oficinas terapÊuticas em saÚde mental: um olhar...

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i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO OFICINAS TERAPÊUTICAS EM SAÚDE MENTAL: UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USUÁRIOS DO CAPS RIO DE JANEIRO 2011

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  • i

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO

    OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:

    UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS

    RIO DE JANEIRO

    2011

  • ii

    VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO

    OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:

    UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Nery,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisitos parcial

    obteno do ttulo de Mestre em Enfermagem.

    Orientadora: Lilian Hortale de Oliveira Moreira

    Doutora em Enfermagem/EEAN/UFRJ

    RIO DE JANEIRO

    2011

  • iii

    Pinto, Vanessa Andrade Martins

    Oficinas Teraputicas na Sade Mental: um olhar na perspectiva dos

    usurios do CAPS/ Vanessa Andrade Martins Pinto. Rio de Janeiro:

    UFRJ/ EEAN, 2011.

    103f.: il.; 31 cm.

    Orientadora: Lilian Hortale de Oliveira Moreira

    Dissertao (mestrado) UFRJ/ EEAN/ Programa de Ps-Graduao

    em Enfermagem, 2011.

    Sade Mental. 2. Indicadores de Qualidade em Assistncia

    Sade. 3. Enfermagem Psiquitrica. I. Moreira, Lilian Hortale de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de

    Enfermagem Anna Nery, Programa de Ps-Graduao em Enfermagem.

    III. Ttulo.

  • iv

    VANESSA ANDRADE MARTINS PINTO

    OFICINAS TERAPUTICAS EM SADE MENTAL:

    UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS USURIOS DO CAPS

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao

    em Enfermagem, Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade

    Federal do Rio Janeiro, como requisitos parcial obteno do ttulo de

    Mestre em Enfermagem.

    Aprovada em:______________________________

    Prof Dr. Lilian Hortale de Oliveira Moreira Presidente

    (EEAN/UFRJ)

    Prof. Dr. Manoel Olavo Loureiro Teixeira

    (IPEC/FIOCRUZ)

    Enf Phd. Dra. Jaqueline Da Silva

    (EEAN/UFRJ)

    Prof Dra. Lys Eiras Cameron

    (EEAN/UFRJ)

    Prof Dr. Rosane Mello

    (EEAP/UNIRIO)

  • v

    Dedicatria

    A Deus, meu guia espiritual, que me impulsiona, motiva, inspira, abenoa, encoraja

    para realizao de todas as minhas misses, realizando milagres e ddivas na minha pequena

    caminhada...

    minha Famlia, minha me, minhas irms Sabrina e Deriane, meu sobrinho Pedro Henrique

    que alegra os meus momentos, agraciando-me com seu belo e doce sorriso. E, em especial ao

    meu Tio Carlos que me apoiou, apostou e acreditou no meu crescimento desde o inicio da minha

    trajetria.

    Aos meus Tios Z e Ftima pelo amor e carinho nas horas difceis.

    memria de meu Pai que sempre se orgulhou muito de mim...

  • vi

    Agradecimentos Especiais

    minha orientadora Prof Dr. Lilian Hortale de Oliveira Moreira, por compartilhar comigo

    seus conhecimentos e, em muitos momentos, me tranqilizar e me encorajar a seguir em

    frente.

    Ao LAPPEPSM pela oportunidade de participar das discusses e desenvolver esse estudo.

    Aos meus colegas de trabalho, que tambm compartilharam algumas angstias,

    medos, alegrias, como Paulo, Elisangela, Elias, Antonio, Sade, Arlete, Iara, Cileni, Sueli, Lucinda, Patrcia,

    Zlia, principalmente, s minhas chefias Z Carlos, Emiliane, Evelyn, Simone e Walter, sempre flexveis

    e prestativos.

    A toda equipe do CAPS Torquato Neto, nas pessoas de Patrcia, Dona Lcia e Sonia Segadas, em

    especial aos usurios, por estarem sempre disponveis, para o desenvolvimento do estudo.

    A Bianca pela disponibilidade e belo trabalho na transcrio das entrevistas.

    Ao NUPENH pelo acolhimento do Projeto de Pesquisa.

    Aos Professores do Mestrado, por todos os espaos oferecidos para reflexo e aprendizados.

    Aos colegas de turma, especialmente Janana e Thays, pois o sentido de estarmos nesse

    momento juntas, no foi por acaso, obrigada pela companhia de vocs nas viagens para

    congressos nacionais e internacionais.

    Aos amigos, que de alguma maneira, direta e indiretamente, estavam e, eu sei que

    esto, orando e impulsionando-me, representados por Grazi, Fabiana, Patricia, Ain, Andrea, Mariza,

    Gilza.

    ...que Deus derrame todas as suas bnos e ddivas, sempre iluminando o melhor passo, caminho, ao, a

    todos vocs que fizeram, fazem e faro sempre parte da minha vida.

  • vii

    RESUMO

    PINTO, Vanessa Andrade Martins. Oficinas Teraputicas em Sade Mental um olhar na

    perspectiva dos usurios do CAPS. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado em

    Enfermagem) Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio

    de Janeiro, 2011

    Estudo descritivo, de natureza qualitativa, acerca da narrativa dos usurios do Centro

    de Ateno Psicossocial II sobre as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas em

    sade mental. Utilizamos como guia os Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs), conjunto

    de tcnicas elaboradas e testadas na rea educacional, que possuem a finalidade de avaliar

    projetos educacionais. Este nos propiciou atender aos nossos objetivos que foram: descrever

    as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, a partir da narrativa dos usurios,

    utilizando como guia os IQPs; discutir os IQPs como guia para a construo de critrios de

    qualidade nas oficinas teraputicas em sade mental; analisar as oficinas teraputicas,

    enquanto dispositivo assistencial, a partir do olhar dos usurios. O estudo fundamentou-se em

    conceitos da Reabilitao Psicossocial e de estudiosos do Campo da Sade Mental. Nossas

    reflexes basearam-se nos dados obtidos de vinte entrevistas realizadas em trs oficinas

    teraputicas (Bijuteria, Expressiva e Rdio) de um Centro de Ateno Psicossocial II,

    localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro. Atravs da anlise dos dados, pudemos perceber

    que os doze IQPs esto presentes nas oficinas estudadas, mas que alguns IQPs so essenciais

    como critrios de qualidade de uma Oficina Teraputica (Oportunidade, Transformao,

    Coerncia, Apropriao, Eficincia, Harmonia), enquanto outros so mais especficos

    dependendo do objetivo da Oficina (Oficina de Bijuteria - Cooperao, Oficina Expressiva -

    Criatividade, Oficina de Rdio - Protagonismo). Ainda, para os usurios, independente dos

    objetivos de uma oficina teraputica existe pontos chaves para que uma oficina tenha

    caractersticas de qualidade: modificaes relativas ao quadro psquico e comportamental.

    Acreditam que uma oficina possui caracterstica de qualidade quando facilita o

    desenvolvimento de habilidades cotidianas, e faz com que eles alcancem o desejo de

    sentirem-se melhor, mais valorizados, com liberdade de fazer suas tarefas e escolhas no dia-a-

    dia, sem que seja necessria a autorizao de terceiros e a convivncia tem um lugar central

    nesse dispositivo teraputico. Ressaltamos que essa apenas uma aproximao possvel

    dentre outras. No queremos a generalizao das oficinas, mas apresentar questes instigantes

    na aproximao dos IQPs com os conceitos de Reabilitao Psicossocial e Oficina

  • viii

    Teraputica, enquanto dispositivo assistencial. Recomendo, portanto outros estudos em

    cenrios e oficinas diferentes para que possamos estudar e comparar o que estamos

    produzindo nesses espaos a partir de quem os utiliza como recurso teraputico. E a partir da

    criar espaos de conversa entre os usurios e os profissionais de sade mental, visando

    dialogo aberto, negociao e qualidade dos servios.

    Palavras-chave: Sade Mental. Indicadores de Qualidade em Assistncia Sade.

    Enfermagem Psiquitrica.

  • ix

    ABSTRACT

    PINTO, Vanessa Andrade Martins. Oficinas Teraputicas em Sade Mental um olhar na

    perspectiva dos usurios do CAPS. Rio de Janeiro, 2011. Dissertao (Mestrado em

    Enfermagem) Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio

    de Janeiro, 2011

    This study is characterized by a qualitative and descriptive approach about the users

    narrative from the Psychosocial Care Center II on the quality of therapeutic workshops on

    mental health. The Quality Indicators Project (QIPs), a set of techniques developed and tested

    in the educational area with the purpose of evaluating educational projects was used as a

    guide. This allowed us meet our goals, which were: to describe the quality of therapeutic

    workshops, from users narrative, using the QIPs as guide; discuss QIPs as a guide for

    building quality criteria in therapeutic workshops on mental health, to analyze the therapeutic

    workshops, as an assistance device, from the users point of view. The study was based on

    concepts of psychosocial rehabilitation and studies in the mental health field. Our

    considerations were based on data obtained from twenty interviews in three therapeutic

    workshops (Jewelry, Expressive and Radio) of the Psychosocial Care Center II, located in the

    north of Rio de Janeiro. By analyzing the data, we realized that the twelve QIPs are present in

    the workshops studied, but some are essential as quality criteria for a therapeutic workshop

    (opportunity, transformation, coherence, ownership, efficiency, harmony), while others

    depend more on the specific objective of the workshop (Costume Workshop - Cooperation

    Workshop Expressive - Creativity Radio Workshop - Protagonist). Still, for users, regardless

    of the goals of therapy there is a workshop with key points that a shop as quality features:

    changes related to psychological and behavioral context. They believe that a shop has quality

    characteristic as facilitates the development of life skills, and makes them reach the desire for

    feel better, more valued, with freedom to make choices in their tasks and day to day, without

    requiring the consent of third parties and coexistence is a central place in this therapeutic

    device. We emphasize that this is only one possible approach among others. We do not want

    to generalize the workshops, but to present intriguing questions on the approach to the

    concepts of QIPs, Psychosocial Rehabilitation and Workshop Therapy, While assistive

    device. I therefore recommend further studies in different scenarios and workshops so that we

    can study and compare what we are producing in these spaces from those who use them as a

  • x

    therapeutic resource. And from there to create spaces for conversation between users and

    mental health professionals in order to open dialogue, negotiation and quality of services.

    Key Word: Mental Health; Quality indicators, Mental Health; Psychiatric Nursing.

  • xi

    LISTA DE SIGLAS

    BDEN Base de Dados de Enfermagem online

    BIREME Biblioteca Regional de Medicina base de dados online

    CAp/UFRJ Colgio de Aplicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CPCD Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento

    IV CNSMI IV Conferncia Nacional de Sade Mental Intersetorial

    IPUB Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    IQPs Indicadores de Qualidade de Projeto

    LAPPEPSM Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e Sade Mental

    MEDLINE Base de dados online da literatura internacional da rea mdica e biomdica

    NUPENH Ncleo de Pesquisa em Enfermagem Hospitalar

    PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica

    PSYCOINFO Base de dados online para psicologia, cincias sociais, comportamentais e da

    sade.

    PUBMED Base de dados online para pesquisa bibliogrfica em mais de 17 milhes de

    referncias de artigos mdicos

  • xii

    LISTA DE FIGURAS

    LISTA DE GRFICOS Pg

    Grfico 1 Faixa etria dos usurios entrevistados 63

    Grfico 2 Sexo dos usurios entrevistados 64

    Grfico 3 Grau de escolaridade dos usurios entrevistados 64

    Grfico 4 Tempo (anos) que os usurios freqentam as oficinas teraputicas 65

    LISTA DE QUADROS Pg.

    Quadro 1 Aproximao dos Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs) aos 55

    Norteadores de Qualidade das Oficinas Teraputicas em Sade Mental

    (MONTEIRO, 2007, p.55)

    Quadro 2 Motivo para participao nas oficinas estudadas 65

    Quadro 3 Perguntas do Roteiro Semi-Estruturado de Entrevista e 66

    seus respectivos norteadores

    Quadro 4 IQPs, Narrativas dos Usurios nas Oficinas Bijuteria, Expressiva 67

    e Rdio e a Observao Participante.

    Quadro 5 Oficinas Bijuteria, Expressiva e Radio e oferta aos usurios tendo 85

    como guia os IQPs

  • xiii

    SUMRIO

    CAPTULO

    1. CONSIDERAES INICIAIS 15

    1.1. Questes norteadoras 19

    1.2. Objeto 19

    1.3. Objetivos 19

    1.4. Relevncia do estudo 20

    2. SOBRE A PSIQUIATRIA E A REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA

    2.1. Da loucura doena mental: o nascimento da psiquiatria 22

    2.2. Da doena mental sade mental: o processo da Reforma Psiquitrica 24

    Brasileira

    2.3. Por que Reabilitao Psicossocial? 26

    3. OFICINAS TERAPUTICAS: REFAZENDO O PERCURSO HISTRICO E

    ATUALIDADES

    3.1. O uso do trabalho e da atividade no campo geral da psiquiatria:

    da fase pr-psiquiatrica s novas propostas de desinstitucionalizao 29

    3.2. O uso do trabalho e da atividade no contexto psiquitrico brasileiro:

    do sculo XIX aos tempos atuais 36

    4. O TRABALHO DE ENFERMAGEM NOS CENTROS DE ATENO

    PSICOSSOCIAL 50

    5. INDICADORES DE QUALIDADE DE PROJETOS E NORTEADORES

    DE QUALIDADE DE OFICINAS TERAPUTICAS

    5.1. IQP Um Instrumento Criativo e Inovador 53

    5.2. Quadro facilitador do entendimento da aproximao dos instrumentos 54

    6. ABORDAGEM METODOLGICA

    6.1. Tipo de Estudo 56

    6.2. Cenrio do estudo 56

    6.3. Descrio do cenrio do estudo 57

    6.4 Descrio das oficinas estudadas 58

    6.5 Sujeitos do estudo 58

    6.6 Procedimento da Coleta de Dados 59

    6.7 Aproximaes e afastamentos 60

    6.8 Desafios e dificuldade 60

  • xiv

    6.9 Custos da Pesquisa 62

    7. DESCRIO E ANLISE DOS DADOS

    7.1. Descrio dos Dados 63

    7.2. Anlise dos Dados: AS CARACTERSTICAS DE QUALIDADE DAS 73

    OFICINAS TERAPEUTICAS APONTADA PELOS USURIOS

    8. CONSIDERAES FINAIS: MUDANA DE RUMO OS USURIOS 88

    APONTAM O CAMINHO

    REFERNCIAS 91

    ANEXO

    A - Protocolo de Aprovao do Comite de tica 96

    APNDICES

    A - Roteiro de Observao Participante 97

    B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 99

    C - Roteiro Semi-estruturado de Entrevista 100

    D - Cronograma 101

    E - Oramento 102

    F - Plano de Disseminao 103

  • 15

    CAPTULO 1

    CONSIDERAES INICIAIS

    A trajetria que venho desenvolvendo na rea de sade mental teve incio em 2003,

    enquanto aluna do Curso de Especializao em Enfermagem em Sade Mental e Psiquiatria

    (nos moldes de Residncia) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO.

    Em 2004 comecei a atuar como enfermeira supervisora das enfermarias feminina e

    masculina do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (IPUB), atual Universidade

    Federal do Rio de Janeiro. Aps o trmino do curso de especializao, objetivando dar

    continuidade s reflexes para o aprimoramento de minha prtica cotidiana comecei a

    freqentar o Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e Sade Mental

    LAPPEPSM1.

    Durante um tempo participei como ouvinte do LAPPEPSM. Agora, seguindo a linha de

    pesquisa sobre Arte e Sade Mental, prossigo com o estudo iniciado por Monteiro

    intitulado Avaliao do estatuto teraputico da Oficina de Costura do IPUB, atravs dos

    Indicadores de Qualidade de Projeto (IQPs). Esse estudo objetivou avaliar os resultados

    teraputicos da oficina A linha e o linho, que ocorria diariamente na enfermaria feminina do

    IPUB, e tambm verificar a aplicabilidade dos IQPs rea de sade mental.

    O IQP uma tecnologia registrada pelo Banco de Tecnologia Social do Banco do Brasil e

    ser a metodologia escolhida para orientar a discusso desse trabalho, visto que pode nos

    ajudar a refletir e identificar se os dispositivos em sade mental atendem s necessidades de

    tratamento dos usurios, ou seja, se h qualidade na realizao do dispositivo que lhes est

    sendo oferecido.

    O termo usurio foi introduzido pela legislao do Sistema nico Sade (Leis n.

    8.080/90 e 8.142/90) no sentido de destacar o protagonismo do que anteriormente era apenas

    um paciente. A expresso acabou sendo adotada com sentido bastante singular no campo da

    sade mental e ateno psicossocial, na medida em que significava um deslocamento no

    sentido do lugar social das pessoas em sofrimento psquico. Atualmente o termo vem sendo

    criticado pelo fato de ainda manter uma relao do sujeito com o sistema de sade. Por este

    motivo sempre o utilizarei entre parnteses. Este um importante indcio do movimento

    1LAPPEPSM/IPUB/UFRJ, criado coordenado pela Prof. Dr. Cristina Loyola em 1996 e de onde emergem,

    desde ento, as idias e as pesquisas de Graduao e Ps-Graduao orientadas e/ou realizadas pelos seus

    integrantes.

  • 16

    permanente de reflexo e construo no campo da reforma psiquitrica (AMARANTE, 2007,

    p.83).

    Embora o estudo referido acima tenha sido uma investigao realizada por uma aluna do

    Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Cientfica (PIBIC), com todas as dificuldades

    que a aproximao pesquisa cientfica comporta, o trabalho resultou em algumas discusses

    instigantes. Identificou contrastes e semelhanas em cada macro-indicador para os trs grupos

    de depoentes (usurios, familiares e profissionais que conduziam a oficina), o que despertou

    um olhar crtico para os efeitos que as atividades teraputicas desencadeavam em cada sujeito

    estudado (MONTEIRO, 2004).

    Dentre os problemas que foram percebidos nesse estudo destaca-se o item Oportunidade2,

    que visava observar as possibilidades de opo. A anlise das entrevistas realizadas revelou

    que a Oficina de Costura estudada apresentava oportunidades bem limitadas, na perspectiva

    dos usurios. Uma vez que seu produto no era exposto e apreciado pelo pblico fora do

    hospital, como desejavam os usurios, o que os deixava bastantes desestimulados

    (MONTEIRO, 2004, p.12).

    Posteriormente, em 2007, foi desenvolvida pela mesma autora a dissertao de Mestrado

    O Refresco da Cabea: Qualidade de Oficinas Teraputicas segundo os usurios, realizado

    tambm no IPUB, no Hospital-dia. Na Psiquiatria, este servio funciona ainda dentro de uma

    instituio, visando reinsero social de pessoas com transtornos mentais graves e

    persistentes.

    Este apontou as caractersticas de qualidades das oficinas teraputicas, a partir da fala dos

    usurios e, avaliou as atividades desenvolvidas no Hospital-dia, pela importncia de saber se o

    usurio que freqenta as oficinas est recebendo o cuidado esperado para um melhor exerccio

    da cidadania e alcance de maior autonomia social e de vida. Tal estudo mostrou que a

    participao dos usurios nestas oficinas pode estar associada a quatro desejos principais:

    melhores relaes sociais, diminuio dos sintomas, ajuda com respeito e alguma

    remunerao.

    Propus-me a desenvolver esse mesmo estudo em um Centro de Ateno Psicossocial

    (CAPS) no municpio do Rio de Janeiro, tendo em vista que esse servio considerado hoje

    como um dos reguladores da assistncia em sade mental e que tem como uma das principais

    formas de tratamento as oficinas teraputicas. Conforme o redirecionamento para o modelo

    assistencial de sade mental proposto pela Lei n. 10.216, de 06 de abril de 2001.

    2 Esse e os outros onze IQPs sero melhor apresentados no captulo 5.

  • 17

    No campo da sade mental, as oficinas teraputicas so atividades que visam

    integrao social e ressocializao das pessoas com sofrimento mental, nos contextos familiar

    e social; e ainda, estimular e desenvolver o potencial individual (MONTEIRO, 2007, p.12).

    Ainda, segundo Rangel (2006, p.12) so atividades que podem colaborar com o objetivo da

    reforma psiquitrica, de dar problemtica da loucura uma outra resposta social, aquela que

    possibilite a incluso social do sujeito.

    A prtica das oficinas pode auxiliar os portadores de transtornos mentais na aquisio e no

    manejo das caractersticas subjetivas de viver como, por exemplo, as sensaes de felicidade,

    prazer e bem-estar. Os IQPs trabalham justamente nessa rea de sobreposio

    objetivo/qualidade, em que o subjetivo, antes somente observado, torna-se palpvel e

    quantificvel. O campo social tem se mostrado mais sensvel a estas questes que o campo da

    sade mental. Na verdade, estes objetivos intangveis da educao aproximam-se das

    variveis-sombra (SARACENO, 1999, p.96) dos servios, no que diz respeito qualidade do

    atendimento.

    Ter maior auto-estima, maior capacidade de socializao e de expressar sentimentos de

    felicidade, alegria e prazer, deveriam ser decorrncia de qualquer tratamento em ateno

    psicossocial; caso contrrio, corre-se o risco de nos perdermos na escolha de mtodos e

    processos e assim, sermos incapazes de nos haver com os resultados obtidos. No que tudo

    seja perfeito, mas procurar atravs de pequenas maisculas melhoras3 na vida diria construir

    um espao de tratamento que contribua para o usurio encontrar sadas mais apropriadas do

    que seus sintomas para enfrentar o sofrimento inerente a sua dor de existir (Leite, 2000).

    Na nossa vivncia, enquanto profissionais de sade mental, notamos que nas oficinas so

    produzidos resultados de natureza subjetiva, visivelmente valorizados pelos pacientes.

    Entendemos que os dados que sero obtidos podero representar um reforo dos mesmos,

    melhorando o lao com a assistncia e merecendo, assim, maior ateno. Portanto, a inteno

    dar voz aos usurios para que, na perspectiva e vivncia deles, seja possvel descobrir quais

    as caractersticas de qualidade de uma oficina teraputica.

    Todavia, o que vivenciamos hoje nos recursos teraputicos dos servios em sade mental,

    so mudanas realizadas a partir de discusses de profissionais, que no envolvem os

    usurios. No que as reunies e discusses de profissionais no sejam importantes e/ou

    capazes de mostrar as evolues dos usurios, mas faz-se necessria a utilizao de um

    3 Termo cunhado pela Prof. Cristina Loyola nas reunies do LAPPEPSM, no qual ela refere os pequenos

    avanos que tornam-se significantes no cotidiano de viver das pessoas com sofrimento mental.

  • 18

    instrumento que expresse a demanda do usurio, para ficarmos mais prximos do que eles

    desejam ter ao participarem das oficinas.

    Vasconcelos (2000, p.269) traz a tona o termo empowerment como de grande importncia

    para as discusses sobre a sade mental e a construo de suas prticas do cotidiano. O

    referido autor define o termo valorizao do poder contratual dos usurios nas instituies e

    do seu poder relacional nos contatos interpessoais na sociedade. Seria muito interessante que

    o significado deste termo permeasse a prtica de cuidados nos espaos teraputicos das

    oficinas, pois acreditamos que este seja o verdadeiro sentido de fazer oficinas. Trazendo o

    usurio para o centro da cena para que possamos juntos refletir sobre o que estamos

    oferecendo nesses espaos.

    importante a realizao de estudos que verifiquem as caractersticas de qualidade dos

    novos dispositivos em sade mental, tendo em vista o perodo decorrido, ainda recente, que

    vm sendo construdos em nmero crescentes no pas desde o incio dos anos 2000 em

    decorrncia do aprofundamento e ampliao das experincias substitutivas ao modelo

    manicomial no final dos anos 1980, denominado como Reforma Psiquitrica (Amarante,

    1995, p.50); que considerem, no apenas as formas como os sujeitos se estruturam

    atendimentos mdicos, grupos teraputicos, cuidados de enfermagem, oficinas, centros de

    convivncia mas que possam, sobretudo, discutir o tratamento clnico que eles se propem a

    realizar.

    Para contextualizao do objeto de estudo realizei uma reviso sistemtica com o

    objetivo de fazer um levantamento sobre as caractersticas de qualidade do dispositivo oficina

    teraputica em sade mental, segundo a narrativa dos usurios, nas bases de dados LILACS,

    MEDLINE/PUBMED, BDEN/BIREME E PSYCINFO. Ressalto que oficina teraputica e

    grupo teraputico no so descritores em Cincias da Sade. Ento, utilizei como descritores:

    Servios de Sade Mental, Avaliao dos Servios de Sade, Indicadores de Qualidade em

    Assistncia Sade, Satisfao do Paciente, Enfermagem Psiquitrica. No foi delimitado o

    perodo a fim de permitir uma reviso ampliada. Exceto nas bases de dados

    MEDLINE/PUBMED que disponibilizava as pesquisas no perodo de 1997-2010. Os acessos

    foram viabilizados atravs do portal CAPES.

    Aps a realizao dessa reviso nas bases de dados citadas pude constatar que na sade

    mental, a disponibilidade de recursos avaliativos ainda pequena. Dos estudos encontrados, a

    maioria aborda a avaliao do servio substitutivo Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) e

    apenas trs o dispositivo oficina teraputica especificamente, todos no Brasil.

  • 19

    Desses trs, dois deram enfoque a opinio dos usurios e um a opinio dos familiares.

    Porm, apenas um retrata a qualidade das oficinas teraputicas segundo os usurios que foi o

    estudo realizado no LAPPEPSM conforme descrito anteriormente. O outro identifica as

    funes, os objetivos e as propostas das oficinas em sade mental, atravs da representao

    dos usurios.

    Em outros pases at o momento no foi encontrado estudos relacionados diretamente a

    qualidade das oficinas teraputicas na sade mental. Apenas sobre a avaliao dos usurios,

    familiares e profissionais a respeito dos servios de sade mental da rede bsica (ambulatrios

    e moradias assistidas) e da rede hospitalar (internao psiquitrica).

    Esta contextualizao entre IQPs na Educao e IQPs nas Oficinas Teraputicas em

    Sade Mental, pretende situar novamente certa ousadia desta pesquisa que centrar seu foco

    neste impalpvel e quase no avaliado campo das prticas de cuidado em sade mental.

    1.1 Questes norteadoras:

    - Como os usurios relatam que deve ser uma oficina teraputica com caractersticas

    de qualidade?

    - O que eles esperam obter de intangvel, considerando os IQPs como guias, ao

    freqentarem estes espaos?

    1.2 Objeto:

    A narrativa dos usurios do CAPS sobre as caractersticas de qualidade das oficinas

    teraputicas em sade mental.

    1.3 Objetivos

    - Descrever as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, a partir da

    narrativa dos usurios, utilizando como guia os IQPs;

    - Discutir os IQPs como guia para a construo de critrios de qualidade nas oficinas

    teraputicas em sade mental;

    - Analisar as oficinas teraputicas, enquanto dispositivo assistencial, a partir do olhar

    dos usurios.

  • 20

    1.4. Relevncia do estudo:

    A relevncia deste estudo est diretamente ligada possibilidade de propor uma

    discusso que esclarea as caractersticas de qualidade das oficinas teraputicas, na

    perspectiva dos usurios de um CAPS, a fim de permitir que os dispositivos assistenciais

    faam sentido e sejam capazes de movimentar a vida dos mesmos. Incluindo o enfermeiro

    como um agente facilitador do protagonismo dos usurios e contribuindo para um cuidado de

    enfermagem implicado com a perspectiva da reabilitao psicossocial, valorizando a fala dos

    usurios e no o sintoma de sua doena.

    O Relatrio da IV Conferncia Nacional de Sade Mental Intersetorial (IV CNSMI)

    realizada em Braslia, entre os dias 27 de junho a 01 de julho de 2010, indica que o

    aprofundamento do processo de desinstitucionalizao da loucura da Reforma Psiquitrica

    Brasileira requer a implementao de novos mecanismos de sistematizao, monitoramento e

    avaliao das informaes da rede de sade mental para viabilizar um planejamento adequado

    das aes nessa rea. A participao do controle social no processo de planejamento,

    monitoramento e avaliao das prticas cotidianas de trabalho e do funcionamento dos

    servios de sade mental, dando visibilidade aos indicadores, de forma a democratizar as

    informaes a todos os agentes sociais da sade, a reivindicao central das propostas no

    subeixo: Cotidiano dos servios e fortalecimento do protagonismo dos atores.

    Apoiar o trabalho com oficinas teraputicas na ateno em sade mental, visando

    promoo, proteo, tratamento e reabilitao da sade dos usurios e implementar processos

    avaliativos de efetividade, qualidade de atendimento e grau de satisfao em relao aos

    servios de sade junto a usurios e familiares so tambm alguns apontamentos feitos no

    Relatrio da IV CNSMI.

    Ainda contribuir para produo de conhecimento no Ncleo de Pesquisa em

    Enfermagem Hospitalar - NUPENH, no Laboratrio de Projetos e Pesquisa em Psiquiatria e

    Sade Mental - LAPPEPSM e subsidiar outros estudos de avaliao dos dispositivos

    assistenciais de Sade Mental indo ao encontro de outro apontamento feito no Relatrio da IV

    CNSMI a universidade em sua funo de pesquisa e de extenso deve contribuir para o

    rompimento do modelo manicomial, desenvolvendo projetos e aes substitutivas que

    promovam a qualidade de vida dos cidados.

    Este estudo tambm poder contribuir para a otimizao dos custos dos servios de

    sade, uma vez que abordar a melhoria da qualidade dos recursos utilizados nos servios

  • 21

    substitutivos de sade mental o que poder reduzir conseqentemente o nmero de

    (re)internaes.

    Segundo o Departamento de Informtica do SUS DATASUS, rgo da Secretaria

    Executiva do Ministrio da Sade no ano de 2010 a produo ambulatorial no Brasil para o

    procedimento ATENDIMENTO EM OFICINA TERAPUTICA SADE MENTAL foi

    840.406. Na regio sudeste 579.798 (maior de todas as regies do pas) e s na regio

    metropolitana do Rio de Janeiro 142.650.

  • 22

    CAPTULO 2

    SOBRE A PSIQUIATRIA E A REFORMA PSIQUITRICA BRASILEIRA

    2.1 Da loucura doena mental: o nascimento da psiquiatria

    A loucura, desde a Idade Clssica at a Modernidade, passou por uma srie de

    modificaes quanto sua abordagem at que, a partir do sculo XVIII, tornou-se sinnimo

    de doena mental. Foi somente a partir do sculo XIX que a loucura passou a ser diferenciada

    dos tipos marginais, que ameaavam a ordem social, processo este que inaugura a constituio

    de um saber especfico, mdico-cientfico, sobre a loucura, a psiquiatria.

    O hospital moderno, locus da nascente cincia, era instrumento de trabalho dos

    mdicos (MENDES, 1990, p.42) e local necessrio para o exerccio de suas prticas, para que

    o desenvolvimento tecnolgico da poca pudesse ser aplicado e acompanhado de modo mais

    intenso, rumo consolidao de uma prtica psiquitrica.

    Segundo Resende (1987 p.35), no sculo XVIII, os ideais do Iluminismo e da

    Revoluo Francesa, assim como aqueles propagados pela Declarao dos Direitos do

    Homem nos Estados Unidos, impulsionaram movimentos contestatrios aos

    enclaurusamentos arbitrrios dos loucos. As bases humanitrias destes ideais foram

    fundamentais para que os princpios alienistas fossem adotados na maior parte do mundo,

    fazendo do asilo o local indicado para os loucos, os despossudos da razo.

    Amarante (1995, p.23) considera que este espao tornou-se o maior e mais violento

    espao de excluso, sonegao e mortificao das subjetividades. Pelicier (1973, p.84)

    considera que a obra cientfica e a ao filantrpica de Philipe Pinel tiveram importante papel

    na mudana da maneira pela qual a loucura vinha sendo tratada, institucionalizada e ordenada

    o espao asilar, a partir do tratamento moral. Mas percebemos que o regime moral, em alguns

    casos, trouxe resultados ruins, principalmente quando pensamos nos hospitais que mantinham

    grande quantidade de doentes, submetidos a um sistema regular de disciplina, que os limitava

    progressivamente.

    Neste momento, a percepo da loucura foi dirigida pelo olhar cientifico, em que so

    estabelecidos os saberes prticos e tericos, ou seja, neste contexto surge a disciplina

    Psiquiatria, em que a patologia a doena mental.

    Para a poca, a criao do hospital psiquitrico, por Pinel, trouxe benefcios se

    pensarmos nas condies em que viviam os doentes. No entanto, a longo prazo, esta inovao

    gerou um aprisionamento do louco em suas condies psquicas, permeando uma cultura de

  • 23

    excluso e punio em decorrncia da falta da razo (Amarante, 1995, p.23). A partir de

    Pinel, a clnica e a nosologia estiveram em evidncia e associadas, fazendo com que o sculo

    XIX fosse marcado pela busca da teraputica especfica, ou seja, aquela indicada a cada caso

    especificamente, que acabou por afirmar a necessidade do paciente ser mantido sob

    vigilncia, isolado, aonde era possvel observar seus sintomas e serem estabelecidas as

    condutas especficas: Se Pinel operou um redimensionamento de prticas e saberes no que

    diz respeito loucura, sua reforma transformou o enclausuramento indiscriminado em

    segregao em nome da cincia ( Tenrio, 2001, p.123).

    Depois de Pinel, sucederam-se movimentos de contestao das prticas concernentes

    loucura. O prprio modelo pineliano foi severamente criticado, devido a seu carter fechado e

    autoritrio. A partir da segunda metade do sculo XIX, o mtodo anatomo-clnico tornou-se

    hegemnico na medicina e, conseqentemente, na psiquiatria, fazendo do organicismo a base

    de orientao para toda a produo nosolgica e a teraputica psiquitrica.

    Na descrio de Amarante (1995, p.27), [...] a psiquiatria seguir a orientao das

    demais cincias naturais, assumindo um matiz eminentemente positivista. Tal procedimento,

    criado com vistas a garantir emergente psiquiatria credibilidade cientfica, resultou em

    segregao como mtodo teraputico e investigativo.

    A excluso social do sujeito, como ponto central da teraputica, prevaleceu apesar das

    reformas sofridas pela psiquiatria. O ato de Pinel, que acabava por inaugurar a psiquiatria

    enquanto saber mdico foi contestatrio, reformista, em relao forma segregadora e

    indiferenciada como a loucura estava sendo tratada. Mas sua resposta tambm foi a

    segregao destes sujeitos.

    Dentre as reformas contemporneas, podemos falar nas psiquiatrias reformadas, para

    usar o termo proposto por Franco Rotelli (1990, p.92), ou seja, as comunidades teraputicas, a

    psiquiatria de setor, a psiquiatria preventiva ou comunitria e a psicoterapia institucional, que

    se implicaram em problematizar e buscar novas sadas para esta excluso.

    Entretanto, a proposta mais radicalmente oposta segregao imposta pela psiquiatria,

    foi aquela elaborada pela Psiquiatria Democrtica Italiana, liderada por Franco Basaglia.

    Nesse sentido, Amarante (1995, p.52) afirma que a proposta de Basaglia era superar a

    psiquiatria na qual o paciente ficava entre parnteses, onde todos se ocupavam do estudo da

    doena tendo, por conseqncia, construdo um objeto fictcio, pois no existe doena sem o

    sujeito de sua existncia. Para Basaglia (apud AMARANTE, 1995, p.54), seria necessrio

    colocar a doena entre parnteses para poder ocupar-se do doente em sua experincia concreta

    de sofrimento.

  • 24

    Como foi possvel observar, por muito tempo o sujeito adoecido foi mantido entre

    parnteses, valorizando-se o estudo das doenas e, principalmente, a estrutura e o lugar onde a

    loucura poderia ser instalada. Vale registrar que a fala dos doentes sobre si ainda muito

    pouco valorizada quase inexistente na literatura cientfica, talvez pela cultura hegemnica da

    razo que dita os fatos e a ordem, e em cujo jogo o discurso do paciente continua considerado

    irracional.

    A reviso situou-nos na forma como a loucura foi colocada no espao de excluso, e

    apresentou os vrios momentos que impulsionaram a histria, na qual o doente mental foi

    transformado em pessoa sem credibilidade e importncia diante da sociedade.

    Nesta histria o isolamento, foi a maneira escolhida para tratar o sujeito ou para

    livrar a sociedade do diferente, incoerente, insolvel e irredutvel, termos estes que cerceiam

    o doente mental, mas que so utilizados por Rotelli (1990, p.95) quando define psiquiatria

    como instituio que administra o que sobra.

    O sucinto histrico psiquitrico mundial exposto acima pode nos ajudar a pensar o

    percurso da psiquiatria no Brasil. Embora o caso brasileiro possua peculiaridades, sofremos

    influncias das psiquiatrias francesas (sobretudo num perodo inicial), norte americano,

    inglesa e, especialmente no mbito da reforma psiquitrica, da psiquiatria democrtica

    italiana.

    2.2 Da doena mental sade mental: o processo da Reforma Psiquitrica Brasileira

    O campo da sade mental no Brasil, desde a segunda metade da dcada de 1970, vem

    passando por mudanas relevantes em funo de um importante movimento de crtica

    Psiquiatria (DELGADO, 1992, p.43; AMARANTE, 1995, p.88). Tal movimento constituiu a

    chamada Reforma Psiquitrica Brasileira, processo de contestao e crtica Psiquiatria em

    sua resposta social de constante segregao problemtica da loucura (TENRIO, 2001,

    p.126).

    A Reforma colocou em curso um posicionamento contrrio excluso do sujeito,

    reproduzida e defendida pela lgica psiquitrica e manicomial. Uma excluso que no

    significa somente retirada do convvio social, por meio do confinamento hospitalar

    caracterstico do modelo asilar.

    A lgica manicomial estende sua excluso a pertencimentos sociais diversos,

    resultando, por exemplo, na no insero no mercado de trabalho e no retraimento da

    sociabilidade. Estende-se tambm ao direito da cidadania, uma vez que esta se encontra

  • 25

    vinculada razo, algo do qual o louco seria destitudo o que atestam as idias de

    incapacidade civil e inimputabilidade penal (TENRIO, 2001, p.124).

    H ainda outra anulao, to sria e nefasta quanto as trs anteriores: a Excluso da

    subjetividade. No h no modelo asilar, lugar para a singularidade, para uma existncia que

    leve em considerao as particularidades inerentes a cada ser humano.

    No cerne das reivindicaes da reforma Psiquitrica esto as idias do desmonte dos

    dispositivos institucionais de cronificao, a desinstitucionalizao, a valorizao da

    subjetividade, a ressocializao do louco, e, sobretudo, o resgate da cidadania (DELGADO,

    1992, p.71; AMARANTE, 1995, p. 52). Isso se vincula a transformaes gerais em curso nos

    planos ideolgicos e poltico, em momento no qual se punha o prprio exerccio da cidadania,

    uma vez que o pas experimentava a abertura e democratizao aps anos de ditadura militar

    (AMARANTE, 1995, p.93).

    [...] no processo brasileiro da Reforma Psiquitrica, o contexto de redemocratizao

    dos anos 80 um facilitador para o processo de contestao das prticas

    psiquitricas, que foram to utilizadas como forma de opresso e represso. A

    Reforma Psiquitrica surge sob o pano de fundo da redemocratizao das

    instituies, tambm do projeto de Reforma Sanitria brasileira. (RESENDE, 1987,

    p.32)

    Sabemos que psiquiatria e Reforma so termos que caminham juntos desde o

    nascimento da Psiquiatria. O gesto inaugural de Pinel, de humanizar o tratamento concedido

    aos loucos, ao fundante da cincia psiquitrica, j era em si uma reforma (TENRIO, 2001,

    p.129). O que h de novo ento na Reforma Psiquitrica Brasileira ocorrida nos anos 1980?

    Sua caracterstica essencial a reivindicao da cidadania do louco, dos direitos do

    doente mental. Segundo Tenrio, esta nova inflexo uma tentativa de dar loucura outra

    resposta social ou seja, abrir para o louco outro lugar social.

    [...] sua marca distintiva est no fato de que nas ltimas dcadas a noo de reforma

    ganhou uma inflexo diferente: a crtica ao asilo deixou de visar ao seu

    aperfeioamento ou humanizao, vindo a incidir sobre os prprios pressupostos da

    psiquiatria, na condenao de seus efeitos de normalizao e controle. (Tenrio,

    2001, p.20)

    O rompimento que a Reforma estabelece incide no s sobre o modelo de tratamento

    estabelecido pela Psiquiatria, mas principalmente, sobre o discurso e o saber psiquitrico que

    produzem a excluso como o nico lugar social possvel para o louco (Macedo, 1997, p. 14).

    A meta poltica e social uma transformao maior no cenrio da sade mental, passa a

    enfocar a questo da cidadania dos pacientes. Trata-se de um processo histrico de

    formulao crtica e prtica que tem como objetivos e estratgias o questionamento e a

  • 26

    elaborao de propostas de transformao do modelo clssico e do paradigma da Psiquiatria

    (Amarante, 1995, p.91).

    Como j foi dito, a reforma Psiquitrica Brasileira foi influenciada pelos movimentos

    de contestao vindos da Europa, principalmente da Itlia, que j ocorriam desde a dcada de

    1940. , sobretudo, nas experincias da tradio basagliana e na antipsiquiatria que a Reforma

    Brasileira se apia (Amarante, 1995), sustentando a crtica ao modelo psiquitrico que, em

    nome da cura, acaba por cronificar o sujeito. Sua crtica dirige-se, eminentemente, doena

    da excluso social. Ao coloc-la em questo, nossa Reforma colabora para romper com o

    paradigma doena-cura, dando lugar ao conceito existncia-sofrimento, que coloca o sujeito

    no centro das atenes (Rotelli, 1990). No se trata mais de um objeto a ser estudado por um

    saber que cataloga, descreve e classifica, mas sim de um sujeito em sua relao com o corpo

    social (Costa-Rosa et al., 2003).

    Dessa forma, houve tentativas de modificar a posio social da loucura que, para

    Amarante (2005, p.62), podem ser traduzidas como objetivos da Reforma Psiquitrica

    Brasileira, a fim de garantir a cidadania dos doentes mentais. Nesta perspectiva, temos

    observado que os dispositivos teraputicos agora utilizados tm propiciado mudanas na

    relao do louco com a sociedade, visto que favorecem o convvio e as trocas sociais,

    diferentemente do confinamento social.

    2.3 Por que Reabilitao Psicossocial?

    A idia de Reabilitao Psicossocial constitui um avano no discurso sobre os

    cuidados em sade mental. Sendo uma prtica espera de teoria, como afirma Benedetto

    Saraceno (1996, p.23), ela abre um campo de reflexo que no deve ser abandonado:

    Reabilitao Psicossocial implica numa tica de solidariedade que facilite aos

    sujeitos com limitaes para os afazeres cotidianos, decorrente de transtornos

    mentais severos e persistentes, o aumento da contratualidade afetiva, social e

    econmica que viabilize o melhor nvel possvel de autonomia para a vida na

    comunidade. (PITTA, 1996, p.8)

    De acordo com Saraceno (1999, p.68), um processo de reconstruo, um exerccio

    de cidadania e, tambm de maior contratualidade nos trs cenrios: habitat, rede social e

    trabalho. A contratualidade social diz respeito s trocas sociais que o individuo faz em

    sociedade, para atingir a liberdade de decidir sobre o que melhor para si.

    Ainda, Saraceno (1999, p.71) esclarece que em espaos de negociao, que propiciam

    trocas materiais e afetivas, o que deve ser colocado no centro da discusso a participao do

  • 27

    usurio, e no a autonomia, visto que o objetivo modificar as regras do jogo fazendo com

    que os fracos e fortes participem do mesmo espao, realizando as trocas necessrias e

    possveis. Dessa forma, no preciso transformar fracos em fortes para, ento, inseri-los no

    jogo, que deve ser de diferentes, mas no necessariamente de desiguais.

    Neste sentido tornar-se necessrio lutar por regras que permitam aos que tm menor

    poder contratual na sociedade conviver com os contratualmente mais fortes, no tentando

    transformar arbitrariamente todos os fracos em fortes. O conceito de reabilitao nos mais

    til que o de tratamento, que conota uma interveno mdica, apontando para um combate

    entre a sade e a doena. Ns sabemos que no se trata de cuidar de uma doena, mas de lidar

    com uma particular condio do sujeito ou pelo menos de criar oportunidades para que o

    sujeito venha surgir do horizonte de nadificao ou de destituio subjetiva (SAGGESE,

    2008, p.241).

    Sem retirar a responsabilidade dos usurios dos servios de sade mental de

    escolherem seu prprio vis de insero social, so necessrias aes de negociao e

    vinculao. Devemos criar espaos de maior diversidade, criativos, inovadores, dinmicos

    para que os usurios possam exteriorizar sua existncia-sofrimento.

    Dessa necessidade nasceu a idia da criao das oficinas teraputicas. Nome

    consagrado pela prtica, mas que no cobre satisfatoriamente a realidade que se refere. A

    expresso oficinas pode dar margem a uma interpretao tecnicista da prtica de

    reabilitao. Pode-se pensar exclusivamente na implementao de uma srie de tcnicas,

    formuladas por uma equipe e aplicadas sobre usurios que apresentam alguma desabilitao

    social. Passaria despercebida nesse caso a parte mais importante do funcionamento de um

    centro de ateno psicossocial: a relao com os sujeitos (SAGGESE, 2008, p.242).

    Os usurios dos servios de sade mental no devem ser aprisionados no papel de

    doentes e a equipe deve interagir com sujeitos, para alm de um perfil clinico individual. Mais

    que estratgias postas em prtica em cada oficina, sobressai o clima geral do servio.

    Saraceno (1999,p.95) reala que o servio e no o tratamento constitui a varivel (ou

    conjunto de variveis) que influi no andamento do processo reabilitatrio. Levando s ltimas

    conseqncias esse raciocnio, o autor afirma que o servio o tratamento.

    O contato incidental entre os membros da equipe e os usurios dos servios de sade

    mental tem o mesmo peso que as atividades programadas como oficinas (SAGGESE, 2008,

    p.242, grifos do autor). Esse contato incidental caracterizado pelo autor como o resultado do

    maior ou menor potencial do paciente de desenvolver relaes sociais e da suposio que os

    que trabalham no servio apresentam uma maior disponibilidade para o contato social com

  • 28

    pessoas com dificuldades. Loyola (2008, p.68) coloca que a nossa prtica na ateno

    psicossocial se faz da possibilidade de encontros e no h encontros se no houver

    disponibilidade e abertura para o outro. A esse respeito:

    Ainda precisamos avanar muito e superar o desafio que materializar o sonho de

    que esses espaos de ateno um dia se transformem em dispositivos teraputicos

    (de sentidos), porque so eles e no as oficinas, que estruturam o cotidiano da vida

    (LOYOLA et al, 2010).

    Ainda segundo Loyola (2008, p.67) reabilitar quer dizer reconstruir valores, construir

    nexos para entrar em parcerias sexuais, amorosas, esportivas, cientificas e financeiras.

    O levantamento bibliogrfico sobre o tema Reabilitao evidenciou que a psiquiatria

    brasileira segue uma tradio da psiquiatria norte-americana (CORIN, 1988, p.71), na qual a

    fala dos pacientes sobre si pouco valorizada ou mesmo empobrecida ao nvel do sintoma.

    Esta autora enfatiza que reabilitar privilegiar o potencial de recuperao das pessoas,

    colocando no centro das intervenes o sujeito e no seus dficits, ressaltando o papel de

    protagonista que o prprio usurio deve ter nesse jogo de se restabelecer, privilegiando a fala

    dos mesmos em todo o processo.

    A Reabilitao Psicossocial, que utilizamos como conceito, um processo que

    objetiva, no limite, uma qualidade de vida melhor. Significa passar de uma situao deficitria

    em termos de felicidade, autonomia e sade mental e fsica, para outra situao em que estas

    questes, todas ou apenas algumas, sero mais e/ou melhor atendidas.

    Na Sade Mental, a proposta para promover reabilitao composta de um conjunto

    de atividades, como oficinas, trabalhos em grupo e individuais, passando por atividades como

    teatro e artes plsticas. Essas atividades devem ser executadas como um guia orientador para

    realizar integrao, trocas sociais e afetivas, melhorar a auto-estima, entre outros. Ressalta-se

    que o simples ato de entreter pode ser apenas um subproduto do trabalho, mas nunca seu

    objetivo principal. Para Saraceno (1999, p.16):

    [...] entreter tem o sentido de ter dentro, passar prazerosamente o tempo... na espera

    de que a doena passe sozinha ou que o doente morra entretido, dentro do hospital

    psiquitrico ( na enfermaria, na cela forte, dentro das faixas de conteno, dentro da

    solido).

    Neste novo modelo de ateno sade mental, entende-se que as oficinas teraputicas

    no devem possuir o sentido da ocupao e do entretenimento, e sim de serem promotoras da

    reinsero social por meio de aes que podem envolver o trabalho, a criao de um produto,

    a gerao de renda e a autonomia do sujeito, para que no voltemos a cair numa nova

    institucionalizao, que pode vir a criar outros crnicos (COSTA e FIGUEIREDO, 2008,

    p.8).

  • 29

    CAPTULO 3

    OFICINAS TERAPUTICAS: REFAZENDO O PERCURSO HISTRICO E

    ATUALIDADES

    3.1 O uso do trabalho e da atividade no campo geral da psiquiatria: da fase pr-

    psiquitrica s novas propostas de desinstitucionalizao

    Para que possamos entender as oficinas teraputicas hoje necessrio pensar suas

    articulaes com prticas anteriores e tambm suas origens. Portanto, torna-se necessria a

    reviso desta trajetria.

    Sabemos que h muito tempo a atividade e o trabalho tm sido usados como recursos

    diante da loucura. Guerra (2004, p.23) afirma datar do sculo XII a primeira referncia ao uso

    da atividade e do trabalho como recurso teraputico para a loucura, ainda que distante do

    modelo mdico-psiquitrico que se firmou posteriormente nesse campo:

    Foi Bartolomeu, mestre da escola de Salerno primeira verdadeira escola de

    medicina do Ocidente, que floresceu nos sculos XI, XII e XIII- que fundamentado

    numa certa perspectiva, que hoje podemos denominar de moral ou psicolgica de

    compreenso da loucura, sugeriu, em termos terpicos, [...]os doentes devem ser

    revigorados e confortados e afastados de qualquer coisa que fosse, para eles fonte de

    medo ou de pensamentos angustiados. Deveriam at ser alegrados pela msica e,

    para alguns, seria conveniente achar uma ocupao. ( PESSOTTI, 1996, apud

    GUERRA 2008, p.28, grifos do autor)

    No sculo XVII, antes mesmo da instalao da psiquiatria no campo mdico, a

    atividade e o trabalho tiveram a funo de auxiliar a manuteno da ordem social exigida pelo

    novo modelo econmico estabelecido pela sociedade burguesa (RANGEL, 2006, p.30).

    A Grande Internao, nas chamadas casas de trabalho e casas de correo, cumpriu

    a funo de retirar da cena o grande contingente de improdutivos que a nova organizao

    liderada pela burguesia acabou gerando (FOUCAULT, 1989, p.53). Tornado um imperativo,

    o trabalho passou a ser usado como uma espcie de regulador social. Segundo Foucalt (1989,

    p.67) a alternativa clara: mo de obra barata nos tempos de pleno emprego e altos salrios;

    em perodo de desemprego, reabsoro dos ociosos e proteo social contra a agitao e as

    revoltas. No entanto, estas funes econmicas do trabalho e da atividade no obtiveram o

    xito esperado.

    Foucalt (1989, p.65) ressalta que foi a significao tica concedida ao trabalho, recurso

    de punio e salvao, que fez dele uma medida de eficcia, e que serviu para justificar a

    retirada dos improdutivos do convvio social. O trabalho era, para o pensamento clssico, o

    remdio para todos os males, que podiam ser definidos em uma s palavra: cio. Nesse

    contexto, as internaes estavam justificadas. Ao mesmo tempo em que eliminavam das

  • 30

    cidades os desordeiros, submetiam-nos ao trabalho, salvao para o mal social do cio

    (FOUCALT, 1989, p.71).

    Guerra (2008, p.26) destaca uma observao importante de Foucault (1989, p.70) a

    respeito das relaes entre ordem social, trabalho e internao: [...] dado que a preguia

    tornou-se a forma absoluta da revolta, obrigam-se os ociosos ao trabalho, no lazer indefinido

    de um labor sem utilidade nem proveito. O sem utilidade nem proveito ressalta a

    incapacidade para o trabalho e para a atividade, assim como para a incapacidade destes

    sujeitos de cumprirem o papel previsto no contrato social. Trabalho e atividade servindo

    apenas para referendar a excluso, no abrindo quaisquer sadas, apenas silenciando

    diferenas (RANGEL, 2006, p.31).

    Ainda, segundo Guerra (2008, p.25), essa situao comea a delinear o territrio sobre

    o qual a nascente psiquiatria se desenvolver futuramente, e, em seu seio, o uso da atividade e

    do trabalho enquanto recursos teraputicos.

    No final do sculo XVIII, os loucos foram separados dos outros tipos de excludos,

    estabeleceu-se para a loucura uma outra forma especfica de tratamento, o tratamento moral.

    Nasce a psiquiatria cuja crena na hegemonia da razo na constituio do sujeito transforma a

    loucura em doena mental, alienao em relao razo. Sua funo orientar o louco, por

    meio de embasamentos mdicos-cientficos, a um destino que possa resguardar a ordenao

    do espao asilar. A loucura passa a ser associada ao erro tico gerado pela desrazo, a

    psiquiatria de Pinel a considera como um desvio da corrente natural do pensamento racional,

    que deve ser reconduzida novamente racionalidade, normalidade, graas a um tratamento

    que implique reeducao moral pela razo (RANGEL, 2006, p.31).

    Pinel ento inicia uma nova proposta para lidar com os alienados, o tratamento moral.

    Atravs desse tratamento se daria a cura do alienado. Consistiria em normatizar o indivduo,

    ou seja, traz-lo de volta ao mundo da realidade, das normas sociais, tentando restabelecer

    suas relaes com os outros e o mundo sua volta. Este processo de normatizao se daria

    atravs de um processo pedaggico, a pedagogia moral.

    O discurso normativo do psiquiatra deveria se impor ao discurso inadequado do

    alienado. Este seria colocado em asilos com objetivo de se criar um meio social para educar o

    indivduo. Nesta proposta havia fundamentos de ordem e isolamento, regras, vigilncia e

    castigo (CASTELO BRANCO, 2008, p.5).

    A teraputica e a lgica pinelianas prevaleceram at meados do sculo XIX, quando

    foram suplantadas, ao menos no campo das idias, pela lgica organicista da doena mental.

    Ainda que ento tenham sido postas em discusso as causas da doena mental, na passagem

  • 31

    da corrente psicologicista para a organicista, no que diz respeito teraputica, o trabalho

    continuou cumprindo a mesma funo: submeter os alienados e insanos ao funcionamento do

    universo normal para que, assim, eles recobrassem a conscincia perdida. E tal

    procedimento perdurou por bastante tempo. A assistncia psiquitrica mergulha novamente no

    longo sono do perodo pr-pineliano, e no considero exagero afirmar que deste pesadelo s

    comear a despertar na poca da segunda grande guerra (RESENDE, 1987, p.29).

    Trabalho e atividade estiveram articulados psiquiatria desde a origem desta prtica

    mdica, configurando um importante elemento da lgica asilar (LIMA, 2004, p.63 ). A partir

    do final da primeira metade do sculo XX, no perodo do ps-guerra, surgem experincias na

    Europa e Estados Unidos que buscam romper com a prtica excludente da psiquiatria, as

    chamadas psiquiatrias reformadas. Termo proposto por Rotelli (apud NICCIO, 1990, p.

    18) para mapear as experincias reformistas da psiquiatria na contemporaneidade.

    Foi no mbito das psiquiatrias reformadas que se formalizou o campo de prticas e

    saberes da Terapia Ocupacional. Por isso, os referencias tericos e experincias dessas

    psiquiatrias so fundamentais para nossa discusso, j que as contribuies da terapia

    ocupacional foram as bases das atuais oficinas teraputicas (COSTA & FIGUEIREDO, 2008,

    p.7).

    Birman e Costa (2004, p. 23) propem uma periodizao importante a respeito das

    psiquiatrias reformadas, ao discutirem as propostas de cada uma destas experincias em

    relao lgica asilar psiquitrica. Comentando o estudo desses autores, Amarante (1995,

    p.71) prope a seguinte ordenao: 1) comunidades teraputicas e psicoterapia institucional

    (reformas restritas ao mbito asilar); 2) psiquiatria de setor e psiquiatria preventiva (que

    extrapolam as reformas do espao asilar); 3) antipsiquiatria e psiquiatria democrtica italiana

    (que instauram uma ruptura com as prticas anteriores, questionando o dispositivo mdico-

    psiquitrico, seu discurso e dispositivos teraputicos).

    O estudo de Guerra (2000) aborda as premissas que embasam as experincias citadas

    acima, bem como o uso do trabalho e da atividade nas mesmas. A autora, que tambm recorre

    s anlises de Birmam e Costa (1994) e de Amarante (1995), afirma terem sido as propostas

    de Simon, Sullivam, Bion e Menninger que determinaram o uso da atividade e do trabalho no

    perodo em questo. Destaca ainda as influncias de Schneider, Paul Sivandon, Freud e Jung

    segundo referncias encontradas na obra de Nise da Silveira (1976). Por fim, cita ainda

    Delgado (1994), com sua referncia psiquiatria do trabalho francesa (tambm da escola de

    Sivadon), e Simom como autores influentes. interessante conhecermos suas bases

    epistmicas e operacionais (GUERRA, 2000, p. 52).

  • 32

    Guerra (2000, p.54) relata que as experincias das Comunidades Teraputicas, na

    Inglaterra, e da Psicoterapia Institucional, na Frana, so tributrias da proposta de Simon (o

    trabalho um estimulante geral, uma possibilidade de exerccio das funes psquicas

    normais, que leva ao contato com a realidade). Outra influncia que ressalta de Sullivan e de

    seu enfoque teraputico voltado para a integrao de pacientes em sistemas grupais, geradores

    de possibilidades de comunicao entre os pacientes. Tambm Menninger aplicou a ttica da

    terapia grupal para doentes mentais: problemas e solues eram debatidos em grupo, visando

    a ressocializao. Quanto ao trabalho desenvolvido por Bion e Rickmann, Guerra (2000, p.55)

    aponta sua orientao no sentido de uma necessidade de recuperar a mo-de-obra militar, que

    fez do trabalho um aparato teraputico.

    J Sivadon focaliza na doena mental a perturbao das funes de adaptao ao

    ambiente onde vive o indivduo (GUERRA, 2000, p.56). A condio patolgica possuiria

    graus diferenciados de dissoluo, e a relao do doente com o ambiente funcionaria de

    acordo com esta gradao. A ocupao ser teraputica na medida em que vise reestruturar a

    personalidade mrbida, levando o paciente a nveis funcionais mais elevados. necessrio,

    para que os resultados alcanados sejam positivos, que os doentes se adaptem s atividades. E

    a adaptao depender das caractersticas do grupo de trabalho, do tipo de ocupao, do ritmo

    de trabalho, do material, do grau de relaes humanas que o paciente consegue estabelecer e

    do grau de responsabilidade que a atividade exige (GUERRA, 2000, p.57).

    Explicitadas as principais influencias, retornemos s psiquiatrias reformadas. Na

    comunidade teraputica, os pacientes eram tomados como agentes sociais de sua existncia

    hospitalar, por meio da organizao coletiva do trabalho e das discusses em grupo sobre as

    atividades do hospital, a fim de se evitar a iatrogenia deste ambiente. Atravs do trabalho e

    das atividades grupais, exercidas para o prprio funcionamento do aparato teraputico asilar,

    os sujeitos poderiam recuperar a normalidade perdida (RANGEL, 2006, p.35).

    Na psicoterapia institucional, a atividade um dos objetos institucionais que

    estabelecem a mediao entre paciente e o coletivo. A criao de um coletivo, que possa

    fornecer referncias ao paciente, o objetivo dessa psicoterapia (GUERRA, 2006, p.35).

    Trabalha-se com a noo de que o coletivo no caso, a prpria instituio psiquitrica

    propicia o melhor tratamento do paciente.

    Quanto a psiquiatria de setor, Guerra (2000, p.59) afirma ser esta uma reforma de

    cunho mais administrativo que tcnico ou terico pouco inovando quanto ao uso teraputico

    da atividade e do trabalho.

  • 33

    A psiquiatria preventiva prope novas atitudes teraputicas, entretanto distancia-se do

    trabalho com o paciente para atender s demandas que o trabalho comunitrio criou

    (RANGEL, 2006, p.36).

    Ao analisar as teorias e sistemas que influenciaram as experincias das psiquiatrias

    reformadas, podemos perceber que, a partir delas se originaram determinadas premissas

    adotadas pelas oficinas teraputicas atualmente.

    Umas das funes dessas oficinas hoje como destacam Costa e Figueiredo (2008, p.8)

    seu potencial em estabelecer o convvio entre os pacientes e entre pacientes e tcnicos, em

    oposio ao isolamento afetivo e social que o transtorno mental acarreta. No se trata aqui

    apenas do isolamento fabricado pela psiquiatria, mas de um isolamento inerente prpria

    experincia da loucura.

    Vale lembrar que Sullivam e Menninger e, conseqentemente, as experincias da

    comunidade institucional (cf. Guerra, 2000) j apontavam e apostavam que a integrao de

    pacientes em sistemas grupais gera a possibilidade de comunicao entre os pacientes. Foram

    criticados, como sabemos, por se restringirem ao mbito asilar, sem romper com sua lgica

    (RANGEL, 2006, p.36).

    Retomemos, para uma anlise mais acurada, as convices adotadas antes das

    psiquiatrias reformadas. A funo teraputica do trabalho em Pinel est articulada, como dito

    antes, noo de loucura como desrazo, desvio da corrente natural do pensamento racional.

    Assim sendo, a loucura deve ser reconduzida novamente racionalidade, normalidade.

    Tendo o trabalho alcanado o status de parmetro para a normalidade para atender s

    novas configuraes econmicas que vinham sendo estabelecidas desde a ascenso da

    burguesia ser por meio dele que o louco conseguir recobrar a razo. O trabalho e a

    atividade so teraputicos em si mesmos, pois a lgica pineliana v, na ordenao social

    proposta pelo trabalho, a condio de melhora do doente mental (RANGEL, 2006, p.38). J

    no mbito das psiquiatrias reformadas, sobretudo nas experincias da comunidade teraputica

    e da psicoterapia institucional, o trabalho e atividade ficaram restritos ao universo asilar,

    servindo para melhorar o funcionamento do hospital, servindo para reafirmar a instituio

    asilar como o epicentro do tratamento teraputico.

    Pode-se afirmar que nenhuma das duas lgicas acima se concilia com os objetivos das

    oficinas teraputicas atuais:

    Tomar a atividade em si como catalisadora da condio de melhora do paciente, sem

    construir para ela algum destino, remete tanto ao tratamento moral de Pinel, quanto

    garantia do bom funcionamento do aparato psiquitrico, preconizadas pelas

    experincias da comunidade teraputica e da psicoterapia institucional. No primeiro

    caso, pragmatismo torna-se sinnimo de Capacidade de executar uma tarefa, retorno

  • 34

    aos padres de normalidade; no segundo, sinnimo de garantia de que, entretido e

    ocupado com a atividade, o paciente no afetar o bom funcionamento do servio.

    (RANGEL, 2006, p. 36)

    Se, por outro lado, o pragmatismo estimulado por algumas oficinas retira o sujeito de

    uma posio de inrcia, ele tambm no deve se restringir a isso. Deve ir alm, estar dirigido

    a algum outro tipo de insero.

    Porque, muitas das vezes, na Ergoterapia, se produzem coisas que no servem a

    ningum, eu acho que isto no pedaggico, eu no acho que se faa Sade Mental

    ao produzir coisas inteis, muito embora possa a existir, certamente, um processo

    de aprendizagem para o qual se pode utilizar diferentes formas, mas acho que

    muito mais importante que uma pessoa se empenhe um ano para fazer uma coisa que

    pode ser vendida do que ela empregar um dia apenas fazendo uma coisa que no

    serve para ningum. (ROTTELI, 1994, p.154 apud GUERRA, 2000, p.64)

    No que diz respeito s reformas que rompem com o discurso e as prticas

    psiquitricas-asilares, podemos dizer que o trabalho4 tornar-se importante viabilizador da

    busca pelo resgate da cidadania, no cerne das estratgias de reabilitao ou reinsero social.

    O movimento da antipsiquiatria questionava o saber e a prtica, questionava a

    racionalidade das cincias naturais quando aplicada s cincias humanas. A loucura estaria

    entre os homens como fruto social, e no como mais dentro do homem como desvio de sua

    razo. Seu mtodo teraputico valoriza a anlise do discurso atravs da metania, da viagem

    ou delrio do louco, que no deve ser podada (AMARANTE, 1995, p.29).

    Segundo Rangel (2006, p. 40) as atuais oficinas teraputicas buscam suas bases nas

    noes difundidas pela Reforma Psiquitrica Brasileira e a experincia brasileira sofreu fortes

    influencias da Psiquiatria Democrtica Italiana.

    Sucintamente podemos dizer que a Psiquiatria Italiana toma por bandeira a idia de

    que a liberdade teraputica e por discusso crtica a perspectiva institucional

    enquanto conjunto que liga os saberes, as administraes, as leis, os regulamentos,

    os recursos materiais, que estruturam a relao mdico-paciente. (AMARANTE,

    1995, p.151)

    Mais que humanizar a assistncia, parte de uma critica radical ideologia dominante

    que busca destruir qualquer forma de diversidade em funo de uma exigncia de

    produtividade das pessoas, onde as foras no produtivas terminam por serem

    excludas, tendo na psiquiatria a legitimao dessa excluso em sua ao

    manicomial de aparncia cientfica. (ROTTELI, 1994, p. 150 apud RANGEL, 2006,

    p. 40)

    Dessa maneira em lugar dos conceitos de doena ou sade mental, trabalha-se com a

    noo de existncia-sofrimento do corpo em relao ao corpo social substituindo o

    curar pelo cuidar, a partir da idia de autonomia. (MIRANDA Jr., 1994, p.07 apud

    GUERRA, 2000, p.61)

    4 interessante pensar, como lembra Guerra (2000, p.62) que tomando por base ter um trabalho, um salrio, em nossa

    sociedade pode ser tomado como um elemento de Sade Mental, mas tambm um direito do cidado, o mesmo no deve ser transformado, segundo a vertente tica desse pensamento.

  • 35

    Guerra (2000, p. 65) coloca que foi a experincia italiana que redefiniu a idia de

    reabilitao mental, caracterstica do uso da atividade e do trabalho na psiquiatria. Props a

    reviso da ergoterapia realizada nos manicmios italianos prticas que, na verdade,

    promoviam a explorao da mo-de-obra dos internos para o bom funcionamento do

    manicmio. Para transformar o status do trabalho no campo psiquitrico, que no deveria

    mais ser estratgia de tratamento e to pouco de explorao, montaram-se as primeiras

    cooperativas de trabalho. Inicialmente, foram contratadas pela prpria instituio, que passou

    a pagar pelos servios dos internos. Esta atitude modificou as relaes entre os sujeitos que

    habitavam o hospital psiquitrico, ou seja, tcnicos e pacientes.

    Em um segundo momento, os pacientes comearam a ser pensados no apenas como

    produtores, mais tambm como consumidores. Este novo papel permitiria, mais do que

    apenas a funo de produtor, readquirir a capacidade de relacionamento com os outros. No

    prprio hospital foram criados pequenos negcios que viabilizavam as trocas via consumo.

    Com o desenrolar deste processo, as cooperativas vieram a articular o pblico e o privado,

    buscando trabalhar qualidade do ambiente, do produto das relaes. E trabalhar a qualidade

    significa ampliar o alcance da terapia, considerando-se que, no mundo da marginalizao,

    somente a prpria qualidade pode fazer frente segregao.

    Parece, portanto, que um certo uso do mercado e da qualidade so os eixos em torno

    do qual a Psiquiatria Democrtica funda em seu interior o uso da atividade e do

    trabalho com recurso teraputico. Nesse territrio, o teraputico passa a se

    entendido como tudo aquilo que nos permite revisitar a qualidade de vida.

    (ROTELLI, 1994, p.159 apud GUERRA, 2000, p.64)

    A Psiquiatria Democrtica Italiana traz para o campo da sade mental novas e

    importantes questes. Podemos destacar as transformaes sofridas pela noo de teraputico,

    da idia de ampliao das possibilidades de troca na vida pblica, no que o aspecto poltico e

    o clinico encontram-se associados, como ressalta Guerra (2000, p.71). Quanto utilizao do

    trabalho e da atividade prope-se a incluso deles nos circuitos da qualidade e econmico,

    onde as trocas sociais se estabelecem de fato.

    Essa retrospectiva nos revela que o trabalho e atividade tiveram lugar certo nas

    prticas que constituem a instituio psiquitrica desde o seu nascimento, como um

    importante instrumento organizador da lgica asilar. Retomar esta trajetria fundamental

    para (re)pensar as prticas contemporneas e refletir sobre seus impasses, encontrando novas

    e criativas maneiras para no reproduzirmos os velhos modelos que tanto criticamos.

  • 36

    3.2 O uso do trabalho e da atividade no contexto psiquitrico brasileiro: do sculo XIX

    aos tempos atuais

    No captulo anterior vimos que na Europa a ruptura da ordem feudal e a ascenso do

    capitalismo mercantil, trouxeram a necessidade de uma nova ordenao social, intolerante ao

    que no lhe serve, instituindo medidas contra a desordem, como a loucura. Pr-condies

    como urbanizao e industrializao dos meios de produo aportaram novas necessidades e

    novos contratos sociais. Essas no eram as circunstncias do Brasil quando a loucura

    ascendeu condio de problema social o que no nos permite a simples importao de

    explicaes para o entendimento do processo brasileiro.

    Resende (1985, p. 29) ressalta que, embora aqui tambm tenha ocorrido, como na

    Europa, o seqestro da liberdade do louco devido, a motivaes socioeconmicas, devemos

    considerar que as peculiaridades da vida econmica e social do Brasil colnia constituem um

    diferencial importante. Por que teria o doente mental, no Brasil, surgido na cena social muito

    antes de se ter alterado aquela mesma organizao, que at certo momento, lhe propiciou

    extraordinria acolhida? (RESENDE, 1995, p.32). A vida econmica do Brasil colnia e o

    trabalho baseado na atividade servil determinaram tais alteraes.

    Segundo Rangel (2006, p.43) a utilizao dos escravos com suas conseqncias,

    como a falta de trabalho para homens livres e o preconceito em torno do prprio trabalho,

    associado a uma prtica inferior produz uma massa de desocupados, vagabundos e ladres,

    enfim, de excludos, grupo que passa a atrapalhar a ordem social. Os loucos sero

    identificados a este grupo, e para eles sero aplicadas as mesmas medidas. As Santas Casas de

    Misericrdias, que at ento abrigavam apenas doentes pobres, velhos, rfos e mendigos,

    passam a ter, tambm, os loucos e outros marginalizados como hspedes.

    Desordem franca e ociosidade, perturbao da paz social e obstculos ao

    crescimento econmico, esto ai as mesmas circunstancias sociais que, alguns

    sculos antes, determinaram na Europa, o que Foucalt qualificou de o grande

    enclausuramento, as diferenas residem apenas nas causas estruturais, aqui e l, e

    que no foram poucas. (RESENDE, 1995, p.35)

    Quanto ao tratamento dispensado aos loucos, era nos pores, sem qualquer tipo de

    assistncia medica que seus delrios eram contidos com atos de violncia fsica. As prises

    com igual tratamento, tambm acolhiam a loucura nessa poca (RANGEL, 2006, p.24).

  • 37

    Podemos tomar com marco institucional5 da psiquiatria brasileira a construo em

    1852 do primeiro hospital psiquitrico do pas, o Hospcio de Pedro II, na Praia Vermelha,

    Rio de Janeiro. Posteriormente veio a receber o nome de Hospcio Nacional dos Alienados.

    Surgiu em resposta aos reclamos gerais contra o livre trnsito de doidos pelas ruas da cidade;

    acrescentem-se os apelos humanitrios, as denncias contra os maus tratos que sofriam os

    insanos (RESENDE, 1987, p.38). Em um contexto de desordem e ameaa paz social, as

    instituies psiquitricas brasileiras foram implementadas no intuito de controlar, segregar e,

    posteriormente, tratar a loucura.

    A localizao do primeiro hospcio brasileiro se deu em local afastado da cidade,

    lgica que tambm determinar a instalao de outras estruturas psiquitricas asilares, as

    colnias de alienados, que vieram a compor a assistncia psiquitrica brasileira. Outros

    hospcios foram sendo inaugurados em outras partes do territrio nacional. A distancia e a

    necessidade de asilamento se justificam por proposies que segundo Resende (1987, p.40)

    so contraditrias entre si. De um lado, a indicao social que visava manuteno da ordem

    e da proteo social, de outro, a indicao clnica e a inteno de cura.

    No que diz respeito ao uso do trabalho e da atividade, nas colnias de alienados da

    dcada de 1920, a motivao era interesses econmicos, ocupacionais e ordenadores, o que

    colaborava para fazer dos chamados doentes mentais mo-de-obra nas lavouras (FARIA,

    1995 apud RANGEL, 2006, p.44), sendo esta atividade entendida como teraputica.

    Em hospitais psiquitricos da dcada de 1930 o trabalho tambm era considerado por

    seus fins teraputicos, funcionando como um organizador da vida institucional (MIRANDA

    Jr.,1994 apud RANGEL, 2006, p.44). necessrio ressaltar que o que se define como

    teraputico deriva do que se entende por loucura sendo necessrio, portanto rever o

    significado da funo teraputica do trabalho ou atividade conforme as diferentes formas de

    entendimento acerca da loucura e do modelo de doena estabelecido.

    A partir dos anos 1930, a psiquiatria Alem de base organicista se estabelece no Brasil,

    principalmente por meio da figura de Juliano Moreira. Muito embora se possa afirmar que o

    perodo imediatamente posterior Proclamao da Repblica tenha estabelecido uma diviso

    entre a psiquiatria emprica do vice-reinado e a psiquiatria cientfica, s a partir da dcada de

    1930 esta ultima se materializou. Segundo Guerra (2000, p.70) esse perodo se caracteriza por

    utilizar o trabalho como recurso teraputico com trs finalidades: ocupar o tempo ocioso,

    gerar renda para manuteno das colnias e asilos e manter a ordem social, no contexto

    5 importante dizer que j em 1841, no Rio de Janeiro, havia um Asilo Provisrio, no mesmo local onde foi

    construdo o Hospcio Pedro II.

  • 38

    conturbado da consolidao da Republica, do nascimento dos centros urbanos e da vida

    citadina no pas.

    importante lembrar que algumas propostas diferenciadas tambm ocorreram a partir

    deste perodo, como o caso das experincias empreendidas por Osrio Cesar, em Franco da

    Rocha, So Paulo, e Ulisses Pernambucano, em Recife, Pernambuco. No ano de 1929, Cesar

    publicou o livro A Expresso Artstica dos alienados Contribuio ao Estudo dos Symbolos

    na Arte, considerado sua obra prima. Trata-se de um estudo iniciado em 1923, realizado no

    Hospital do Juqueri, no qual o mdico encontrara produo artstica pelos ptios e salas da

    instituio (ADRIOLO, 2004 apud Rangel 2006, p.45).

    Em 1925, Cesar publicara seu primeiro artigo sobre a temtica das atividades

    artsticas, intitulado A Arte Primitiva dos Alienados. Foi com a motivao de condenar as

    concepes sobre o exerccio mecnico da arte pelos loucos e acreditar no potencial artstico

    dos trabalhos produzidos que Cesar publicou seus trabalhos e investiu na circulao destas

    obras nos campos da arte e da psiquiatria. Cesar e Pernambuco so pioneiros no Brasil, na

    utilizao da atividade com o enfoque artstico (RANGEL, 2006, p.45).

    Rangel (2006, p.46) lembra que no campo das artes importantes transformaes

    vinham ocorrendo, principalmente em funo do movimento modernista, cujas idias

    valorizavam a espontaneidade e livre expresso, questionado o virtuosismo tcnico e o

    academicismo nas artes. A qualidade plstica de doentes mentais e crianas passou a ser

    valorizada, legitimada no contexto da arte.

    Ainda Rangel (2006, p.47) destaca que Cesar no ficou restrito ao universo da

    psiquiatria ao abordar a temtica das artes produzidas pelos habitantes dos hospitais

    psiquitricos. Buscava sempre a articulao com artistas e pensadores de outras reas, fazendo

    um intercambio entre o mundo de dentro o asilo e o mundo de fora a sociedade.

    fundamental destacar na obra de Cesar sua atitude inovadora em colocar as obras dos artistas

    que produziam no Juqueri no campo das artes, de ter para com elas, o mesmo olhar que, como

    critico de arte, tinha com os artistas da arte formal.

    Na dcada de 1940, outra importante figura da psiquiatria brasileira, Nise da Silveira,

    introduziu um diferencial em relao funo teraputica da atividade e do trabalho. Este que

    era, essencialmente, laborativo (alfaiataria, plantio, marcenaria) e voltado para a prpria

    manuteno da instituio6, assumiu ento a funo de expressar aquilo que inconsciente.

    6 Com exceo das experincias de Ulisses Pernambuco e Osrio Cesar, citadas anteriormente.

  • 39

    Ao questionar a primazia do pensamento organicista na psiquiatria, Nise da Silveira

    valoriza o uso da atividade como recurso teraputico, denunciando, ao mesmo tempo, os

    desvios em sua utilizao e enfocando o respeito produo subjetiva dos pacientes e suas

    manifestaes. Desse modo, subverteu a lgica vigente, colocando as atividades expressivas

    em p de igualdade com as demais abordagens teraputicas (terapia medicamentosa,

    eletrochoque e lobotomias), no mais submetidas manuteno da prpria instituio.

    Alm disso, superou a viso anterior, segundo a qual a ocupao teraputica s era

    destinada aos crnicos e, sobretudo, buscou garantir uma postura de respeito e ateno

    produo subjetiva do louco. Assim, suas inovaes, verdadeiros cortes epistemolgicos

    cultura que sustentava as prticas psiquitricas vigentes poca, foram de influencia decisiva

    para concebermos o que hoje chamamos de oficinas (GUERRA, 2000, p.96).

    Nas dcadas posteriores, de 1950 a 1970, o pas passou por um perodo marcado por

    grande descaso e reduzidssimo investimento na rea. So caractersticas deste momento o

    enfoque medicamentoso adotado pela psiquiatria tradicional fortalecido pelas multinacionais

    da indstria farmacutica e por uma viso psicanaltica ortodoxa; a orientao organicista

    predominante nos cursos de sade; a lgica privatizante na poltica de sade e a falta de

    intencionalidade poltica de mudana da situao da institucionalizao da loucura nos

    manicmios (GUERRA, 2000, p.94).

    A atividade voltada para o campo, caracterstica das colnias agrcolas, ficou

    destoante, uma vez que a industrializao ganhava cada vez mais alcance; por outro lado, o

    trabalho tornou-se um arremedo de praxiterapia, constando de atividades montonas e

    repetitivas, nas quais o doente no podia perceber qualquer sentido (RESENDE, 1989, p.28).

    A Terapia Ocupacional de Nise da Silveira foi bastante enfraquecida e mesmo marginalizada

    nesse perodo.

    Na dcada de 1980, diante da situao critica em que se encontrava o campo da sade

    mental no Brasil internaes desnecessrias, assistncia de m qualidade, privatizao

    galopante e abusivamente lucrativa, carncia de infra-estrutura iniciou-se um processo de

    combate a tal estado de coisas. Foi posto em questo o saber psiquitrico e sua prtica. No

    centro das reivindicaes da Reforma Psiquitrica Brasileira estavam o resgate de cidadania

    do louco e a construo de novas prticas sociais e assistenciais para lidar com a loucura.

    A dcada de 1980 assistiu ainda ao surgimento de experincias institucionais bem-

    sucedidas na arquitetura de um novo tipo de cuidados em sade mental. Ao menos duas delas

    so consideradas marcos inaugurais e paradigmticos de uma nova prtica de cuidados no

    Brasil: o Centro de Ateno Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em So Paulo; e

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    a interveno na Casa de Sade Anchieta, realizada pela administrao municipal de Santos

    (SP), iniciando o processo que se constituiria no complexo e exemplar Programa de Sade

    Mental daquela cidade. A experincia santista nasceu da interveno pblica realizada pela

    nova administrao municipal na Casa de Sade Anchieta (TENRIO, 2002, p.28).

    A Anchieta era uma clnica privada conveniada com o Inamps (isto , contratada e

    financiada pelo poder pblico para prestar assistncia pblica populao) e funcionava h

    quarenta anos absorvendo praticamente toda a demanda de internao asilar da regio. A

    interveno, motivada pelas denncias (logo comprovadas) de mortes, superlotao,

    abandono e maus-tratos, transformou-se em desapropriao por razes de utilidade pblica e

    depois se desdobrou em aes para extinguir o manicmio na cidade, com a implementao

    de um Programa de Sade Mental organizado em torno dos ento criados Ncleos de Ateno

    Psicossocial (NAPS).

    Os NAPS so estruturas abertas, regionalizadas, com responsabilidade por toda a

    demanda da regio, independentemente de sua gravidade, oferecendo cuidados 24 horas,

    todos os dias, inclusive acolhimento de tipo internao, cada unidade dispondo de seis leitos,

    aproximadamente (LEAL, 1994, p.32). O servio deve oferecer o maior nmero possvel de

    recursos diferentes e alternativas de cuidado: o mesmo espao prestando-se a funcionar como

    hospital-dia, hospital-noite, aceitando freqncias variadas ou mesmo irregulares ao

    tratamento e oferecendo desde consultas mdicas e psicolgicas s mais variadas atividades

    grupais, alm de atender em regime de visita domiciliar aos pacientes com os quais por algum

    motivo este seja o nico contato possvel.

    Outro marco inaugural dos novos paradigmas de cuidados em sade mental no Brasil

    o Centro de Ateno Psicossocial - CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira, em So Paulo.

    Funcionando desde 1987, o CAPS tornou-se uma espcie de exemplo irradiador de um novo

    modelo de cuidados para a psiquiatria brasileira. diferena da experincia de Santos, que

    consiste de todo um programa de polticas pblicas, o CAPS Luiz Cerqueira uma unidade

    especfica da rede pblica do estado de So Paulo. O caminho de reflexo que veio a trilhar

    situa-se mais estritamente no interior da clnica, o que no quer dizer que se reduza s meras

    reformulaes tcnicas que caracterizaram a fase inicial da reforma, anteriormente citada. O

    questionamento dos pressupostos do saber psiquitrico colocado no em uma perspectiva

    externa psiquiatria, mas no sentido de, internamente ao campo, produzir um novo modo de

    fazer e conceber a doena mental, seu tratamento e a cura.

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    A clnica do CAPS, portanto, no dispensa a tradio, o saber e os instrumentos da

    psiquiatria, mas subordina-os a uma nova apreenso do que seja a problemtica da doena

    mental e do que seja o tratar.Basicamente, o CAPS um servio de atendimento-dia, em que

    o paciente passa o dia e noite volta para sua casa. Vimos anteriormente que o ambulatrio,

    na dcada de 1980, no funcionara como barreira prevalncia da internao como forma de

    tratamento. O CAPS Luiz Cerqueira e os CAPS que nele se inspiraram partem da constatao

    de que a especificidade clnica da clientela-alvo, sobretudo no que diz respeito s dificuldades

    de vida gerada pela doena e s possibilidades de expresso subjetiva do psictico grave,

    requer muito mais do que uma consulta ambulatorial mensal ou mesmo semanal.

    Assim, os CAPS fundamentam-se na idia de que o tratamento dos pacientes

    psiquitricos graves exige condies teraputicas que inexistem nos ambulatrios e hospitais

    psiquitricos. (Goldberg, 1994, p. 22). O atendimento-dia, que possibilita que o paciente

    comparea todos os dias da semana se necessrio, articula-se a outras caractersticas

    especficas, como a oferta de atividades teraputicas diversificadas e a constituio de uma

    equipe multiprofissional. Busca-se oferecer ao paciente a maior heterogeneidade possvel,

    tanto no que diz respeito s pessoas com quem que ele possa se vincular, quanto no que diz

    respeito s atividades em que possa se engajar.

    O trabalho e atividade foram, em um primeiro momento, estratgias de reinsero e

    reabilitao social, com vistas ao resgate da cidadania dos pacientes. Por meio do trabalho, os

    sujeitos poderiam recuperar a capacidade de gerir as condies materiais mnimas de sua

    sobrevivncia, a autonomia no campo social. Segundo Miranda Jnior (1994 apud RANGEL,

    2006, p.49) o trabalho entra aqui como um dos agentes catalisadores de construo desta

    cidadania/autonomia enquanto permite ao su