de homens baixos e fortes.

Hoje, o poder público, aos trancos e barrancos, procura impor algumas regras. O trabalho infantil, que já foi muito co-mum, atualmente é raro. Quanto à extra-ção de argila, passou-se a exigir licenças

MUITAS FAMÍLIAStrabalham e vivem nas próprias olarias, facilitando a entrada de jovens na atividade, como o do retrato ao lado, numa pose que lembra os quadros de Portinari. A compleição típica dos oleiros é de homens baixos e fortes, forjada na lida que envolve bater o barro nas formas, carregar os carrinhos de mão repletos de tijolos e empilhá-los ao sol

ambientais, contrapartidas pelos danos ao ambiente e taxas pela extração da terra. Mas praticamente nenhuma olaria da re-gião bragantina se adequou às regras. Os oleiros alegam que é inviável. Sempre que algum promotor ameaça fechar olarias, acaba vencido pelo argumento do impac-to social que causaria a medida.

Este ensaio foi realizado como ten-tativa de extrair algo humano de uma atividade de forma geral muito mal vis-ta, e de enxergar o ponto de transição entre a zona rural e a cidade em uma região de crescimento rápido e desorga-nizado. A olaria, numa certa maneira, representa essa passagem. E os oleiros, essa gente do barro, mal deixam de ser da roça e já são obrigados a perder a inocência solidária do campo, plantan-do eles mesmos uma urbanidade nem sempre desejável. .

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